Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1554/11.1TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: EXECUÇÃO
LEGITIMIDADE
TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
CONTA SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 45, 46, 55 CPC, 1, 3, 12, 29, 40, 41 LUCH, 512, 516 CC
Sumário: 1 - Em execução fundada na emissão de um cheque pelo executado, o mesmo não é parte legítima na execução nos termos do artigo 55.º, n.º 1, do CPC, se o cheque dado à execução não foi por ele assinado, e consequentemente não é o seu sacador.

2 - O facto de um cheque ser pago a um terceiro, independentemente da titularidade dos fundos disponíveis numa conta solidária, não significa que a solidariedade da conta converta todos os seus titulares em devedores solidários perante o terceiro dos cheques sacados sobre ela.

3 - Assim, se o executado tiver apenas o seu nome impresso em cheque assinado por outro contitular de conta solidária, tal não determina que o mesmo tenha legitimidade como executado.

4 - Pretendendo a exequente alegar a causa subjacente à emissão de um cheque, a fim de que o mesmo seja título executivo enquanto documento particular tem que fazê-lo no requerimento inicial da execução, não podendo aí alegar uma causa e, em sede de oposição à execução, transmutá-la em uma nova relação jurídica causal.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. E (…), por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe foi movida por S (…), S.A., deduziu a presente oposição, pedindo que a mesma seja julgada procedente, julgando-se verificadas as excepções invocadas e, a final, ser determinada a extinção da execução.

Para o efeito alegou, ser parte ilegítima na presente execução, pois, ao contrário do que afirma a exequente, nunca o executado lhe comprou o que quer que fosse, nem exerce sequer, qualquer actividade comercial, sendo trabalhador por conta de outrem, com a profissão de motorista de pesados.

Acresce que, o executado nem sequer sacou o cheque ora dado à execução, só se entendendo o facto de ser demandado, por ser titular da conta bancária sobre a qual o cheque dado à execução foi sacado, só que, embora se trate de uma conta solidária, a responsabilidade da dívida titulada por cheque sacado por um dos titulares não se estende aos restantes.

Mais invocou que o cheque dado à execução no valor de 9.000,00€ (nove mil euros), tem data de 15/07/2011, tendo sido devolvido por falta de provisão em 09/06/2011, como consta do verso do mesmo, sendo certo que os cheques apenas valem como títulos executivos, se apresentados a pagamento nos oito dias posteriores à data de emissão.

2. A exequente contestou, aduzindo que o Sr. A (…) mantém uma relação comercial com a Exequente/Oposta desde 2004; no âmbito da referida relação comercial adquiriu diversas mercadorias à Exequente/Oposta; para pagamento do preço, enquanto gerente da sociedade K (…)Unipessoal, Lda. e enquanto comerciante em nome individual aceitou diversas letras sacadas pela exequente, as quais reformou sucessivamente; acontece que as letras n.º500792887064387372, com vencimento em 10.02.2009, no valor de € 25.400,00, n.º 500792887064387348, com vencimento em 10.12.2008, no valor de € 45,00 e letra n.º500792887064387330, com vencimento em 10.11.2008, no valor de €450,00, encontravam-se avalizadas pelo Senhor E (…) ora Executado/Opoente, pelo Sr. A (…) e pela Sra. B (…); sendo que, para liquidação dos referidos aceites, foi emitido e entregue, entre outros, o cheque n.º 9497363041, de 15.07.2011, no valor de € 9.000,00; sendo o ora executado titular da conta bancária sobre a qual o cheque, título da presente execução, foi sacado, é também o ora executado enquanto avalista das referidas letras que consubstanciam a relação fundamental subjacente à emissão do cheque, responsável nos mesmos termos “que a pessoa por ele afiançada”, tal como dispõe o art.º 32.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.

Quanto à invocada falta de título executivo, aduz a Exequente que conforme determina o disposto no art.º 28.º da Lei Uniforme do Cheque que “o cheque é pagável à vista”, pelo que o cheque apresentado a pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação.

