Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3257/11.8TJCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
Data do Acordão: 05/28/2013
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COIMBRA 4º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 186 CIRE, 64, 72, 74 CSC
Sumário: 1 - Demonstrados factos que integrem qualquer uma das diversas situações taxativamente previstas nas várias alíneas do artigo 186.º, n.º 2, do CIRE, a insolvência é culposa, não admitindo a prova do contrário, ainda que se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa dos administradores para a insolvência.

2 - Porém, o facto de os gerentes, de facto ou de direito, não poderem ilidir a presunção de que o seu comportamento de dissipação de bens da requerida foi culposo, não obsta a que invoquem factos que demonstrem que não houve da sua parte qualquer comportamento dissipador do património, ou qualquer outro que fosse causal da situação de insolvência que veio a ser decretada.

3 - Efectivamente, apesar de estarmos perante presunções inilidíveis de actuação culposa, a lei reporta-se claramente à actuação (ou omissão) dos administradores de direito ou de facto.

4 - Por isso, se o último gerente da Insolvente, não tinha sequer tal qualidade, nem de direito nem de facto, à data em que as actuações da então gerente que conduziram à situação de insolvência ocorreram, não pode ser afectado pela qualificação da mesma como culposa, por factos que não praticou.

5- Nesse caso, falha o primeiro pressuposto previsto no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE para a qualificação, e que é a existência de uma actuação do gerente de facto ou de direito.

Decisão Texto Integral: Recurso próprio, tempestivo e recebido no efeito devido, nada obstando ao respectivo conhecimento.

******

Considerando a simplicidade da questão a decidir, a mesma será julgada sumariamente pela Relatora nos termos dos artigos 700.º, n.º 1, alínea c), e 705.º, ambos do Código de Processo Civil[1].

I – RELATÓRIO

1. Por apenso aos autos em que foi declarada insolvente E (…) Ld.ª, pendentes no 4.º Juízo Cível de Coimbra, o Administrador da Insolvência e o Ministério Público, apresentaram parecer no sentido de se mostrar verificado o preenchimento das situações previstas no artigo 186.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alíneas a), e b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2], concluindo que a insolvência dos autos deve ser qualificada como culposa, devendo ser afectados pela qualificação da insolvência os sócios-gerentes A (..) e J (…) .

2. Notificada a devedora e citados os referidos sócios-gerentes, apenas a sócia-gerente A (…) deduziu oposição à referida qualificação da insolvência, aduzindo que foi nomeada como membro do órgão social a 17 de Agosto de 2011 e renunciou à gerência em 14 de Setembro de 2011 e que no ano de 2011 foram intentadas duas acções em que era requerida a insolvência da dita sociedade, nas quais ocorreu a desistência da instância. Adianta que à data da declaração de insolvência não eram conhecidos quaisquer bens e que o próprio administrador de insolvência reconheceu que para o não depósito das contas dos exercícios dos anos de 2009 e 2010 poderá ter contribuído a eventual renúncia do técnico oficial de contas. Acrescenta que as viaturas identificadas nos autos têm mais de dez anos e grande desgaste, ainda estão registadas em nome da insolvente. Conclui que nada permite determinar o momento a partir do qual deveria ser requerida a insolvência, ou qualquer comportamento que tenha criado ou agravado a situação de insolvência, pelo que pugna pela improcedência da qualificação da insolvência como culposa.

3. Foi proferido despacho saneador tabelar no qual se consideraram verificados os pressupostos processuais, não se tendo procedido à selecção da matéria de facto assente e da base instrutória.

4. Realizou-se a audiência de julgamento com observância do formalismo legal, tendo a matéria de facto merecido a resposta constante da respectiva acta, que não mereceu qualquer reclamação, e em seguida foi proferida sentença com o seguinte segmento decisório:

«- Qualificar a insolvência de “E (…), Lda.” como culposa;

- Declaro afectados por tal qualificação A (…) sócia e ex-gerente da insolvente, residente (…) Coimbra e J (…) gerente da insolvente, residente (…) Setúbal;

- Decreto a inibição dos referidos AA (…) e J (…)para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 (três) anos;

- Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos mencionados A (…) e J (…) e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos».

5. Inconformado com a sentença proferida J (…)  interpôs o presente recurso de apelação formulando as respectivas conclusões, invocando, em síntese, que sendo manifesto que o Recorrente não era gerente, à data dos factos que fundamentaram a qualificação da insolvência como culposa, não pode ser afectado por tal qualificação.     

6. O Ministério Público não apresentou contra-alegações.

7. Tudo visto, cumpre decidir.


*****

II. O objecto do recurso[3].

A única questão submetida a apreciação no presente recurso de apelação, é a de saber se, em face da matéria de facto dada como provada, a insolvência deve ou não qualificar-se como culposa relativamente ao Recorrente J (…)


*****

III – Fundamentos

III.1. Questão prévia

Junção de documento:

Invocando que a Mm.ª Juiz a quo imputou ao ora Recorrente comportamentos que o mesmo não praticou, e que fundaram a decisão que o considerou afectado pela qualificação da insolvência, requereu o Apelante a junção aos autos de cópia de um contrato de trabalho para atestar que não foi o mesmo quem o celebrou em representação da requerida.

