Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1763/17.0T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
CAPACIDADE
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 6.º, N.ºS 1 3 3 DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: Cabe à sociedade que invoca a nulidade de garantia real prestada por si a outra entidade o ónus de provar que não tinha um interesse próprio na prestação de tal garantia ou que não estava em relação de domínio ou de grupo com a entidade beneficiária da garantia.
Decisão Texto Integral:





            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

 “J..., S.A.”, executada em autos de execução, veio deduzir por apenso embargos de executado contra “C...”, pedindo a procedência dos embargos.

Para tanto, alegou, em síntese, que a garantia prestada é nula, por ser contrária à lei, uma vez que ela Executada ora embargante nunca teve por objeto a prestação de garantias a terceiras entidades, nem a executada estava numa relação de domínio ou de grupo com a sociedade a favor da qual foi prestada a garantia. Acresce que nunca existiu qualquer projeto de internacionalização ou empreendimento comum com a “P..., SGPS, S.A.”, o que era do conhecimento da exequente, uma vez que está vedado a uma SGPS contrair dívidas para empreendimentos comuns ou projetos de internacionalização com outras entidades que nem sequer são suas participadas. Invocou ainda a nulidade do mútuo por ter sido simulado, uma vez que os três milhões de euros que a exequente colocou na conta da “P..., SGPS, S.A.” foram logo transferidos para a conta da “P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A.”, no mesmo banco, a fim de liquidar responsabilidades financeiras.

                                                           *

A exequente apresentou contestação, na qual invocou venire contra factum proprium da parte da executada, por vir agora afirmar que as declarações que proferiu na escritura de hipoteca outorgada em 2009 não correspondem à verdade. Alegou ainda que o montante de € 3.000.000 foi efetivamente mutuado.

                                                           *

Teve lugar a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo, conforme resulta das respetivas atas.

Na oportuna sequência foi proferida sentença – incorporando a enunciação dos factos dados como provados e não provados e a correspondente “motivação” – na qual se entendeu, no essencial, que «não se tendo demonstrado a falta de justificado interesse próprio da sociedade garante nem a inexistência de relação de domínio ou de grupo, não se pode concluir que a garantia prestada é contrária ao fim da executada», acrescendo que «igualmente se demonstrou que a exequente efetivamente disponibilizou o montante acordado à mutuária, nos exatos termos contratados, tendo sido esta que, posteriormente, lhe deu o destino que entendeu, o que, como é evidente, não constitui qualquer simulação», por ambas as vias se concluindo pela improcedência dos embargos, o que veio a traduzir-se na seguinte concreta decisão:   

«Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal julgar os presentes embargos de executado totalmente improcedentes e, em consequência, determinar o normal prosseguimento da execução.

*

                                                                                          * *

Custas pela executada – artigo 527.º, n.º 1, e 2 do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.»

