Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
53/13.1JACBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ESCUSA
JUIZ
Data do Acordão: 09/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (2.ª SECÇÃO DA VARA DE COMPETÊNCIA MISTA)
Texto Integral: S
Meio Processual: PEDIDO DE ESCUSA
Decisão: PROVIDO O PEDIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 43.º, N.º 4, DO CPP
Sumário: I - Constatando-se a coincidência da vítima em dois processos [PCC n.º 814/12.9JACBR e PCC n.º 53/13.1JACBR], a contemporaneidade entre os factos julgados e «sentenciados» no primeiro por Colectivo presidido pelo requerente da escusa e os em questão no segundo, bem como a similitude da respectiva natureza, decorrendo das actas juntas [PCC n.º 814/12.9JACBR], haver, então, sido determinado pelo Colectivo que a perícia à menor tivesse em conta as declarações por esta prestadas para memória futura em ambos os processos e bem assim as avaliações psicológicas destes constantes com vista a permitir uma «avaliação global e profunda do depoimento da menor», e resultando da fundamentação da decisão de facto a relevância decisiva que as ditas declarações [suportadas pelos elementos de avaliação pericial em questão], assumiram na formação da convicção do Tribunal e, deste modo, na decisão que conduziu à condenação do arguido, vindo as mesmas [declarações para memória futura] arroladas como prova no âmbito do PCC n.º 53/13.1JACBR, mostra-se fundamentadamente comprometida a intervenção do requerente no julgamento a efectuar nestes autos.

II - No contexto descrito, estando inexoravelmente afectada a dimensão objectiva da imparcialidade do juiz, tem plena justificação o deferimento do pedido de escusa.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. A..., Mm.º Juiz de Círculo em exercício de funções na Vara de Competência Mista de Coimbra – 2.ª Secção, veio, ao abrigo do disposto no artigo 43.º do Código de Processo Penal, formular pedido de escusa de intervir no Colectivo que irá proceder ao julgamento do Processo Comum Colectivo n.º 53/13.1JACBR, no seio do qual reveste a qualidade de arguido D..., sendo que está «designado» para ao mesmo presidir.

Para o efeito invoca: «Os presentes autos encontram-se em fase de julgamento, estando o ora signatário designado para presidir ao Tribunal Colectivo.

Todavia, o ora signatário presidiu ao Coletivo que julgou B... no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 814/12.9JACBR.

Em ambos os processos julgam-se factos que têm por vítima a menor C... filha do ora arguido e neta do citado B.... Os factos são contemporâneos entre si, sendo que a prova dos mesmos assenta essencialmente nas declarações para memória futura da menor prestadas em cada um dos processos.

Ora, no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 814/12.9JACBR o Tribunal Colectivo entendeu que deveria ser avaliada a personalidade da menor e a veracidade das declarações prestadas em ambos os processos. Daqui resulta que já no âmbito daquele processo tais declarações e a postura da menor foram tidas em conta, tendo o tribunal concluído no Acórdão proferido que a menor em ambas as situações falou a verdade e que os factos por si relatados ocorreram efectivamente.

Esta conclusão limita a atuação do ora signatário no julgamento a realizar nestes autos uma vez que foi feita uma avaliação da menor e das declarações por si prestadas que condicionam irremediavelmente a sua avaliação nos presentes autos.

Estamos assim perante uma situação que coloca seriamente em causa a imparcialidade do ora signatário para o julgamento dos factos objecto de apreciação nestes autos».

A instruir o pedido junta certidão com as peças processuais pertinentes, concretamente as actas respeitantes ao julgamento, relatório pericial efectuado à menor no decurso do julgamento e o acórdão proferido, elementos, estes, referentes aos autos de Processo Comum Colectivo n.º 814/12.9JACBR, fazendo-se o incidente, ainda, acompanhar dos identificados autos de Processo Comum Colectivo n.º 53/13.1JACBR.

II.

O princípio fundamental da independência dos Tribunais [artigo 203º da CRP] relaciona-se com a caracterização dos mais elementares direitos dos cidadãos e tem como corolário o princípio da imparcialidade, definido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem [artigo 10º], proclamada, igualmente, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem [artigo 6.º, n.º 1].

A garantia de independência dos Tribunais tem tradução na independência dos Juízes, bem como na obrigação, que sobre os mesmos impende, de imparcialidade.

A recente Lei da Organização do Sistema Judiciário, à semelhança da LOFTJ, em concretização do artigo 216.º da CRP, dispõe que os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei [artigo 4.º], reservando o Código de Processo Penal o Capítulo VI, do Título I, do Livro I, aos Impedimentos, Recusas e Escusas, como forma de garantir a máxima imparcialidade da jurisdição e, assim, a confiança por parte da comunidade na administração da justiça.

Nos termos do artigo 43.º do Código de Processo Penal:

1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando ocorrer o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

3. (…)

4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.

(…).

Naturalmente que o legislador não se pronuncia sobre o que pode integrar o motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, tarefa, a nosso ver, impensável, pela dificuldade em concretizar todas as circunstâncias idóneas a tal.

