Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1133/10.0IDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ESTADO DE NECESSIDADE
CONFLITO DE DEVERES
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 03/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - 1º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 3º, AL. C) E 105º, DO R.G.I.T. E 34º, 36º E 129º, DO C. PENAL
Sumário: Sob o ponto de vista dogmático/jurídico, o crime de abuso de confiança fiscal configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º 2, do art.º 5º, do R.G.I.T.;

É um crime doloso, aferido este nos termos gerais do art.º 14º, do Código Penal;

No que diz respeito ao bem jurídico protegido, o crime de abuso de confiança fiscal tem por fundamento a protecção do património do Estado, mediante a tutela e protecção criminal da obrigação da entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as entregasse nos Cofres do Estado;

É um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária.

E, se não é exigível uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (caso do imposto do IVA).

As dificuldades financeiras e económicas da empresa não justificam a conduta do arguido, sendo que a obrigação legal de entregar impostos ao Estado é superior ao dever funcional de manter a empresa a funcionar e de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores.

Neste âmbito, não podem ser convocadas as figuras do estado de necessidade e do conflito de deveres, como causas de exclusão da ilicitude da conduta.

Pelos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes do crime e respondem, não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil.

Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

            1. No Processo Comum Singular n.º 1133/10.0IDLRA, do 1º Juízo Criminal de Leiria, por sentença datada de 4 de Novembro de 2011, foi decidido:

«I - Absolver A... da prática de um crime de abuso de confiança (art.º 105º-1-2-4-a)-b) do RGIT) de que vinha acusada;

II - Absolver A... do pedido de indemnização civil contra si deduzido;

III – Isentá-la do pagamento de custas criminais e cíveis (art.ºs 513º-1 e 523º do CPP; e 446º-1-2 do CPC);

IV - Condenar o arguido B... como autor material de um crime de abuso de confiança (art.º 105º-1-2-4-a)b) do RGIT) na pena de multa 80 (oitenta) dias, à taxa diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia global de 480,00 (quatrocentos e oitenta euros);

 V – Declarar a sociedade W... - ., Lda. como responsável de um crime de abuso de confiança fiscal (art.ºs 105º-1-2-4-a)-b) e 7º do RGIT e 11º do Código Penal), na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia de €450,00 (quatrocentos e cinquenta euros);

VI - Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, e, em consequência, condenar solidariamente os arguidos B... e W... - ., Lda. ao pagamento da quantia de 13.773,90 (treze mil, setecentos e setenta e três euros e noventa cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal anual de 4%, desde 26.10.2011, até integral pagamento;

VII - Condenar os arguidos B... e W...- ., Lda, ao pagamento de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal anual de 4%, desde o dia 16.07.2011 até 25.10.2011, sobre o montante de €14.773,90;

VIII - Condenar os arguidos B... e a W... – ., Lda. no pagamento das custas criminais (artigos 513.º-1 do CPP), com 02 (duas) UC´s de taxa de justiça (art. 8.º-5 do RCP e Tabela III anexa);

IX - Condenar os arguidos B... e W... – ., Lda. em custas cíveis, na qualidade de demandados, por referência ao valor do pedido (art. 446.º-1-2 do CPC)».

2. O arguido B... recorreu da sentença, assim concluindo o seu recurso (em transcrição):

«1) O recurso visa anular a condenação do arguido B..., relativa ao crime de abuso de confiança fiscal e a condenação do arguido no pedido de indemnização civil.

2) O crime de abuso de confiança fiscal, apesar de ser um crime de comissão por omissão, é um crime de resultado.

3) A omissão do comportamento devido não chega para definir a ilicitude sendo necessário o aspecto subjectivo, o juízo de reprovação e de culpa.

4) É necessário ficar provado que existe um juízo de reprovação e de culpa sobre o concreto comportamento adoptado pelo arguido.

5) A actuação do arguido B... não foi culposa.

6) Tal é evidente na motivação que se encontra na Douta Sentença ora recorrida quanto ao depoimento do arguido B... que “...esclareceu que a razão desse incumprimento se deveu à circunstancia da empresa não dispor de liquidez suficiente à satisfação
integral de todos os compromissos financeiros que se imponham naquele mês de
Março, “optando” este por acorrer a “outras urgências” e acabando por pagar a fornecedores com dinheiro proveniente do IVA liquidado aos seus clientes;...”

7) Entendemos que no presente caso se encontram preenchidos os requisitos do art° 34 do Código Penal que tem como epígrafe  “Direito de Necessidade”.

8) A actuação do arguido B... estará abrangida pela exclusão da ilicitude porquanto terá agido em estado de necessidade.

9) Pois, confrontando entre a obrigação enquanto legal representante da devedora originária, W..., Lda., em entregar o IVA à Administração Fiscal, e entre optar pela elaboração da sociedade, permitindo assim a sua continuação, o arguido optou pela segunda.

10) O arguido não deveria ter sido condenado como autor material do crime de Abuso de Confiança Fiscal, pelo que violou o Douto Tribunal recorrido o disposto no artigo 34º do Código Penal.

Caso assim não se entenda,

11) O crime de abuso de confiança fiscal só pode gerar um dano patrimonial ou não patrimonial, mas pecuniariamente ressarcível (por indemnização)

12) Nos crimes de dano, o agente deverá ser condenado na acção penal a pagar a indemnização pelo dano.

13) Contudo o art° 24 da Lei Geral Tributária, refere que os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão ou gestão em pessoas colectivas.., são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si...” (vidé

14) Mas só serão responsáveis depois da acção executiva fiscal reverter para eles (vidé art.°s 22.° e 23.° da LGT), enquanto devedor subsidiário.

15) A Lei Geral tributária no art° 23, n.º 2, refere, nomeadamente que, o devedor subsidiário tem o direito de discutir no procedimento de reversão e na oposição à execução a inexistência da dívida ou da sua responsabilidade e de pagar a dívida, no prazo de 30 dias a contar da citação da reversão da execução, sem juros e sem custas do processo.

16) Consta igualmente da lei que, a reversão só pode ser desencadeada depois de provado, no processo de execução fiscal, aberto contra o devedor originário, que este não tem meios para pagar a dívida.

17) Com a notificação da reversão para o arguido da dívida do devedor originário, aquele poderia deduzir oposição, a qual até poderia ser declarada procedente no tribunal fiscal.

18) Enquanto o arguido não seja condenado pelo tribunal fiscal não poderá ser condenado em processo-crime.

19) Violou o Douto Tribunal recorrido o disposto nos art°s 22, 23 e 24 da Lei Geral Tributária.

20) O pedido cível deduzido em processo penal terá sempre de ser fundado na prática de um crime, de acordo com o previsto no artigo 710 do Código de Processo Penal.

21) Consta do art° 129 do Código Penal que A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”

22) É legalmente inadmissível no processo penal conhecer de um pedido cível caso o mesmo não se funda em indemnização por danos ocasionados pelo crime ou não se funda na responsabilidade civil do agente pelos danos que, com a prática do crime causou, pois que a acção cível que adere ao processo penal é a que tem por objecto a indemnização por perdas e danos emergentes do crime.

23) O crime de abuso de confiança fiscal, apesar de ser um crime de comissão por omissão, é um crime de resultado, em que só pode ter um dano patrimonial ou não patrimonial, mas pecuniariamente ressarcível (por indemnização).

24) O art° 24 da L.G.T, no n° 1, alínea a) dispõe que há responsabilidade dos gerentes “pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos,” tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação.”

25) Tal preceito legal, refere que, a reversão da execução fiscal contra os responsáveis subsidiários legalmente indicados, existe, terminados que sejam os procedimentos de execução fiscal contra o devedor originário sem que os créditos do Estado tenham sido satisfeitos (art° 23 n° 2 da L.G.T)

26) Portanto a falta de verificação do pressuposto previsto no art. 24.° da Lei Geral Tributária relativo à culpa do gerente pela insuficiência do património da sociedade, determina a impossibilidade de recorrer ao mecanismo da reversão.

27) Bem como está implícito na Lei que a reversão da execução fiscal contra os responsáveis subsidiários legalmente indicados, poderá ocorrer mas depois de terminados os procedimentos de execução fiscal contra o devedor originário sem que os créditos do Estado tenham sido satisfeitos.

28) A lei refere pois que o responsável subsidiário, como devedor subsidiário, só deve depois da acção executiva reverter sobre ele (art.°s 22.° e 23.° da LGT).

29) A lei dispõe que, nomeadamente, que o devedor subsidiário tem o direito de discutir no procedimento de reversão e na oposição à execução a inexistência da dívida ou da sua responsabilidade e de pagar a dívida, no prazo de 30 dias a contar da citação da reversão da execução, sem juros e sem custas do processo, sendo ainda certo que a reversão só pode ser desencadeada depois de provado, no processo de execução fiscal, aberto contra o devedor originário/directo, que este não tem meios para pagar a dívida.

30) Atendendo a que o arguido não foi notificado na qualidade de revertido pela Administração Fiscal não poderá ser declarado procedente o pedido de Indemnização Civil apresentado.

31) O que inquiria obviamente também a condenação do arguido pelo crime de Abuso de Confiança Fiscal.

32) Pelo que violou o Douto Tribunal recorrido o disposto nos art°s 22, 23 e 24 da Lei Geral Tributária.

Assim, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença na parte em que condenou o arguido B... no crime de Abuso de Confiança Fiscal e no Pedido de Indemnização Civil».

3. O Ministério Público da 1ª instância respondeu a este recurso, defendendo a justeza do sentenciado, pedindo a final a negação de provimento a este recurso.

Conclui assim:

«1º- A dívida de IVA em causa nos autos tem natureza diferente das restantes comuns da sociedade, de origem contratual, contraídas no exercício do seu comércio.

2° - A obrigação de entregar ao Estado o montante de IVA em causa nos autos deriva da lei.