In casu, e uma vez que o presente cheque é pós-datado e foi apresentado a pagamento antes da data do seu vencimento, não vale como título de crédito, nos termos do disposto no art.º 29.º da Lei Uniforme dos Cheques; todavia, e ao contrário do que alega o Executado/Opoente nos art.ºs 9.º a 12.º da douta Oposição à Execução, o referido cheque vale como título executivo, no caso do requerimento executivo ter sido alegada a relação fundamental subjacente à emissão do cheque.

Ora, é verdade que tal alegação não foi feita no requerimento executivo, por mero lapso da Exequente/Oposta, e que por isso se penitencia e vem fazê-lo na presente Contestação à Oposição.

De facto, e como já foi descrito supra, existe uma relação fundamental subjacente ao cheque, título executivo dos presentes autos, nomeadamente a avalização de letras que derivam de uma relação comercial existente entre a ora Exequente/Opoente e o filho do ora Executado/Oposto, devidamente fundadas.

Ao avalizar as letras sabia o ora Executado/Oposto que era responsável nos mesmos termos que o devedor originário, conforme preceitua a Lei Uniforme das Letras e Livranças.

Desta forma, e para pagamento das mesmas, não obstante de não ter assinado o referido cheque, é titular da conta bancária sobre a qual foi sacado, resultando provada a existência de uma relação fundamental subjacente, requisito admitido como essencial pela jurisprudência dominante para a aceitação de um cheque como título executivo, inclusivamente nas situações em que a Lei Uniforme dos Cheques não o considera título de crédito.

3. Seguidamente (após infrutífera suspensão da instância com vista a obtenção de acordo), foi proferido saneador-sentença que julgou improcedente a oposição e determinou o prosseguimento da execução.

4. Inconformado com esta decisão o Executado/Opoente interpôs o presente recurso de apelação que finalizou com as seguintes conclusões:

«1 - O executado é parte ilegítima na presente execução.

2 – Não obstante o seu nome estar impresso no título executivo (cheque), o executado não o subscreveu.

3 – O referido cheque foi assinado por Benilde Jesus Ferreira, uma co-titular da conta, e só contra ela poderia ser instaurada a execução

4 – Nos casos de conta conjunta (que tem mais que um titular), só o sacador que emite o cheque se obriga cambiariamente com a aposição da sua assinatura

5 – Quem garante o pagamento do cheque é apenas o sacador que o emitiu, ainda que seja de uma conta colectiva.

6 – Na presente execução existe ainda falta de título executivo

7 – Já que o cheque dado à execução está datado de 15/07/2011 e foi devolvido em 09/06/2011, conforme consta do verso do mesmo.

8 – Não sendo por isso titulo executivo, por não ter sido apresentado a pagamento nos oito dias seguintes à data de emissão.

9 – A considerar-se o cheque como documento particular, teria que ser alegada a relação material subjacente.

10 – E a relação subjacente invocada pela exequente, foi por ela própria negada na contestação à oposição à execução.

11 – Não sendo possível, em, sede de contestação à oposição, vir alterar esses factos, por tal constituir alteração da causa de pedir, inadmissível por falta de acordo das partes.

12 – Mesmo que se admitisse estarmos perante a execução de um documento particular com alegação da causa subjacente, sendo essa causa impugnada na oposição à execução, sempre o processo teria que prosseguir para julgamento, para verificação de tais factos.

13 – Foram violadas as disposições constantes dos artigos 45º, 55º, 272º e 273º, todos do CPC. ».

 

5. Pela Recorrida não foram apresentadas contra-alegações.

6. Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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II. O objecto do recurso[1].

A questão a decidir no presente recurso de apelação consiste em saber se o cheque dado à execução constitui título executivo relativamente ao executado.