Será, pois, casuisticamente com recurso aos parâmetros, genericamente, delineados que se há-de decidir.

A propósito, escreveu Germano Marques da Silva Ao contrário do que sucede com os impedimentos e sucedia também no CPP de 1929, o CPP não enumera as causas geradoras de suspeição: utiliza uma fórmula ampla, abrangente de todos os motivos que sejam adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (art. 43.º, n.º 1).

Os motivos que podem gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz podem ser da mais diversa natureza. O CPP/29 reduzia-os todos a relações de parentesco, de interesse ou de inimizade que ligassem o juiz ou seus parentes ao assistente, ao ofendido ou ao arguido (…).

O CPP/87 utilizou técnica diferente da do CPP/29, mas as relações que neste constituem motivo de suspeição continuam naturalmente a ser motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz – [cf. Curso de Processo Penal, I, Editorial Verbo, 1994, pág. 198/199].

Por seu turno, ensina Figueiredo Dias, in DPP, 1.0, 320 “pertence”, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu.

Sobre o que denomina por teste subjectivo e objectivo da imparcialidade, refere Pinto de Albuquerque O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção …

O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade (…) – [cf. Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 127/128].

Ainda a tal respeito afirma Cavaleiro de Ferreira que importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. “Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição (…) – [cf. Curso de Processo Penal, I, pág. 237/239].

Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e abstracção na formulação do conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz.

Foi, pois, para obviar a efeitos perversos, e como tal intoleráveis, do princípio do juiz natural, inscrito na Constituição, que o legislador lançou mão dos impedimentos, suspeições, recusas e escusas, acautelando, deste modo, a imparcialidade e isenção do juiz, igualmente com protecção constitucional, garantidas como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão justa, mas também como pressuposto objectivo da sua percepção externa pela comunidade (…) – [cf. Manuel Simas Santos e Leal – Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3.ª edição, pág. 304].

No caso em apreço afigura-se-nos incontornável ocorrer causa que impede o requerente de presidir/participar no Colectivo que irá realizar o julgamento dos autos identificados supra [Proc. 53/13.1JACBR].

Na verdade, constatando-se a coincidência da vítima em ambos os processos [PCC n.º 814/12.9JACBR e PCC n.º 53/13.1JACBR], a contemporaneidade entre os factos ali julgados e «sentenciados» por Colectivo presidido pelo ora requerente e os em questão no PCC n.º 53.13.1JACBR, bem como a similitude da respectiva natureza, decorrendo das actas juntas [PCC n.º 814/12.9JACBR], haver, então, sido determinado pelo Colectivo que a perícia à menor tivesse em conta as suas declarações prestadas para memória futura em ambos os processos e bem assim as avaliações psicológicas destes constantes com vista a permitir uma «avaliação global e profunda do depoimento da menor», resultando da fundamentação da decisão de facto a relevância decisiva que as mesmas [suportadas pelos elementos de avaliação pericial em questão], então, assumiram na formação da convicção do Tribunal e, assim, na decisão que conduziu à condenação do ali arguido, vindo as mesmas [declarações para memória futura] arroladas como prova no âmbito do PCC n.º 53/13.1JACBR mostra-se, a nosso ver, fundamentadamente comprometida a intervenção do requerente no julgamento destes autos.

É, pois, a dimensão objectiva da imparcialidade que se encontra definitivamente em crise, posto que a decisão do Colectivo, presidido pelo requerente, – cuja bondade não nos cabe apreciar - no caso credibilizando as declarações da menor, não se cingiu às declarações prestadas naqueles autos, procedendo, antes, a uma ponderação conjunta, tendente a uma «avaliação global e profunda do depoimento da menor», suportada pelos mesmos exames periciais.

Digamos que os delineados contornos da intervenção do ora requerente no PCC n.º 814/12.9JACBR integram a previsão do n.º 2 do artigo 40.º reportado ao seu n.º 1, vivendo «paredes meias» – ainda que não literalmente – pelo menos tendo em conta o espírito subjacente com a figura do impedimento.

Podemos, perante o quadro traçado, sem reserva afirmar que a intervenção do requerente no julgamento dos factos em questão no PCC n.º 53/13.1JACBR será de afastar porquanto acerca de uma dimensão da maior relevância na formação da convicção – donde para o sentido da decisão - já anteriormente se pronunciou, aspecto que, no mínimo, o legislador quis evitar através do incidente de escusa [cf. artigo 43.º, n.º 1 e 2 do CPP], não se nos afigurando isento de dúvida que a «situação» não pudesse ser mesmo vista ao nível do impedimento, ainda que se reconheça, pelo menos numa primeira abordagem, ser, para uma tal solução, estreito o lastro assente na letra da lei.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar procedente o pedido de escusa formulado pelo requerente Mm.º juiz titular do Proc. Comum Colectivo n.º 53/13.1JACBR da extinta Vara de Competência Mista de Coimbra – 2.ª Secção para presidir/intervir no respectivo julgamento, o qual deverá ser realizado pelo Mm.º juiz que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substituí-lo [artigo 46.º do CPP]

Sem tributação

Coimbra, 24 de Setembro de 2014

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)