3º- Relativamente ao montante de IVA em causa nos autos, a sociedade em nome da qual o arguido actuou encontra-se instituída numa posição próxima da do fiel depositário. Já que

4°- O aludido montante de imposto já havia sido pago pelos clientes da W..., Lda, e, por isso, esse valor, não pertencia à representada do recorrente.

5º- Ao usar o dinheiro do IVA em causa nos autos para solver outras dívidas da sociedade o arguido utilizou dinheiro alheio (do Estado - que foi efectivamente pago pelos contribuintes a jusante da W..., Lda) para solver dívidas próprias.

6º- O Tribunal fundamentou de direito a condenação do recorrente no pedido cível em normas tipicamente civilísticas, designadamente, incluídas no Código Civil, não tendo feito qualquer alusão a normas de natureza tributária, pelo que o recurso do arguido relativamente ao pedido cível assenta num equívoco.

Pelo exposto, com os fundamentos indicados e com os demais que V. Ex.as, por forma sábia suprirão, afigura-se-nos que o recurso deve ser julgado improcedente»

            4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu o seu PARECER, defendendo a improcedência do recurso.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

 Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a resolver consistem em

· saber se existe alguma causa de exclusão da ilicitude do comportamento do recorrente;

· saber se foi omitida a aplicação devida dos artigos 22º a 24º da Lei Geral Tributária;

· saber se não deveria ter sido o recorrente condenado em indemnização civil por não ter sido notificado na qualidade de revertido pela Administração Fiscal.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

2.1. Na sentença recorrida, é este o rol de FACTOS PROVADOS (em transcrição):

1. A empresa W... – ., Lda. encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Leiria e tem a sua sede social na Rua … , Leiria;

2. Desenvolve a sua actividade nas áreas de comercialização e montagem de móveis, cozinhas e electrodomésticos e de fabricação de mobiliário;

3. Esta sociedade é sujeito passivo de IVA e enquadra-se no regime normal de periodicidade mensal;

4. Está obrigada a enviar periodicamente aos Serviços do IVA uma operação descritiva das operações comerciais realizadas com a indicação do imposto devido e do crédito existente, bem como dos elementos que tenham servido de base ao respectivo cálculo;

5. Cabe-lhe enviar, mensalmente, à Administração Fiscal, a declaração de liquidação do imposto, acompanhada do respectivo meio de pagamento no valor previamente liquidado aos consumidores finais, correspondente à diferença entre o imposto liquidado e o imposto suportado;

6. O arguido B..., na qualidade de sócio gerente e actuando no interesse da referida sociedade, remeteu à Direcção de Serviços de Cobrança de IVA a declaração periódica de IVA, referente ao mês de Março de 2010, desacompanhada de qualquer meio de pagamento da respectiva prestação tributária auto liquidada pela empresa e cuja entrega ao Estado lhe era exigível;

7. O imposto de IVA devido, liquidado e recebido no mês de Março de 2010 ascendeu ao valor de €14.773,90, valor esse que não foi entregue aos cofres do Estado simultaneamente com a declaração periódica mensal;

8. Não obstante o termo do prazo para entrega daquele montante ocorrer até ao dia 10 do 2º mês a que dizia respeito;

9. Não o tendo feito nos noventa dias posteriores ao mês correspondente ao da obrigação de o entregar ou até à presente data;

10. Nem mesmo após notificação dos arguidos para procederem ao pagamento da quantia em falta, acrescida de juros legais e coima, decorrido que se encontra o prazo de 30 dias para fazê-lo;

11. E apesar do valor de €14.733,90 ter sido liquidado e recebido dos respectivos clientes pela firma W..., Lda. que assim se apoderou do mesmo dando-lhe diverso destino;

12. À data da prática dos factos eram sócios da referida sociedade os arguidos B… e A…;

13. O arguido B... era o único gerente;

14. Era quem tomava decisões atinentes à gestão quotidiana da referida sociedade;

15. Geria os fluxos financeiros em termos de pagamentos e recebimentos, contactava clientes com quem contratava, prestava serviços em nome da sociedade, comprava e vendia bens em nome da sociedade, geria as contas bancárias e os movimentos de caixa;

16. Este arguido agiu com o propósito concretizado de não entregar à Fazenda Nacional a quantia de €14.773,90 que bem sabia ser devida a título de IVA;

17. Quantia essa que liquidou e recebeu dos clientes da empresa arguida no mês de Março de 2010, consciente que era seu dever entregar a prestação tributária acompanhada da respectiva declaração mensal;

18. Com a conduta supra descrita em causou um prejuízo ao Estado português no valor de €14.773,90;

19. Agiu sempre de forma livre, consciente e deliberada, sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.

Apurou-se, ainda, que:

20. Os arguidos B... e A...são casados entre si;

21. Esta era trabalhadora administrativa da sociedade comercial em causa;

22. E exerce actualmente as funções de gerente noutra empresa;

23. O valor do IVA não entregue ao Estado foi utilizado no pagamento de credores da empresa arguida;

24. O arguido B... aufere um rendimento de €700,00 mensais e a arguida A...um rendimento de €600,00 mensais;

25. Têm dois filhos menores a cargo, de 10 e 15 anos de idade;

26. Suportam uma prestação mensal de €700,00 em virtude de empréstimo bancário contraído para aquisição de casa própria;

27. Os arguidos não têm antecedentes criminais;

28. A sociedade acima indicada não se encontra actualmente em laboração;

29. A W..., Lda. procedeu ao pagamento, em 26.10.2011, junto dos serviços fiscais, do montante de €1.000,00 por conta do valor em dívida de €14.773,90».

2.2. São estes os FACTOS NÃO PROVADOS:

«Que a arguida A... remeteu à Direcção de Serviços de Cobranças do IVA a declaração mensal relativa a Março de 2010, sem qualquer meio de entrega da respectiva prestação tributária;

Que não entregou a título de IVA aos cofres do Estado, simultaneamente com a respectiva declaração periódica mensal, a prestação tributária de €14.773,90 devida, liquidada e recebida dos clientes da empresa arguida nas suas operações activas;

Que a arguida A... geria e administrava a sociedade comercial “W... – ., Ldª; tomava decisões atinentes à gestão quotidiana da mesma; geria os fluxos financeiros da empresa em termos de pagamentos e recebimentos; contactava clientes com quem contratava, prestava serviços em nome da sociedade, comprava e vendia bens em nome da sociedade, geria as contas bancárias e os movimentos de caixa;

Que actuou com o propósito concretizado de não entregar à Fazenda Nacional a quantia de €14.773,90, afectando-a a destino diverso dos cofres do Estado, bem sabendo ser devida a título de IVA;

Que agiu de forma livre e deliberada, consciente que a sua conduta era proibida e criminalmente punível;

Que a quantia de €14.773,90 tenha sido integrada nos patrimónios pessoais dos arguidos singulares».

2.3. Motivou assim o tribunal recorrido esta decisão de facto:

«Para a formação da sua convicção quanto à factualidade dada como provada e não provada, o tribunal analisou criticamente e conjugadamente a prova produzida e examinada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador (artigo 127º do CPP). ----

A convicção do tribunal assentou nas declarações prestadas pelo arguido B… que assumiu ter liquidado e recebido dos seus clientes a título de IVA, por conta de transacções comerciais que efectuou em nome da sociedade, a quantia assinalada na acusação; não obstante o seu efectivo recebimento não a entregou à Administração Fiscal, consciente, todavia, da sua obrigação legal em fazê-lo, até porque tinha contabilista avençado, uma escrita contabilística organizada e titulava a empresa desde o ano de 2001; esclareceu que a razão desse incumprimento se deveu à circunstância da empresa não dispor de liquidez suficiente à satisfação integral de todos os compromissos financeiros que se imponham naquele mês de Março, “optando” este por acorrer a “outras urgências” e acabando por pagar a fornecedores com dinheiro proveniente do IVA liquidado aos seus clientes; referiu que estava apenas sob o seu encargo a tomada de todas as decisões quotidianas e estratégicas referentes à sociedade, designadamente no que respeitava à compra de material para laboração ou ao processamento de salários; assim, a sua sócia e mulher, apenas trabalhava no escritório e, nas suas ausências, reportava-lhe todos os factos com relevo para a empresa, cabendo só a ele e sempre a ele as decisões finais; sustentou que a arguida sua mulher tem, na realidade, acesso às contas bancárias da empresa, não para efectuar movimentos ou pagamentos, mas tão só para proceder a depósitos e consultar saldos e/ou extractos; tem conseguido com grande esforço financeiro regularizar as suas dívidas para com os serviços tributários e esclareceu, também com credibilidade, a sua situação económica e pessoal.

A arguida A... corroborou na íntegra, com credibilidade, as declarações prestadas pelo arguido B..., declarando que não exerceu funções de gerência na empresa W..., Lda., sendo o seu marido quem sempre tomou todas as decisões necessárias à sua gestão quotidiana e estratégica; foi uma trabalhadora assalariada da empresa, exercendo as suas funções no escritório e no tratamento manual das madeiras; esclareceu com credibilidade a sua situação económica e pessoal.

C..., jurista da Direcção-Geral dos Impostos, instrutora do processo de inquérito que correu seus termos na Direcção de Finanças de Leiria, relatou que dos elementos que recolheu, concluiu que a arguida A...exercia, de facto, funções de gestão da W..., Lda., em virtude da sua afectação à parte administrativa e contabilística da empresa, conclusão que não assentou em factos concretos e determinados; referiu ser do seu conhecimento que a sociedade já não labora e que foi constituída uma outra sociedade comercial em que a arguida é actualmente a gerente.