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III – Fundamentos

III.1. – De facto:

                 Com base na certidão junta a fls. 96 e 99, mostram-se assentes os seguintes factos[2]:

1. A exequente deu à execução o cheque n.º 9497363041, datado de 15.07.2011, no montante de €9.000,00 emitido à sua ordem e sacado sobre a conta n.º 40064086683 domiciliada na Caixa de Crédito Agrícola, agência de Meirinhas.

2. Apresentado o cheque a pagamento veio o mesmo a ser devolvido na compensação do Banco de Portugal com a menção “por falta de provisão por mandato do Banco sacado”.

3. Do rosto do referido cheque, nas menções impressas originariamente no mesmo, consta o nome do ora executado seguido das letras “SL”, e no local destinado à assinatura consta manuscrito o nome “B (…)”.

4. No requerimento executivo na parte destinada ao “objecto da execução”, a exequente indicou: “Pagamento de quantia certa – dívida comercial”, e no “título executivo” indicou “cheque”.

5. Na parte destinada aos factos, a exequente preencheu o requerimento executivo nos seguintes termos, na parte que releva: “O executado, no exercício da sua actividade comercial, comprou à exequente diversas mercadorias do seu comércio, tendo as mesmas sido recebidas e aceites pelo executado, sem nunca este ter apresentado quaisquer reclamações quanto às mesmas.

Para pagamento do fornecimento das mencionadas mercadorias, propriedade da exequente, o executado entregou o cheque n.º 9497363041, no valor de €9.000,00 (…).

Acontece que, quando apresentado para pagamento em tempo útil conforme acordado entre a exequente e o executado, o referido cheque veio devolvido por mandato do banco sacado com a menção de revogado por falta de provisão”.


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III.2. - O mérito do recurso

III.2.1. Da legitimidade do executado

Tendo o executado/Opoente invocado ser parte ilegítima na execução, a Mm.ª Juíza “a quo” julgou improcedente tal arguição, nos seguintes termos: «No caso dos autos, pela análise do título dado à execução, constante do documento de fls. 5 do processo principal de execução de que os presentes são apenso, verificamos que o executado figura no mesmo como devedor.

Assim sendo, dúvidas não temos de que o executado é parte legítima na execução.

Pelo exposto, julgo improcedente por não provada a excepção da ilegitimidade invocada pelo executado, e, em consequência, julgo-o parte legítima na execução

Será que é assim?

Pensamos que não.

Efectivamente, conforme é consabido, a acção executiva tem na sua base a existência de um título executivo pelo qual se determinam o seu fim e os respectivos limites subjectivos e objectivos (artigo 45.º, n.º 1, do CPC).

O título executivo é, portanto, “a peça necessária e suficiente à instauração da acção executiva ou, dito de outra forma, pressuposto ou condição geral de qualquer execução. Nulla exsecutio sine titulo”[3]. Por isso, o mesmo tem que ser documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia para servir de base ao processo executivo[4].

Ora, os documentos aos quais a lei reconhece tal eficácia encontram-se taxativamente elencados no artigo 46.º do Código de Processo Civil, do qual constam as espécies de títulos executivos que podem servir de base à execução, onde, para além dos ali referidos, se contam aqueles a que, por disposição especial, seja atribuída tal força executiva (alínea d) do citado normativo).

Apesar de ali não constarem expressamente, os cheques, as letras e as livranças, continuaram a ser entendidos como títulos executivos quando reúnem os requisitos de exequibilidade previstos nas respectivas Leis Uniformes.

Ora, a Exequente intentou a acção executiva de que os presentes autos são apenso, com fundamento em ser portadora de um cheque - que identificou e juntou com o seu requerimento executivo, afirmando que o mesmo foi apresentado em tempo útil -, emitido pelo Executado e por este entregue para pagamento de mercadorias fornecidas pela Exequente, cheque esse que veio devolvido por falta de provisão, sendo ainda que, apesar de interpelado pela Exequente, o exequente não pagou a quantia titulada pelo cheque.

