Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1962/19.0T3LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
POSIÇÃO DA PARTE AO LONGO DO PROCESSO
Data do Acordão: 09/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Legislação Nacional: ARTS. 631.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
I – Conforme resulta do artigo 631.º do CPC, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, pelo que, em regra, só pode recorrer quem for parte principal e tenha ficado vencido na causa, sendo “parte vencida aquela que é objetivamente afetada pela decisão, ou seja, a que não tenha obtido a decisão mais favorável aos seus interesses. (…); o réu quando, no todo ou em parte, seja prejudicado pela decisão”.

II – No entanto, se na contestação a recorrente alegou que “quer a entidade patronal, quer o Autor cumpriram todas as normas de Segurança a que estavam obrigados, pelo que, nem a Entidade Patronal, nem o Trabalhador tiveram qualquer culpa no acidente que deu causa aos presentes autos”, tomando, assim, posição expressa sobre esta matéria, não pode vir, em sede de recurso, fazer tábua rasa do alegado, ou seja, não pode vir alegar precisamente o contrário como o fez nas alegações de recurso, impondo-se concluir que a recorrente não pode interpor o presente recurso, por falta de interesse em agir decorrente daquela posição que ao longo do processo assumiu, não podendo nessa exata medida, no respeito pelo princípio da lealdade processual, ter-se como parte vencida.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
 

Apelação n.º 1962/19.0T3LRA.C1

_________________________________

Acordam[1] na Secção Social (6.ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

AA, residente em ...

intentou a presente ação especial de acidente de trabalho contra

Z... PLC – Sucursal em Portugal, com sede em ... e

G...SA, Ldª, com sede ..., ..., ...

alegando, em síntese que:

Trabalhava sob as ordens e direção da 2ª Ré quando se encontrava no cimo de um edifício a remover chapas de fibrocimento do telhado, desequilibrou-se e caiu ao chão de uma altura de cerca de 8 a 9 metros; do acidente resultaram lesões, tendo-lhe sido atribuída ITA e uma IPP de 7,8016%.

Termina, formulando o seguinte pedido:

“Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Ex.a doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente por provada e, em consequência, serem as demandadas condenadas, na medida das respetivas responsabilidades, a pagar ao sinistrado ora demandante as seguintes prestações:

a) O capital de remição calculado com base na pensão anual no montante de € 789,13 €, reportada a 25/02/2019 e calculada com base no salário anual auferido de 14.450,04 € e na desvalorização de 7,8016 % atrás referida, nos termos do disposto no artigo 48.º n.º3 al. c) e artigo 75.º n.º1 da Lei 98/2009 de 4 de Setembro e de acordo com a base técnica de cálculo de remição das pensões de acidente de trabalho, anexa à Portaria n.º11/2000, de 13 de Janeiro;

b) A quantia de 8.839,49 € a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta;

c) A quantia de 1.244,60 € que o sinistrado despendeu em tratamentos, exames médicos e consultas de fisioterapia, ortopedia e osteopatia;

d) A quantia de € 35,00 a título de despesas efetuadas pelo sinistrado com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal;

e) Juros de mora calculados à taxa de legal sobre o capital de remição e sobre o montante da indemnização por incapacidade temporária desde o dia seguinte ao da alta e sobre as demais quantias em dívida, desde a data do seu vencimento e até integral pagamento;

f) Custas e procuradoria condigna.”

                                                             *

A Ré seguradora contestou alegando, em sinopse, que:

O salário do A. que se encontrava transferido era de € 14.073,46; o acidente ocorreu por culpa grave e indesculpável do sinistrado que violou regras de segurança que conhecia e a que estava obrigado pois não tinha colocado qualquer dispositivo de segurança que evitasse a queda e que tinha ao seu dispor; o acidente ocorreu porque o sinistrado agiu com negligência grosseira e violou regras de segurança a que estava obrigado sem qualquer justificação nem necessidade, pelo que, o acidente encontra-se descaracterizado e a Ré Z... PLC não pode ser responsabilizada pelas consequências do mesmo que foi exclusivamente causado pela conduta temerária, grave, indesculpável e imprópria do A. sinistrado.

Conclui dizendo que deve absolver-se a Ré do pedido.

                                                             *

A Ré G...SA também contestou alegando, em síntese, que:

Transferiu todos os valores referentes ao trabalho do A. para a Ré Seguradora, pelo que, não é responsável pelo pagamento de qualquer indemnização ao A.; cumpriu, assim como o A., todas as normas de segurança a que estavam obrigados, pelo que, não tiveram qualquer culpa no acidente que deu causa aos presentes autos.

