Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1688/21.4T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS A CARGO DO IMPUGNANTE
TRANSCRIÇÃO
ACESSO ILEGÍTIMO A MENSAGENS DE E-MAIL
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVA
CONCORRÊNCIA DESLEAL
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 640.º, N.º 2, AL.ª A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 22.º, 34.º E 128.º, N.º 1, ALÍNEA F), DO CÓDIGO DO TRABALHO E 32.º, N.º 8, DA CONSTITUIÇÃO
Sumário: I – A alínea a) do n.º 2 do art.º 640.º do Código de Processo Civil deve ser interpretada no sentido de que a impugnação da matéria de facto com base em prova gravada tanto se pode fazer mediante a indicação dos concretos segmentos da gravação como mediante a transcrição deles.
II – Não vale como transcrição uma “resenha” ou aquilo que “em suma” terá referido a pessoa de cujo depoimento a recorrente se quer fazer valer.

III – O sentido da proibição do aproveitamento do próprio ilícito para o direito das proibições probatória é o seguinte: a parte que mobiliza na ação uma prova proveniente da lesão de direitos fundamentais da outra não pode ser beneficiada pela valoração da prova com o fim de demonstrar a verificação dos factos que suportam as suas pretensões.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Tribunal Judicial da Comarca da Guarda

Tribunal do Trabalho da Guarda

1688/21.4T8GRD.C1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

A... Sociedade Unipessoal, Lda. intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo que os réus sejam solidariamente condenados no pagamento à autora, em quantia nunca inferior a €40.000,00 pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, e prejuízos causados pelas suas condutas ilícitas e dolosas,; mais pedindo,  que os réus sejam solidariamente condenados no pagamento à autora, pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, e prejuízos causados pelas suas condutas ilícitas  e dolosas, calculados nos termos do disposto no artigo 566º, nº 3, do Código Civil e, ainda, caso também assim não se entenda, que os réus sejam solidariamente condenados no pagamento à autora, pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, e prejuízos causados pelas suas condutas ilícitas e dolosas, a liquidar em execução de sentença.

Alegou para tanto, e em síntese, que, os réus foram trabalhadores da autora, tendo denunciado o contrato de trabalho, com efeito no dia 31.08.2021, através de cartas registadas, recebidas no dia 30.06.2021, sendo que, na pendência do contrato de trabalho, desenvolveram uma atividade paralela de aplicação e instalação de equipamentos de energias renováveis e de outros produtos relacionados, tendo-se apropriado do “know-how” da autora e utilizaram os mesmos fornecedores desta para adquirir os equipamentos, cuja instalação realizaram em nome próprio, desenvolvendo uma atividade paralela à da autora.

Mais alegou que, com as suas atuações, os réus violaram o dever geral de proceder de boa-fé no cumprimento das suas obrigações, assim como os seus deveres de guardar lealdade à autora, provocando uma grave lesão de interesses patrimoniais no estabelecimento comercial da autora, tendo-lhe causados danos, pelo que a mesma deve ser indemnizada em montante nunca inferior a €40.000,00.

Os réus deduziram contestação, alegando, desde logo, a nulidade da prova, já que os documentos juntos pela autora (docs. 4 a 68) foram obtidos através da introdução no email do réu B..., sem o conhecimento e consentimento deste, mais referindo, em síntese, que o nunca adotaram qualquer comportamento desviante da clientela da autora, negando, ainda, que tenham adquirido quaisquer equipamentos aos fornecedores da autora, por forma a realizarem instalações/obras para os clientes desta, não tendo assim adotado quaisquer comportamentos suscetíveis de causar danos/prejuízos à autora e passíveis de indemnização.

Concluíram defendendo a sua absolvição.

Realizou-se audiência final.

Posteriormente, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Por tudo o exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, julgando-se a presente acção totalmente improcedente, por não provada, absolvo os réus AA e CC do pedido formulado pela autora A... Sociedade Unipessoal, Lda.

Custas pela autora-cfr. o disposto no n.º 1 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho.

Valor da causa: €40.000,00 (já fixado por despacho de 18.03.2022).

Notifique e registe”.

Inconformada com o decidido, a autora interpôs recurso, terminando as alegações com as seguintes conclusões:

“Impugnação da matéria de facto

Pontos concretos da matéria de facto que se impugnam

Ponto 22) e 23)

1. – A Autora, com a petição inicial, juntou documentos, de fls. 17v a 50v, dos autos (documentos 4 a 68 da petição inicial);

2. – O Réu B..., em sede de contestação, alegou que os referidos documentos, tinha sido obtido através de acesso da sua conta de email pessoal;

3. A Autora, contestou tais alegações, ref. CITIUS 1913602, alegando que tais documentos tinham sido obtidos através de informação que constava dos seus equipamentos e base de dados (computador onde o Réu B... exercia parte da sua atividade laboral para a Autora), e não através de acesso aos emails pessoais do Réu;

4. O Tribunal a quo entendeu não valorar os documentos fls. 17v a 50v, porque concluiu que os mesmos se encontravam anexados a emails do Réu e haviam sido obtidos pela Autora, sem conhecimento e/ou consentimento, do Réu B...;

5. Pelo que, a referida prova foi considerada nula.

6. Para fundamentar a referida decisão, o Tribunal na douta da Sentença, afirma que alcançou aquela decisão, essencialmente nas declarações de parte do Réu B...;

Ora...

7. As declarações de parte ainda que apreciadas livremente pelo Tribunal, devem ser valoradas com especial cuidado. Como se fundamenta na doutra Sentença: “Na verdade, este inovador meio de prova, dirige-se às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidades de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorrido na presença circunscrita das partes. E, sujeitá-las a arrolar testemunhas sem conhecimento directo, que apenas reproduzam o que teriam ouvido dizer ou que expressem a sua opinião, tem reduzido interesse e muito limitado valor processual.”

8. Nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Cód. Civil, cabia aos Réus provar o que alegaram;

9. O Réu B..., não presenciou o modus operandi que permitiu à Autora aceder àqueles documentos, entenda-se, o Réu B..., não teve intervenção direta nos factos, por si, alegados. Nem tampouco, o Tribunal estava impedido de esclarecer estes factos recorrendo, pelo menos, a uma prova pericial;

10. Mas mais, o Tribunal, ad cuatelam, socorrendo-se de um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, pressupões, ainda, que os documentos juntos pela Autora, ainda que inseridos em pastas e/ou ficheiros no computador usado pelo Réu B..., propriedade da entidade patronal, também não podiam ser valorados como meio de prova: “É que, pode ler-se no Acórdão que temos vindo a transcrever que «Antes de mais importa referir que os documentos, na medida em que constituam anexos aos emails (o que, v.g., ocorre com várias listagens de stocks e fotografias), não poderão ser atendidos porque protegidos pela inviolabilidade das comunicações ainda que tivessem sido encontrados em pastas constantes do disco rígido e no software dos computadores afetos ao AA. e mesmo que não estivessem protegidos por palavra passe, o que se afigura irrelevante. Estas circunstâncias, bem como o facto de o computador ser da Ré, não afastam a natureza extraprofissional dos documentos, da correspondência e dos respetivos anexos, estando estes protegidos pela garantia da inviolabilidade. Ou, dito de outro, o conteúdo dos emails e o conteúdo dos anexos de e-mails, ainda que guardados em suporte informático (ou em papel), gozam de tais garantias. (...)» (nosso sublinhado).”

Ora, também aqui, assenta que esses documentos seriam anexos de emails, o que os Réus não conseguiram de mostrar, não sendo prova bastante o depoimento de Réu B..., com veremos adiante

Além do mais...

11. O depoimento do Réu, salvo o devido respeito, não é merecedor da credibilidade que o Tribunal lhe atribui;

12. Na verdade, o depoimento do Réu B..., sob esta matéria que se mostrou essencial, foi contraditado pelo depoimento da testemunha DD, arrolada pela Autora e pelos Réus;

13. O Tribunal, ao sindicar o depoimento desta testemunha, entendeu que a mesma vinha solidificar o depoimento do Réu.

Ora…

 14. Salvo o devido respeito, do depoimento da testemunha DD, prestado no dia 31-05-2022, pela 16:31:37 até 16:51:25, resulta o seguinte:

1) A testemunha conheceu os Réus como trabalhadores da Autora, por trabalhos anteriormente executados por estes em nome da Autora;

2) Em fevereiro de 2021, o Réu, B..., enviou à testemunha um orçamento em nome da Autora, conforme doc. 68, cuja data do referido documento não está em conformidade, por ser atualizada automaticamente pelo sistema, mas que a testemunha confrontada com o mesmo, em sede de audiência e julgamento, reconheceu o seu conteúdo e data de envio, ou seja, o referido documento não é de 02/09/2021, como erradamente se faz constar da douta Sentença, mas sim de fevereiro de 2021 conforme a testemunha esclareceu;

3) A testemunha não aceitou o preço proposto de 7.023,30 € (com IVA incluído) porque tinha uma proposta mais barata, embora tenha confirmado que foram os Réus a executar aquele trabalho;

4) O orçamento enviado pela Autora, tinha um valor de 7.023,30 €, conforme doc. 68 da p.i., com o IVA devidamente discriminado;

5) O Réu B... disse à testemunha que teria uma solução ao orçamento que lhe havia apresentado em nome da Autora;

6) A instâncias do Tribunal, a testemunha viria a reencaminhar o email e juntar aos Autos, em 6 de junho de 2022, o email que recebeu do Réu B..., com a referida solução, datado de 6 de maio de 2021, referência CITIUS 1977397.

15. Resulta do referido email, além do mais, que a proposta a ser aceite, seria executada nos tempos livres e fins de semana:

7) Igualmente, no email segue uma proposta enviada à testemunha, com condições e preço manifestamente inferior àquele que o Réu havia apresentado como trabalhador da Autora, no valor 4.674,00 € (sem qualquer referência ao valor do IVA);

8) Mais, do orçamento junto ao email já constava o nome e logotipo da futura empresa dos Réus, “C...”, assim como, as marcas de equipamentos, nomeadamente, “...”, “...”, “...” e outras;

16. O Réu, B..., nas suas declarações de parte, mentiu, quando afirmou que não exercia qualquer atividade paralela, em concorrência com a sua entidade patronal;

17. Não é, pois, credível o depoimento do Réu B..., pelo que, não se entende que o Tribunal lhe tenha dado o abono da veracidade;

18. Há que concluir o seguinte, os Réus contactavam diretamente com os clientes ou eventuais clientes da Autora. Eram conhecedores dos orçamentos propostos pela sua entidade patronal a esses clientes ou eventuais clientes;

19. Os Réus no decurso da sua atividade laboral, foram criando uma empresa do mesmo ramo, apresentando orçamentos alternativos, inferiores aos elaborados pela entidade laboral, mas sem contabilizar o IVA. O que tornava a sua proposta muito mais atrativa em relação à concorrência, nomeadamente, à sua entidade patronal;

20. Porque mentiu, o depoimento do Réu B..., não pode merecer o aval do Tribunal, contraditado pelo depoimento da testemunha, DD, também por si arrolada, e pelo clarificado documento junto aos autos, ref. CITIUS 1977397, que esta testemunha juntou a instâncias do Tribunal;

21. O tal projeto de futuro a que se refere o Réu B..., era já um projeto presente nas instalações da Autora, à revelia desta sem o seu conhecimento, que ousavam torpedear o aviamento da entidade patronal que os Réus lograram alcançar;

22. A conduta dos Réus, tinha como finalidade aliciar e angariar clientes para a sua empresa, já no decurso da execução do contrato de Trabalho que tinham com a Autora;

23. Assim, os pontos 22) e 23) dos factos provados, devem ser julgados como não provados e, em consequência, toda a documentação de fls. 17v a 50v (documentos 4 a 58 da petição inicial), devem ser admitidos e valorados em conformidade;

24. Pelo que, a factualidade vertida na petição inicial, sob os artigos: 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, 50º, 51º, 52º, 53º, 55º, 58º, 59º, 60º, 64º, e 65º, julgados como não provados, devem ser julgados como

PROVADOS

25. Ainda que assim não se entenda, o depoimento da testemunha DD, que mereceu a credibilidade do Tribunal, em conjugação com documento por ela junto a instâncias do Tribunal, ref. CITIUS 1977397, são suficientes e bastantes para a demonstração da factualidade vertida na petição inicial, alegada pela Autora, pois demonstram que os Réus foram construindo, durante o primeiro semestre de 2021, uma organização paralela e concorrente da empresa da Autora e que, além do mais, procurou e/ou conseguiu mesmo desviar parte da sua clientela;

26. Pelo que, também por esta via, devem ser julgados como PROVADOS os artigos da petição inicial: 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, 50º, 51º, 52º, 53º, 55º, 58º, 59º, 60º, 64º, e 65º;

DO DIREITO

27. O Réu B..., desde 25.10.2019, e o Réu BB, desde 3.04.2017, desenvolveram uma atividade laboral para a Autora, tendo ambos denunciado os seus respetivos contratos de trabalho, com efeitos a 31.08.2021.