A testemunha ..., técnica oficial de contas, referiu que o arguido B... estava afecto à parte da produção da empresa W..., Lda. e a arguida A... à sua parte administrativa, efectuando os lançamentos administrativos da empresa, inclusive os contabilísticos, entregar as declarações tributárias para submissão ao fisco com a respectiva documentação de suporte e tratar dos pagamentos relativos à Segurança Social; quando questionada sobre a natureza das funções da arguida, referiu, contudo, que o trabalho desenvolvido por aquela não se diferenciava do trabalho executado por um outro qualquer funcionário com conhecimento da função administrativa, colocado na sua posição e com idêntico sentido de responsabilidade; que quem tomava decisões relativas à empresa em causa era o arguido, sendo certo que as decisões de fundo não passavam pela arguida; justificou a razão do seu conhecimento por ser contabilista da sociedade comercial em causa desde 2001.

Todos os factos julgados como provados resultaram da circunstância de ter sido efectuado prova sobre os mesmos, para tal tendo contribuído as declarações prestadas pelo próprio arguido B… que reconheceu não ter entregue à administração fiscal o IVA referente ao mês de Março de 2010 apesar de liquidado e recebido dos seus clientes, bem sabendo que tinha obrigação legal de fazê-lo; assumiu que era ele quem exclusivamente tomava todas as decisões atinentes à empresa arguida, quer estratégicas quer quotidianas, gerindo os seus fluxos financeiros em termos de pagamentos e recebimentos, efectuando movimentos bancários e de caixa, contactando clientes com quem estabelecia relações comerciais, prestando serviços e comprando e vendendo bens, tudo em nome da sociedade; decorreu ainda das suas declarações que aquele incumprimento à administração fiscal ocorreu em consequência de dificuldades de liquidez e de tesouraria, dificuldades estas que o terão condicionado à opção de pagar a outros credores em prejuízo do Estado; as suas declarações mostraram-se espontâneas e credíveis, não divergindo das declarações da co-arguida A... e, em parte, do depoimento da testemunha Sandra Ferreira, prestados posteriormente.

Considerou-se, conjugadamente, além da prova produzida por declarações e por testemunhas, o teor dos documentos juntos aos autos: notificações remetidas aos arguidos nos termos do artigo 105º-4-b) do RGIT (fls. 33 a 36); certidão do registo comercial (fls. 39 a 45); o relatório de inspecção tributária (fls. 60 a 62) e respectivos anexos: fotocópias de facturas e recibos (fls.63 a 84 e de 87 a 118 - anexo I), extracto da conta corrente do IVA liquidado (fls. 119 a 121); (anexo II) extractos das contas correntes das vendas e prestações de serviços (fls. 122 a 125 anexo III); extractos das contas correntes de clientes (fls. 126 a 135 anexo IV), todos com referência ao mês de Março de 2010; certidão de dívida fiscal (fls. 155 a 170); o parecer do Núcleo de Inquéritos Criminais da Direcção de Finanças de Leiria (fls. 202 a 210); certificados de registo criminal relativamente à ausência de antecedentes criminais (fls. 270-1) e documento comprovativo do pagamento parcial da dívida fiscal (fls. 273).

No que concerne aos factos julgados como não provados, e com especial relevo para a decisão, é de salientar que da prova produzida em audiência resultou a dúvida séria e objectiva sobre se a arguida A...exercia, de acto, a gerência da sociedade; com efeito, o depoimento da inspectora tributária C... não se apresentou com suficiente consistência porque desapoiado do relato de circunstâncias factuais das quais se retirasse o exercício efectivo da gerência de facto por parte daquela arguida; esta testemunha não foi capaz de apelar a factos certos e determinados que pessoalmente constatasse ou que lhe fossem relatados em virtude do exercício das suas competências para basear a convicção que transmitiu a este tribunal de que a arguida A... era também gerente (de facto) da sociedade em causa, referindo meras conclusões ou impressões sem apoio em factos concretos, revelando, ainda que de boa-fé, um depoimento impreciso, insusceptível de infirmar o sentido das declarações prestadas pelos arguidos singulares; por sua vez, o depoimento de  … apresentou aspectos contraditórios com as declarações prestadas pelos arguidos na medida em que imputou a gerência de facto a A..., por ser aquela que tratava dos aspectos burocráticos da empresa, nomeadamente efectuando lançamentos contabilísticos, procedendo a pagamentos ao Estado e entregando declarações fiscais para submissão à administração tributária; se é certo, por um lado, que esses actos, embora em conjugação com outros elementos probatórios, poderiam ser enquadrados no âmbito do exercício de uma gerência de facto também é certo, por outro lado, que a arguida era trabalhadora assalariada da referida sociedade, sendo, por isso, de ocorrência normal a execução de tais tarefas no contexto daquela empresa, ainda para mais no seio de uma estrutura empresarial familiar como esta, sem que daí se possa, desde logo, inferir, a sua intervenção activa nos processos decisórios respeitantes à sociedade; tais funções são compatíveis com o desempenho de meras actividades administrativas susceptíveis de serem realizadas por um qualquer funcionário contratado, suficientemente conhecedor das práticas de trabalho habituais destas empresas quer a nível interno quer a nível externo; e, na verdade, a testemunha Sandra Ferreira quando confrontada com a imprescindível concretização factual dos actos de gestão alegadamente praticados pela arguida, com a ideia de que gestão empresarial implica necessariamente capacidade decisória, não se subsumindo, portanto, a mero trabalho administrativo, e ainda com a real dimensão da implicação das suas afirmações, hesitou, confundiu-se e acabou por perder coerência nas suas afirmações, razão por que os factos acima destacados foram julgados como não provados».


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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Vem o arguido B... recorrer da sentença condenatória, só recorrendo de DIREITO.

3.2. Vejamos, primeiro, se há algum vício oficioso do artigo 410º/2 do CPP.

Recordemos que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:

- primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada;

- e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.

Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, cumprirá ainda dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.

Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.

E, para cúmulo dos cúmulos, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

Ora, analisando a decisão recorrida, não vislumbramos esses vícios oficiosos.

Como tal, consideramos assente a matéria factual dada como provada e não provada pelo 1º Juízo Criminal de Leiria.


3.3. O recorrente entende que a não entrega ao Estado do IVA relativo ao mês de Março de 2010 se deveu à circunstância da sociedade arguida não dispor de liquidez suficiente para a satisfação integral de todos os compromissos financeiros a que tinha de fazer face no indicado mês de Março e, por isso, confrontando entre a obrigação de entregar o IVA à Administração Fiscal ou cessar a laboração da sociedade, optou pela segunda.
Daí que sustente ter agido em estado de necessidade o que exclui a ilicitude da sua actuação, nos termos do disposto no art. 34° do Código Penal.
Entende o recorrente que agiu sem culpa.
Contudo, mercê do artigo que invoca, há que saber PREVIAMENTE se a conduta é ilícita[2].
Deu-se como provado, a este propósito, o seguinte:

· Este arguido agiu com o propósito concretizado de não entregar à Fazenda Nacional a quantia de €14.773,90 que bem sabia ser devida a título de IVA;

· Quantia essa que liquidou e recebeu dos clientes da empresa arguida no mês de Março de 2010, consciente que era seu dever entregar a prestação tributária acompanhada da respectiva declaração mensal;

· Com a conduta supra descrita em causou um prejuízo ao Estado português no valor de €14.773,90;

· Agiu sempre de forma livre, consciente e deliberada, sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.

· O valor do IVA não entregue ao Estado foi utilizado no pagamento de credores da empresa arguida.
E sobre o assunto a sentença recorrida dissertou sabiamente assim:
«Em consequência, só é possível concluir que o arguido B... com a sua conduta, preencheu os elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime sub judice, cometendo um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6º e 105º n.ºs 1, 2, 4 als. a) e b) do RGIT, não se encontrando o seu comportamento a coberto de qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude designadamente de um estado de  necessidade desculpante ou de um conflito de deveres nos termos previstos respectivamente nos artigos  35º e 36º do Código Penal.
Com efeito, o 1º arguido declarou que a empresa atravessava dificuldades de liquidez e de tesouraria tendo, por esse motivo, utilizado as quantias de IVA ilicitamente retidas para pagamento de “outras urgências”, nomeadamente a fornecedores.
Ora, a generalidade da doutrina e da jurisprudência têm concluído de modo praticamente unânime pela improcedência das causas de exclusão de ilicitude do conflito de deveres ou de justificação da culpa do estado de necessidade desculpante, nas situações em que o gerente porque se debate com dificuldades económico-financeiras, e com vista a assegurar a manutenção da empresa, acaba por afectar o IVA liquidado e recebido ao pagamento de fornecedores em vez de proceder à sua entrega nos cofres do Estado, o que é o caso dos autos.
O conflito de deveres do artigo 36º do Código Penal pressupõe necessariamente um conflito de deveres para com os outros o que não existe na situação em apreço. Na verdade, a actuação do 1º arguido visou apenas assegurar o funcionamento do seu negócio e, desse modo, salvaguardar um interesse próprio e não alheio.
Ademais e conforme entendimento comummente aceite pela jurisprudência não existe sequer conflito de deveres juridicamente relevante entre o manter a empresa em laboração ou pagar as quantias devidas ao fisco, sendo este último sempre prevalente face ao primeiro porque defende a supremacia do interesse público na recuperação das receitas fiscais o que promana de lei ( cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06 de Julho de 2006, proc. n.º 3372/2006-9).
Também não colhe nestas situações de não entrega do imposto motivada por dificuldades económicas e financeiras da empresa a verificação dos requisitos do estado de necessidade desculpante, nos termos do artigo 35º n.º 1 do Código Penal.
Com efeito, e conforme ensinava Cavaleiro Ferreira “a desculpabilidade terá lugar quando não seja razoável exigir dele (agente), segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente” (in Lições de Direito Penal I, Editorial Verbo, Lisboa, 1987, pág.167).
Para tanto dever-se-á ponderar, em concreto, o valor determinante do motivo que animou o agente, o fim subjectivo pretendido e o seu estado emotivo em contraposição com o desvalor objectivo do crime praticado.
No caso sub judice, o arguido B... optou pelo interesse que o beneficiaria a si permitindo-lhe a continuidade laboral da empresa em prejuízo do cumprimento das obrigações fiscais que visam a satisfação de necessidades colectivas essenciais, não se entendendo aquele primeiro interesse como superior ao resultante do cumprimento de prestações de natureza contributiva como as de natureza fiscal (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Dezembro de 2006 (proc. n.º 3360/2006-5).
Deste modo, pela ponderação dos interesses em causa, não se pode considerar verificados os requisitos do estado de necessidade desculpante, sendo pacífico que esta situação foi tão-só causada pelo agente do facto, em regra alertado previamente e por diversas vezes pela administração fiscal, revestindo a falta de entrega daquela prestação tributária carácter doloso não se vislumbrando nos autos razões objectivas que desculpabilizem ou mitiguem a sua culpabilidade.
O arguido B..., ao actuar do modo descrito, agiu em nome da empresa, quer no seu interesse quer no interesse social, pelo que também a sociedade arguida é responsável criminalmente pela conduta daquele, cometendo, assim, em co-autoria, um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7º e 105º-1-2-4-a)-b) do RGIT  e  11º do Código Penal)».
Vejamos.
Estamos perante um crime doloso, afirmando-se, enquanto representação e vontade, a dimensão cognitiva quando o agente conhece as circunstâncias do facto que preenchem um tipo objectivo de crime e a dimensão volitiva quando dirige a sua vontade à sua realização, seja porque, como resulta do art.º 14.º, do Código Penal, é essa a finalidade almejada – caso em que se afirma um dolo directo –, é um pressuposto ou resultado necessário, lateral da conduta pretendida – dolo necessário -,  ou ainda porque com ela se conforma – dolo eventual.