Assim sendo, podemos concluir que a Exequente se socorreu, em primeiro lugar, da acção cambiária ou cartular directamente emergente do cheque.

É certo que, adicionalmente, alegou que o título teve origem no pagamento de transacções comerciais havidas entre as partes. Porém, esta alegação, face ao demais contexto do requerimento executivo, do qual consta como título executivo o cheque, seria até desnecessária, porquanto o cheque não foi dado à execução enquanto documento particular.

Na verdade, “[r]elativamente aos fundamentos da obrigação exequenda e à suficiência do título executivo, há que distinguir entre as obrigações abstractas e as causais. Aquelas primeiras dispensam a alegação de qualquer causa de aquisição da prestação, dado que a exigência desta não está dependente da demonstração de qualquer causa debendi. Assim, sempre que o título executivo respeite a uma pretensão abstracta, o título executivo é suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste qualquer causa debendi. (…) Se, por exemplo, o direito de crédito se encontra titulado por uma letra ou uma livrança, o exequente só tem o ónus de apresentar esse título de crédito, porque ele incorpora a relação cambiária que constitui causa de pedir do pedido executivo”[5].

Daí que, conforme a Exequente configurou inicialmente a sua pretensão executiva, a alegação daquela factualidade respeitante à causa ou relação jurídica subjacente à emissão do título, nem sequer assumia relevância.

Efectivamente, tendo a mesma apresentado a obrigação exequenda como uma obrigação abstracta, consubstanciada na relação cambiária documentada no título cambiário – o cheque de que era portadora -, para a procedência da sua pretensão executiva apenas seria necessário que ocorresse a validade e eficácia dessa relação cambiária.

Esta ocorre, como é sabido, e a Exequente invocou ter-se verificado no caso em apreço, quando alguém emite um cheque, o que faz apondo nele a sua assinatura na qualidade de sacador, e preenchendo aquele documentos os requisitos a que aludem os artigos 29.º, 40.º e 41.º da LUCH.

Mas, para além disso, relativamente ao cheque, passou genericamente a entender-se que o mesmo, ainda que não contenha todos os requisito enquanto título cambiário, é também título executivo como quirógrafo da obrigação assumida pelo subscritor, para tanto bastando que o exequente alegue a relação subjacente.

E é só neste sentido que importa considerar a invocação de causa para emissão do cheque, efectuada pela Exequente.

Como é consabido, com a reforma processual de 1995, o elenco dos títulos executivos foi significativamente ampliado pela predita disposição legal, passando a conferir-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável em face do título, ou a obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto determinado (cfr. artigo 46.º, n.º 1, alínea c) do CPC).

Efectivamente, conforme decorre do preâmbulo do DL n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro, tal ampliação do elenco dos títulos executivos visou “contribuir significativamente para a diminuição do número de acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial”.

E foi por esta via – de que o cheque, podia também ser título executivo enquanto documento particular subscrito pelo executado que faz presumir a existência de uma causa para a sua emissão -, que tal entendimento passou a ser claramente maioritário.

            Não contendo a Lei Uniforme relativa ao Cheque[6] uma definição de cheque, em face dos requisitos estabelecidos nos respectivos artigos 1.º a 3.º, «[n]a lição dos tratadistas, o cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita.[7]»

            Daqui resulta que, em conformidade com o disposto no artigo 3.º da LUCH, a emissão de um cheque tem na sua base duas relações jurídicas distintas mas ambas estabelecidas entre o respectivo emitente (o sacador, que neste caso não é o executado) e o Banco a quem é dirigido (o sacado): a relação cambiária e a relação de provisão.

            A primeira destas relações é a denominada convenção de cheque – acordo que a instituição de crédito (o banco) celebra com o cliente/sacador, pelo qual este, com recurso ao cheque, levanta dinheiro ou efectua pagamentos a terceiro(s) à custa de fundos depositados naquela ou por ela disponibilizados[8] -, a qual é expressa ou tacitamente celebrada entre o cliente titular da conta e o banco, no momento em que este lhe concede os cheques dando-lhe o direito a dispor de fundos por esta via, e que do mesmo passo constitui uma modalidade de mandato específico, sem representação, com vista à realização dos actos jurídicos destinados ao pagamento do montante do cheque quando exista a referida ordem incondicionada de pagamento do montante nele inscrito.