Vejamos, pois, se tal documento deve ou não ser admitido.

É consabido que os documentos são meios de prova cuja exclusiva função é a de demonstrar os factos (artigo 341.º do Código Civil), daí que a sua junção, em regra, deva ser efectuada na fase instrutória da causa, como decorre do disposto no artigo 523.º do CPC.

Porém, tal junção também é passível de ser efectuada no âmbito do recurso de apelação em que nos movemos, quando se verifique alguma das situações prevenidas no artigo 693.º-B do CPC, do qual resulta que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 524.º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância e nos casos previstos nas alíneas a) a g) e i) do n.º 2 do artigo 691.º”.

Este preceito foi aditado pelo DL n.º 303/07, de 24 de Agosto, vigorando para os processos instaurados a partir de 01-01-2008, pelo que, é aplicável aos presentes autos (artigos 11.º e 12.º, n.º 1, do citado DL).

Considerando que a situação em apreço não se insere na previsão final do preceito, a junção dos documentos apenas será admissível no caso de se verificar uma das situações excepcionais previstas no artigo 524.º do CPC, ou de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido em primeira instância.

Nestes termos, a situação em apreço é semelhante àquela a que anteriormente se referia o artigo 706.º, cujo n.º 1, 2.ª parte, continha disposição em tudo idêntica à actual, que apenas permitia às partes juntarem documento com as alegações “no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”, no âmbito da qual era entendimento pacífico que os documentos oferecidos pela parte na fase de recurso só seriam atendíveis se fossem destinados à prova de factos fundamentais da acção, e a sua junção tempestiva não tivesse sido possível; se fossem destinados à prova de factos que se tivesse tornado necessário demonstrar em consequência de ocorrência ou evento posterior aos articulados; ou ainda se pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, só então se tivesse tornado necessário demonstrar factos com cuja relevância processual a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida, mormente quando a decisão assentasse em meio probatório não oferecido pelas partes, ou em fundamento jurídico com cuja aplicação ou interpretação estes não podiam ter contado[4].

Na verdade, este entendimento do preceito tem por fundamento a consabida constatação de que os recursos visam reapreciar, com vista a confirmar, modificar, revogar ou anular, as decisões recorridas e não a criar decisões sobre matéria nova, razão pela qual, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso se debruça apenas sobre as questões que já foram submetidas à apreciação do Tribunal recorrido.

Por isso mesmo, o recurso não é o meio próprio para juntar documentos aos autos, já que a sede própria para a instrução da causa é o tribunal de primeira instância, donde resulta a natureza excepcional da admissão de documentos nesta sede, uma vez que a referida reapreciação das decisões deve ser efectuada em função dos meios de prova constantes dos autos no momento em que as mesmas foram proferidas, e não avaliar da sua bondade ou desconformidade em função de outros documentos novos que poderiam ter sido tomados em conta, mas não o foram no momento próprio por não terem sido presentes para apreciação do julgador da primeira instância, isto apesar de a parte saber, ou pelo menos dever saber, que os mesmos se destinavam a provar factos que estavam sujeitos a prova.

Este entendimento não sofreu alteração relevante no âmbito da actual redacção do artigo e, como tal, mantém-se actual para as situações que não foram objecto de inovação[5].

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 693.º-B, do CPC, apenas é admissível a junção de documentos no âmbito das alegações de recurso de apelação nestes tipos de situações:

- quando não tenha sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em primeira instância;

- quando a apresentação se tenha tornado necessária apenas por virtude do julgamento proferido pela primeira instância;

- finalmente, quando se impugnem decisões previstas nas alíneas a) a g) e i) a n) do n.º 2 do artigo 691.º CPC, situação que não importa ao caso em apreço porquanto a decisão sob recurso se subsume ao n.º 1 do preceito em referência.

Assim, vamos cingir-nos a avaliar se a situação sub judice se enquadra em alguma das outras referidas situações.

Quanto à primeira das invocadas possibilidades - documentos cuja junção não tenha sido possível até ao encerramento da discussão em primeira instância, ou seja, no caso dos autos e tendo havido audiência de julgamento, até ao momento das alegações orais sobre a matéria de facto[6] - o preceito abrange quer a superveniência objectiva do documento, quer a superveniência subjectiva decorrente, por exemplo, do desconhecimento da existência do documento, ou mesmo da junção de documentos que tenham sido formados posteriormente àquele momento temporal[7].

No entanto, os documentos supervenientes a que o preceito se refere, não podem ser todos e quaisquer documentos que se reportem a factos já constantes da instrução da causa.

Na verdade, considerando que os recursos se destinam ao controle da decisão impugnada, hão-de admitir-se apenas os que tenham relevância processual quanto a factos supervenientes estranhos ao objecto da lide ou que se destinem a pôr-lhe termo, como sejam, o documento comprovativo do óbito da parte; a confissão, desistência ou transacção realizada através de documento autêntico ou particular[8]; ou aqueles que, tendo havido impugnação da matéria de facto, se enquadrem na previsão da alínea c), do n.º 1, do artigo 712.º, isto é, aqueles documentos que, sendo novos e supervenientes, só por si, tenham força probatória suficiente para destruir a prova em que a decisão da primeira instância assentou[9].