Invoca o recorrente que agiu debaixo da «tutela» desculpabilizante de uma causa de exclusão da ilicitude – a prevista no artigo 34º do CP[3].

É este o normativo invocado pelo recorrente, nesta parte do seu recurso.

«Artigo 34º

Direito de necessidade

Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:

a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;

b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e

c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado».

Esta causa de justificação funciona para afastar a ilicitude do facto punível.

Quanto ao seu fundamento, assenta já numa ideia de ponderação de interesses entre o bem jurídico ou interesse ameaçado por um perigo e o bem jurídico ou interesse que se sacrifica para afastar esse perigo.

Note-se que o interesse ou bem jurídico cujo perigo se afasta tem de ser superior ao interesse sacrificado.

O estado de necessidade ora reveste a natureza de um verdadeiro direito de necessidade, e então é uma causa de exclusão da ilicitude, ora tem a natureza de causa de exclusão de culpa.

O direito de necessidade torna a conduta lícita, dai a imposição feita no art. 34º-b CP quanto à superioridade do bem ou interesse jurídico a salvaguardar.

Daí também que o art. 34º tenha que ser conjugado com o art. 35º, particularmente com o seu n.º 1, e que uma vida nunca possa ser sacrificado no exercício de um direito de necessidade, já que, sendo o bem jurídico de maior valoração, nunca qualquer outro lhe pode ser superior.

De acordo com a jurisprudência, o estado de necessidade surge quando o agente é colocado perante a alternativa de ter de escolher entre cometer o crime ou deixar que, como consequência necessária de o não cometer, ocorra outro mal maior ou pelo menos igual ao do crime.

Depende ainda da verificação de outros requisitos, como a falta de outro meio menos prejudicial do que o facto praticado e probabilidade de eficácia do meio empregado.

Pode-se então concluir que a superioridade que se exige nos termos do art. 34º CP entre o bem jurídico sacrificado e o bem jurídico ameaçado pelo perigo não se mede em termos de quantidade: a quantidade não implica superioridade qualitativa.

O perigo tem que ser um perigo real e efectivo.

Se o perigo for uma mera aparência de perigo, estar-se-á então no âmbito do chamado direito de necessidade putativo, aqui não há um perigo real e efectivo, há tão só um perigo pensado ou suposto, o perigo é tão só na cabeça do agente, é uma situação de direito de necessidade putativo, em que o perigo é só penado na cabeça do agente e que se chama erro sobre os pressupostos de facto de uma causa de justificação, cuja previsão normativa e regulamentação está no art. 16º/2 CP.

Além disso, o perigo que se visa afastar tem que ser um perigo actual, ou seja, tem que ser um perigo que exista naquele momento ou que está iminente, perigo esse que pode advir de factos naturais ou facto humanos.

É preciso ainda que cumulativamente se verifique outro elemento desta causa de justificação previsto no art. 34º-b CP: que exista uma sensível superioridade entre o interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado.

Isto passa pela análise de se verificar qual é o interesse mais valioso, daí que a doutrina por vezes aponte alguns índices para a determinação da sensível superioridade que tem de existir entre o interesse salvaguardado e o interesse sacrificado:

· A medida das sanções penais cominadas para a violação dos bens jurídicos em causa, por referência à axiologia constitucional;

· Deve atender-se também aos princípios ético-sociais vigentes na comunidade em determinado momento;

· À modalidade do facto;

· À reversibilidade ou irreversibilidade das lesões;

· Às medidas de culpa;

· À medida do sacrifício imposto ao próprio lesado.

Vejamos o último requisito previsto no art. 34º-c CP: a razoabilidade da imposição ao lesado do sacrifício do seu interesse, tendo em atenção o valor e natureza do interessa ameaçado – trata-se de uma limitação ético-social que visa proteger da violação a dignidade e autonomia ética da pessoa de terceiro, pois o direito tem de se conter e de se manter de certos limites, recuando mesmo, se necessário, em face desses valores.

Subjectivamente, o agente tem de conhecer a situação de perigo, actuado precisamente para evitar esse perigo, que é uma probabilidade de lesão.

                 

3.4. Questiona-se agora – poderá essa figura ser convocada para a presente situação?

Quanto ao facto de saber se as dificuldades financeiras e económicas da empresa, justificam a conduta do arguido, tem vindo a ser afirmado jurisprudencialmente, que a obrigação legal de entregar impostos ao Estado é superior ao dever funcional de manter a empresa a funcionar e de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores.

Já decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 17/1/2007 que:

I –No nosso ordenamento jurídico optou-se por criminalizar a apropriação de prestações tributárias ou equiparadas, o que significa que o dever de não apropriação das mesmas prevalece sobre o dever de as entidades patronais pagarem os salários.

II – Não se pode apelar, neste âmbito, à figura do conflito de deveres, já que estão em confronto interesses próprios (que emergem da necessidade de manutenção do negócio) e interesses alheios (a obrigação de entregar ao Estado as quantias que lhe pertencem).

III - O estado de necessidade abrange as situações perigosas em que se encontra significativamente diminuído o desvalor da acção ilícita e que colidem com o processo de formação da vontade de tal forma que não é exigível ao agente comportamento diverso.

IV - Não se verifica tal estado de necessidade quando inexistem dados de facto que apontem no sentido de se encarar o não pagamento dos salários como tendo um perigo actual, nem no sentido de o único meio de que o arguido dispunha para pagar os salários consistia na assunção da conduta criminosa».

Como bem acentua o Exmº Magistrado do MP de 1ª instância, «a dívida de IVA em causa nos autos tem natureza diferente das restantes dívidas da sociedade, de origem contratual, contraídas no exercício do seu comércio, sendo ainda certo que a específica solução/obrigação que a lei criou para fazer face às situações em que as sociedade não conseguem satisfazer pontualmente os seus compromissos é apresentar-se à insolvência ou requerer a aplicação de medidas legalmente previstas para a recuperação de empresas».

Deste modo, a obrigação de entregar ao Estado o montante de IVA relativo ao mês de Março de 2010 não é contratual, sendo antes uma obrigação que deriva do Código do IVA, ou seja da lei.

O devedor tributário, no caso concreto a sociedade representada pelo arguido recorrente, encontra-se instituído numa posição aproxima da do fiel depositário (o IVA em dívida relativo ao indicado período já foi pago pelos clientes da W..., Lda, e, por isso, esse valor, que não pertence à representada do recorrente, devia ser entregue ao credor tributário - que é o Estado - dentro do prazo fixado na lei).

Ao não entregar o imposto ao Estado, e ao aplicá-lo para solver outras dívidas da sociedade, não se pode deixar de concluir que o arguido utilizou dinheiro alheio (do Estado que foi efectivamente pago pelos contribuintes a jusante da sociedade representada pelo recorrente) para solver dívidas próprias da W..., Lda.

Concordamos que, se a W..., Lda, em Março de 2010, atravessou sérias dificuldades financeiras deveria tê-las previsto e, em devido tempo, ter tomado as medidas de gestão empresarial adequadas a fazer face a essa situação, designadamente, fazendo contenção de despesas ou financiando-se no mercado bancário.

Em último caso, na eventualidade de não conseguir arranjar solução para a situação, poderia mesmo ver-se na contingência de se apresentar à insolvência, nos termos do art. 18°, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou requerer a aplicação de medidas legalmente previstas para a sua recuperação, todas elas também prevista no citado código.

Ou seja, as dificuldades financeiras da sociedade gerida pelo arguido não justificam a utilização de dinheiros alheios (do Estado) para pagamento de dívidas próprias nem dão lugar à exclusão da ilicitude dessa conduta por aplicação da figura jurídica do estado de necessidade.

Parafraseando de novo o Exmº Magistrado do MP, «a admitir-se a aplicação desse instituto no caso em apreço, implicitamente também ficava sufragado o entendimento que numa economia de mercado é saudável ter empresas que não cumprem pontualmente as suas obrigações e, consequentemente, ser supérflua a existência de um Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas».