28. O contrato de Trabalho compreende um conjunto de deveres e obrigações tanto para a entidade patronal como para os trabalhadores;

29. Traduz-se numa conjugação de esforços, entre entidade patronal e seus trabalhadores, para alcançarem objetivos comuns, em prol da obtenção de lucro, como única finalidade das sociedades comerciais, essencial para o cumprimento das obrigações de cariz patrimonial que são devidas aos trabalhadores em contrapartida do seu trabalho;

30. Por essa razão, vem estabelecido na Lei, nos termos do artigo 128.º, n.º 1, al. f), do Código de Trabalho (2009), que o trabalhador deve:

“Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios.”

31. Nesta senda, como se escreve na fundamentação da douta Sentença, sob recurso, os Réus, enquanto trabalhadores, estavam obrigados “a proteger e defender os interesses do empregador, bem como direcionar todas as suas forças laborais para atividade profissional desenvolvida ao serviço do empregador, abstendo-se de competir com ele.” (sic da douta Sentença)

32. Como resulta dos autos, com a sua conduta, os Réus, gozando de uma posição privilegiada, por serem parte integrante da estrutura organizacional empresarial da Autora, utilizaram a facilidade de acesso à informação de serviços e clientela, para, em seu proveito próprio, desviarem o aviamento, dirigindo-o para uma estrutura organizacional, por eles controlada.

Como diz, Pedro Romano Martinez, na obra citada na douta Sentença, “os trabalhadores encontram-se numa situação privilegiada para entrarem em concorrência com o empregador, pois, em princípio, conhecem a clientela, muitas vezes melhor que o próprio empregador, visto que têm contacto direito com os clientes”.

33. Vejamos que, in casu, o Réu B..., elaborava os orçamentos da entidade patronal e contactava diretamente com os clientes, assim como, o Réu BB, executava as obras contratadas, pelo que, também este contactava diretamente com a clientela da Autora.

34. Com tal comportamento, os Réus violaram de forma grosseira o dever de lealdade, que enquanto trabalhadores, deviam à sua entidade patronal.

35. Fizeram-no de forma premeditada, minuciosa e consciente.

36. O que fizeram de má-fé, em claro prejuízo do interesse patrimonial da Autora, sem qualquer pejo que se estivesse a atravessar a situação pandémica causada pela SARS-COV2, que na data a que se referem os factos se espalhara a todo o país, ainda que a entidade patronal nunca tenha, nessa altura, faltado com as suas obrigações para com os seus trabalhadores;

37. Pelo que, os Réus, com as suas atuações, violaram, inegavelmente, o dever geral de proceder de boa-fé no cumprimento das suas obrigações, conforme previsto no nº 1, do artigo 126º, do Código do Trabalho.

38. In casu, não estamos perante uma simples atividade pós-laboral dos trabalhadores, mas sim perante uma clara atividade concorrente com a atividade empregadora, que se desenvolvia no interior da estrutura desta última, em plena execução dos contratos de trabalhos, como um cancro empresarial.

39. Deve, pois, concluir-se que a conduta dos Réus é ilícita e que causou, ainda que potencialmente, um desvio de clientela, i.e., uma lesão patrimonial.

40. Por fim, dúvidas não restam, que qualquer comunicação, como aquela que consta dos autos e foi feita à testemunha DD, referência CITIUS 1977397, datado de 6 de maio de 2021, não seria possível sem consubstanciar uma violação dos deveres dos trabalhadores e, em consequência, causar uma grave lesão nos interesses patrimoniais da entidade empregadora no mercado, ainda que essa lesão não fosse efetiva, mas apenas potencial.

41. Vejamos que, um cliente, que tenha contacto com um orçamento com um custo mais baixo, para um mesmo bem e/ou serviço, diz-nos a experiência comum que perderá o interesse no orçamento de maior valor, pelo que, não podemos esquecer que os valores apresentados pelos Réus, não contabilizavam o IVA, representando um caso evidente de economia paralela, com o objetivo de se furtarem às obrigações fiscais decorrentes deste tipo de transações;

42. Neste ponto, tanto a testemunha DD, como a testemunha EE, foram concordantes ao afirmarem que procuraram os serviços da Autora numa primeira instância, porque antes já a tinham contratado para outros serviços, e que, apenas, perderam o interesse por motivos relacionados com o preço da empreitada, tendo a realização desses serviços sido entregue, a final, aos Réus.

43. Nestes termos, deve a douta Sentença sob recurso, ser anulada e substituída por douto Acórdão que julgue procedente a ação in totum.

44. A douta Sentença violou os artigos: 342.º, n.º 1, do Cód. Civil, 126.º, n.º 1, e 128.º, n.º 1, al. f), ambos do Código do Trabalho, 607.º, nº 4, in fine, do Cód. Proc. Civil.

Os recorridos contra-alegaram, com as seguintes conclusões:

(…).

O Exmº Procurador Geral Adjunto junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência da apelação.

O recurso foi admitido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                   OBJETO DO RECURSO

                   Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se o recurso é ou não tempestivo (suscitado nas contra-alegações).
2. Se foi dado cumprimento aos ónus de impugnação da matéria de facto previsto no artigo 640º, nº 2, al. a), do CPC (suscitado nas contra-alegações).
3. Impugnação da decisão quanto à matéria de facto e (i)licitude na obtenção da documentação de fls. 17v a 50v e sua valoração.
4. Da concorrência desleal e do pedido de indemnização.