Termina dizendo que:

“Termos em que, pelos fundamentos acima expostos, e nos melhores de direito, deve ser julgado totalmente improcedente, por não provado, o pedido peticionado quanto à Ré G...SA, pelo facto da mesma ter transferido a sua responsabilidade para a companhia de seguros Z... PLC, e, consequentemente ser absolvida, com todas as consequências legais daí resultantes.”

                                                             *  

Foi proferido o despacho saneador de fls. 245 e segs., selecionada a matéria assente e enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

                                                             *

Procedeu-se a julgamento, conforme consta da respetiva ata.

                                                             *

Foi, depois, proferida sentença (fls. 272 e segs.) e cujo dispositivo é o seguinte:

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, decide-se:

a) Declarar que o Autor AA se encontra, por virtude do acidente de trabalho a que se reporta estes autos, afetado com uma Incapacidade Permanente Parcial de 7,8016% desde 25/02/2020;

b) Condenar a “Z... PLC – Sucursal em Portugal” a pagar ao Autor capital de remição calculado com base na pensão anual no montante de 768,57 € (setecentos e sessenta e oito euros e cinquenta e sete cêntimos), devida desde 25/02/2020;

c) Condenar a “G...SA” a pagar ao Autor capital de remição calculado com base na pensão anual no montante de 20,56 € (vinte euros e cinquenta e seis cêntimos), devida desde 25/02/2020;

d) Condenar a “Z... PLC – Sucursal em Portugal” a pagar ao Autor a indemnização em dívida relativa ao período de Incapacidade Temporária Absoluta, no montante de 8.609,87 € (oito mil seiscentos e nove euros e oitenta e sete cêntimos);

d) Condenar a “G...SA – Serralharia Civil Unipessoal Lda.” a pagar ao Autor a indemnização em dívida relativa ao período de Incapacidade Temporária Absoluta, no montante de 230,38 € (duzentos e trinta euros e trinta e oito cêntimos);

e) Condenar a “Z... PLC – Sucursal em Portugal” a pagar ao Autor o montante de 1212,25 € (mil duzentos e doze euros e vinte e cinco cêntimos) a título de tratamentos, exames médicos e consultas de fisioterapia, ortopedia e osteopatia;

f) Condenar a “G...SA – Serralharia Civil Unipessoal Lda.” a pagar ao Autor o montante de 32,35 € (trinta e dois euros e trinta e cinco cêntimos) a título de tratamentos, exames médicos e consultas de fisioterapia, ortopedia e osteopatia;

e) Condenar ambas a Rés no pagamento dos juros de mora devidos sobre as prestações pecuniárias em atraso, à taxa legal, vencidos e vincendos até integral pagamento (cfr. art. 135º, nº 1 do CPT).”

                                                                       *

A Ré patronal, notificada desta sentença, veio interpor recurso da mesma formulando as seguintes conclusões:

1) Conforme consta dos autos o Autor/Recorrido intentou a ação de Acidente de Trabalho que deu causa a este processo, na qual demandou a Ré/Recorrente, peticionando o que consta dos autos;

2) A Ré contestou alegando o que acima se transcreveu;

 3) Realizou-se a Audiência de Julgamento;

4) Por Sentença de fls., decidiu a Meritíssima Juiz o acima transcrito;

5) Conforme resulta da prova documental, nomeadamente do relatório de peritagem aquando do acidente, elaborado com base nas declarações prestadas na altura pelo Sinistrado, bem como da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, ficou provado que o sinistrado, apesar de ter consigo os equipamentos de proteção individual, nomeadamente do Arnês, e ter conhecimento da sua utilização obrigatória em alturas, bem como o seu funcionamento, o sinistrado desamarrou a corda do Arnês, tendo por esse facto caído do telhado onde se encontrava;

6) Até porque conforme consta da Sentença ficou provado que o Sinistrado subiu ao telhado com o Arnês e que que aquele estava amarrado com uma corda ao Arnês e seguro às vigas do telhado;

7) Mais resultou da prova testemunhal que a queda do Sinistrado apenas ocorreu quando o Sinistrado desamarrou a corda do Arnês;

8) Bem como resultou ainda da prova testemunhal e do relatório efetuado pela companhia de seguros, que aquando da ocorrência da queda do sinistrado, não se encontrava nenhuma viga partida, mas apenas a corda desamarrada do Arnês;

9) O Sinistrado tinha conhecimento de que não poderia desamarrar a corda do Arnês, por existir uma forte possibilidade de cair do telhado;

10) O acidente ocorreu única e exclusivamente por culpa do Sinistrado, por não respeitar as regras de segurança, bem como utilizar adequadamente o equipamento que lhe foi fornecido pela Entidade Empregadora;