Já quanto aos documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária apenas por virtude do julgamento proferido pela primeira instância, interpretando o preceito de harmonia com o seu carácter excepcional, não bastará para possibilitar a junção com este fundamento que a decisão seja desfavorável ao recorrente para que ele junte agora documentos cuja junção poderia ter efectuado com os articulados[10].

Ao invés, é necessário que estejamos perante uma decisão de primeira instância absolutamente surpreendente, com a qual não era razoável a parte contar face aos elementos probatórios constantes do processo, e que tal imprevisão da decisão proferida assente em razões de prova e não em razões jurídicas[11]. Na verdade, se a decisão configurar uma decisão-surpresa o meio próprio para a atacar é a invocação do cometimento da nulidade decorrente de, nesse caso, não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, quanto ao princípio do contraditório antes da decisão e não a junção de qualquer documento.

Ora, o contrato de trabalho cuja junção ora foi requerida foi celebrado entre a E (…)  e J (…), que foi a terceira testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento, e cujo depoimento fundou, para além do mais, o facto dado como assente sob o n.º 15, tendo afirmado, de acordo com a motivação expressa pela Mm.ª Juiz que foi contratado pela requerida para prestar trabalho na Roménia, num projecto da própria.

Considerando, porém, que a qualificação da insolvência pode abranger tanto os gerentes de direito como os que são gerentes de facto, e o teor da sentença proferida que, apesar de demonstrado que o ora Recorrente apenas foi nomeado gerente da insolvente em 14 de Setembro de 2011, o considerou abrangido pela qualificação da insolvência, mormente com o fundamento de que este celebrou o referido contrato de trabalho, o documento cuja junção ora foi requerida deve considerar-se necessário apenas em virtude da fundamentação expressa na sentença recorrida.

Como tal, admite-se a sua junção aos autos.


*****

III.2. – De facto

São os seguintes os factos considerados assentes na primeira instância:

1. E (…), Lda, sociedade por quotas, com sede na (...), concelho de Coimbra, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Coimbra sob o número único de pessoa colectiva e matricula n.º (...), foi declarada insolvente por sentença de 23 de Novembro de 2011, transitada em julgado, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. Tem por objecto social o estudo, elaboração de projectos, execução de redes de gás, tanto em GPL, com em gás natural, distribuição de gás canalizado e engarrafado bem como de todos os equipamentos ligados a instalações de gás, transporte de gás, gestão de urbanizações relativamente a consumo de gás.

3. Foi constituída em 1994, com o capital social de € 5.000,00.

4. Tem como sócios: (…), com uma quota de €1.250,00; (…)com duas quotas de € 1.250,00 cada; (…), com uma quota de € 1.250,00.

5. Desde 14 de Setembro de 2011 a gerência da sociedade pertence ao não-sócio J (…)

6. De 19 de Agosto de 2009 a 14 de Setembro de 2011, a gerência da sociedade pertenceu a A (…)

7. A sociedade obriga-se em todos os actos e contratos com a assinatura de um gerente.

8. Até 6 de Fevereiro de 2012, A (…) exerceu a administração da sociedade (…), S.A.", com o mesmo objecto social e com sede temporariamente no mesmo local da sede da insolvente.

9. A elaboração da contabilidade da empresa era da responsabilidade da Técnica Oficial de Contas (…), com a carteira profissional n.º (...), contribuinte fiscal n.º (...).

10. Encontram-se encerradas e depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas dos exercícios fiscais até 2008 inclusive.

11. Não estão elaboradas e aprovadas as contas dos exercícios fiscais de 2009 e 2010.

12. À data da decretação da insolvência a insolvente ainda não se encontrava encerrada em sede de IVA e IRC.

13. Em finais de 2009 a requerida começou a pagar salários de trabalhadores com atraso, tendo-se generalizado a falta de pagamento de salários na totalidade, a partir de Agosto de 2010.

14. No Verão de 2010, a requerida apresentava dívidas para com fornecedores.

15. A requerida angariou trabalhadores para a Roménia, ao seu serviço, tendo contratado (…) não pagando àqueles os respectivos salários desde meados de 2010.

16. Nas instalações da oficina da requerida, situada em Eiras, existiam máquinas de rebarbar, máquinas de soldar, prensas e ferramentas próprias para a construção de caldeiras.

17. Nas instalações do escritório a requerida tinha fotocopiadoras e outro material de escritório.

18. No dia 17 de Dezembro de 2010 a requerida retirou todo o material das instalações do escritório levando-o para local que não identificou, deixando de receber quaisquer contatos por parte dos trabalhadores.