                   FUNDAMENTOS DE FACTO

                   O Tribunal de 1ª instância fixou a matéria de facto da seguinte forma:

                   “Factos provados

1) A autora dedica-se à comercialização e aplicação e instalação de equipamentos de energias renováveis e de todos os produtos com elas relacionados.

2) Por contrato de trabalho sem termo, outorgado no dia 25.10.2019, o 1.º réu, AA, foi admitido para o exercício das funções inerentes à categoria profissional de Agente Técnico de Engenharia (Grau I sendo-lhe atribuídas as funções descritas na contratação coletiva de trabalho aplicável), com início em 01.11.2019.

3) Por contrato de trabalho sem termos, outorgado em 03.04.2017, o 2.º réu, BB, foi admitido para o exercício das funções inerentes à categoria de Técnico de Energias Renováveis, sendo as funções a desempenhar as relacionadas com a sua categoria, nomeadamente, ensaio de sistemas com equipamento de medida e controlo, instalar e reparar sistemas solares, diagnosticar avarias, definir equipamentos, com início em 04.04.2017.

4) O contrato do 2.º Réu, BB, foi transferido, aquando do momento da constituição da sociedade comercial, em 20.01.2017, para a autora, que ocorreu com a extinção da Sociedade Comercial D..., Lda., contribuinte fiscal ...10, com quem o 2.º réu tinha contrato, desde 1 de Julho de 2015.

5) Os réus desempenharam as suas funções, predominantemente, no estabelecimento da autora situado no ....

6) O réu, AA, enquanto trabalhador, utilizava um telemóvel, atribuído pela autora, com o n.º ...79, através do qual o réu mantinha contracto, em representação da autora, com os clientes desta, cujo respectivo telemóvel e cartão SIM eram propriedade da autora.

7) Os réus, denunciaram os seus contratos de trabalho, com efeitos no dia 31.08.2021, através de cartas registadas, recebidas no dia 30.06.2021.

8) O 1.º réu, AA, gozou os seus dias de férias desde o dia 10.08.2021, até ao término do contrato.

9) O 2.º réu, BB, gozou os seus dias de férias desde o dia 13.08.2021, até ao término do contrato.

10) O 1.º réu, AA, quando entrou de férias, entregou à autora o telemóvel referido em 6), sem nenhum contacto dos clientes na lista de contactos do dispositivo.

11) O contacto pessoal do réu AA, com o n.º ...96, é o mesmo que foi apresentado nos documentos da “C...”.

12) O contacto pessoal do réu BB, com o n.º ...15, é o mesmo que foi apresentado nos documentos da “C...”.

13) O réu AA, antes da factualidade descrita em 2), havia sido admitido ao serviço da autora, em Abril de 2017, mediante a celebração de um contrato de estágio (profissional) promovido pelo Centro de Emprego e Formação Profissional da ..., IEFP-IP.

14) O réu BB, antes da factualidade descrita em 3), havia sido admitido ao serviço da empresa D..., Lda., em 02.06.2014, mediante a celebração de um contrato de estágio, promovido pelo Centro de Emprego e Formação Profissional da ...-IEFP, IP, com término a 08.06.2015.

15) O réu BB celebrou com a empresa D..., Lda. um contrato de trabalho a termo certo, com início em 01.07.2015, o qual foi sujeito a renovações, até inícios de Abril de 2017, altura em que celebrou com a autora o contrato de trabalho referido em 3).

16) Os réus, em 03.09.2021, constituíram uma sociedade comercial por quotas, com a firma “B..., Ld.ª, a que denominaram socialmente  C...”, detendo, cada um, uma quota nominal de €2.500,00, com seguinte objecto social: instalações de climatização, fornecimento e instalação de sistemas de produção de energia e outras instalações, nomeadamente eléctricas gás e canalizações.

17) Por carta datada de 27.08.2021, a autora enviou ao réu AA a nota de culpa junta a fls. 94 a 97v., cujo teor ora aqui se dá por integralmente reproduzido.

18) Por carta datada de 28.09.2021, a autora comunicou ao réu AA a decisão do procedimento disciplinar que lhe havia instaurado, propondo o arquivamento do processo disciplinar.

19) Por carta datada de 27.08.2021, a autora enviou ao réu BB a nota de culpa junta a fls. 102 a 105v., cujo teor ora aqui se dá por integralmente reproduzido.

20) Por carta datada de 28.09.2021, a autora comunicou ao réu AA a decisão do procedimento disciplinar que lhe havia instaurado, propondo o arquivamento do processo disciplinar.

21) Os réus responderam às notas de culpa referidas em 17) e 19), por carta de 02.09.2021, requerendo o arquivamento do processo disciplinar, alegando que o contrato de trabalho cessou em 31.08.2021.

22) Os documentos de fls. 17v. a 50v. (Docs. N.ºs 4 a 68 da petição inicial), encontravam-se anexados a e-mails enviados e recepcionados pelo réu AA, para e de terceiros (outrem), tendo sido obtidos pela autora através do acesso ao e-mail pessoal do réu AA, com a conta de correio electrónico ...@...mail.com, sem o conhecimento e consentimento deste, pelo computador existente nas instalações da autora, no qual se encontrava guardada automaticamente a password de acesso a tal conta de correio electrónico pertencente ao 1.º réu.

23) Os documentos referidos em 22) não se reportam às relações comerciais entre a autora e os terceiros ali identificados ou à actividade profissional que o réu B... executava para a autora, tendo como emitentes e destinatários terceiros (e o 1.º réu), que não a autora.

Factos não provados

Com relevo para a decisão da causa, não resultaram apurados os seguintes factos da petição inicial: 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 47.º, 48.º, 49.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 54.º, 55.º, 58.º, 59.º, 60.º, 64.º e 65.º, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, contendo os restantes artigos da petição inicial, matéria conclusiva ou de direito.