11) Resultou provado que o Sinistrado tinha tido formação sobre a utilização de equipamento de proteção, nomeadamente de que tinha que estar sempre amarrado durante qualquer movimentação do trabalho em altura, assim como sabia que tinha de garantir passadiços de circulação com pontos de fixação das amarrações, logo o mesmo ao desamarrar a corda do Arnês sem estar seguro a outro ponto, colocou-se em perigo, desobedecendo às regras de segurança impostas por lei e pela entidade empregadora;

12) Tendo em conta a prova produzida nos autos, dúvidas não existem que o acidente de trabalho de que o Sinistrado foi vítima, apenas se deveu única e exclusivamente por culpa do mesmo;

13) O Sinistrado só caiu do telhado porque tinha a corda desamarrada do Arnês, ou seja, não fazia o uso correto do mesmo;

14) Até porque aquando da queda do sinistrado, nenhuma viga que servia de ponto fixo de amarração estava partida, apenas se encontrava desamarrada a corda que o prendia ao Arnês;

15) Se o Sinistrado não tivesse desamarrado a corda, sem ter amarrado outro ponto fixo, não teria caído;

16)Sendo certo que a ação de desamarração da corda que o prendia ao Arnês foi causa exclusiva, directa e necessária da ocorrência do acidente;

17) É o sinistrado o responsável principal pelas consequências do sinistro, contrariamente ao entendimento perfilhado na decisão sob censura;

18)O acidente teve apenas na sua raiz e como sua base a negligência grosseira do trabalhador sinistrado, que desamarrou a corda que do Arnês;

19)Da prova constante dos autos nunca se poderia concluir que o acidente que vitimou o sinistrado é de trabalho, uma vez que o mesmo apenas aconteceu, única e exclusivamente, por culpa exclusiva do Sinistrado, que desamarrou a corda do Arnês que o mantinha seguro;

20)Até porque nenhuma viga onde se encontrava fixado o ponto de amarração não se encontrava partida;

21)Foi o Sinistrado que violou as normas de segurança, quer impostas pela Entidade Patronal, quer impostas pela Lei;

22)O acidente ocorreu única e exclusivamente por ação do Sinistrado que desamarrou a corda do Arnês, mesmo sabendo que não o poderia fazer enquanto estivesse a trabalhar em alturas;

23)Deve ser revogada a sentença recorrida, com todas as consequências legais daí resultantes;

24)Ao dar como não provado que “o sinistrado tinha ao seu dispor os equipamentos de proteção individual e amarrações para fazer tais trabalhos em altura e respetivas deslocações” está a entrar em contradição com os factos que considerou provados nos pontos 7, 8, e 9 dos factos dados como provados na Sentença;

25)Deve dar-se como provado o facto dado não provado, nomeadamente: “o sinistrado tinha ao seu dispor os equipamentos de proteção individual e amarrações para fazer tais trabalhos em altura e respetivas deslocações”, com todas as consequências legais daí resultantes;

26)Deve decidir-se que o acidente ocorreu única e exclusivamente por culpa/negligência do Sinistrado por ter desamarrado a corda do Arnês, que o mantinha em segurança;

27)A decisão recorrida está em contradição com os factos considerados provados na Sentença, bem como com a prova documental e testemunhal produzida em audiência de julgamento;

28)Atendendo à prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como a prova constante dos autos, e pelas razões acima expostas, a acção teria de ser julgada totalmente improcedente, por provada;

29)Nunca se poderia ter decidido como de facto se decidiu;

30)Verifica-se assim que na Sentença recorrida, não se procedeu a uma correta interpretação dos elementos constantes dos autos, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, dos documentos juntos, bem como se efetuou uma incorreta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto;

31)Sofrendo a Sentença recorrida de nulidade por violação do disposto nas al. b), c) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, nulidade que aqui se invoca com todos os efeitos legais;

32)Esse Venerando Tribunal, irá Revogar tal Sentença, alterando a matéria de facto dada como provada, atendendo ao disposto nos artigos 690º-A, e 712º do Código do Processo Civil, nos termos em que se deixaram requeridos;

33)Lendo, atentamente, a decisão recorrida, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto suscetível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da elaboração da decisão final, visto que a mesma está em contradição com os factos dados como provados;

34)A Meritíssima Juiz não fundamentou de facto e de direito a sua decisão;

35)A Lei proíbe tal comportamento;

36)O (Tribunal) com a decisão recorrida, não assegurou a defesa dos direitos da Recorrente, em não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem se quer aplicar a as normas legais aplicáveis ao caso em concreto;

37)A Meritíssima Juiz, limitou-se apenas e tão só, a emitir uma Sentença “economicista”, isto é, uma decisão onde apenas de uma forma simples e sintética foram apreciadas algumas das questões sem ter em conta: a prova produzida em julgamento; os elementos constantes no processo; os documentos juntos aos autos; etc.