                                                           *

            Inconformada com essa sentença, apresentou a Embargante recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«A. O tribunal a quo fez uma errada interpretação dos factos e uma errada análise da prova produzida nos presentes autos, olvidando que o Doc. 2 da contestação corrobora, em tudo, o depoimento da testemunha AA, sobretudo quando conjugado com as regras da experiência comum.
B. Este documento, junto pela própria embargada, demonstra claramente que esta sempre soube que os €3.000.000,00 creditados na conta de movimentos à ordem da P... SGPS, S.A., foram por esta utilizados para liquidar responsabilidades por si anteriormente assumidas e o restante transferido para a conta da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A. para liquidar responsabilidades financeiras desta última,
C. Atento os depoimentos prestados pelas testemunhas BB, AA e CC e o Doc. 2 da contestação, o facto não provado “- os montantes descritos nas alíneas a) a d) do ponto 5) destinaram-se a liquidar responsabilidades financeiras da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A.” deveria ter sido dado como “provado”.
D. Do mesmo documento também se extrai que em 12 de maio de 2009 foi liquidada uma operação de desconto de uma livrança (Op. ...01... de € 252.050,61 (duzentos e cinquenta e dois mil e cinquenta euros e sessenta e um cêntimos, anteriormente aceite pela P... SGPS. S.A., facto que também devia forçosamente ter ficado provado.
E. A constituição da hipoteca favor da embargada, incidente sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...76 da freguesia ... é nula, por ser contrária à lei.
F. Resulta dos autos que a embargante tem por objeto social a construção civil e obras públicas, reparação e comercialização de edifícios e a compra e venda de propriedades e não a prestação de garantias a terceiras entidades.
G. A capacidade das pessoas coletivas abrange (apenas) os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.
H. Do simples cotejo da ata da Assembleia Geral da embargante de 2 de março de 2009, logo se constata que a embargante não tinha no seu corpo social qualquer participação da P..., SGPS, S.A., pelo que não estava numa relação de domínio ou de grupo com a mesma.
I. Eram, na altura, acionistas da embargante AA, DD e EE – Doc. 2 do requerimento inicial.
J. Eis, portanto, desmontada a vertente do alegado interesse próprio da embargante na prestação da garantia.
K. Por outro lado, o alegado mútuo prestado pela exequente nunca teve lugar e nunca esteve em causa e nunca existiu qualquer projeto de internacionalização ou empreendimento comum com a P..., S.A., o que era do pleno conhecimento da exequente, como referido pela testemunha AA.
L. O mútuo invocado pela embargada nunca verdadeiramente teve lugar.
M. Dada a conjuntura económica do país, em maio de 2009, a empresa P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A. já atravessava graves dificuldades financeiras, que eram irreparáveis e que determinaram a sua insolvência em 13 de abril de 2011.
N. Nessa altura, a P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A. apresentava para com a embargada uma avultada dívida de vários milhões de euros, que se encontrava em incumprimento.
O. O “mútuo” cozinhado com a P..., S.A. mais não constituiu que uma forma ardilosa de aumentar as garantias do Banco exequente sem este mobilizar ou disponibilizar quaisquer novos recursos financeiros.
P. Tratou-se apenas de renegociar um passivo da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A. e da assunção do referido passivo por parte da ora embargante, sem que tivesse sido mutuada nesta altura qualquer nova quantia, fosse àquela sociedade, fosse à embargante, ora recorrente.
Q. Tratou-se, pois, de um mútuo simulado: os €3.000.000,00 que o Banco exequente alegadamente terá colocado (se é que foram colocados) na conta da ora embargante, logo foram transferidos para a conta da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A., no mesmo Banco, logo foram aproveitados para liquidar responsabilidades financeiras desta última!
R. Tratando-se de um mútuo simulado, o mesmo é inequivocamente nulo.
S. Sendo nulo o contrato de mútuo, nula é forçosamente a garantia hipotecária.
T. O mútuo é um contrato real quoad constitutionem, cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objeto mediato.
U. Não existindo prova plena da demonstração da entrega da quantia por parte dos credores e incumbindo a estes, como mutuantes, o ónus da prova da entrega da quantia, se para além do documento autêntico (escritura pública) não apresentarem outro meio probatório que demonstre a entrega, será de concluir não demonstrarem o preenchimento dos requisitos do direito de crédito resultante do mútuo por si invocado e que foi validamente impugnado.
V. Demonstrado que verdadeiramente nada foi mutuado pela exequente à P..., S.A. e demonstrado que esta tinha perfeito conhecimento de que eram falsos e desprovidos de qualquer correspondência com a realidade os motivos invocados para a concessão da garantia real na ata da Assembleia Gral da embargante de 2 de março de 2009, é inequivocamente nula e de nenhum efeito a hipoteca exequenda.
W. O procedimento aqui retratado era, de resto, um procedimento recorrente no Banco exequente, frequentemente utilizado como forma de aumentar as garantias dos empréstimos que fazia sem ter de mobilizar ou disponibilizar quaisquer novos recursos financeiros.
X. Deverá, pois, inequivocamente, ser revogada a douta sentença recorrida.
Y. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 6.º, n.ºs 1 e 3; 486.º e 488.º do Código das Sociedades Comerciais e os artigos 160.º, n.º 1; 240.º, n.º 2; 280.º, n.º 1; 294.º e 730.º, al. a) do Código Civil.
Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas, doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, assim, ser revogada a douta sentença ora recorrida e substituída por outra que julgue os embargos de executado totalmente procedentes, por provados, com o que será feita, como é timbre deste Venerando Tribunal, a já costumada
JUSTIÇA!»

                                                                       *

            A Exequente apresentou as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes                        conclusões:

«1. A Apelante interpôs recurso da douta sentença proferida em 07-07 2021, que decidiu, em suma: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide este Tribunal julgar os presentes embargos de executado totalmente improcedentes e, em consequência, determinar o normal prosseguimento da execução.”

2. Contudo, afigura-se à Apelada que a douta sentença recorrida deve manter-se, pois consubstancia uma solução que consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e princípios jurídicos competentes.

3. A douta sentença ora em crise, entendeu, com base em toda a prova, quer documental, quer testemunhal, que resultaram provados os seguintes factos: “Na Assembleia Geral Ordinária da executada, realizada em 2/03/2009, foi deliberado dar como garantia o imóvel descrito no ponto 2, alínea b) “para garantir empréstimo a conceder à P... SGPS, S.A., pela C... (…).” (sublinhado e negrito nosso)

4. “O montante descrito no ponto 1, alínea a), foi depositado pela exequente na conta aí indicada em 27/05/2009…” (sublinhado e negrito nosso)

5. Porém, a Apelante alega que “…foram carreadas para os autos provas inequívocas e irrefutáveis que impunham resposta diversa (a de “provado”) ao facto não provado: “- os montantes descritos nas alíneas a) a d) do ponto 5) destinaram-se a liquidar responsabilidades financeiras da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A.”.”

6. Ou seja, insiste em tornar provado aquilo que, de acordo com a sentença proferida “Quanto aos factos não provados, rigorosamente nenhuma prova foi produzida.”.