19. No dia 17 de Dezembro de 2010 a requerida apresentava as portas da oficina fechadas.

20. Em nome da requerida estão registados os veículos automóveis com as matrículas: x(...) de marca Opel sobre o qual (…) Multimédia e de 13.10.2010 a favor da Fazenda Nacional; y(...)de marca Peugeot com registo de penhora datado de 28.04.2010 a favor de (…) Multimédia; w(...) de marca Keeway com penhora registada de 28.04.2010 a favor de I(…) Multimédia; k(...) de marca Volkswagen com penhora registada de 28.04.2010 a favor de I(…) Multimédia e penhora de 14.02.2011 a favor da Fazenda Nacional Serviço de Finanças de Coimbra; z(...) de marca Peugeot com registo de penhora datado de 28.12.2009 a favor de Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social IP, penhora de 28.04.2010 a favor de I(…)Multimédia Lda., e penhora de 14.02.2011 a favor da Fazenda Nacional Serviço de Finanças de Coimbra.

21. A Insolvência da E (…) foi requerida por J (…) em 9 de Setembro de 2011[12].

22. O contrato a que se alude em 15. foi celebrado em 19 de Novembro de 2010 pela sociedade, representada por A (…)[13].


*****

III.3. – O mérito do recurso

III.3.1. – Qualificação da insolvência

    Em face das conclusões recursórias formuladas pelo Apelante, impõe-se apreciar se, considerando a matéria de facto assente, deve o mesmo ser ou não afectado pela qualificação da insolvência da empresa E (…), Ld.ª, como culposa.

    Dispõe o artigo 186.º do CIRE, sob a epígrafe “Insolvência culposa” e quanto às pessoas colectivas, que:

«1. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

    a) Destruído, danificado, inutilizado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantendo uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do art. 188.

3.  Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.»

Trata-se de preceito inovador que efectua a regulamentação legal da insolvência culposa que ali se desenrola em 3 momentos.

Assim, no n.º 1, o legislador faculta uma noção geral do que é a insolvência culposa, que se aplica tanto às pessoas colectivas como às singulares, descrevendo a situação de facto que corresponde à qualificação. Do mesmo ressalta que a culpa simples foi excluída, pelo que, são requisitos para a qualificação da insolvência a actuação com dolo ou culpa grave. Note-se que estas modalidades de actuação culposa podem verificar-se tanto por via da criação da situação de insolvência, como pelo seu agravamento em consequência da actuação do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, no período temporal correspondente aos três anos anteriores ao processo de insolvência.

Portanto, em face do estatuído neste preceito legal, a insolvência é culposa quando se verificar simultaneamente que a mesma sobreveio a uma actuação ou omissão dolosa, ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores de facto ou de direito, que tenha criado ou agravado a situação de insolvência, e tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do respectivo processo.

Por isso, a resposta à questão de saber quem deve ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa resulta da conjugação do disposto no referido artigo 186.º, n.º 1, com o disposto no artigo 189.º, n.º 2, alínea a): ou seja, qualificada a insolvência de culposa, como efeito da mesma, devem identificar-se as pessoas afectadas pela qualificação, ou seja, os seus administradores de direito ou de facto.

O que deve entender-se por este segmento da norma «administradores de direito ou de facto»?

Com esta previsão o legislador não visa excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto, mas, ao invés, estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto[14].

Assim, por via desta importante previsão, a qualificação abrange quer os administradores de direito, ou seja, os administradores legalmente designados constantes do contrato de sociedade e do registo comercial; quer os administradores de facto, entendidos estes como as pessoas que praticam actos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem.

Efectivamente, os administradores da sociedade devem observar os deveres fundamentais previstos no artigo 64.º do CSC, e são responsáveis perante a sociedade nos termos previstos no artigo 72.º, mormente quando não tenham exercido o direito de oposição conferido na lei, e tal responsabilidade não pode ser excluída por cláusula em contrário do contrato que, se ali foi inserta, é nula por força do disposto no artigo 74.º do referido diploma legal.

Depois, o n.º 2 do artigo 186.º vem complementar a descrição abstracta operada pelo n.º 1, descrevendo taxativamente relativamente às pessoas colectivas um conjunto de situações que, pela sua simples verificação, determinam que a insolvência seja sempre considerada como culposa. Trata-se, portanto, dum elenco de casos que individualmente considerados, ou seja, cuja ocorrência de qualquer um deles, por si só, configura presunção inilidível de uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, na insolvência, sem possibilidade de prova do contrário.  

Por fim, o n.º 3 indica, também taxativamente, um conjunto de situações que declara constituírem presunção de culpa grave. Neste número, ao invés do que acontece no n.º 2, estamos, porém, perante presunções ilidíveis. Desta sorte, verificada uma das situações elencadas, pode existir demonstração e prova de que as mesmas não se verificaram por culpa grave dos administradores de facto ou de direito[15].

Considerando que o extenso elenco de situações cobertas pela presunção inilidível de culpa a que aludem as várias alíneas do referido n.º 2, cobre uma variedade muito diversa de casos que frequentemente estão na origem da insolvência das pessoas colectivas, vejamos, antes de mais, se os factos provados relativamente ao ora Recorrente integram a situação prevista na alínea a) do preceito, conforme foi considerado no parecer do Sr. Administrador.