                   FUNDAMENTOS DE DIREITO
1- Se o recurso é ou não tempestivo

Sustentam os recorrido que o presente recurso é extemporâneo, porquanto o prazo para recurso iniciou-se no dia 6-01-2023 e o requerimento de interposição de recurso deu entrada em tribunal a 13-02-2023, sendo certo que ao longo das suas alegações e conclusões não procedeu à impugnação da matéria de facto por referência aos por si citados pontos factuais e, muito menos, a compaginou com a reapreciação da prova gravada.

Dispõe o Artigo 80º do CPT – (Prazo de interposição)

1 – O prazo de interposição do recurso de apelação ou de revista é de 30 dias.

 2 – Nos processos com natureza urgente, bem como nos casos previstos nos nºs 2 e 5 do artigo 79º-A do presente Código e nos casos previstos nos nºs 2 e 4 do artigo 671º do Código de Processo Civil, o prazo para a interposição de recurso é de 15 dias.

3 – Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, aos prazos referidos na parte final dos números anteriores acrescem 10 dias.

Conforme refere o Ac. do STJ, de 30-03-2022[1] “O acréscimo de 10 dias no prazo para interpor recurso previsto no artigo 80.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho não depende do cumprimento dos ónus de impugnação e muito menos do mérito da impugnação, dependendo sim de a impugnação da matéria de facto visar a reapreciação da prova gravada”.

Nesse sentido, cumpre também citar o Ac. do STJ, de 8-09-2021[2]“I - Para que se possa dizer que o recurso tem por objeto a reapreciação da matéria de facto, e deste modo poder o recorrente beneficiar do acréscimo de prazo a que se refere o n.º 7 do art.º 638.º do CPC, é necessário que o recorrente tenha integrado no recurso conclusões que envolvam efetivamente a impugnação da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados” e o Ac. do STJ, de 14-09-2021[3] “Na avaliação da tempestividade de um recurso, tendo sido feito uso do alargamento do prazo previsto no art.º 638º, nº 7, do CPC, há que verificar se faz parte do objecto desse recurso a reapreciação de prova gravada, o que é independente da observância dos ditames do art.º 640º do CPC”.

                   Destarte, e porque a recorrente, nas conclusões do recurso, declarou que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, indicando os pontos factuais que pretende ver alterados, fazendo referência à prova gravada, com alusão ao depoimento da testemunha DD, prestado no dia 31-05-2022, pelas 16:31:37 até 16:51:25 (conc. 14º) beneficia daquele acréscimo temporal.

                   Constata-se assim, que quando foi interposto recurso, o prazo de 40 dias para recorrer ainda não tinha decorrido.

                   2. Se foi dado cumprimento aos ónus de impugnação da matéria de facto previsto no artigo 640º, nº 2, al. a), do CPC

                   Estabelece o artigo 640º do CPC:

                   “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

                   a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

                   b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

                   c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

                   2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

                   a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

                   b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

                   3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

                   Quanto à indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância [nº 2, al. a)] tem entendido este Supremo que não deve adotarse uma posição excessivamente formal, considerando que é dado cumprimento ao ónus em causa quando o recorrente faça uma indicação que possibilite à Relação o acesso, sem dificuldade, ao excerto da prova visado, designadamente com a transcrição dessas concretas passagens, ainda que omitindo a indicação do respetivo início e termo, por referência à gravação, limitando essa indicação ao início e termo do depoimento.

                   Se atentarmos nas indicações feitas pela recorrente constata-se que relativamente à testemunha DD, a recorrente refere que do depoimento desta testemunha prestado no dia 31-05-2022, pelas 16:31:37 até 16:51:25 resulta o seguinte:

“1) A testemunha conheceu os Réus como trabalhadores da Autora, por trabalhos anteriormente executados por estes em nome da Autora;

2) Em fevereiro de 2021, o Réu, B..., enviou à testemunha um orçamento em nome da Autora, conforme doc. 68, cuja data do referido documento não está em conformidade, por ser atualizada automaticamente pelo sistema, mas que a testemunha confrontada com o mesmo, em sede de audiência e julgamento, reconheceu o seu conteúdo e data de envio, ou seja, o referido documento não é de 02/09/2021, como erradamente se faz constar da douta Sentença, mas sim de fevereiro de 2021 conforme a testemunha esclareceu;

3) A testemunha não aceitou o preço proposto de 7.023,30 € (com IVA incluído) porque tinha uma proposta mais barata, embora tenha confirmado que foram os Réus a executar aquele trabalho;

4) O orçamento enviado pela Autora, tinha um valor de 7.023,30 €, conforme doc. 68 da p.i., com o IVA devidamente discriminado;

5) O Réu B... disse à testemunha que teria uma solução ao orçamento que lhe havia apresentado em nome da Autora;

6) A instâncias do Tribunal, a testemunha viria a reencaminhar o email e juntar aos Autos, em 6 de junho de 2022, o email que recebeu do Réu B..., com a referida solução, datado de 6 de maio de 2021, referência CITIUS 1977397.”

Quando ao depoimento do réu B... limita-se a referir que o mesmo não é merecedor da credibilidade que o tribunal lhe atribui, contraditado pelo depoimento da testemunha DD.

Temos, pois, que a apelante não indicou com exatidão as passagens da gravação em que fundava a sua impugnação da matéria de facto, pois o que fez, foi simplesmente apresentar “uma resenha” ou, aquilo “em suma”, do que a testemunha terá referido.

Neste caso, não se está senão perante a interpretação dada pela apelante ao depoimento em causa, e não, como é devido, perante uma transcrição objetiva do teor desse depoimento.

Porém, o que conta é a avaliação do tribunal em face do próprio depoimento tal como foi produzido, ao qual tem de aceder na sua objetividade e, não a “resenha” ou “súmula”, apresentada pela apelante.

Já quanto ao depoimento do réu B... não assinala quaisquer passagens.

A recorrente não transcreveu os depoimentos, nem sequer em parte.

A alínea a) do n.º 2 do art.º 640.º do Código de Processo Civil deve ser interpretada no sentido de que a impugnação da matéria de facto com base em prova gravada tanto se pode fazer mediante a indicação dos concretos segmentos da gravação como mediante a transcrição deles.[4] . A rejeição só se impõe quando haja total omissão da indicação das passagens da gravação de cada uma das testemunhas, e por via disso se ignore em que passagens do depoimento o recorrente se baseia”[5].