 Concluindo:

 Existe um conjunto de mecanismos que visam recuperar as empresas que se encontrem numa situação económica difícil, não sendo o não pagamento de impostos uma forma de obviar a tais estados, sob pena de tratamento desigual das empresas.

 E se a empresa se encontra numa situação de insolvência, então é seu dever requerer essa declaração (art. 6º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de falência –CPEREF – e art. 18º do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas – CIRE) e não continuar a laborar à custa de quantias que não lhe pertencem, mas ao Estado.

 Compreende-se deste modo que o direito dos trabalhadores ao salário, assim como dos credores ao pagamento das matérias-primas fornecidas, não se afirme superior aos interesses do Estado, termos em que a actuação do arguido, actuando em representação da arguida sociedade, não se encontra justificada por actuar ao abrigo de um direito de necessidade.

 Particularmente impressivo sobre esta matéria, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa[4] que “nada permite concluir que o dever de manter a empresa a funcionar, nomeadamente através do pagamento dos salários aos seus trabalhadores, seja superior ao de cumprir as obrigações fiscais, sendo certo que este último dever é uma obrigação legal e assim superior ao dever funcional de manter a empresa com os pagamentos em dia (…). Acresce que, a versão do recorrente distorcia gravemente as regras do mercado, conhecida que é a forte concorrência entre empresas que determina que nem todas tenham capacidade ou possam continuar a competir. Desse modo, estaria encontrada a «fórmula» que permitiria que algumas empresas, além de evitarem a perseguição criminal pêlos crimes fiscais, usufruíssem de inadmissíveis vantagens de concorrência relativamente àquelas que cumprem as suas obrigações…”.

 De igual modo, não estando os deveres numa relação de paridade (um dever legal e o outro dever de cumprir contratos)[5], não se vislumbra em que moldes se poderá sustentar estar a conduta justificada no que à sua ilicitude concerne, por o arguido ter actuado num contexto de conflito de deveres…

 Mas, mesmo para quem assim não entenda, sempre se imporá concluir que, entre a imposição legal de não se apropriar das quantias por si deduzidas e de as entregar ao Estado, traduzido num dever geral de omissão – e o dever de acção – pagamento de credores – sempre prevaleceria o primeiro.

Não se encontrava, POIS, o recorrente em estado de necessidade ou em conflito de deveres, tendo antes aproveitado uma oportunidade dourada para ter menores custos, em detrimento do Fisco estatal.

Como tal, é ilícita a sua conduta, sendo ainda dolosa, atento o teor dos factos provados.

Por todos estes motivos, improcedem as alegações constantes das Conclusões 1ª a 10ª.

3.5. E QUANTO à RESTANTE ALEGAÇÃO DE RECURSO (trabalharemos as duas restantes questões em uníssono por estarem muito ligadas entre si)?

Será que o tribunal, de facto, condenou o demandado cível em indemnização civil por aplicação das normas de direito tributário?

Defende o recorrente que

- enquanto não seja condenado pelo tribunal fiscal não poderá ser condenado em processo criminal;

- como não foi notificado na qualidade de revertido pela Administração Fiscal, não poderá ser procedente o pedido de indemnização civil apresentado.

Lendo a sentença, só há que responder negativamente á questão acima colocada - o Tribunal fundamentou de direito a condenação do recorrente no pedido cível em normas tipicamente civilísticas, designadamente, art. 483°, 562°, 566°, 559°, 804° e 805° e 806°, todas do Código Civil.

Vejamos.

Sabemos que há três tipos de responsabilidade:

· a tributária, ou seja, a responsabilidade pela totalidade da dívida tributária, pelos juros e pelos demais encargos legais, regulada, nomeadamente, pela LGT;

· a penal tributária, a que deriva do RGIT e é regulada por este diploma e, subsidiariamente, pelo CP [6] ; e
· a civil, a nascida da infracção criminal tributária e que aquele primeiro diploma, ao determinar a aplicação subsidiária das disposições do segundo, sem qualquer restrição e, portanto, também do seu artigo 129º., manda regular pelas disposições do Código Civil e legislação complementar [7].

O artigo 71º do CPP é claro - «o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei».

Como tal, a respectiva acção cível – aderente ao processo penal – terá de ser deduzida no processo penal tributário, cuja causa de pedir será, não exactamente o incumprimento da obrigação de imposto, mas a prática do facto ilícito criminal previsto pelo respectivo tipo legal e, como tal, gerador, nos termos do citado artigo 483º., nº. 1, de responsabilidade civil.

O pedido cível tem cariz indemnizatório, não caindo directamente sobre o pagamento dos impostos em falta (para isso funcionará a execução tributária).

O que pode acontecer é uma confluência de valores, por via de uma legal compensação, que não conduza a um enriquecimento ilegítimo por parte do Estado ou da Segurança Social (cfr. Ac. do S.T.J., de 6 de Janeiro de 2005, proferido no processo nº. 4450/04 da 5º. Secção)[8].

No fundo, falamos de um pedido indemnizatório a que o MP tem de deduzir por força do artigo 76º/3 do CPP, agindo como representante, não apenas do Estado «gestor», do Estado-Administração, mas do abrangente Estado-Colectividade, em virtude dos referidos fins e da necessidade de defesa dos deveres conducentes à sua concretização e, portanto, dos altos interesses da comunidade àqueles subjacentes, pedindo ao Tribunal que o mesmos sejam salvaguardados, de forma a serem reconstituídos na medida do possível.

É o recorrente parte ilegítima neste pedido cível, assim formulado nesta veste e nesta perspectiva?

O arguido agiu, à luz dos artigos 165º., 483º., nº. 1, 486º., 490º. e 497º., nº. 1, do Cód. Civil, como gerente da sociedade arguida, ao praticar os factos criminosos por que veio a ser condenado nessa qualidade.

E, como tal, é legitimamente parte passiva deste pedido cível, compreendendo-se a sua condenação solidária na dita indemnização pelos prejuízos causados com os factos criminosos.

O que aqui está em causa não é a responsabilização do recorrente pelas dívidas tributárias da sociedade, na qualidade de gerente desta.

Quanto a essas dívidas, aplicam-se, efectivamente, as citadas normas dos arts. 22º a 24º da Lei Geral Tributária, aprovada pela Lei nº 15/2001, de 5-06, que prescrevem o princípio da responsabilidade subsidiária dos membros dos corpos sociais da pessoas colectivas pelas dívidas tributárias.

O que está aqui em causa é, antes, a responsabilidade civil dos recorrentes emergente da prática do crime de fraude fiscal por que foram condenados.

E esta determina-se e resolve-se segundo as regras do Código Civil, para que remete o art. 129º do Código Penal.

E para que também remete o art. 3º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, dispondo que, quanto à responsabilidade civil, aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código Civil e legislação complementar.

É que, conforme esclarece o acórdão da Relação do Porto de 20-09-2006 (em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/, proc. nº 0611503), “se é verdade que os mecanismos institucionais de direito privado servirão para o estabelecimento de um nexo de causalidade entre a conduta criminosa e as suas consequências danosas, e bem assim para a determinação do «quantum» do prejuízo, não é menos verdade que o estabelecimento do nexo de imputação (subjectivo) ao agente do facto criminal danoso, resulta, não das normas de direito privado, mas, isso sim, das normas de direito penal. Concretizando: será agente lesante, para os fins que aqui importam, o autor do facto criminal causador de danos. Ou seja, a própria circunstância de o agente praticar um facto típico qualificado como crime determina a sua responsabilização, caso os danos dele hajam efectivamente resultado. (Estabelecido este nexo de imputação pessoal, subjectiva, entra em acção o direito civil para o estabelecimento de um nexo de causalidade entre a conduta do agente e os danos e para a sua reparação ou quantificação).

É por essa razão que a norma do art. 129º do Código Penal (conjugue-se com o art. 71º do CPP) limita a intervenção da lei civil à «indemnização de perdas e danos emergentes de crime», pressupondo a efectiva ocorrência deste e a determinação da respectiva autoria. A separação entre o que é objecto da acção penal e aquilo que é objecto da conexa acção civil pode ser resumido na «ideia de coincidência entre o interesse cuja lesão fundamenta a pretensão civil e aquele com relevância penal donde decorre a qualidade de ofendido (…) todo o lesado por crime é também um ofendido» (J. L. A. Ribeiro de Faria, em “Indemnização por Perdas e Danos arbitrada em Processo Penal – O chamado Processo de Adesão”, Almedina, 1978, p. 89 e 90)”.

Ora, o art. 497º do Código Civil consagra o princípio da responsabilidade solidária, no âmbito da responsabilidade civil de natureza delitual, quando forem várias as pessoas responsáveis pelos danos. Por isso, como também concluiu o acórdão desta Relação anteriormente citado, “sendo co-autores de um crime fiscal uma sociedade e o seu gerente, são ambos responsáveis, solidariamente, pelo pagamento da indemnização”.

O que significa que é solidária, e não meramente subsidiária, a responsabilidade do arguido/recorrente, conjuntamente com a responsabilidade da sociedade infractora que representa como gerente, pelo pagamento da indemnização devida ao Estado por danos causados em consequência da conduta infractora, por decisão do arguido ora recorrente, na qualidade de gerente da referida sociedade.

Ou seja:

Do exposto decorre que pelos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes do crime e respondem não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil.

Assim, o administrador ou gerente da empresa que seja também agente do crime, não responderá subsidiariamente, mas solidariamente, como solidariamente respondem todos os demais agentes, nos termos do que dispõe o art. 497.° do Código Civil.