Na verdade, se tal acontecer, a ilicitude da respectiva conduta encontra-se determinada pelo legislador, e a culpa grave presume-se, sem que exista qualquer possibilidade de justificação da mesma pelos seus autores, uma vez que qualquer uma das elencadas condutas é considerada pela sua simples verificação como sendo causalmente criadora ou agravadora da insolvência.

Porém, “a relação entre a violação dos deveres dos administradores especificados pelo n.º 2 do art. 186 e a verificação da situação de insolvência não é igualmente próxima em todos os casos. Algumas vezes sancionam-se condutas que, quando adoptadas, terão normalmente como consequência (mais ou menos) directa ou previsível (segundo um juízo de adequação social-normativo) a insolvência (por exemplo, na hipótese da al. a) ou g)).

Mas em diversos outros casos, o que está em jogo é a reprovação de comportamentos que não conduzem por si, necessariamente, à situação de insolvência, requerendo-se a verificação de outros factores, algumas vezes fortuitos, para que ela ocorra (assim, v.g., nas al. d) ou f)). Por último, estão também em causa situações de responsabilidade por omissões, sendo que delas também não deriva, por si e infalivelmente, a insolvência (atente-se nas al. h) e i)).

(…) Assim, na al. d) sanciona-se como culposa a insolvência perante a mera disposição dos bens do devedor em proveito pessoal (sendo que essa disposição é susceptível até de ter tido uma contrapartida idónea para a sociedade). Do mesmo modo, na al. h) crisma-se de culposa a insolvência perante o simples incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada de que resulte prejuízo para a compreensão da situação financeira ou patrimonial do devedor. No fundo, analogamente, a al. b) do n.° 3 do art. 186 presume logo culpa grave na insolvência quando as contas anuais não foram elaboradas no prazo legal, submetidas a fiscalização ou depositadas na conservatória. Nenhum destes comportamentos autoriza com segurança a ilação de que dada insolvência radica na sua adopção. A infracção de uma disposição de protecção pode portanto corresponder a um delito de perigo abstracto. Nestes casos é certamente compreensível o estabelecimento de uma presunção de culpa”[16].

    Ora, a propósito do preenchimento do comportamento previsto na alínea a) do n.º 2, expendeu-se na sentença recorrida que:

«Apurou-se posteriormente que a requerida possuía em seu nome diversos automóveis, todos eles penhorados. Além destes, os únicos bens móveis que lhe são conhecidos consistem na diversa maquinaria que era utilizada na construção das caldeiras, que se encontrava nas instalações da oficina da requerida, bem como o material de escritório. Aquela maquinaria foi ocultada pela requerida, pois não mais foi vista a oficina a laborar, desde finais de 2010, nem se sabe o destino dado às máquinas. Do mesmo modo foi removido todo o material de escritório que a requerida possuía, pela sócia da requerida A (...), não obstante à data de tal acontecimento a mesma já não ser a gerente mas sim o sócio J (…), que não podia desconhecer aquele comportamento. O material de escritório foi removido e levado para local incerto, também em finais de 2010, coincidindo com o fecho das portas do escritório e oficina, sem que qualquer justificação tivesse sido dada aos trabalhadores da requerida e bem assim aos que possuíam salários em falta.

Tal material é património da devedora, que foi ocultado, uma vez que só assim se pode interpretar o que sucedeu a todo o material existente no escritório, quando foi removido para local desconhecido e bem assim, às máquinas da oficina, com o fecho das portas desta, que não mais voltou a laborar. Desconhece-se o que aconteceu às máquinas e material de escritório, sabendo-se apenas que tais bens possuíam valor monetário, não concretamente apurado, e eram naturalmente uma parte substancial do património da requerida, uma vez que não lhe eram conhecidos outros bens móveis ou imóveis além dos veículos automóveis penhorados, como a mesma veio comprovar. Com a ocultação daqueles bens, verificou-se o preenchimento da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, e nessa medida é a insolvência considerada culposa.

Portanto, demonstrada a verificação da previsão legal, a insolvência da devedora E (…) – Ld.ª, já seria sempre legalmente considerada como culposa, mesmo que não se verificasse qualquer uma das outras apontadas situações.

Assim sendo, inelutavelmente, não podem os seus gerentes de direito ou de facto, com sucesso, invocar factos que desculpem a respectiva actuação legalmente considerada ilícita e culposa pela sua simples verificação.

Na verdade, a norma em referência tem um fim claramente preventivo, determinando a inadmissibilidade legal de ilisão da presunção nos casos ali referidos a fim de dissuadir a prática ou omissão de condutas que, segundo o que a experiência nos diz, são susceptíveis de ocasionar insolvências e estão habitualmente intimamente ligadas com tal desfecho da vida societária. É isso mesmo que justifica, nestes identificados casos do n.º 2 do preceito, e por razões diversas, a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta legalmente censurada aos administradores e a concreta insolvência ocorrida, estando legalmente vedada a prova em contrário dos referidos factos, ou seja, sendo a insolvência culposa mesmo quando concomitantemente se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa para a insolvência.