Posto isto, dúvidas não existem de que a recorrente não cumpriu os ónus de especificação/identificação impostos pelo art.º 640 nº 1, b) e nº 2, al. a), do CPC, e, consequentemente, este tribunal não pode proceder à reapreciação da matéria de facto com base nos depoimentos gravados.[6]

                  
3. Impugnação da decisão quanto à matéria de facto e (i)licitude na obtenção da documentação de fls. 17v a 50v e sua valoração

                   Na sentença recorrida entendeu-se que os documentos juntos pela autora com a petição inicial, com os nºs 4 a 68, não poderão ser valorados como prova documental, porque se tratam de prova proibida e, como tal, nula.

                   Fundamentou da seguinte forma:

                   “Assim, não poderia, a nosso ver, a autora ter acedido e atendido aos conteúdos dos emails enviados ou recepcionados no email pessoal do réu B... (ainda que não estivessem marcados como pessoais e/ou do seu conteúdo não resulte a natureza pessoal das mesmas).

                   Mas, ainda que assim não se entendesse, no que se reporta ao conteúdo dos emails enviados ou recebidos na conta de correio eletrónico do réu B... e seus anexos, não foi alegado pela autora que tivesse regulamentado a utilização do correio eletrónico, mormente que tivesse proibido a utilização da conta de correio eletrónico profissional para fins extra profissionais; pelo que, não pode a autora aceder ao conteúdo dos emails enviados ou recepcionados nessa conta, mesmo que não estejam marcados como pessoais ou dos seus dados externos não resulte que sejam pessoais.

                   De referir, ainda, também que se deixou dito, que o conteúdo dos anexos dos emails enviados ou recebidos na conta de correio eletrónico pessoal e/ou profissional do réu B..., também não poderão ser atendidos, anexos esses que, quando ao conteúdo, gozam da mesma protecção que goza o conteúdo dos emails.

                   E, por outro lado, tendo a autora acedido ao conteúdo dos anexos, enviados e/ou recebidos na conta de correio pessoal do réu B..., na medida em que consubstanciem comunicações entre o réu e terceiros por razões extraprofissionais, isto é, não relacionados com a execução de tarefas no âmbito e próprias das suas funções ao serviço da autora, deveria ter parado a sua leitura, não podendo a eles recorrer ainda que prova de eventual ilícito disciplinar (ou até simultaneamente penal) atenta a inviolabilidade das comunicações pessoais/extraprofissionais.

                   Aqui chegados, importa, ainda, referir que, ainda que se entendesse que os documentos juntos pela autora estivessem numa pasta do computador usado pelo réu B..., propriedade da autora, também a obtenção de tais documentos se nos afigura ilícita e, portanto, não poderiam ser atendidos.”

                   A recorrente sustenta que a documentação de fls. 17v a 50v devem ser admitidos e valorados em conformidade e que os pontos 22) e 23) devem ser julgados como não provados.

                   22) Os documentos de fls. 17v. a 50v. (Docs. nºs 4 a 68 da petição inicial), encontravam-se anexados a e-mails enviados e rececionados pelo réu AA, para e de terceiros (outrem), tendo sido obtidos pela autora através do acesso ao e-mail pessoal do réu AA, com a conta de correio eletrónico ...@...mail.com, sem o conhecimento e consentimento deste, pelo computador existente nas instalações da autora, no qual se encontrava guardada automaticamente a password de acesso a tal conta de correio electrónico pertencente ao 1.º réu.

                   23) Os documentos referidos em 22) não se reportam às relações comerciais entre a autora e os terceiros ali identificados ou à actividade profissional que o réu B... executava para a autora, tendo como emitentes e destinatários terceiros (e o 1.º réu), que não a autora.

                   O Tribunal a quo formou a sua convicção da seguinte forma:

                   “Desde logo, importa começar por referir que, quanto à questão da obtenção dos documentos referidos em 22) da factualidade provada, alegaram os réus que os mesmos foram obtidos pela autora através do acesso ilegítimo do legal representante da ré à conta de correio electrónico pessoal do réu AA, já que o mesmo tinha a palavra passe guardada automaticamente no computador da empresa por utilizado, encontrando-se tais documentos em anexos de e-mails enviados e recepcionados por este.

                   Tal circunstância foi esclarecida, de forma que se nos afigurou crível, pelo réu AA, referindo que usava o computador da empresa para aceder ao seu email pessoal (“...&...mail.com”) encontrando-se a password guardada automaticamente, pelo que, quem entrasse no computador, conseguia aceder ao email, como, na sua óptica, sucedeu com o legal representante da ré, FF; tendo ainda referido que, quando se  encontrava a trabalhar para a “D...” (empresa que originou a autora), utilizava o email profissional ....cl...@...nat.pt), pelo que se nos afigurou verosímil que o email ...@...mail.com fosse o email pessoal do réu B..., o que se mostra corroborado com o documento junto a fls. 129, pela testemunha DD, donde resulta que tal email foi enviado pelo réu B... através da conta de correio electrónico alegada por este.

                   Acresce que, ouvido o legal representante da autora, FF, não se nos afigurou clara a forma como o mesmo obteve os documentos que se mostram juntos aos autos, alegando estarem numa pasta do computador da autora, usado pelo réu B..., a que conseguiu aceder depois de ter colocado no motor de busca “C..., Soluções” aparecendo-lhe todos os documentos com referência a tal sociedade que depois veio a descobrir que se tratava da sociedade constituída pelos réus

                   Não obstante o declarado, a este respeito, pelo legal representante da autora, suscitam-se-nos dúvidas quanto à forma como, segundo o mesmo, acedeu aos documentos em causa, alegando terem-lhe aparecido em pastas que se encontravam no computador, sendo certo que nenhuma prova foi produzida pela autora a este respeito, por forma a corroborar o declarado pelo mesmo; afigurando-se-nos, por outro lado, crível, à luz das mais elementares regras de experiência comum e do bom senso de que nunca nos podemos distanciar, que, acedendo ao email do réu B..., através da password gravada automaticamente (prática corrente nos dias que correm), conseguisse visualizar (e após obter) a documentação que se encontrava nos anexos aos emails remetidos e recebidos pelo réu B..., sendo que, tais documentos, conforme resulta vertido em 23), não se reportam às relações comerciais entre a autora e os terceiros ali identificados ou à actividade profissional que o réu B... executava para a autora, tendo como emitentes e destinatários terceiros (e o 1.º réu), que não a autora, conforme foi esclarecido pelo mesmo, aludindo à vontade de criar a sua própria empresa, tendo, por isso, começado a projectar, no papel, de que forma poderia criar documentos que dissessem respeito à mesma e ao “layout” que queria desenvolver com vista à futura criação da mesma.