7. Alega ainda que: “A constituição da hipoteca favor da embargada, incidente sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...76 da freguesia ... é nula, por ser contrária à lei.”;

8. Quanto à questão da nulidade da garantia prestada por ser contrária aos fins da sociedade Apelante, devemos considerar a regra prevista no artigo 6º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais, que, de facto, consiste na limitação da possibilidade das sociedades comerciais prestarem garantias a dívidas de outras entidades, excepto em caso de justificado interesse próprio da sociedade garante, ou no caso de se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

9. Ainda acerca desta questão, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - 1522/10.0TVLSB.L1-2 – decidiu que as excepções previstas no artigo 6º n.º 3 do C.S.C. “são de tal ordem que acabam por consumir a regra. O “justificado interesse próprio” é definido pela própria sociedade, através dos seus órgãos… Ora é evidente que, quando se presta uma garantia – altura em que todos pensam que a operação vai correr bem ou que, pelo menos, tudo é recuperável – é facílimo invocar interesse próprio justificado. A jurisprudência alarga, mesmo, a ideia de interesse, explicando que ele pode ser “indirecto”. (…)”.

10. Ora, consta da Ata de Assembleia Geral Ordinária, junta a fls. dos autos, realizada em 02-03-2009, que a Apelante deliberou dar como garantia o imóvel “para garantia do empréstimo a conceder à P... SGPS, S.A, pela C...…” e “Tal garantia é prestada porque a empresa em causa é a casa-mãe, e está a tratar de internacionalizar o grupo e fazer empreendimentos comuns”.

11. Estes factos consideraram-se totalmente provados uma vez que, conforme consta da sentença ora em crise, “Quanto à existência de justificado interesse próprio da executada na prestação da garantia, resulta da motivação de facto que rigorosamente nada foi provado no sentido de afastar o que constava já da ata da Assembleia Geral da executada…” (sublinhado e negrito nosso)

12. A Apelante limita-se a mencionar, de uma forma superficial, a falta de interesse, o que fez de forma vaga e inconclusiva, não bastando tal alegação, assim genérica, para excluir a aplicação da excepção consignada na parte final do referido artº 6º n.º3 do C.S.C., isto é, para que se possa concluir que inexiste interesse próprio da sociedade na prestação das garantias.

13. E, não se compreende como é que a Apelante vem agora afirmar (em 2020), sem qualquer pudor, que as declarações que proferiu na escritura de hipoteca outorgada em 12 de Maio de 2009, afinal não correspondiam à realidade.

14. O que traduz, salvo melhor opinião num manifesto venire contra factum proprium.

15. Mais, na hipoteca constituída, por escritura pública, está explícito que “…é constituída atento o justificado interesse próprio das sociedades garante…”

16. Caso assim não tivesse sido, estaríamos perante falsas declarações que foram proferidas na escritura de hipoteca.

17. Invoca ainda a ora Apelante que: “O “mútuo” cozinhado com a P..., S.A. mais não constituiu que uma forma ardilosa de aumentar as garantias do Banco exequente sem este mobilizar ou disponibilizar quaisquer novos recursos financeiros.”

18. Na verdade, o “alegado mútuo”, com base nas próprias declarações da P... SGPS SA, destinou-se a facultar recursos à atividade desta última, (cfr. cláusula 1ª do contrato ao investimento junto aos autos a fls.).

19. Pelo que, é de pasmar que a ora Apelante venha agora afirmar ainda que o “mútuo cozinhado com a P..., SGPS, S.A., mais não constituiu que uma forma ardilosa de aumentar as garantias do banco exequente sem este mobilizar ou disponibilizar quaisquer novos recursos financeiros”.

20. Na verdade, não se compreendem os termos traçados ou os objectivos que se pretendem alcançar com tais afirmações.

21. Por outro lado, pese embora alegue não ter qualquer interesse na garantia prestada ou que ignore se a referida quantia (três milhões de euros) foi colocada na conta, afirma saber qual foi o destino da quantia mutuada no contrato celebrado.

22. E, os extratos bancários juntos a fls. dos autos, pela Apelada, (ao contrário do que alega a Apelante - “Tratou-se, pois, de um mútuo simulado: os três milhões de euros que o banco exequente alegadamente terá colocado (se é que foram colocados) …” – confirmam que que o crédito de 3.000.000,00€ foi, de facto, creditado na conta 333-10.... – tal como consta do documento n.º ... junto a fls. dos autos, com a contestação apresentada.

23. Mais, do depoimento da testemunha AA, também se pode concluir que esse crédito foi efectivamente creditado na conta bancária da empresa.

24. Face a todo o exposto, claramente se compreende que se tenha dado como provado que: “A exequente alegou (e provou) que o montante de €3.000.000 foi efetivamente depositado na conta bancária da P..., SGPS, S.A..” e,

25. “Por outro lado, igualmente se demonstrou que a exequente efetivamente disponibilizou o montante acordado à mutuária, nos exatos termos contratados, tendo sido esta que, posteriormente, lhe deu o destino que entendeu, o que, como é evidente, não constitui qualquer simulação.”