Porém, como é bom de ver, o facto de os gerentes não poderem ilidir esta presunção de que o seu comportamento de dissipação de bens da requerida foi culposo, não obsta a que invoquem factos que demonstrem que não houve qualquer comportamento dissipador do património da sua parte, ou qualquer outro que fosse causal da situação de insolvência que veio a ser decretada.

Na verdade, precisamente porque a lei estabelece presunções, “é necessário avaliar a actuação concreta de quem for potencialmente atingível, em ordem a verificar a quem podem ser imputados os factos relevantes a considerar”[17].

Ora, no caso em apreço, conforme a Mm.ª Juiz expendeu na sentença recorrida, «o período temporal a ter em conta para efeitos do n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, é o decorrido desde finais de 2009 até finais de 2010, extensível até finais de 2011, data em que a requerida foi declarada insolvente», sendo que a este respeito mostra-se demonstrado que no dia 17 de Dezembro de 2010 a requerida retirou todo o material das instalações do escritório levando-o para local que não identificou, deixando de receber quaisquer contactos por parte dos trabalhadores.

Porém, mostra-se ainda assente que a sociedade E (…). tem como sócios: (…), com uma quota de €1.250,00; (…), com duas quotas de € 1.250,00 cada; (…), com uma quota de € 1.250,00, sendo que de 19 de Agosto de 2009 a 14 de Setembro de 2011, a gerência da sociedade pertenceu a A (…)e desde 14 de Setembro de 2011 a gerência da sociedade pertence ao não-sócio J (…).

Atenta esta materialidade, e não existindo qualquer outro facto que demonstre a existência de alguma relação entre o não sócio ora Recorrente J (…) e a sociedade, da qual se pudesse inferir que antes desta data o mesmo exercia, de facto, tais funções de gerência, não se alcança como pôde a Mm.ª Juiz concluir que «foi removido todo o material de escritório que a requerida possuía, pela sócia da requerida A (...), não obstante à data de tal acontecimento a mesma já não ser a gerente mas sim o sócio J (…), que não podia desconhecer aquele comportamento. O material de escritório foi removido e levado para local incerto, também em finais de 2010, coincidindo com o fecho das portas do escritório e oficina, sem que qualquer justificação tivesse sido dada aos trabalhadores da requerida e bem assim aos que possuíam salários em falta».

Efectivamente, esta conclusão não tem qualquer respaldo na matéria de facto que se encontra provada e tal só pode decorrer de lapso quanto ao ano em que o ora Recorrente começou a exercer funções na sociedade. Na verdade, ao invés, da conclusão que o segmento transcrito encerra, aquando da motivação da matéria de facto, a Mm.ª Juiz, reportando-se ao depoimento da já supra referida testemunha afirmando a sua razão de ciência por ter prestado trabalho para a requerida como soldador no ano de 2009, durante a primeira metade de ano e posteriormente entre Novembro e Dezembro de 2010, expressamente aduziu que a mesma «disse ainda ser do seu conhecimento pessoal, por tê-lo presenciado, o fecho das portas do escritório da requerida, em Dezembro de 2010 e bem assim da oficina, não tendo mais conseguido entrar em contato com os sócios ou gerente da requerida, nomeadamente para receber os salários em falta, bem como outros trabalhadores. Mais esclareceu que esteve presente no dia em que a sócia gerente Engenheira (…) estava juntamente com o Engenheiro (…) a remover todo o material do escritório, sem apresentarem qualquer justificação válida aos trabalhadores».

            Portanto, não houve qualquer intervenção do ora Recorrente, que nem sequer era sócio da sociedade, na remoção e dissipação de bens da mesma. O erro de apreciação existente decorre da afirmação de que aquando da remoção já era sócio-gerente J (…) que não podia desconhecer aquele comportamento. Como vimos, mostra-se provado que o mesmo não só não era sócio da sociedade, como só foi gerente a partir de 14 de Setembro de 2011, muito depois da ocorrência de tais factos.

            Desta sorte, quanto a ele não pode funcionar a qualificação da insolvência com este fundamento. Efectivamente, apesar de estarmos perante presunções inilidíveis de actuação culposa, a lei reporta-se claramente à actuação (ou omissão) dos administradores de direito ou de facto. Por isso, se o último gerente da Insolvente, não tinha tal qualidade à data em que os factos praticados pela então gerente ocorreram, não pode ser afectado pela qualificação da insolvência por factos que não praticou, porquanto falha o primeiro pressuposto previsto no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE e que é a existência de uma actuação do gerente de facto ou de direito.

Na verdade, a presunção legal depende da existência desta actuação e da qualidade específica de gerente de facto ou de direito, o que bem se compreende se atentarmos que é ao gerente que incumbe a gestão da vida societária, reflectindo-se os seus actos na esfera jurídica da sociedade.

            Avancemos, pois, para aquilatar se quanto ao Recorrente se verificam ou não os dois outros fundamentos de qualificação da insolvência que, desta feita, constituem meras presunções ilidíveis.