Nós não estamos no plano das execuções fiscais (aí sim, o palco propício a tais reversões tributárias - a reversão de execução fiscal consiste num regime que determina a responsabilização de uma determinada pessoa, a título subsidiário, pelas dívidas tributárias de outrem e que surge numa fase patológica da relação jurídica tributária, ou seja, uma vez terminados os procedimentos de execução fiscal contra o devedor originário sem que os créditos do Estado tenham sido satisfeitos, há que prosseguir, então, para a reversão da execução fiscal contra os responsáveis subsidiários legalmente indicados), mas no âmbito de uma acção cível conexa com uma criminal.

O que temos na nossa frente, à saciedade, é o plano da indemnização por danos, nascida da prática de factos ilícitos que integram a previsão penal de crimes e que geraram responsabilidade civil e que, pacificamente e parafraseando Claus Roxin, vem sendo admitida como um «tertius genius» dessa prática, a par da pena de prisão e da pena de multa.

A ESTE PROPÓSITO, tragamos à colação a doutrina exarada pelo Acórdão do STJ de 4/2/2010 (Pº 106/01.9IDPRT.1ª, a qual preceitua o seguinte:

«De acordo com o artigo 129.º do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.

Desde cedo a jurisprudência entendeu que tal norma só determina que a indemnização seja regulada “quantitativamente e nos seus pressupostos” pela lei civil, remetendo para os critérios da lei civil relativos à determinação concreta da indemnização, não tratando de questões processuais, que são reguladas pela lei adjectiva penal, nomeadamente nos seus artigos 71.º a 84.º - acórdãos do STJ, de 12-12-1984, BMJ n.º 342, pág. 227; de 06-03-1985, BMJ n.º 345, pág. 213; de 13-02-1986, processo nº 38028; de 06-01-1988, BMJ n.º 373, pág. 264; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 09-06-1996, processo nº 6/95; de 10-12-1996, CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 202 e BMJ, n.º 462, pág. 294; de 09-07-1997, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 260; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5ª; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-03-2007, processo n.º 4596/06-3ª; de 25-06-2008, processo n.º 449/08-3ª; de 03-09-2008, processo n.º 3982/07-3ª; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 3373/08-3ª; de 05-11-2008, processo n.º 3266/08 - 3ª; de 10-12-2008, processo n.º 3638/08 - 3ª [a interdependência das acções significa independência substantiva e dependência (a «adesão») processual da acção cível relativamente ao processo penal]; de 18-02-2009, processo n.º 2505/08 - 3ª; de 25-02-2009, processo n.º 3459/08 - 3ª; de 15-04-2009, processo n.º 3704/08 - 3ª; de 18-06-2009, processo n.º 81/04.8PBBGC.S1-3ª.

Como resulta do artigo 3.º, alínea c), do RGIT, quanto à responsabilidade civil, são aplicáveis subsidiariamente, as disposições do Código Civil e legislação complementar.

De acordo com o princípio geral plasmado no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

Nestes casos de responsabilidade civil conexa com a criminal, a mesma tem a sua génese no crime, sendo um crime o seu facto constitutivo, a causa de pedir da pretensão ressarcitória.

Conforme dispõe o artigo 71.º do Código de Processo Penal o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

A dedução em separado, perante o tribunal civil, é possível nos casos previstos no artigo 72.º, não se integrando o pedido em nenhum deles.

A competência do tribunal criminal para conhecer do pedido cível conexo com a acção penal decorre da responsabilidade civil extracontratual do agente que cometa o facto ilícito e culposo.

Neste quadro legal, que é o aplicável, não há lugar a qualquer reversão.

Para melhor percepção do âmbito da responsabilidade subsidiária e do instituto da reversão, vejamos as disposições atinentes constantes da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12, republicado em anexo à Lei n.º 15/2001 (sendo o artigo 24.º, n.º 1, alínea a), na redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29-12).

Artigo 18.º - Sujeitos

3 – O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.

Artigo 20.º - Substituição tributária

1 – A substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte.

2 - A substituição tributária é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido.

Artigo 22.º - Responsabilidade tributária

2 – Para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas.

3 – A responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, salvo determinação em contrário, apenas subsidiária.

Artigo 23.º - Responsabilidade tributária subsidiária

1 - A responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de execução fiscal.

2 – A reversão contra o responsável subsidiário depende da fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão.

4 – A reversão, mesmo nos casos de presunção legal de culpa, é precedida de audição do responsável subsidiário nos termos da presente lei e da declaração fundamentada dos seus pressupostos e extensão, a incluir na citação.

Artigo 24.º - Responsabilidade dos membros dos corpos sociais e responsáveis técnicos

1 – Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício de seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.

2. …………………………………………………………………………………

3. ………………………………………………………………………………….

A natureza judicial do processo de execução fiscal é afirmada pelo artigo 103.º, n.º 1, da LGT.

Sobre a extensão da legitimidade passiva na execução fiscal, mais concretamente sobre o chamamento à execução dos responsáveis subsidiários, rege o n.º 2 do artigo 153.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26-10, republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 15/2001.

Tal chamamento depende da verificação de qualquer das seguintes circunstâncias: inexistência de bens penhoráveis do devedor e seus sucessores, ou fundada insuficiência, de acordo com os elementos constantes do auto de penhora e outros de que o órgão da execução fiscal disponha, do património do devedor para a satisfação da dívida exequenda e acrescido.

E de acordo com o artigo 159.º do mesmo CPPT, reproduzindo textualmente o que constava do artigo 245.º do anterior CPT, no caso de substituição tributária e na falta ou insuficiência de bens do devedor, a execução reverterá contra os responsáveis subsidiários.

Com a reversão o que ocorre é uma modificação subjectiva da instância, uma ampliação do âmbito subjectivo da instância executiva, através da intervenção de um terceiro (à luz do título executivo extrajudicial donde promana a execução fiscal – certidão extraída do título de cobrança – artigo 162.º, alínea a), do CPPT), mas que também é sujeito passivo da relação tributária, como “responsável” (artigo 18.º, n.º 3, in fine, da LGT), vinculado ao cumprimento da prestação tributária, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º da LGT e artigo 153.º, n.º 2, do CPPT, ou seja, no caso de não haver bens penhoráveis do devedor e seus sucessores ou insuficiência de bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários.

A execução reverte assim contra pessoa distinta da que figura no título executivo como devedor, ocorrendo quanto a ela, não os pressupostos do facto tributário, mas da responsabilidade, operando-se a extensão da obrigação de cumprimento da prestação tributária a pessoa diversa do contribuinte directo.

O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 160/07 (Plenário), de 6 de Março de 2007, no processo n.º 390/06, não considerou inconstitucional o conjunto normativo que considere que por despacho do Chefe do Serviço de Finanças se efective a reversão no processo de execução fiscal contra responsáveis subsidiários por dívidas fiscais, entendendo-se não constituir a reversão um acto com natureza jurisdicional, consentida pelo artigo 103.º, n.º 1, da LGT.

Ao tempo da instauração do processo n.º 401/03.1TAPVZ estava em vigor o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27-04 (complementado pelo Decreto-Lei n.º 374/84, de 29-11), dispondo no artigo 1.º que “A jurisdição administrativa e fiscal é exercida por tribunais administrativos e fiscais, órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo”, e estabelecendo o artigo 3.º que “Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

E o artigo 4.º, n.º 1, alínea d), exclui da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto actos relativos ao inquérito e instrução criminais e ao exercício da acção penal.

Este diploma veio a ser revogado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02, republicada em anexo à Lei n.º 107-D/2003, de 31-12 e que entrou em vigor em 01-01-2004, cujo artigo 1.º, n.º 1, dispõe que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Segundo o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, introduzido pela revisão de 1989, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

E segundo o artigo 211.º, n.º 1, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

No caso em apreciação não tem lugar a figura de reversão, própria do processo executivo e que tem por objectivo chamar à acção executiva quem à luz do título executivo não é parte (cfr. artigos 55.º, n.º 1, do CPC e 153.º, n.º s 1 e 2 do CPPT), situação completamente diversa da presente em que o recorrente é demandado ab initio, numa acção com estrutura declarativa, sendo contra si invocada uma concreta causa de pedir e formulado um pedido concreto, que pode impugnar nos termos gerais consentidos em processo penal.

Na execução fiscal, o devedor substituto não figura no título de cobrança do tributo.

Ao optar pelo exercício da acção conjunta o demandante pretende obter decisão condenatória que, transitada em julgado, assume o papel de título executivo, com a configuração própria do artigo 467.º do Código de Processo Penal.

Aqui o devedor é demandado a título principal, tendo por base a autoria de um crime de que emerge uma conexa responsabilidade civil delitual - artigo 6.º do RGIT- sendo o pedido baseado na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela prática de facto ilícito e culposo - artigo 483.º do Código Civil.

Mais do que uma presunção legal de culpa (artigo 23.º, n.º 4, da LGT), invocável em sede de responsabilidade tributária, aqui o pedido de indemnização baseou-se na prática de um facto que à data constituía crime doloso, pois o crime em questão é apenas previsto na forma dolosa (não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores de crime só podem ser punidos se praticados com dolo - artigo 13.º do Código Penal), sendo o pedido substanciado numa causa de pedir de matriz diversa – não em responsabilidade tributária, mas responsabilidade criminal e responsabilidade civil decorrente da prática de um crime, uma responsabilidade extra-contratual, delitual ou aquiliana.

Sendo certo que o IGFSS podia interpor execução contra a sociedade arguida, possuindo quanto a ela título executivo, podendo ainda nessa sede requerer a reversão contra os respectivos representantes legais, reunidos que fossem os necessários requisitos, nada impede que faça uso da faculdade conferida em processo penal do princípio da adesão.

Os crimes tributários, e é disso que se trata, são julgados nos tribunais criminais, e não nos tribunais administrativos e fiscais.

Sendo diversos os sujeitos numa e noutra demanda – pelo menos, os originários – e a causa de pedir (a pretensão deduzida nas execuções fiscais e a pretensão formulada no presente processo não procedem do mesmo facto jurídico – cfr. artigo 498.º, n.º 4, do CPC), bem como o pedido, pois a indemnização aqui impetrada não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, nem se poderia colocar a questão de configuração da excepção dilatória da litispendência.