26. Pelo que, atento o supra exposto, afirma-se, sem qualquer margem para dúvidas, que a tese da Apelante não é admissível.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser confirmada, na íntegra, a douta Sentença recorrida, com todas as consequências legais, daí advenientes.

Assim, se fará, como sempre, inteira

J U S T I Ç A!»

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 685º-A, nºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil

            - impugnação da matéria de facto, quanto à resposta de “não provado” constante do ponto «- os montantes descritos nas alíneas a) a d) do ponto 5) destinaram-se a liquidar responsabilidades financeiras da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A.

» [cuja materialidade deveria ter sido dada como “provado”]; porquanto do documento ... da contestação «também se extrai que em 12 de maio de 2009 foi liquidada uma operação de desconto de uma livrança (Op. ...01... de € 252.050,61 (duzentos e cinquenta e dois mil e cinquenta euros e sessenta e um cêntimos, anteriormente aceite pela P... SGPS. S.A., facto que também devia forçosamente ter ficado provado»;

- incorreto julgamento de direito [designadamente porque ela Embargante não tinha no seu corpo social qualquer participação da P..., SGPS, S.A. (pelo que não estava numa relação de domínio ou de grupo com a mesma), também não se verificando o alegado interesse próprio da Embargante na prestação da garantia, e bem assim porque «tratando-se de um mútuo simulado, o mesmo é inequivocamente nulo, e sendo nulo o contrato de mútuo, nula é forçosamente a garantia hipotecária», para além de que, demonstrado que verdadeiramente nada foi mutuado pela Exequente à P..., SGPS, S.A., «é inequivocamente nula e de nenhum efeito a hipoteca exequenda»].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de “Factos Provados”:

«1 – Nos autos principais, a exequente pede a cobrança coerciva da quantia de € 839.802,64 (oitocentos e trinta e nove mil oitocentos e dois euros e sessenta e quatro cêntimos).

2 – A execução referida em 1) foi intentada com base nos seguintes documentos:

a) Documento intitulado “Contrato ao Investimento – Outros Sectores”, subscrito em 12 de maio de 2009 pela exequente e pela executada P..., SGPS, S.A., do qual consta, nomeadamente, o seguinte:

“CLÁUSULA 1.ª

(Montante e finalidade do capital mutuado)

1. O SEGUNDO OUTORGANTE confessa a sociedade sua representada devedora à C... da quantia de € 3.000.000,00 (três milhões de euros), que a título de mútuo dela recebe, destinando-se, segundo declara, a facultar recursos à sua actividade (…).

2. A quantia mutuada será creditada na conta de depósito à ordem n.º333-10...., constituída no balcão da C..., na ..., em nome da PARTE DEVEDORA. (…)

CLÁUSULA 10.ª

      (Garantia hipotecária)

 Para garantia do integral cumprimento das obrigações emergentes e assumidas no presente contrato pela PARTE DEVEDORA, foi constituída pela P... – EMPREITADAS E OBRAS PÚBLICAS DO ..., S.A. e J..., S.A., uma garantia hipotecária unilateral, por escritura de 12 de Maio de 2009, lavrada de folhas 70 a folhas72 V.º, do Livro 177, do Cartório Notarial de ...” (cfr. doc. de fls. 4 dos autos de execução, que aqui se dá por integralmente reproduzido);

b) Escritura de hipoteca voluntária unilateral outorgada no dia 12 de maio de 2009, na qual a executada constituiu hipoteca a favor da exequente do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...76, freguesia ..., da qual consta, nomeadamente, o seguinte:

A referida hipoteca é constituída para garantia do integral pagamento de qualquer quantia de que a referida C... seja ou venha a ser credora da sociedade anónima com a firma “P..., SGPS, S.A.” (…).

A presente hipoteca é constituída atento o justificado interesse próprio das sociedades garantes, de acordo com o estipulado no número três do artigo sexto do Código das Sociedades Comerciais, conforme deliberações das suas Assembleias Gerais (…)” (cfr. doc. de fls. 8 dos autos de execução, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

3 – A executada tem por objeto social “Construção civil e obras públicas; reparação e comercialização de edifícios; compra e venda de propriedades e tudo o que se relacione com esta actividade” (cfr. doc. de fls. 6, que aqui se dá por integralmente reproduzido”).

4 – Na Assembleia Geral Ordinária da executada, realizada em 2/03/2009, foi deliberado dar como garantia o imóvel descrito no ponto 2, alínea b) “para garantir empréstimo a conceder à P... SGPS, S.A., pela C... (…). Tal garantia é prestada porque a empresa em causa é a casa-mãe, e está a tratar de internacionalizar o grupo e fazer empreendimentos comuns” (cfr. doc. de fls. 10v, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

5 – O montante descrito no ponto 1, alínea a), foi depositado pela exequente na conta aí indicada em 27/05/2009, da qual foram posteriormente efetuadas as seguintes transferências para a conta bancária da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A.:

a) em 27/05/2009, € 1.000.000 (um milhão de euros);

b) em 29/05/2009, € 200.000 (duzentos mil euros);

c) em 2/06/2009, € 500.000 (quinhentos mil euros);

d) em 8/07/2009, € 14.000 (catorze mil euros).»