A este respeito, afirmou-se na sentença recorrida que:

«No caso em análise, é proposta a qualificação da insolvência culposa, pelo parecer do Sr. Administrador de Insolvência, por ter entendido que se verificaram as circunstâncias das alíneas a) do n.º 2 e alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE. (…)

A insolvência foi requerida por um credor da insolvente, o que demonstra que a requerida não tratou de cumprir a sua obrigação de apresentação à insolvência, não obstante a dificuldade evidente em cumprir as obrigações vencidas. Na verdade, a falta de pagamento de salários e subsídios de férias aos trabalhadores, protelada no tempo, bem como as dívidas à Segurança Social e a existência de dívidas fiscais de elevado valor, aliada ao facto de ter diversas ações executivas pendentes e não lhe serem conhecidos bens imóveis ou móveis, eram já reveladores da impossibilidade da requerida solver pontualmente as suas obrigações.

Por outro lado, resultou provado que desde 2009, a requerida começou a pagar com atraso os salários aos trabalhadores, tendo em meados de 2010 faltado ao pagamento de salários na totalidade. A gerente A (…) não desconhecia essa falta de pagamento de salários, bem como as restantes dívidas existentes ao fisco, à segurança social e a fornecedores, que já se protelavam no tempo, pelo que recaía sobre a mesma a obrigação de requerer a insolvência da sociedade. Não o fazendo contribuiu para agravar a situação de insolvência da requerida, desde logo pelas obrigações que se venceram posteriormente e que não foram cumpridas, agravando o passivo da requerida.

O gerente J (…) não obstante não desconhecer a situação da requerida ainda contratou um trabalhador para a Roménia, ao serviço da requerida, em Novembro de 2010, sabendo que se encontravam em dívida, desde Agosto de 2010, os salários dos trabalhadores que haviam sido contratados para a Roménia. Este facto é revelador do contributo para o agravamento da situação de insolvência da requerida, pois que, ainda contraiu outra dívida correspondente ao salário que não pagou a este trabalhador contratado em Novembro de 2010, o que só se pode atribuir à actuação, que se presume culposa, do gerente da J (…), nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE. Na verdade, ao invés de contratar um trabalhador em tal situação precária, sabendo que não conseguiria pagar-lhe a devida remuneração, uma vez que estavam em dívida os salários dos trabalhadores na Roménia, bem como de outros no país, sabendo da existência de avultadas dívidas ao fisco, à segurança social e a fornecedores, o gerente deveria ter requerido a insolvência desta e não o fez, agravando assim a situação do passivo da requerida. O nexo de causalidade entre a actuação dos gerentes e o agravamento da situação da insolvência da requerida, está patente, verificando-se a presunção de culpa grave de ambos. Presunção esta que não foi ilidida pelos gerentes A (…) e J (…)».

Ora, tendo presente a matéria de facto supra descrita e que já respigámos, uma vez mais não se compreende - a não ser, repete-se, por lapso quanto à data do início das funções de gerente do Recorrente -, como se conclui nos termos sobreditos quando está demonstrado que o mesmo apenas iniciou a gerência em 14 de Setembro de 2011, e a sentença se reporta a factos ocorridos em 2010. Mas, mais do que isso, conforme decorre do documento cuja junção este requereu aos autos, a contratação do referido trabalhador não foi feita por J (…), mas pela então sócia-gerente, A (…), em representação da sociedade. Por isso mesmo, não pode este ser responsabilizado por actuação que não foi de sua autoria nem ocorreu quando o mesmo, de alguma forma, podia ter intervenção na gestão da sociedade, o que, sublinha-se, não se tendo demonstrado qualquer prévia situação de gerência de facto, apenas pode situar-se a partir do referido dia 14-09-2011.

Finalmente, quanto à não apresentação à insolvência, o simples cotejo das datas afasta completamente o raciocínio expendido: a insolvência da sociedade foi requerida em 09-09-2011 e o ora Recorrente assumiu a respectiva gerência em 14-09-2011, portanto, já depois de a falência ter sido requerida por um credor da sociedade. Como assim, não pode concluir-se que a não apresentação em data anterior, se deveu a qualquer omissão do ora Recorrente.

Vejamos agora a questão do não encerramento das contas anuais. Disse a Mm.ª Juiz que «no que respeita à contabilidade da requerida, a mesma não apresentou os exercícios fiscais de 2009 e 2010, nem estão aqueles depositados na Conservatória do Registo Comercial. A requerida não cumpriu a sua obrigação de elaborar as contas anuais no prazo legal, nem as submeteu a fiscalização. Tal omissão ocorreu durante a gerência da sócia A (…) e leva-nos a elaborar as conclusões que se seguem.

Esta gerente não desconhecia a situação económico-financeira da sociedade, designadamente as suas dívidas e a impossibilidade de satisfazer o pagamento dos salários dos trabalhadores. Inclusive ocorreu a rescisão do contrato de vários trabalhadores da requerida no ano de 2010, como foi testemunhado.

A não apresentação das contas anuais de 2009 pela gerente A (…) e posteriormente pelo gerente J (…) quanto ás contas de 2010, levanta suspeitas de que ambos os gerentes pretenderam ocultar a real situação financeira da requerida, uma vez que tais contas iriam ser submetidas a fiscalização e permitia que se conhecesse a situação de insolvência que se instalava. Naturalmente a exigência da manter a contabilidade organizada, visa acautelar o interesse de que seja transparente a situação do activo e do passivo da fiscalizada.