                   Importa, com isto, referir que, não obstante o alegado a este respeito pelo réu B..., tal não significou, a nosso ver, que o mesmo, durante a execução do contrato de trabalho com a autora, executasse serviços e adquirisse materiais, como actividade paralela à actividade da autora, já que, desde logo, nenhuma prova foi feita que comprovasse o alegado a este respeito pela autora, conforme procuraremos demonstrar; sendo certo que a elaboração de documentos (sendo que nem se mostram datados) não significa, por si só, que os serviços ali mencionados tivessem sido prestados pelos réus.”

                   “O artigo 22º do Código do Trabalho determina que o trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de caráter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio eletrónico, sem prejuízo da faculdade atribuída ao empregador de estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, designadamente do correio eletrónico.

                   A ideia é simples: na sequência dos artigos 26º e 34º da Constituição e dos artigos 70º e seguintes do Código Civil, em especial dos artigos 75º a 78º e 80º deste último diploma, procura-se garantir que a confidencialidade das mensagens e da informação de natureza não profissional a que o trabalhador tem acesso e que lhe digam respeito devem ser preservadas, não obstante o mesmo a elas ter acedido enquanto executava o seu contrato de trabalho.

                   Na sequência na ideia de cidadania no trabalho, afirma-se como princípio geral o de que são proscritas ao empregador intrusões ao conteúdo das mensagens de natureza não profissional que o trabalhador envie, receba ou consulte a partir ou no local de trabalho, independentemente da forma que as mesmas revistam. Assim, tanto é protegida a confidencialidade das tradicionais cartas missivas, como a das informações enviadas ou recebidas através da utilização de tecnologias de informação e de comunicação, nomeadamente por sms ou correio eletrónico.

                   (…).

                   Neste contexto, retira-se do citado artigo 22º do Código do Trabalho que o empregador ou quem o represente não pode aceder a mensagens de natureza pessoal que constem da caixa de correio eletrónico do trabalhador.

                   Segundo Teresa Moreira[7] “Parece-nos, em primeiro lugar e relativamente ao controlo do e­mail, que terá de ter-se em atenção toda a proteção constitucional dada não só ao direito à privacidade, na sua vertente de direito à autodeterminação informativa, mas, sobretudo, ao direito previsto no art.º 34.o de segredo de correspondência.

                   Este artigo aplica-se ao e­mail, sendo que se trata de um direito inviolável, existindo uma proibição de ingerência nos meios de comunicação. A garantia prevista legalmente é bastante ampla porque se proíbe toda a intromissão, abrangendo tanto a liberdade de envio e de receção de correspondência, como a proibição de retenção ou de apreensão, e, ainda, a interferência telefónica ou através de outra forma. Tudo isto implica o direito que ninguém as viole ou as devasse, no sentido de que a tomada de conhecimento não autorizada do conteúdo da correspondência é, em si própria, ilícita. A lei vai mais além e proíbe a sua divulgação, estabelecendo o direito de que os terceiros que a elas tenham acesso as não divulguem.

                   A proteção prevista neste artigo abrange não só o conteúdo da comunicação como o seu tráfego, e engloba também os anexos dos e­mails.

                   Estes princípios, quer constitucionais, quer penais, têm de ser atendidos quando se pretende regular o controlo dos e­mails dos trabalhadores por parte dos empregadores, tendo ainda em atenção o art.º 22º do CT. Este, no nº 1, estabelece o direito à confidencialidade das mensagens de natureza pessoal dos trabalhadores através de vários meios de comunicação, nomeadamente o e­mail. Este artigo estabelece assim, para além da reserva, a própria confidencialidade no sentido de que o trabalhador tem não apenas o direito de controlar ou impedir o acesso às suas mensagens, como também o direito de controlar ou impedir a sua divulgação. E o empregador não pode invocar os seus legítimos poderes de organização, direção e controlo para limitar o exercício do direito constitucional previsto no art.º 34º e, também, no art.º 22º do CT. Estes artigos tutelam quer o sigilo das comunicações, quer a própria liberdade de exercício, proibindo a sua gravação.

                   Acrescenta-se, ainda, que a titularidade do meio utilizado não justifica, por si mesma, o acesso às comunicações eletrónicas realizadas através da empresa. O contrato de trabalho não transforma o empregador num interlocutor da mensagem ou num terceiro qualificado para transgredir o sigilo das comunicações. O empregador é um terceiro e o acesso deste ao conteúdo dos e­mails enviados ou recebidos pelo trabalhador pode vulnerar o sigilo das comunicações.

                   Não pode esquecer-se, ainda, que o controlo exercido pelo empregador tem de respeitar sempre a dignidade da pessoa humana e, por isso, não é pelo facto de colocar à disposição do trabalhador uma conta de correio eletrónico que pode automaticamente defender-se o poder de controlar arbitrariamente as comunicações realizadas através da mesma. Entende-se, assim, que o empregador fica limitado no seu poder de controlo eletrónico, ficando inibido de aceder ao conteúdo dos e­mails pessoais”.

                   Afirma a mesma autora[8] que “perante suspeitas razoáveis de incumprimentos contratuais por parte do trabalhador, o empregador não poderá controlar o conteúdo sem uma prévia autorização judicial, nos termos do art.º 34º da CRP, mesmo que aquele tenha violado as regras estabelecidas pelo empregador, na medida em que a propriedade dos meios não retira a titularidade do direito e a infração cometida pelo trabalhador é, quando muito, uma infração disciplinar”.

                   No caso presente, estamos perante um email pessoal, pelo que a obtenção pela autora da documentação em causa tem de ser considerada nula nos termos do artigo 32º.º, nº 8, da CRP, cumprindo, nessa medida declarar a inadmissibilidade da sua valoração.