E mesmo que o demandante use dessa opção, não haverá lugar a condenação em custas, nos termos do artigo 449.º, n.º 2, alínea c), do CPC, pois que o título de cobrança não tem manifesta força executiva contra o responsável subsidiário, de tal modo que há que fazê-lo intervir no processo, e por outro lado, a acção enxertada tem uma configuração e alcance muito mais amplo do que a exercitada no executivo, pois não está em causa uma presunção legal de culpa, mas uma imputada, em sede criminal, intenção criminosa.

A competência do tribunal criminal para conhecer da acção penal e da conexa acção cível enxertada não se confunde com a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal em processo de execução.

Nestes casos não está em causa apurar da responsabilidade do recorrente perante os credores sociais, quando pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção desses credores, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos - n.º 1 do artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais -, mas de apurar a sua responsabilidade civil pela prática de ilícito de natureza criminal que não foi objecto de condenação, que não exige o preenchimento dos pressupostos referidos.

Para obter título executivo também contra os sócios gerentes da sociedade devedora fiscal, arguida nos autos, o demandante tem necessariamente de demandar todos em acção de condenação, tendo interesse em agir na demanda contra os mesmos, não relevando o facto de o IGFSS ter outros meios para obter o pagamento das quantias em dívida, designadamente, a execução fiscal - neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 06-01-2005, processo n.º 4450/04-5ª; de 26-01-2006, processo n.º 231/05-5ª e de 11-12-2008, processo n.º 3850/08- 5ª.

Conclui-se assim que o tribunal criminal tem competência em razão da matéria para julgar a acção cível interposta pelo IGFSS, não havendo lugar neste tipo de processos à figura da reversão, nem se mostrando violados os artigos 212.º da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF».

Nada mais a dizer por desnecessário.

Em suma:

· Compete aos Tribunais, na administração da Justiça, "dirimir os conflitos de interesses públicos e privados";

· O interesse em agir tem lugar quando se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência de um direito a apreciar, "incerteza essa que resulta de um facto exterior; que é capaz de trazer um sério prejuízo ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito a plenitude das vantagens que ele comportara", como efectivamente o é no caso "sub judice";

· Tendo, por isso, o Estado Português interesse em agir na dedução do pedido cível formulado contra o arguido, aquando da dedução do mesmo no libelo acusatório, em estrita observância dos princípios da suficiência do processo penal e da adesão obrigatória do pedido cível ao processo penal;

· Tanto mais que por douto despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 311º, do Código de Processo Penal, transitado em julgado, embora formal, foi tal pedido de indemnização civil admitido e o arguido dele notificado para, querendo, o contestar;

· O objecto do processo - assim como da devida condenação no pedido de indemnização civil formulado - assenta na prática de actos voluntários, praticados pelo arguido recorrente e que a lei tipifica como crime de abuso de confiança fiscal;

· A condenação do arguido no pedido de indemnização civil formulado assenta na sua responsabilidade criminal, que é, por força do disposto no artigo 11º do Código Penal, de natureza eminentemente pessoal, assentando a "causa de pedir" ou o fundamento na sua condenação penal, a qual é distinta daquela que serve de base à demanda de natureza fiscal ou tributária;

· Dado que as causas de pedir são diversas, pois, enquanto a causa de pedir do pedido de indemnização civil formulado no âmbito do processo crime se funda na prática de um crime, tal como decorre do disposto no artigo 129º do Código Penal, nos processos de execução fiscal a causa de pedir funda-se no facto tributário, tal com decorre do disposto nos artigos 31º, n° 1 e 36º, ambos da Lei Geral Tributária;

· Pelo que o arguido foi muito bem condenado a pagar não os impostos devidos pela sociedade, mas sim pelo facto de ilicitamente se ter apropriado daquelas quantias, que pertenciam ao Estado Português, e de as ter feito reverter a favor da mesma sociedade, assim se impondo a condenação naqueles no seu pagamento, ao abrigo do disposto nos artigos 483º e 562º, ambos do Código Civil, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 129º, do Código Penal.

Improcedem, assim, as conclusões 11ª a  32º.

3.7. Está em causa o crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 105º do RGIT.

No crime de abuso de confiança fiscal, objecto da omissão de entrega, total ou parcial, é a prestação tributária, conceito referido no artigo 1.º, n.º 1, alínea a) e definido no artigo 11.º, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias (Anexo), englobando os impostos e outros tributos cuja cobrança caiba à administração tributária, abrangendo o artigo 105.º três tipos de prestações pecuniárias cuja não entrega faz recair sobre o agente a responsabilidade penal por tal crime – para além da prestação tributária deduzida nos termos da lei, prevista no n.º 1, o objecto é “alargado” pela definição extensiva do n.º 2 e do n.º 3 (aqui abrangendo prestações com natureza parafiscal) do citado preceito legal.

Nesta infracção, estão em causa créditos de impostos ou de tributos fiscais ou parafiscais devidos ao Estado, estabelecendo-se uma relação entre o Estado -Administração Fiscal, enquanto sujeito activo da relação jurídica tributária, titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, titular do crédito do imposto; por outro lado, o sujeito passivo que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável – cfr. artigos 18.º (sujeitos da relação jurídica tributária), 20.º (substituição tributária), 28.º (responsabilidade em caso de substituição tributária) e 34.º (retenção na fonte) da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12, republicado em anexo à Lei n.º 15/2001.

Pressupõe este delito uma relação em que intercedem três sujeitos: o Estado -Administração Fiscal, titular do crédito do imposto; o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído, e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.

O artigo 105º tem em vista situações de substituição tributária, estando nós perante um crime omissivo, um crime de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito é antecedida de uma acção, de um comportamento actuante, positivo, de facere, consubstanciado numa conduta legal, de prévia dedução (obrigação de retenção), que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, figurando como um intermediário no processo de arrecadação da receita, constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do retido, consubstanciando-se na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária.

Assenta este crime numa conduta bifásica, seguindo-se a uma primeira fase de actuação perfeitamente lícita – a dedução – que funciona como seu pressuposto, uma outra traduzida numa omissão.

Objecto de previsão específica do abuso de confiança fiscal é no artigo 105.º o que se contém nos n.º s 1, 2 e 3, definindo os elementos do crime (as “extensões” do conceito de prestação tributária constantes dos n.º s 2 e 3 reproduzem na íntegra o texto dos n.º s 2 e 3 do artigo 24.º do RJIFNA originário e tratando-se de deduções não são extensíveis ao crime homónimo da segurança social em que a prestação tem sempre a mesma natureza).

O artigo 105.º, na abrangência do que se contém nos n.º s 1, 2 e 3, aplica-se a todos os tributos e impostos, com excepção das contribuições devidas à segurança social, aplicando-se a estas o artigo 107º.

Em síntese, diremos que:

· sob o ponto de vista dogmático/jurídico, o crime de abuso de confiança fiscal configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º2 do art.º 5º do RGIT;

· é um crime doloso, aferido este nos termos gerais do art.º 14º do Código Penal;

· No que diz respeito ao bem jurídico protegido, o crime de abuso de confiança fiscal tem por fundamento a protecção do património do Estado, mediante a tutela e protecção criminal da obrigação da entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as entregasse nos Cofres do Estado;

· é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária.

No n.º 7, o legislador opta claramente pelo critério da declaração individualizada, assente que o delito se consuma com a não entrega das prestações relativas a cada período, tal se retirando do enunciado do n.º1 dos artigo 105º do RGIT – esta entrega deve ser feita até ao 15º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito (art.º 5º/2 e 3 do DL nº 102/80; art.º 18º do DL nº 140-D/86, cfr. nota em “Infracções Fiscais Não Aduaneiras” de Alfredo B... de Sousa, Almedina, 1998, p. 129).

Nesse normativo, deixa-se escrito o seguinte:

«7- Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».

Ora, se assim é, então é esse o critério para aferir os valores do n.º 5, com efeitos qualificativos da própria moldura penal abstracta.

3.8. Além disso, pela alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Outubro, apenas é hoje criminalizada a não entrega, à administração tributária, de prestações [deduzidas nos termos da lei e que estavam legalmente obrigados a entregar] de valor superior a € 7.500.

Assim sendo, constituem assim elementos objectivos do tipo desde 2001:

· a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária;

· que o agente estava legalmente obrigado a entregar (de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei, após a reforma de 2008).
Já configuram condições objectivas de punibilidade, indicadas no n.° 4 do art.° 105.°, as seguintes:
· tiver decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega prestação;
· a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (em sentido diferente, configurando as circunstâncias do nº 4 como elementos integrantes do tipo de crime, e não como condição objectiva de punibilidade, Taipa de Carvalho, O crime de abuso de confiança fiscal. Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p.40)
Finalmente, como elemento subjectivo típico, torna-se necessário o conhecimento e vontade de praticar tais actos, sabendo que os mesmos constituíam a prática de um crime.
Para se consumar o crime, basta, agora, a mera violação do dever legal de entrega das prestações deduzidas ou retidas, que no entanto, insiste-se, não se confunde com qualquer intenção de apropriação.
Posição que tem igualmente vindo a ser defendida pela jurisprudência.

De facto, neste delito, após a entrada em vigor do RGIT, basta a não entrega dos montantes deduzidos para que se verifique a apropriação, sendo criminalmente punível tal prévia apropriação e consequente não entrega (mesmo que não se prove que o agente se tenha apropriado pessoalmente desses montantes, tendo antes pago despesas sociais com dinheiro que não lhe pertencia).

O artigo 105º fala em «não entrega».