Contudo, da análise dos factos provados, não resulta que se possa concluir que a situação de insolvência foi criada ou agravada pela omissão de apresentação das contas de 2009 e 2010, por parte dos gerentes mencionados. Assim, uma vez que não se verifica o nexo de causalidade entre a dita omissão de elaboração e apresentação das contas, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE e o agravamento da situação de insolvência da requerida, não obstante ocorrer o preenchimento desta alínea, não se poderá presumir culposa a actuação dos referidos gerentes».

Como vimos, quanto a este aspecto da falta de oportuna apresentação de contas, a Mm.ª Juiz concluiu - e bem, a nosso ver -, que não se verifica o nexo de causalidade entre tal omissão de apresentação das contas e o agravamento da situação de insolvência da requerida. Aduzir-se-á apenas que, mesmo que tal nexo de causalidade existisse, aplicam-se aqui mutatis mutandis as considerações supra efectuadas quanto aos demais fundamentos da qualificação: as contas de 2010 já deviam estar apresentadas à data em que o ora Recorrente assumiu as funções de gerente da sociedade, razão por que, tal omissão de apresentação tempestiva também não lhe seria imputável.

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, procede o presente recurso, porquanto, não sendo o ora Recorrente, gerente, de facto ou de direito, da sociedade à data em que foram praticados os actos que levaram à qualificação da insolvência como culposa, não pode ser afectado pela referida qualificação.


*****

III.4 - Síntese conclusiva:

I - Demonstrados factos que integrem qualquer uma das diversas situações taxativamente previstas nas várias alíneas do artigo 186.º, n.º 2, do CIRE, a insolvência é culposa, não admitindo a prova do contrário, ainda que se verifique a concorrência ou superveniência de elementos fortuitos que concorreram juntamente com a actuação dolosa ou culposa dos administradores para a insolvência.

II - Porém, o facto de os gerentes, de facto ou de direito, não poderem ilidir a presunção de que o seu comportamento de dissipação de bens da requerida foi culposo, não obsta a que invoquem factos que demonstrem que não houve da sua parte qualquer comportamento dissipador do património, ou qualquer outro que fosse causal da situação de insolvência que veio a ser decretada.

III - Efectivamente, apesar de estarmos perante presunções inilidíveis de actuação culposa, a lei reporta-se claramente à actuação (ou omissão) dos administradores de direito ou de facto.

IV - Por isso, se o último gerente da Insolvente, não tinha sequer tal qualidade, nem de direito nem de facto, à data em que as actuações da então gerente que conduziram à situação de insolvência ocorreram, não pode ser afectado pela qualificação da mesma como culposa, por factos que não praticou.

V - Nesse caso, falha o primeiro pressuposto previsto no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE para a qualificação, e que é a existência de uma actuação do gerente de facto ou de direito.


*****

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida, na parte em que considerou o ora Recorrente afectado pela qualificação da insolvência.

Sem custas. 


*****

                                                                                             

Albertina Pedroso ( Relatora )


[1] Doravante abreviadamente designado CPC.
[2] Doravante abreviadamente designado CIRE, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 22 de Julho, e com as alterações introduzidas pelo DL n.º 282/2007, de 7 de Agosto.
[3] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha.
[4] Cfr. neste sentido, a título meramente exemplificativo, os Acs. TRL de 11-01-2007, proc.º n.º 7496/2006-2, e mais recentemente, deste TRC de 22-05-2012, proc.º n.º 1407/07.8TBGRD.C1.
[5] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista a Actualizada, Almedina 2010, pág. 254.
[6] Entendido este momento processual como sendo a data em que o tribunal encerrou os debates - cfr. por todos, no sentido de que é este o momento a que lei se reporta com a expressão encerramento da discussão em primeira instância, Jorge Augusto Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 7.ª ed., Almedina 2008, pág. 370.
[7] Cfr. neste sentido, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, Almedina 2009, pág. 215.
[8] Cfr. neste sentido, autor, obra e local citado, e Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 98 e 99. Em sentido contrário, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 457, entendendo que se devem admitir como relevantes os factos supervenientes atinentes à matéria da causa.
[9] Cfr. neste sentido, Luís Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª Edição Aumentada e Reformulada, Almedina, pág. 123.
[10] Cfr. neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, págs. 532 a 534.
[11] Cfr. neste sentido, autor, obra, e local ora citado.
[12] Facto que se considera assente em face da certidão que antecede e porque tal releva para a decisão do presente recurso.
[13] Facto provado com base no documento junto com as alegações de recurso em separado.
[14] Cfr., neste sentido Carneiro da Frada, ob. e loc. citado.
[15] Cfr. neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, (Reimpressão) Quid Juris, 2009, pág. 610, e Manuel A. Carneiro da Frada, in A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, disponível no sítio da Ordem dos Advogados.
[16] Cfr. Carneiro da Frada, ob. e loc. citado.
[17] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. e loc. cit., pág. 618.