            A segunda das sobreditas relações, prende-se com a existência na conta do emitente de fundos disponíveis, resultando da mesma que o cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador, o que vale por dizer que só quando se verifique esta relação de provisão é que o banco se obriga por via da convenção de cheque ao cumprimento daquela ordem, só nesse momento se podendo considerar perfeito o mandato e a emissão regular.

            Porém, por força da segunda parte do artigo 3.º da LUCH, a existência de fundos no banco à disposição do sacador não é pressuposto da validade do título apresentado como cheque, o qual não fica ferido de qualquer nulidade nos termos genericamente previstos no artigo 294.º do CC, assim se consagrando o princípio da autonomia da relação cambiária, quer relativamente à relação causal subjacente, quer às diversas relações extracartulares[9]

            De facto, o artigo 12.º da LUCH estabelece que o sacador garante o pagamento, na qualidade de emitente do cheque, o que acontece para facilitar a circulação do cheque enquanto meio de pagamento, por forma a tentar assegurar a boa fé dos respectivos portadores.

            Postas estas considerações gerais, vejamos, então quem tem legitimidade na execução fundada em cheque.

Nos termos do artigo 55.º, n.º 1, do CPC, que rege sobre a legitimidade do exequente e do executado, “[a] a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.

“Não se diz no preceito em causa que são partes legítimas, como exequente e executado, o credor e o devedor, respectivamente, mas aqueles que no título figurem nessas qualidades. O que vale por dizer que uma pessoa pode aparecer no título na posição de credor ou de devedor sem que seja realmente titular de um direito de crédito ou sujeito de uma obrigação. Apenas o título executivo faz presumir a existência de um crédito ou de uma dívida. (…) Afere-se assim a legitimidade, na acção executiva, através de um critério formal, diversamente do que ocorre na acção declarativa, onde se faz apelo a um critério substancial (…)”[10].

No caso dos autos, tendo o cheque sido emitido à ordem de «S(…), S.A.», a ora exequente, dúvidas não existem de que a mesma é parte legítima na presente execução.

Já quanto à legitimidade do executado, o mesmo não acontece porquanto, no caso dos autos, o ora executado não é manifestamente o sacador do cheque. De facto, o mesmo não o subscreveu já que no lugar da assinatura consta manuscrito o nome de uma senhora.

            Na verdade, atentas as sobreditas características do título quanto à literalidade e abstracção, e resultando do artigo 12.º da LUCH, sob a epígrafe, “Responsabilidade do sacador”, que o sacador garante o pagamento, considerando-se como não escrita qualquer declaração pela qual o sacador se exima a esta garantia, e não sendo o executado o sacador do cheque dado à execução, desde logo podemos concluir que não se verifica a exequibilidade do cheque contra ele com fundamento na relação cambiária porquanto não foi o mesmo que o assinou, ficando também e pela mesma razão, afastada a referida presunção da existência de uma dívida pela qual o mesmo fosse responsável, tendo emitido o cheque para seu pagamento, já que não o emitiu.

            Em suma, o executado não figura no cheque como devedor.

            Defende a exequente que “não obstante de não ter assinado o referido cheque, é titular da conta bancária sobre a qual foi sacado”, razão pela qual estaria obrigado solidariamente ao seu pagamento.

            Acontece, porém, que a relação dos obrigados cambiários encontra-se prevista no artigo 40.º da LUCH,            do qual decorre que “[o] portador pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados, se o cheque, apresentado em tempo útil, não for pago e se a recusa de pagamento for verificada” nos termos ali referidos.