38)Deixando a Meritíssima Juiz de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas;

39)Cometeu, pois, uma nulidade;

40)A Sentença recorrida viola:

a) Alíneas b), c) e d) do nº 1, do artigo 615º do Código do Processo Civil;

b) Artigos 13º, 20º, 202º, 204º, 205º da C. R. P.;

Termos em que, e tendo em conta o acima alegado, deve a Sentença recorrida ser       revogada, com todas as consequências legais daí resultantes; e só assim se fará:

JUSTIÇA.”

                                                              *

O A. respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos:

I – Em sede de Contestação, a ora recorrente alegou, designadamente, o seguinte:

“1º

Corresponde à verdade os factos alegados nos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 10º, da petição inicial.

(…)

Pelo que a única responsável pelo pagamento de qualquer indemnização ao Autor é a Ré Seguradora e não a aqui Ré.

Sendo certo que quer a Entidade Patronal, quer o Autor cumpriram todas as normas de Segurança a que estavam obrigados.

Pelo que, nem a Entidade Patronal, nem o Trabalhador tiveram qualquer culpa no acidente que deu causa aos presentes autos.”

II - Conforme se afere pelo teor do art. 1º da Contestação, a recorrente aceita expressamente a descrição do acidente feita pelo sinistrado em sede de PI. e, nos arts. 8º e 9º do mesmo articulado, refere categoricamente, que quer o sinistrado, quer a entidade patronal cumpriram todas as normas de segurança a que estavam obrigados, não tendo por isso qualquer culpa no acidente em causa nos autos.

III - O único interveniente processual que em sede de Contestação invocou a descaracterização do acidente foi a Ré seguradora, a qual, não obstante ter assumido tal posição, aceitou o teor douta da Sentença proferida e ressarciu o sinistrado pelos danos que lhe cabia indemnizar.

IV - Já a entidade patronal, depois de aceitar o acidente como se tratando de um acidente de trabalho e de eximir o sinistrado de qualquer culpa na produção do mesmo – negando categoricamente qualquer infração das regras de segurança por parte do mesmo -, vem agora, com a maior desfaçatez, alegar que o acidente se deu por culpa do sinistrado, procurando por esse meio furtar-se às suas responsabilidades.

V - O nº 1 do art. 631º do Código do Processo Civil, aplicável por força do disposto na al. a) do nº 1 do art. 1º do Código do Processo do Trabalho, estabelece o seguinte: “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido. “

VI - Atenta a posição assumida pela entidade patronal em sede de Contestação, no sentido da aceitação da descrição do acidente feita pelo sinistrado em sede de PI e da ausência de culpa do mesmo na sua produção, alegando expressamente que o sinistrado cumpriu todas as normas de segurança e assim aceitando a caracterização do acidente como acidente de trabalho, fácil é de ver que a douta Sentença de  que agora vem recorrer não lhe é contrária  nesse ponto, não se verificando, por isso, a condição prevista no nº 1 do art. 631º do CPC.

VII – À entidade patronal apenas assistia o direito de recorrer contra a decisão de que parte do vencimento do sinistrado não se encontrava transferida para a Ré seguradora, pois que se trata do único ponto da Sentença em que, atenta a posição por si assumida, resultou vencida.

VIII - Pelo que, deve o Recurso apresentado pela entidade patronal ser recusado e ser ordenando o seu desentranhamento dos autos, por se afigurar inadmissível à luz da lei processual, designadamente, por violar o disposto no art. 631º, nº 1 do CPC.

IX - A motivação da resposta à matéria de facto encontra-se devidamente fundamentada na douta Sentença proferida, não logrando a recorrente sequer indicar – como se lhe impunha na impugnação da matéria de facto – quais os concretos meios de prova que no seu entender convocavam, para cada facto, resposta diversa, antes se limitando a recorrente a remeter de forma vaga para os depoimentos testemunhais ( sem os concretizar ) e para a prova documental na sua generalidade, o que é manifestamente insuficiente.

X - Conforme resulta da douta Sentença, os factos dados como provados estribaram-se, precisamente, nos depoimentos, quer testemunhais, quer de parte do sinistrado; e, no que concerne ao facto dado como não provado, é inegável que nenhuma prova cabal foi feita, nem a recorrente logra, na suas Alegações, apontar qualquer meio de  prova concreto que impusesse resposta diversa.

XI - Quanto ao acidente, apurou-se que o sinistrado tinha colocado um arnês de segurança amarrado às vigas do telhado, que não utilizava passadiços de segurança, nem tinha o arnês ligado a uma linha de vida e que, no momento em que se desequilibrou, tinha desamarrado a corda que o prendia ao arnês ( Cfr. pontos 7 e 8 dos factos provados ).