                   Mantém-se integralmente a matéria de facto, tal como foi fixada a 1ª instância.

                  
4. Da concorrência desleal e do pedido de indemnização

De acordo com o disposto no artigo 128º, nº 1, alínea f), do Código do Trabalho o trabalhador deve “guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios”.

                      Segundo Maria do Rosário Palma Ramalho[9] “Ao dever de lealdade do trabalhador no contrato de trabalho deve ser reconhecida uma dimensão restrita e uma dimensão ampla. Na dimensão restrita, contemplada no art.º 128º nº 1 f), o dever de lealdade concretiza-se essencialmente no dever de não concorrência e no dever de sigilo, que se caracterizam como segue:
i) O dever de não concorrência veda ao trabalhador a negociação, por conta própria ou alheia, nas áreas em que possa concorrer com a actividade desenvolvida para o seu empregador. Nesta concretização, o dever de lealdade impõe restrições ao direito do trabalhador de exercer outra actividade profissional fora do tempo de trabalho passado na empresa (ou seja, restrições ao princípio constitucional da liberdade de trabalho – art.º 58º nº 1 da CRP); mas, obviamente, só haverá incumprimento deste dever quando se observe uma efectiva concorrência entre as duas actividades em questão, ou porque se inserem na mesma área e desde que a actividade suplementar seja suscetível de vir a prejudicar o negócio do empregador, ou porque aquela actividade desvia ou pode desviar clientes do empregador”.
ii) O dever de sigilo impõe ao trabalhador que guarde segredo sobre as informações de que disponha referentes à organização, aos negócios, aos clientes ou aos métodos de produção da empresa”.
Já Menezes Leitão[10] refere “Concretizando o dever de lealdade, a lei estabelece um dever de sigilo que recai sobre o trabalhador, implicando a proibição de divulgar informações referentes à organização do empregador, métodos de produção ou negócios. É assim vedada ao trabalhador a divulgação de quaisquer informações relacionadas com a esfera empresarial, que o empregador, com base num legítimo interesse económico, queira ver reservadas. Entre estas
 inclui-se o know-how técnico, as listas de clientes e de preços, os fornecedores, o balanço e inventário, a situação financeira da empresa e quaisquer outras informações reservadas.
Outra concretização do dever acessório de lealdade corresponde à proibição de concorrência, sendo vedado ao trabalhador negociar por conta própria ou alheia em concorrência com o empregador. O fundamento da proibição de concorrência é o facto de a mesma potenciar o desvio da clientela do empregador, que o trabalhador poderia obter, aproveitando-se da especial posição que possuía pelo facto de trabalhar junto do empregador e conhecer os seus clientes e os seus métodos de produção. Consequentemente, a realização de negócios pelo trabalhador no mesmo âmbito em que se exerce a actividade empresarial, seja por conta própria ou alheia, apenas pode ser realizada com o consentimento do empregador, o qual pode ser concedido expressa ou tacitamente. Não sendo concedido esse consentimento, a realização de actividade concorrente pelo trabalhador constitui uma violação grosseira do contrato de trabalho, que lesa gravemente a confiança do empregador no trabalhador”.

                      Concordamos assim, com a sentença recorrida quando afirma: “Tudo visto e ponderada também a factualidade não provada, não se concluímos pela não demonstração da alegada violação do dever de lealdade e pela não demonstração da alegada concorrência desleal, com a consequente não atribuição da pretendida indemnização ou concessão do demais peticionado na acção.

                      Antes tendo apenas resultado provado que os réus, antigos trabalhadores da autora, constituíram uma sociedade com a mesma atividade da autora, após a cessação do contrato de trabalho celebrado com aquela, não tendo ficado demonstrado que, durante a execução do mesmo, tivessem praticado actos que consubstanciassem a violação do dever de lealdade a que estavam obrigados perante a autora”.

                      A apelação deverá, em conformidade com o exposto, ser julgada totalmente improcedente, sendo mantida, na íntegra, a decisão recorrida.

                                                                                              x

                     No artigo 527.º, n.º 1, do CPC estipula-se que: “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito”.

                      Tendo em conta o vencimento, com a total improcedência da apelação, a responsabilidade tributária inerente ao presente recurso deverá incidir sobre a recorrente- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC.

                   DECISÃO

                  Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, em consequência, a sentença recorrida.

                   Custas pela apelante.

                                                                                                              Coimbra, 6 de outubro de 2023

                Mário Rodrigues da Silva- relator

                Felizardo Paiva- adjunto

                Paula Maria Roberto- adjunta

                Sumário (artigo 663º, nº 7, do CPC):

(…).

               Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original

               


([1]) Proc. 23234/18.7T8LSB.L1.S1, relator Chambel Mourisco, www.dgsi.pt.
([2]) Proc. 5404/11.0TBVFX.L1.S1, relator José Rainho, www.dgsi.pt.
([3]) Proc. 18853/17.1T8PRT.P1.S1, relator Tibério Nunes da Silva, www.dgsi.pt.
 
([4]) Cf. Ac. do STJ, de 18-06-2019, proc. 52/18.3T8GRD.C1.S1, relator José Rainho, www.dgsi.pt.
([5]) Cf. Ac. do STJ, de 21-06-2022, proc. 644/20.4T8LRA.C1.S1, relator Jorge Arcanjo, www.dgsi.pt.
([6]) Cf. Ac. do STJ, de 10-12-2020, proc. 3782/18.0T8VCT.G1, relator Manuel Capelo,  Ac. do TRC, de 26-10-2018, proc. 3088/17.1T8LRA.C1, relatora Paula Roberto e Ac. do STJ, de 26-01-2017, proc. 599/15.7T8CLD.C1.S1, relator Ribeiro Cardoso, www.dgsi.pt.

([7]) Direito do Trabalho-Relação Individual, 2020, Os Direitos de Personalidade nas Relações de Trabalho, pp. 194-195.
([8]) Obra acima citada, p. 197 e Direito do Trabalho na Era Digital, 2021, p. 272.
([9]) Tratado de Direito de Trabalho-Parte II, 2023, pp. 347-348.
([10]) Direito do Trabalho, 2021, pp. 284-285.