            Ora, como vimos, o executado não é sacador do cheque, e não é endossante, como se constata pela simples apreciação do cheque junto aos autos.

            Será co-obrigado? Se assim for, diz-nos o artigo 44º da LUCH, sob a epígrafe, “Responsabilidade solidária”, que todas as pessoas obrigadas em virtude de um cheque são solidariamente responsáveis para com o portador, tendo o portador o direito de proceder contra essas pessoas, individual ou colectivamente, sem necessidade de observar a ordem segundo a qual elas se obrigaram.

            A exequente parece entender que só pelo facto de ser co-titular da conta, o executado é solidariamente responsável com a sacadora pelo pagamento do cheque dado à execução.

            Mas, salvo o devido respeito, sem razão, como tentaremos demonstrar.

            Efectivamente, a conta bancária solidária pode ser movimentada por qualquer dos respectivos titulares, indistinta ou isoladamente, ou seja, qualquer um deles, quer tenha sido o depositante ou seja apenas titular, tem a faculdade de exigir, por si só, a totalidade da quantia depositada, podendo fazer também, individualmente os depósitos.

Este é o regime que resulta da abertura de uma conta solidária. Portanto, naquilo que for omisso, caberá recorrer às regras gerais sobre obrigações solidárias, verificando-se, caso a caso, as adaptações que se mostrem necessárias[11].

Das regras gerais previstas nos artigos 512.º e seguintes do Código Civil[12] resulta desde logo que se algum dos depositantes solicitar a entrega da totalidade da quantia, a prestação efectuada pelo Banco libera-o da respectiva obrigação de restituição para com todos eles (cfr. art. 512.º do CC).

Consequentemente, a solidariedade das contas bancárias tem lugar, em regra, apenas para assegurar o interesse dos titulares das respectivas contas, precisamente pela possibilidade de cada um dos titulares poder receber a totalidade do saldo.

Deste regime decorre que a titularidade da conta pode nada ter a ver com a propriedade do montante monetário nela depositado[13].

Por isso, o que acontece nas contas solidárias é que se o dinheiro que ali é depositado for exclusivamente de um dos titulares, tal não impede que qualquer outro titular possa proceder ao seu levantamento, isto sem que o Banco tenha qualquer obrigação de obstar a esse levantamento, sob pena de estar a incumprir o contrato de depósito.

Mas, a propriedade do dinheiro depositado releva apenas nas relações internas entre os contitulares da conta, mas não para com o banco em causa[14].

O mesmo acontece para com terceiros, porquanto, estando a conta bancária solidária sujeita ao regime estabelecido nos referidos artigos 512.º e seguintes do CC, nos termos do artigo 516.º do CC, presume-se que os seus contitulares são credores solidários, comparticipando em partes iguais no crédito. Porém, por exemplo, se for apresentado um cheque a pagamento subscrito por um dos contitulares da conta, tendo a mesma provisão, aquele é pago independentemente da titularidade dos fundos disponíveis.

Na verdade, “há que distinguir entre titularidade da conta e propriedade das quantias depositadas mas pela presunção “tantum iuris”, aplicável às contas solidárias do artigo 516.º do Código Civil, na relação interna, os depositantes participam no crédito em partes iguais.

O regime da compropriedade é aplicável à comunhão de outros direitos, “ex vi” do artigo 1404.º do Código Civil (sem prejuízo do especialmente disposto para cada tipo de comunhão) sendo de o considerar para todas as situações de contitularidade de contas bancárias, razão porque também lhes é extensível a presunção de participação quantitativa igual ao que se refere o n.º 2 do artigo 1403.º”[15].

            Do que vimos de dizer decorre que, limitando-se a contitularidade da conta à "propriedade dos fundos comuns", ou seja, à solidariedade activa, tal não significa que só pela existência de uma conta bancária solidária possa transformar-se um dos seus titulares em co-titular das dívidas contraídas por um outro, porquanto apesar de os mesmos serem credores solidários perante a instituição bancária, tal não significa que sejam devedores solidários perante os outros contitulares, mormente por via da emissão de um cheque a sacar sobre a mesma.