XII - O facto dado como não provado (“O sinistrado tinha ao seu dispor os equipamentos de proteção individual e amarrações para fazer tais trabalhos em altura e respetivas deslocações”) resulta de não ter sido feita prova de que o sinistrado estivesse devidamente munido de equipamento de segurança para o tipo de trabalho que estava a realizar e que o mesmo lhe haja sido fornecido pela entidade patronal, sendo certo que conforme resulta do ponto 7 dos factos provados, apurou-se que o sinistrado não fazia uso de passadiços de segurança nem tinha o arnês ligado a uma linha de vida; porém, nada resultou no sentido de que o sinistrado os tivesse ou não ao seu dispor.

XIII – Uma coisa consiste em saber se o sinistrado utilizava equipamentos de proteção aquando do acidente; outra, em saber se tinha ao seu dispor os equipamentos de segurança para o tipo de trabalho que se encontrava a fazer.

XIV – A resposta dada à matéria de facto não incorre em qualquer contradição, seja na apontada pela recorrente, seja em qualquer outra., pelo que não assiste razão à recorrente no que concerne à alegada contradição da Sentença e à nulidade por essa via pretendida, devendo tal pretensão improceder.

XV - No que respeita à descaracterização do acidente de trabalho – agora pretendida pela entidade patronal contrariamente à posição assumida em sede de Contestação - e como refere a douta Sentença, os factos dados como provados no que concerne à dinâmica do acidente não permitem, por si só, concluir pela descaracterização do mesmo como acidente de trabalho.

XVI - Tendo em vista os elementos que se desconhecem, quer no que concerne à caracterização do local onde ocorreu o acidente, quer no que toca à própria dinâmica do mesmo, não é possível concluir pela verificação de qualquer dos pressupostos tendentes a excluir a definição do acidente como sendo de trabalho, sendo certo que o ónus desta prova incumbia a quem invocou a descaracterização do acidente, in casu a Ré seguradora, o que não logrou fazer.

XVII - No caso presente, os elementos conhecidos e comprovados relativamente ao acidente dos autos, não permitem integrá-lo em qualquer das alíneas do nº 1 do art. 14º da Lei 98/2009, de 04/09.

XVIII– Sabe-se que o sinistrado, no momento do desequilíbrio, tinha o arnês desamarrado; porém, os factos conhecidos não permitem aferir da inexistência de causa justificativa para tal facto, nos termos da definição que é feita no nº 2 daquela disposição legal, nem permitem caracterizar a atuação do sinistrado como negligência grosseira, nos termos estabelecidos no nº 3, sendo certo que, uma vez mais, o ónus de tal prova recaía sobre a Ré seguradora, pis que invocou a descaracterização do acidente de trabalho.

XIX - A doutrina e a jurisprudência dominantes, prosseguem o entendimento de que não basta a mera violação de regras de segurança para que se opere automaticamente a descaracterização do acidente de trabalho, exigindo-se uma culpa grave do sinistrado, que in casu não resulta minimamente comprovada.

XX - Neste sentido se refere, por exemplo, o Professor Júlio Manuel Vieira Gomes (O Acidente de Trabalho, o acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, p. 223 e ss.): “Parece-nos, com efeito, que tanto pelas razões históricas já atrás aduzidas, como para garantir a coerência do sistema face às consequências extremamente severas da descaracterização – com a exclusão de todas as prestações, ressalvando-se apenas o dever de prestar primeiros socorros e pedir auxílio – não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaraterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao  que acresce que outras «justificações» poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho”.

XXI - E, também a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2017, proferido no processo n.º 2763/15.0T8VFX.L1.S1 (6), em cujo sumário se refere que “[a] descaracterização do acidente de trabalho com fundamento na 2ª parte da alínea a), do nº 1, do art. 14º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro - violação das condições de segurança previstas na lei - exige que o trabalhador atue com culpa grave, que tenha consciência da violação, não relevando os casos de culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração ou ao esquecimento.”

XXII - A ausência de elementos de prova que pudessem conduzir à conclusão de que se encontra verificada qualquer das hipóteses que permitem descaracterizar o acidente de trabalho–nos termos em que as mesmas devem ser interpretadas - é, in casu, manifesta e assim considerou – e bem – o Tribunal A Quo.

XXIII – A douta Sentença proferida não merce qualquer censura, carecendo as alegações de Recurso apresentadas pela entidade patronal de qualquer fundamento de facto e de Direito.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Ex.as, deve decretar-se a inadmissibilidade do recurso apresentado pela entidade patronal, por violação do disposto no art. 631º, nº 1 do CPC, ordenando-se o seu desentranhamento, com todas as consequências legais;

Assim se não entendendo, deve, em todo o caso, o recurso apresentado pela entidade patronal ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a douta Sentença proferida nos seus precisos termos,

Assim fazendo V. Ex.as a costumada JUSTIÇA.”