                                                                       ¨¨

E o seguinte em termos de “Factos Não Provados”:

«- a P..., SGPS, S.A. tem uma participação na executada;

   - os montantes descritos nas alíneas a) a d) do ponto 5) destinaram-se a liquidar responsabilidades financeiras da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A..»

                                                                       *

            3.2 – A Embargante/recorrente deduz impugnação da matéria de facto, quanto à resposta de “não provado” constante do ponto «- os montantes descritos nas alíneas a) a d) do ponto 5) destinaram-se a liquidar responsabilidades financeiras da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A.» [cuja materialidade deveria ter sido dada como “provado”]; porquanto do documento ... da contestação «também se extrai que em 12 de maio de 2009 foi liquidada uma operação de desconto de uma livrança (Op. ...01... de € 252.050,61 (duzentos e cinquenta e dois mil e cinquenta euros e sessenta e um cêntimos, anteriormente aceite pela P... SGPS. S.A., facto que também devia forçosamente ter ficado provado»:

Percorrendo o constante destes pontos de facto, é possível constatar que quanto ao 1º deles estão em causa pressupostos de facto para efeitos da invocada “simulação” e, quanto ao 2º deles, factualidade com eventual relevância para efeitos da mesma dita “simulação”.

Que dizer?

Em termos normais importaria efetivamente dilucidar esta matéria.

            Contudo, importa ter presente que o controlo da decisão da matéria de facto da 1ª instância deve conformar-se, por um lado, com o princípio da utilidade dos atos processuais, e, por outro, com o princípio da disponibilidade privada do objeto do processo.

            De facto, de harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (cf. art. 130º do n.C.P.Civil).[2]

            Concretizando melhor: se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância, o que sucederá sempre que, mesmo com a substituição a solução e o enquadramento jurídico do objeto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a ação, ou pelo réu, com a contestação.

            Daqui decorre que a reponderação apenas deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, que o mesmo é dizer, segundo todos os enquadramentos jurídicos possíveis do objeto da ação.

            Na verdade, à luz do disposto no art. 240°, nºl do C.Civil, com a elaboração doutrinal e jurisprudencial que sobre esta figura dogmática tem sido produzida, naquele normativo encontram-se estabelecidos três requisitos para a simulação:

- o pacto simulatório entre o declarante e o declaratário;

- a divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico - simuladamente - celebrado;

- o intuito de enganar terceiros.[3]

            Sendo que quanto ao requisito intuito de enganar terceiros”, prevalece o seguinte entendimento:

«O conceito de terceiros, para efeitos de invocação da simulação é, normalmente, definido de forma a abranger quaisquer pessoas, titulares de uma relação, jurídica ou praticamente afectada pelo negócio simulado e que não sejam os próprios simuladores ou os seus herdeiros (depois da morte do de cujus)».[4]

            Ora se assim é, temos que é precisamente uma tal situação de irrelevância na apreciação que ocorre no caso vertente: entendemos que a apreciação e decisão da materialidade em causa na impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto ao 1º dos pontos de facto supra enunciados [o qual figura no elenco dos factos “não provados”] poderá efetivamente reportar-se ao requisito da divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico (simuladamente) celebrado.

Sucede que o requisito do intuito de enganar terceiros não foi sequer alegado ou resulta minimamente da factualidade dada como “provada”.

Na verdade, o que esta alegado é, quando muito, que o intuito das partes seria “favorecer” [através de um reforço de “garantias”] a posição de credor do banco Exequente face à devedora “P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A.”...

Senão vejamos, diretamente pelo confronto do que foi alegado no requerimento de embargos pela Embargante ora recorrente relativamente a este particular, a saber:

                                                   «(…)

                                                                      34.º

Em Maio de 2009, a empresa P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A. já atravessava graves dificuldades financeiras, que eram irreparáveis e que determinaram a sua insolvência em 13 de Abril de 2011 – Doc. 4.

                                                                      35.º

Nessa altura, a P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A. “apresentava para com a exequente uma avultada dívida de vários milhões de euros, que se encontrava em incumprimento”.

                                                                      36.º

O “mútuo” cozinhado com a P..., SGPS, S.A. mais não constituiu que uma forma ardilosa de aumentar as garantias do banco exequente sem este mobilizar ou disponibilizar quaisquer novos recursos financeiros.

                                                                        37.º

Tratou-se apenas de renegociar um passivo da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A. e da assunção do referido passivo por parte da P..., SGPS, S.A., sem que tivesse sido mutuada qualquer quantia a esta última.

                                                                       38.º

Tratou-se, pois, de um mútuo simulado: os três milhões de euros que o banco exequente alegadamente terá colocado (se é que foram colocados) na conta da P..., SGPS, S.A. logo foram transferidos para a conta da P... – Empreitadas e Obras Públicas do ..., S.A., no mesmo banco, a fim de liquidar responsabilidades financeiras desta última!