            Efectivamente, o facto de um cheque ser pago a um terceiro, independentemente da titularidade dos fundos disponíveis numa conta solidária, não significa que a solidariedade da conta converta todos os seus titulares em devedores solidários perante o terceiro dos cheques sacados sobre ela. “Neste caso, ou seja, perante terceiros, pelo não­pagamento responde somente o emitente do cheque, não se estendendo essa responsabilidade aos demais titulares da conta conjunta e muito menos à conta”[16]. Ou seja, neste caso não há solidariedade passiva.

            Conclui-se, pois, que o contitular de uma conta solidária, só por via dessa qualidade, não é solidariamente responsável pelas dívidas tituladas por cheques sacados por outro contitular da mesma conta.

            Assim sendo, apesar de o nome do executado figurar no cheque dado à execução, não tendo sido ele a assiná-lo e, consequentemente, a dar a ordem de pagamento à entidade bancária, não pode considerar-se que o mesmo figure no referido título como devedor.

            Desta sorte, ao cheque em questão não se aplica o regime do reconhecimento unilateral de dívida previsto no artigo 458.º, n.º 1, do CC.

            Na verdade, é de presumir que o cheque emitido por um titular ou co-titular de uma conta, enquanto documento escrito, configura uma promessa unilateral de pagamento ou um reconhecimento de dívida. Porém, tal só assim é relativamente a quem assina o cheque.

            Efectivamente, de harmonia com o preceituado no artigo 458.º, n.º 1, do CC, "se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário", exigindo-se no n.º 2 que "a promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental".

            Consequentemente, da própria letra da lei resulta que só quem promete pagar ou reconhece a existência de uma dívida, está abrangido pela presunção legal de que o fez com uma causa, invertendo-se, por isso mesmo, o ónus de prova quanto à relação fundamental que deu origem a tal promessa ou reconhecimento de dívida (artigo 344.º, n.º 1, do CC).

            Ora, no caso em apreço, quem, por via da assinatura do cheque, o mesmo é dizer, da ordem de pagamento da quantia de 9.000,00€ à exequente, reconheceu a existência de uma dívida não foi o ora executado que figurava no cheque como titular da conta, mas sim a contitular da mesma conta, que o subscreveu.

            Como tal, não pode o executado considerar-se parte legítima na presente execução na qualidade de sacador do cheque, que havia sido inicialmente invocada no requerimento executivo pela exequente. E isto é assim quer a obrigação exequenda assente na obrigação cambiária ou na obrigação subjacente, o que, desde logo, prejudica a análise das demais questões colocadas pela exequente.

            De facto, em sede de contestação à oposição, afirmou a exequente que, afinal, por engano seu, invocou no requerimento executivo uma relação subjacente com o executado que não existia: a relação comercial era afinal com o filho do executado e com uma sociedade deste tendo o executado sido avalista de umas letras não pagas e tendo emitido o cheque dado à execução para pagamento dessas letras.

            Porém, a alegação de uma outra relação causal que não a invocada inicialmente no requerimento executivo não é admissível em sede de contestação à oposição. Por um lado, porque enquanto escritos particulares os cheques só podem ser título executivo desde que se verifiquem os requisitos de exequibilidade destes. Por outro lado, porque dando-se à execução um cheque como documento particular, então a sua exequibilidade imediata só será admissível, se o título cambiário mencionar a obrigação subjacente – o que não acontece no caso em apreço – ou, pelo menos, o exequente a indicar no requerimento inicial da execução por forma a permitir a defesa por parte do executado.

            Portanto, a contestação à oposição formulada pela Exequente configura uma verdadeira alteração da relação fundamental que havia inicialmente invocado existir quando deu o cheque à execução, a qual não é legalmente admissível porquanto se trata de uma nova configuração da relação causal.