                                                             *

O Exm.º Procurador Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 303 e segs. no sentido de que “a Apelação deve(rá) ser julgada improcedente”.

*

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

                                                             *

  II – Fundamentação

a) Factos provados constantes da sentença recorrida

1) AA nasceu no dia .../.../1985;

2) No dia 11.04.2019 AA trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização de “G...SA.”, com sede na Rua ..., ..., ... ..., detendo a categoria profissional de serralheiro de construção de estruturas metálicas, e auferia a remuneração base de 850,00 € x 14 meses + 5,12 € x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação + 61,70 € x 12 meses (média de AC25%) + 47,58 € x 12 meses (média de prémio de produtividade), no total anual ilíquido de 14.450,04 €;

3) Na data referida em 2), o sinistrado procedia à remoção de chapas de fibrocimento do telhado, no cimo de um edifício, desequilibrou-se e caiu ao solo de uma altura de cerca de 8 a 9 metros;

4) A sociedade “G...SA.”, tinha transferido, por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...55, para a Ré “Z... PLC – Sucursal em Portugal”, a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho de AA, pelo menos, pela remuneração base de 850,00 € x 14 meses + 112,64 € x 11 meses de subsídio de alimentação + 32,42 € x 12 meses de Ajudas de Custo (outras remunerações) + 49,58 € x 12 meses de prémio, no total anual ilíquido de 14.073,46 €;

5) Em virtude do referido em 3), o Autor sofreu: traumatismo da coluna lombar, punho esquerdo e ambos os pés com fratura do corpo de L1, fratura distal do radio esquerdo, fratura do calcâneo esquerdo e fratura distal da tíbia e do astrálago, escafoide társico e de metatarsos do pé direito e ferida do antebraço direito, apresentando como sequelas, no membro inferior direito, achatamento moderado da abóbada plantar com dor a nível da face externa sugestiva de tendinite do peroniais com edema residual ligeiro, e no membro inferior esquerdo, achatamento moderado da abóbada plantar e dor ligeira metatársica;

6) Ficando em situação de ITA desde 12/04/2019 a 24/02/2020 (319 dias), após o que ficou a padecer de uma IPP de 7,8016%;

7) Ao proceder à remoção das chapas de fibrocimento, no telhado, no cimo do edifício, o sinistrado não colocou o passadiço de circulação, utilizando as vigas do telhado como ponto de amarração de uma corda que prendia ao arnês durante todos os momentos do trabalho em altura, não fazendo uso do arnês ligado a uma linha de vida ou ponto fixo;

8) No momento em que se desequilibrou, o sinistrado tinha desamarrado a corda que o prendia ao arnês;

9) O sinistrado sabia, porque tinha tido formação para o efeito, que tinha que estar sempre amarrado durante qualquer movimentação do trabalho em altura, assim como sabia que tinha de garantir passadiços de circulação com pontos de fixação das amarrações;

10) Por virtude do referido em 5, o sinistrado despendeu a quantia de 1.244,60 € em tratamentos, exames médicos e consultas de fisioterapia, ortopedia e osteopatia.

Factos não provados:

- O Autor despendeu a quantia de 35,00 € em deslocações obrigatórias, no âmbito deste processo, ao Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal;

- A 2ª Ré comunicou à 1ª Ré, a mais do montante referido em 4), as demais quantias auferidas pelo Autor e mencionadas em 2);

- O sinistrado tinha ao seu dispor os equipamentos de proteção individual e amarrações para fazer tais trabalhos em altura e respetivas deslocações. 

Motivação:

O Tribunal formou a sua convicção na prova pericial, documental testemunhal, esta tal qual se produziu em sede da audiência de discussão e julgamento, todas analisadas e concatenadas criticamente de acordo com as regras da experiência comum.

Assim, o facto 1 está demonstrado pela certidão de nascimento do Autor, os factos 2 e 3 estão aceites pelas partes e o facto 4 está comprovado pela apólice junta aos autos; os factos 5 e 6 encontram suporte no auto de exame médico e no auto de junta médica, cujo parecer foi emitido por unanimidade no sentido da descrição das lesões e sequelas anatómicas bem como da fixação da IPP do sinistrado, nada nos permitindo duvidar da credibilidade das entidades envolvidas, que se afigura estar devidamente fundamentado, e o facto 9 foi confirmado pelo sinistrado em declarações de parte.

Os factos 7 e 8 resultam dos depoimentos das testemunhas BB (serralheiro da “...”, que trabalhava juntamente com o sinistrado, emprestado por aquela empresa), CC (técnica averiguadora de acidentes de trabalho, contratada pela seguradora) e DD (técnica superior de higiene, a trabalhar para firma “V...”, contratada pela Entidade Patronal para investigar o acidente).