(…)»

            Tendo sido precisamente em consequência dessa incontornável falta/omissão que decisivamente na sentença recorrida se apontou para a manifesta não verificação da simulação - «No presente caso e face à alegação da própria executada, soçobram desde logo alguns dos requisitos da simulação, como, por exemplo, o intuito de enganar terceiros.»

            Efetivamente, este dito requisito do intuito de enganar terceiros manifestamente nem sequer foi como tal aventado no caso vertente!

            Dito de outra forma: a factualidade apurada, mesmo com a eventual modificação pretendida através da impugnação ora em apreciação, continuaria a ser insuficiente ou seria inidónea para alcançar o efeito jurídico visado pela Embargante, e necessário para o ganho de causa da mesma, a saber, verificar-se o requisito específico do intuito de enganar terceiros, o qual se configura como estritamente necessário, para se poder positivamente concluir pela invocada “simulação”.

O que por maioria de razão ocorre relativamente ao 2º dos pontos de facto objeto da impugnação à decisão sobre a matéria de facto, de cuja apreciação se cuida: admitindo-se que a factualidade em causa poderia ter eventual relevância para efeitos da mesma dita “simulação”, ela constitui, em todo o caso, apenas materialidade “instrumental” dessa situação, pelo que, à luz do critério e determinante constante do art. 607º, nº4 do n.C.P.Civil, nem sequer teria que constar do elenco dos factos dados como “provados”.

O que tudo serve para dizer que a Embargante nem sequer havia alegado no requerimento de embargos, de forma expressa e proficiente, o dito concreto requisito do intuito de enganar terceiros

Assim sendo e sem necessidade de maiores considerações, improcede inapelavelmente este argumento recursivo, por sempre carecer de qualquer sentido processual útil apreciar e dirimir a única temática [“simulação”] nele em questão.

                                                                       *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da questão nesta vertente supra enunciada, esta já directamente reportada ao mérito da sentença, a saber, ter havido incorreto julgamento de direito [designadamente porque ela Embargante não tinha no seu corpo social qualquer participação da P..., SGPS, S.A. (pelo que não estava numa relação de domínio ou de grupo com a mesma), também não se verificando o alegado interesse próprio da Embargante na prestação da garantia, e bem assim porque «tratando-se de um mútuo simulado, o mesmo é inequivocamente nulo, e sendo nulo o contrato de mútuo, nula é forçosamente a garantia hipotecária», para além de que, demonstrado que verdadeiramente nada foi mutuado pela Exequente à P..., SGPS, S.A., «é inequivocamente nula e de nenhum efeito a hipoteca exequenda»]:

Face ao exposto na apreciação da precedente questão, e na medida em que não foi operada qualquer alteração da matéria de facto, pela desnecessidade incontornável de o fazer, cremos que a resposta a esta questão já em grande medida se adivinha.

Na verdade, concluindo-se pela desnecessidade incontornável de proceder à apreciação e decisão sobre a impugnação da matéria de facto que havia sido suscitada em via recursiva no que à “simulação” diz respeito, com o fundamento por que o foi, a saber, ser de todo inútil a reponderação factual da decisão da 1ª instância, importa inapelavelmente afirmar a necessária improcedência nesse particular do recurso, isto é, relativamente ao argumento recursivo fundado nesse particular.

Isto porque, em nosso entender e face ao enquadramento feito, s.m.j., sempre seria fatal a improcedência dos embargos em tudo o que respeita à “simulação” [incluindo “nulidades” consequentes ou derivadas dela, como seja a da hipoteca ajuizada]!

Assim sendo, resta apreciar a argumentação recursiva atinente ou baseada na invocada “nulidade” da garantia prestada, por ser contrária à lei – na medida em que a Embargante ora recorrente nunca teve por objeto a prestação de garantias a terceiras entidades, nem a própria estava numa relação de domínio ou de grupo com a sociedade a favor da qual foi prestada a garantia.

De referir que está neste conspecto em causa a validade jurídica da prestação de garantia por parte da executada/embargante a favor de outra sociedade.

Vejamos o teor literal do normativo atinente, a saber, o art. 6º nos 1 e 3 do Código das Sociedades Comerciais:

«1. A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

(…)

 3. Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.»

Consabidamente, o primeiro dos referidos números estabelece os limites da capacidade de gozo das sociedades comerciais, definidos em função do fim visado pela sua constituição, sendo pacífico que o fim da sociedade comercial é o lucro, como decorre do artigo 980º do C.Civil.

Neste pressuposto, estabelece o nº 3 citado que, em regra, ao prestar garantias reais ou pessoais a dívidas de outras sociedades comerciais [a norma terá que ser interpretada restritivamente, por forma a abranger apenas a prestação de garantias a título gratuito[5]], a sociedade garante pratica atos contrários ao seu fim social para que foi constituída, daí decorrendo a nulidade de tais atos (as garantias) – por violação de um preceito de carácter imperativo (cf. art. 294º do C.Civil) –, salvo se ocorrerem duas exceções previstas no citado preceito: a existência dum “justificado interesse próprio da sociedade garante”; ou a existência de uma “relação de domínio ou de grupo”.