Enquanto no abuso de confiança do artigo 205º do CP se exige a apropriação ilegítima da coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade, o abuso de confiança fiscal basta-se com a não entrega total ou parcial da prestação tributária ou parafiscal.

A não entrega traduz-se numa apropriação, num fazer sua a coisa alheia.

A nova redacção do artigo 105º - que suprimiu o termo «apropriação» - regressa à redacção da norma do artigo 24º/1 do RJIFNA anterior à alteração introduzida pelo DL 394/93 de 24/11.

Nestes termos, o tipo de ilícito prescinde hoje do elemento de apropriação da prestação tributária, bastando-lhe a mera falta de entrega passados 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação.

Contudo, se não é exigível uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, veja-se inequivocamente Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª edição, Almedina, IDEF, Coimbra, 2007 p. 168 e a mesma autora (sublinhando a sua posição) em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Almedina, Coimbra, II Volume, 2009, p. 260 e Paulo Marques, Infracções Tributárias, Volume I, Ministério da Finanças e da Administração Pública, Lisboa, 2007 p. 13).

O que foi o caso dos autos.

Se assim é, estão perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos do tipo, bem como as condições de punibilidade.

Só podia ser condenado o arguido.

E foi-o na justa medida.

3.9. Só resta concluir pela total improcedência do recurso.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 5ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra em NEGAR PROVIMENTO ao recurso intentado pelo arguido B..., confirmando, na sua totalidade, o teor da muito bem elaborada sentença.

            Sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigos 513º/1 do CPP revisto pelo DL 34/2008 de 26/2 e 8º/5 do RCP, já aplicável a este autos, este remetendo para a Tabela III).

           


Paulo Guerra (Relator)

Alberto Mira



[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.

[2] O juízo de ilicitude é um juízo que é feito pela ordem jurídica, um juízo generalizado, um juízo de desvalor que incide sobre o facto praticado, ou seja:

· a ordem jurídica fórmula um juízo negativo sobre quem adopta um determinado facto que a ordem jurídica considera um facto proibido;

· ou faz incidir um juízo de desvalor, porque efectivamente a pessoa não adoptou o comportamento que devia ter adoptado quando a lei o exigia.

Neste sentido tem-se que o juízo de ilicitude é um juízo de desvalor generalizado que incide sobre o próprio facto.

Este juízo de ilicitude diverge de um juízo de culpa, ou de um juízo de censura de culpa.

No juízo de censura de culpa há também um juízo de desvalor, mas que é já um juízo individual, é um juízo feito pela ordem jurídica mas que incide já não sobre o facto praticado, mas recai sobre o agente, precisamente porque o agente actuou tendo praticado um facto ilícito, quando podia e devia ter-se decidido diferentemente, quando podia e devia ter actuado de harmonia com o direito.

Portanto, no juízo de censura de culpa, o que se reprova é o agente (por isso é um juízo individualizado) por ele, naquele caso concreto, ter actuado ilicitamente, quando podia e devia ter actuado de forma diferente, ou seja, licitamente.

Donde, o juízo de ilicitude é um juízo que procede necessariamente o juízo de censura de culpa: se em sede de culpa a ordem jurídica dirige ao agente um juízo de desvalor porque ele praticou um facto ilícito, então o juízo de ilicitude tem de ser anterior; tem se der firmado anteriormente que o facto praticado pelo agente é um facto ilícito.
 
[3] NEM SEQUER PODERÁ ser invocada uma outra causa de exclusão da ilicitude – o conflito de deveres, previsto no artigo 36º do CP.

Na realidade, o art. 36.º do Código Penal preceitua no seu n.º 1 que não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.

Para que tal conflito tenha relevância jurídica para afastar a ilicitude, seria necessário, para além do mais, que a opção pela prática do crime tivesse sido determinada pela inexistência de outro meio, menos gravoso, de evitar a lesão do bem jurídico ameaçado.

Por este artigo 36º, tutelamos situações em que se torna lícito ao agente não cumprir um dever se cumprir outro dever de categoria igual ou superior.

Se colidirem dois deveres a que o agente está obrigado, de igual valor, o agente tem a liberdade de optar por um deles, não cumprindo o outro, sendo certo que só tem a possibilidade de cumprir um deles.

Se colidirem dois deveres, um de natureza inferior e outro de natureza superior, então está justificado o agente que não cumpre o dever de natureza inferior satisfazendo um dever de natureza superior.

Colidindo imesuravelmente dois deveres, sendo certo que o agente só pode cumprir um deles, está justificado o não cumprimento do outro dever ou da outra ordem, se tiver valor igual ou inferior ao dever (ou ordem) que o agente cumpre.

Esta causa de justificação, justifica-se, quando o cumprimento de um dever superior em detrimento de um dever jurídico ou de uma ordem de valor inferior, está aqui inerente uma ideia de ponderação de interesses.

Para o Prof. Figueiredo Dias, no âmbito do art. 36º CP só há conflito de deveres quando colidem dois deveres de acção; já não é assim quando colidem um dever de acção e um dever de omissão.
Há quem entenda (e parece bem) que podem coexistir um dever de acção e um dever de omissão, desde que se trate de bens eminentemente pessoais, ou de natureza pessoal, aí o dever de acção cedendo sempre perante o dever de omissão.

Ora, não resultou provado que a prática do crime fosse o único e último meio a que o recorrente poderia lançar mão para resolver os problemas dos trabalhadores e da própria empresa. Com efeito, a obrigação do pagamento dos salários só se põe enquanto se mantiver a obrigação da manutenção dos postos de trabalho e a obrigação da manutenção da empresa em funcionamento só se mantém enquanto esta tiver viabilidade económica.

Face à situação deficitária da empresa, o arguido tinha sempre a possibilidade legal de requerer a sua extinção, bem como a extinção dos contratos de trabalho do pessoal ao serviço da empresa, dessa forma se desobrigando do pagamento dos salários.

Seja como for, a obrigação de entregar os impostos e as prestações é uma obrigação legal, cuja violação, por estar em causa um dos mais relevantes interesses do Estado - o da cobrança de impostos - se encontra jurídico-penalmente tipificada, enquanto a obrigação de pagar os salários aos trabalhadores é de natureza meramente contratual.

Assim sendo, é manifesto que, na hierarquia de valores em causa, o interesse do Estado está a um nível muito superior ao interesse privado do arguido em pagar os salários e viabilizar a manutenção da empresa.

Não se pode, portanto, considerar que o arguido, em vez de entregar as quantias em causa às entidades a quem eram devidas, as utilizou no pagamento de salários e aos credores, salvaguardou um interesse superior.

[4] Ac. RL 12.07.2005, CJ, ano XXX, tomo IV, pág. 133 e ss.
[5] Ac. STJ 15.01.1997, CJSTJ, ano V, tomo I, pág. 190 e ss.; Ac. RG 11.11.2002, CJ, ano XXVII, tomo V, pág. 285 e ss.; Ac. STJ 18.06.2003, www.dgsi.pt; Ac. RP 09.06.2004, www.dgsi.pt; Ac. RP 15.02.2006, www.dgsi.pt; Ac. RP 26.09.2007, www.dgsi.pt
[6] E que o anterior Código definia, no seu artigo 27º., como «a obrigação de reparar o dano causado na ordem moral da sociedade, cumprindo a pena estabelecida na lei e aplicada por tribunal competente»
[7] Código que a define como a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação dos seus direitos ou de qualquer disposição legal destinada a proteger os seus interesses, reconduzindo-o à situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação ou, não sendo a reconstituição natural possível, não reparando integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, pagando-lhe a indemnização em dinheiro correspondente quer ao prejuízo causado, quer aos benefícios que tenha deixado ou, previsivelmente, venha a deixar de obter em consequência da lesão (artigos 483º., 562º., 564º. e 566º., nº.1)
[8] Que assim decidiu:
«Os recorrentes entendem que os tribunais comuns não são competentes, em razão da matéria, para se pronunciarem sobre o apuramento de impostos ou taxas, de acordo com o vertido no nº. 1 do Código sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas e nº. 1 do artº. 90º. do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, conferindo estas normas aquela competência ao Tribunal Administrativo e Fiscal.
Na verdade, se a questão devesse ser colocada desta maneira, os recorrentes teriam razão. Contudo, a acção cível que foi julgada pelo tribunal recorrido não se destinou a apurar os impostos ou taxas devidas pelos ora recorrentes. O pedido não foi esse nem foi essa a causa de pedir, pois o pedido foi uma indemnização e a causa de pedir fundou-se na prática de factos ilícitos que integram a previsão penal de crimes e que geraram responsabilidade civil.
Ora, "o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei" (artº. 71º. do CPP).
Assim, o M.º P º, em representação do Estado, fez o que a lei impõe, de acordo com o princípio da adesão configurado neste artº.71.º, pois, perante o processo crime, interpôs uma acção conexa com a criminal a exigir o pagamento de uma indemnização fundada na prática dos crimes de abuso de confiança fiscal e de fraude fiscal, articulando que com a conduta descrita na acusação os arguidos locupletaram-se ilegitimamente, em prejuízo do Estado, com a quantia total de 868.533,41 €.
Essa acção foi julgada procedente e provada, nada tendo a ver com outro eventual processo que exista ou venha a existir destinada ao apuramento dos impostos em dívida, cuja quantia final poderá ser igual ou diferente da fixada na acção indemnizatória, fazendo-se depois as necessárias compensações. Nem sabemos se o Estado não reclama outras quantias de impostos não pagos e que não foram considerados no processo-crime.
O montante da indemnização foi fixado nestes autos de acordo com as regras da lei civil, como preceitua o art.º 129º. do C. Penal, pelo que os ora recorrentes puderam contestar o montante arbitrado de acordo com as mesmas regras, sem aplicação do disposto nas leis administrativas e tributárias.
Por isso, também esta questão improcede, com manifesta evidência».