            Mas, mesmo que assim não se entendesse, o cheque dado à execução continuava a não ser título executivo contra o executado mesmo com a nova relação causal invocada.

            De facto, mesmo que se demonstrasse que o executado foi avalista de letras não pagas, o certo é que o mesmo não assinou o cheque em questão, pelo que, não tendo avalizado o próprio cheque nos termos do artigo 25.º da LUCH, não é co-obrigado cambiário.

            A existir a sua responsabilidade nos termos invocados em sede de contestação à oposição, a Exequente terá que o alegar e demonstrar em sede declarativa.

            Pelo exposto, o recurso interposto pelo executado da sentença que determinou o prosseguimento da execução procede, o que determina a extinção da execução, por ilegitimidade do executado.


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III.3. Síntese conclusiva:

I - Em execução fundada na emissão de um cheque pelo executado, o mesmo não é parte legítima na execução nos termos do artigo 55.º, n.º 1, do CPC, se o cheque dado à execução não foi por ele assinado, e consequentemente não é o seu sacador.

            II - O facto de um cheque ser pago a um terceiro, independentemente da titularidade dos fundos disponíveis numa conta solidária, não significa que a solidariedade da conta converta todos os seus titulares em devedores solidários perante o terceiro dos cheques sacados sobre ela.

III - Assim, se o executado tiver apenas o seu nome impresso em cheque assinado por outro contitular de conta solidária, tal não determina que o mesmo tenha legitimidade como executado.

IV - Pretendendo a exequente alegar a causa subjacente à emissão de um cheque, a fim de que o mesmo seja título executivo enquanto documento particular tem que fazê-lo no requerimento inicial da execução, não podendo aí alegar uma causa e, em sede de oposição à execução, transmutá-la em uma nova relação jurídica causal.


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IV - Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida, e determinando-se, em consequência, a extinção da execução.

Sem custas.


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Coimbra, 18 de Dezembro de 2013

 Albertina Pedroso ( Relatora )

Carvalho Martins

Carlos Moreira


[1] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (na redacção aplicável aos autos) é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[2] Na decisão recorrida não foram considerados assentes quaisquer factos, fixação a que ora se procede nos termos do disposto no artigo 713.º, n.º 2, que manda aplicar ao acórdão o preceituado no artigo 659.º, n.º 3, ambos do CPC.
[3] Cfr. Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 13.ª Edição, Almedina, 2010, pág. 23, citando Chiovenda..
[4] Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, pág. 58.
[5] Cfr. Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, Lex, pág. 68.
[6] Resultante da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de Março de 1931, e doravante designada abreviadamente LUCH.
[7] Ferrer Correia e António Caeiro (Revista de Direito e Economia, Ano IV, n.º 2 Julho/Dezembro de 1978, pág. 457), que transcrevem a definição de cheque da autoria de Giorgio de Semo, in Diritto Cambiaro, Giuffrè, Milano, 1953, pág. 718.
[8] Na definição de Paulo Olavo Cunha, em anotação ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, n.º 4/2008, de 28 de Fevereiro, publicada nos Cadernos de Direito Privado, n.º 25, Janeiro/Março 2009, pág. 17.
[9] Cfr. José Maria Pires, O Cheque, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pág. 28.
[10] Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 13.ª edição, Almedina, 2010, pág.
[11] Cfr. Ac. STJ de 09-06-2009, Revista n.º 662/09 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[12] Doravante abreviadamente designado CC.
[13] Cfr. Ac. STJ de 05-06-2008, Revista n.º 1361/08 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[14] Cfr. Ac. STJ de 14-10-2008, Revista n.º 1803/08 - 6.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[15] Cfr. Ac. STJ de 22-02-2011, Revista n.º 1561/07.9TBLRA.C1.S1 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[16] Cfr. Ac. TRE de 19-03-2009, processo n.º 1545/08.0TBSTR.E1, e, no mesmo sentido, Ac. TRC de 29-05-2001, processo n.º 260/2001, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.