Relativamente ao ónus de prova quanto a este particular, é claramente maioritário o entendimento de que cabe à sociedade garante que invoca a nulidade, o ónus de prova da ausência de interesse próprio ou da inexistência da relação de grupo, uma vez que, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.

Neste sentido o que foi paradigmaticamente sustentado em aresto do nosso mais alto Tribunal, a saber:

«A jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que impende sobre a sociedade garante que invoca a nulidade da garantia por si prestada com o objectivo de se fazer valer de tal nulidade para não ter de cumprir a obrigação garantida, o ónus de alegação e prova da inexistência de interesse próprio, ou seja, o ónus da prova dos requisitos da existência da tal invalidade do acto, de que se pretende aproveitar, sendo que a razão principal para tal reside na circunstância de que ninguém melhor do que a própria sociedade que presta a garantia, poderá certificar que a mesma foi prestada no seu próprio interesse, cfr inter alia os Ac STJ de 13 de Maio de 2003 (Relator Pinto Monteiro), 17 de Junho de 2004 (Relator Quirino Soares), 7 de Outubro de 2010 (Relator Álvaro Rodrigues), 28 de Maio de 2013 (Relator Fernandes do Vale), 16 de Novembro de 2017 (Relatora Graça Amaral); João Labareda, Direito Societário Português Algumas Questões, 186/192; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial, Volume II, Das Sociedades, 3ª edição, 193/199; Osório de Castro, Da Prestação De Garantias Por Sociedades a Dívidas De Outras Entidades, ROA Ano 56, Agosto 1996, 565/593; Vaz Serra, RLJ 103º, 27.»[6]

Este é também o nosso entendimento quanto a este particular, pelo que nada há a censurar à decisão recorrida que igualmente o invocou e perfilhou.

Na verdade, e revertendo agora ao caso ajuizado, temos como claramente assente e insofismável que não se tendo demonstrado a falta de justificado interesse próprio da sociedade garante nem a inexistência de relação de domínio ou de grupo, não se podia concluir que a garantia prestada era contrária ao fim da executada.

Aliás, a prova que disso competia por parte da Executada ora Embargante recorrente era-lhe difícil, senão mesmo inacessível à luz das demais regras do ordenamento jurídico.

Senão vejamos.

Para este efeito, a deliberação da Assembleia Geral Ordinária da executada, realizada em 2/03/2009, melhor descrita nos factos “provados sob “4.” foi de «dar como garantia o imóvel descrito no ponto 2, alínea b) “para garantir empréstimo a conceder à P... SGPS, S.A., pela C... (…).  Tal garantia é prestada porque a empresa em causa é a casa-mãe, e está a tratar de internacionalizar o grupo e fazer empreendimentos comuns” (cfr. doc. de fls. 10v, que aqui se dá por integralmente reproduzido).»

Este dito “doc. de fls. 10v”, para este efeito constitui um “documento particular”.

Temos presente a regra constante do artigo 376º, nº2 do C.Civil segundo a qual os factos compreendidos em declaração constante de documento particular se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, traduz presunção que admite a possibilidade de o declarante provar que a declaração não correspondeu à vontade ou foi afetada de um vício de consentimento (art. 359º do C. Civil).

Só que essa prova pode não ser fácil – ou não ser mesmo possível – quando se atente que uma “deliberação” como a supra referenciada foi invocada e reproduzida na escritura de constituição da garantia/hipoteca ora diretamente em causa.

Na verdade, decorre do facto “provado” sob “2-b)” que importa considerar nos autos a existência de uma «Escritura de hipoteca voluntária unilateral outorgada no dia 12 de maio de 2009, na qual a executada constituiu hipoteca a favor da exequente do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...76, freguesia ..., da qual consta, nomeadamente, o seguinte:

A referida hipoteca é constituída para garantia do integral pagamento de qualquer quantia de que a referida C... seja ou venha a ser credora da sociedade anónima com a firma “P..., SGPS, S.A.” (…).

A presente hipoteca é constituída atento o justificado interesse próprio das sociedades garantes, de acordo com o estipulado no número três do artigo sexto do Código das Sociedades Comerciais, conforme deliberações das suas Assembleias Gerais (…)” (cfr. doc. de fls. 8 dos autos de execução, que aqui se dá por integralmente reproduzido).»

Ora se assim é, estamos na circunstância perante uma “declaração confessória” que vale como tal no confronto da pessoa a quem a confissão é feita nos termos do negócio jurídico em que se insere, a saber, uma escritura pública de constituição de hipoteca, consabidamente um “documento autêntico”.

Donde, como confissão extrajudicial escrita em documento autêntico, tem força probatória plena contra o confitente – cf. art. 358º, nº2 do C.Civil.