O primeiro, que trabalhava com o sinistrado no dia do acidente, encontrava-se no interior de uma máquina de elevação para agarrar as placas que aquele removia do telhado; refere que o sinistrado colocou o arnês quando subiu ao telhado, que não havia outro ponto de amarração além das vigas do telhado e que o sinistrado estava assim amarrado por uma corda ao arnês; no momento da queda encontrava-se agachado pelo que não se apercebeu como aquela ocorreu; a segunda e a terceira procederam à investigação do acidente por ordem, respetivamente, da seguradora e da entidade patronal, relatando as diligências efetuadas, das quais concluíram que o sinistrado utilizava um arnês e uma corda que amarrava à vigota, e que a queda provavelmente se deu quando o sinistrado pretendia fazer a transposição para a plataforma elevatória, ocasião em que desamarrou a corda do arnês; o sinistrado, em declarações, nada acrescentou sobre a dinâmica do acidente, por não se lembrar.

Para prova do facto 10, relativo às despesas com tratamentos, exames médicos e consultas de fisioterapia, ortopedia e osteopatia, consideraram-se as faturas juntas pelo sinistrado comos docs. 1 a 12 na sua petição, sendo os tratamentos nelas constantes consonantes com o tipo de lesões sofridas.

Foi da conjugação global destes meios de prova e da sua ponderação e valoração, na perspetiva da livre apreciação, que emergiu a convicção positiva e negativa do tribunal, vertida nas respostas dadas a tais factos; sobrelevaram-se, nos depoimentos, o conhecimento da realidade dos factos, a isenção e rigor revelados, deles se retirando as inerentes presunções – caso o sinistrado tivesse amarrada a corda ao arnês no momento da queda, não se tendo partido a viga que a prendia, não poderia ter caído; quanto ao motivo que levou o sinistrado a desamarrar a corda, a prova produzida foi insuficiente para apurar, de forma consistente, o que sucedeu.

Não foi efetuada nenhuma prova relativa às despesas tidas com deslocações no âmbito deste processo pelo Autor, nem a 2ª Ré demonstrou que comunicou à 1ª Ré, a mais do montante salarial transferido, as demais quantias auferidas pelo Autor, também não tendo sido feita prova cabal de quais os meios de proteção que o sinistrado dispunha para realizar os trabalhos em causa e fornecidos pela sua EP, pelo que a factualidade dada por não provada resulta da total ausência de prova a ela relativa.

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b) - Discussão

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º, n.º 1, do CPC), salvo as que são de conhecimento oficioso.

Questão prévia:

Inadmissibilidade do recurso

Como já referimos, o A. recorrido veio alegar que a Ré recorrente, em sede de contestação aceitou expressamente a descrição do acidente feita pelo A., referindo que o sinistrado cumpriu todas as normas de segurança a que estava obrigado, não tendo culpa no acidente em causa nos autos, sendo que, foi a Ré seguradora quem invocou a descaracterização do acidente, pelo que, a sentença de que agora vem recorrer não lhe é contrária nesse ponto, não se verificando a condição prevista no n.º 1 do artigo 631.º do CPC, assistindo-lhe apenas o direito de recorrer contra a decisão de que parte do vencimento do sinistrado não se encontrava transferido para a Ré seguradora, pois trata-se do único ponto da sentença em que, atenta a posição assumida pela mesma, resultou vencida.

Vejamos:

Na verdade, a ora recorrente nunca invocou nos presentes autos a descaracterização do acidente em causa, tendo alegado, na sua contestação, de forma manifestamente oposta com a que agora assume, que o sinistrado cumpriu todas as normas de segurança a que estava obrigado, não tendo culpa no acidente em causa nos autos, tal como foi referido pelo ora recorrido.

No entanto, vem agora interpor recurso alegando que:

- O acidente ocorreu única e exclusivamente por culpa do Sinistrado, por não respeitar as regras de segurança, bem como utilizar adequadamente o equipamento que lhe foi fornecido pela Entidade Empregadora;

- O Sinistrado só caiu do telhado porque tinha a corda desamarrada do Arnês, ou seja, não fazia o uso correto do mesmo;

- Se o Sinistrado não tivesse desamarrado a corda, sem ter amarrado outro ponto fixo, não teria caído;

- Sendo certo que a ação de desamarração da corda que o prendia ao Arnês foi causa exclusiva, direta e necessária da ocorrência do acidente;

- É o sinistrado o responsável principal pelas consequências do sinistro, contrariamente ao entendimento perfilhado na decisão sob censura;

- Da prova constante dos autos nunca se poderia concluir que o acidente que vitimou o sinistrado é de trabalho, uma vez que o mesmo apenas aconteceu, única e exclusivamente, por culpa exclusiva do Sinistrado, que desamarrou a corda do Arnês que o mantinha seguro;