A esta luz, já foi doutamente sublinhado, para um caso com paralelismo que « estando plenamente assente por confissão da própria Recorrente, a garante, que a prestação da garantia foi feita para a prossecução dos seus fins, inútil se torna qualquer outro questionamento em relação a quem impende o ónus da prova sobre a existência ou inexistência de interesse da mesma na constituição de tal garantia, questionamento este que, na circunstância sempre poderia configurar um eventual abuso de direito por banda da Recorrente, sancionável nos termos do normativo inserto no artigo 334º do CCivil: por um lado confessa que a garantia foi prestada com vista à prossecução do fim societário e por outro questiona a bondade de tal declaração, negando-a e fazendo impender sobre os declaratários, igualmente intervenientes na mesma declaração negocial, o ónus da prova da existência daquele interesse social, o que, no caso sujeito a ser aceite, sempre constituiria um absurdo (os confitentes, apesar de confessarem, poderiam obrigar os co-confitentes a terem de provar o facto confessado), cfr artigos 358º, nº2 e 371º, nº1 do CCivil.»[7].

De referir que, a esta luz, se está igualmente a dar acolhimento à alegação – constante das contra-alegações recursivas da Exequente/recorrida – no sentido de que sempre constituiria um “abuso de direito”, na modalidade de venire contra factum proprium, a invocação por parte da Exequente/recorrida de existir uma invalidade, mais concretamente traduzida na argumentação de que «não se compreende como é que a Apelante vem agora afirmar (em 2020), sem qualquer pudor, que as declarações que proferiu na escritura de hipoteca outorgada em 12 de Maio de 2009, afinal não correspondiam à realidade», donde, por esta via tendo que ser necessariamente desconsiderada uma tal invocação!

Ademais, a propósito das exceções constantes da parte final do art. 6º, nº3 do CSC [a saber, “justificado interesse próprio da sociedade garante”; “sociedade em relação de domínio ou de grupo”], já foi doutamente sublinhado o seguinte:

«Estas “excepções” são de tal ordem que acabam por consumir a regra. O “justificado interesse próprio” é definido pela própria sociedade, através dos seus órgãos: estamos no Direito privado. Ora é evidente que, quando se presta uma garantia – altura em que todos pensam que a operação vai correr bem ou que, pelo menos, tudo é recuperável – é facílimo invocar interesse próprio justificado. A jurisprudência alarga, mesmo, a ideia de interesse, explicando que ele pode ser “indirecto”. (…) Quanto às relações de domínio ou de grupo: surgem fáceis, sobretudo aplicando a regra aos “grupos de facto”.»[8]   

Sem embargo do vindo de dizer, não pode deixar de se constatar que a Executada/Embargante ora recorrente se limitou a alegar a sua falta de interesse na prestação de garantia e a inexistência entre as sociedades de uma relação de domínio ou de grupo, de forma vaga e conclusiva, sendo que não basta uma tal alegação, assim genérica, para excluir a aplicação da exceção consignada na parte final do referido art. 6º nº 3 do CSC, isto é, para que se possa concluir que inexiste…[9]

Por último, importa referir que a alegação recursiva de que se encontra demonstrado que verdadeiramente nada foi mutuado pela Exequente à P..., SGPS, S.A. (donde, «é inequivocamente nula e de nenhum efeito a hipoteca exequenda»), essa é uma alegação que só se compreende e pode aceitar na perspetiva subjetivista e enfática da Executada/Embargante ora recorrente, posto que, salvo o devido respeito, da factualidade dada como “provada” e que não foi impugnada, mormente do ponto de facto “provado sob “5-”, 1ª parte, resulta clara e insofismavelmente o inverso.

Assim sendo, sem necessidade de maiores considerações e brevitatis causa, improcedem in totum as alegações recursivas e o recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

(…)                                                                *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.  

            Custas do recurso pela Executada/Embargante ora recorrente.

                                                                                   Coimbra, 8 de Março de 2022

Luís Filipe Cravo                                          

          Fernando Monteiro

 Carlos Moreira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] Aliás, reproduzindo um princípio processual perene, já anteriormente constante do art. 137º do C.P.Civil.
[3] Segundo MOTA PINTO, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Maio 2005, a págs. 413.
[4] Cf. autor, obra e local citados na precedente nota, ora a págs. 477 e segs.
[5] neste sentido, A. SOVERAL MARTINS, in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, coord. J. M. Coutinho de Abreu, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2017, a págs. 128.
[6] Citámos agora o acórdão do STJ de 22.05.2018, proferido no proc. 3524/12.3YYLSB-A.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj, aliás invocado na sentença recorrida.
[7] Trata-se do acórdão do STJ de 22.05.2018 invocado na precedente nota.
[8] Assim por ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in “Manual de Direito das Sociedades”, I – Das Sociedades em Geral – 2ª ed., Livª Almedina, 2007, a págs. 339.
[9] Neste sentido vide o acórdão do TRL de 12.12.2013, proferido no proc. nº 1522/10.0TVLSB.L1-2, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.