- Foi o Sinistrado que violou as normas de segurança, quer impostas pela Entidade Patronal, quer impostas pela Lei;

- O acidente ocorreu única e exclusivamente por ação do Sinistrado que desamarrou a corda do Arnês, mesmo sabendo que não o poderia fazer enquanto estivesse a trabalhar em alturas;

Resultado artigo 631.º do CPC que:

<<1. Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.>>

Significa isto que, em regra, só pode recorrer quem for parte principal e tenha ficado vencido na causa, sendo “parte vencida aquela que é objectivamente afectada pela decisão, ou seja, a que não tenha obtido a decisão mais favorável aos seus interesses. (…); o réu quando, no todo ou em parte, seja prejudicado pela decisão.”[2]

Pois bem, tendo em conta que na sentença recorrida a ora recorrente foi condenada a pagar ao A. as quantias na mesma discriminadas na proporção do vencimento do recorrido não transferido para a Ré seguradora, o que a prejudica, pode, numa primeira leitura, concluir-se que aquela Ré ora recorrente ficou vencida.

Acontece que, a interposição do recurso e a objetivação do vencimento/decaimento a que a norma alude não pode alhear-se da posição assumida pela recorrente ao longo de todo o processo.

Na verdade, como já referimos, a Ré não alegou a descaracterização do acidente em causa nos presentes autos e declarou, mesmo, na tentativa de conciliação que aceita “a existência do acidente nas circunstâncias de tempo, modo e lugar acima descritos; não aceita a posição da seguradora quanto à interpretação da violação das regras de segurança, pelo que considera que a seguradora é responsável pela reparação do acidente”.

E na contestação, como já ficou dito, a recorrente alegou que “quer a entidade patronal, quer o Autor cumpriram todas as normas de Segurança a que estavam obrigados. Pelo que, nem a Entidade Patronal, nem o Trabalhador tiveram qualquer culpa no acidente que deu causa aos presentes autos.”

Assim sendo, tendo a recorrente tomado posição expressa sobre esta matéria, não pode agora vir, em sede de recurso, fazer tábua rasa do alegado, ou seja, não pode vir agora alegar precisamente o contrário como o fez nas alegações de recurso.

Acompanhamos Abrantes Geraldes[3], quando o mesmo refere que “sem embargo do que a respeito da renúncia ao recurso emerge do art. 632º, não deixa de ser parte vencida, com legitimidade para interpor recurso, o réu que, (…) apesar de não ter invocado determinada excepção dilatória de conhecimento oficioso, pretenda recorrer da sentença final com fundamento na sua verificação”.

E, não desconhecemos o que se refere no acórdão do STJ, de 14/02/2013, disponível em www.dgsi.pt, no sentido de que:

<<Vindo a doutrina portuguesa maioritariamente a entender dever a propósito ser adoptado um critério material, o qual implica ter legitimidade para recorrer a parte para a qual a decisão for desfavorável (ou não for a mais favorável que podia ser), qualquer que tenha sido o seu comportamento na instância recorrida e independentemente dos pedidos por ela formulados no tribunal a quo[6].>>

No entanto, o caso em análise reveste-se das assinaladas particularidades que não podem ser ignoradas.

Na verdade, diferente é a situação supra referida em que o réu não alegou uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, bem como no caso de o réu ser revel ou de ter deduzido defesa por impugnação ou exceção perentória e defesa por exceção dilatória, podendo “recorrer da decisão que, julgando esta procedente, o absolveu da instância, visto lhe ser mais favorável a absolvição do pedido.”[4]

Aliás, a posição assumida pela Ré patronal nas suas alegações de recurso, no confronto com o que anteriormente sempre assumiu, roça a má fé.

Desta forma, tendo em conta a “atitude” processual da Ré patronal supra relatada, impõe-se concluir que, pese a mesma tenha sido condenada nos termos constantes da sentença recorrida, não pode interpor o presente recurso, por falta de interesse em agir decorrente da posição que ao longo do processo assumiu (com referência ao âmbito da defesa que a mesma fixou nos termos da disposto no artigo 574.º, n.º 1, do CPC), não podendo nessa exata medida, no respeito pelo princípio da lealdade processual, ter-se como parte vencida.    

Assim sendo, o presente recurso é inadmissível.                

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IV – Sumário[5]

(…)

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V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se:

- em não admitir o recurso interposto pela Ré patronal.                                                                                                *

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Custas a cargo da Ré recorrente.

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Coimbra, 2019/09/28

 (Paula Maria Roberto)

 (Azevedo Mendes)

 (Felizardo Paiva)

          

                                                                                                             



[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos – Azevedo Mendes
Felizardo Paiva
[2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 63.
[3] Obra citada, pág. 64.
[4] Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 47.
[5] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.