Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
389/12.9TBPCV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXECUÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
NULIDADE PROCESSUAL
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO
CREDOR HIPOTECÁRIO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.3, 195, 615 CPC, 334, 1346 CC
Sumário: 1. A omissão resultante da violação do princípio do contraditório constitui, não uma nulidade da sentença nos termos do art. 615º do CPC, mas uma nulidade processual, sujeita ao regime de arguição previsto nos arts. 195º e ss.

2. A função atribuída ao administrador pela al. f), do art. 1436º CC, de “realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns”, englobando os destinados a evitar a deterioração ou destruição dos bens, e podendo ter natureza material ou judicial, não abarca a obrigação de conclusão da construção do edifício, ainda que relativamente às partes comuns.

3. A não aceitação de uma proposta de entrega da fração hipotecada e de disponibilização para liquidação da quantia remanescente, não se mostra contraditória com a posterior instauração de ação executiva por parte do credor hipotecário, nomeadamente para efeitos de integrar um eventual abuso de direito por parte deste.

Decisão Texto Integral:                                                                                                

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

N (…) veio, por apenso à execução que contra si é movida pela C (…), S.A., deduzir oposição à execução, com os seguintes fundamentos, entre outros:

os contratos de mútuo que sustentam a execução foram celebrados pelo opoente com o escopo exclusivo de adquirir imóvel para habitação própria e permanente;

tendo a construção do imóvel sido financiada pela exequente, cujo empréstimo se encontrava garantido por hipoteca sobre o edifício e respetivas frações, no âmbito de execução movida contra a construtora veio a exequente a adquirir dez frações no edifício em causa;

a exequente nunca concluiu as 10 frações de que é proprietária, nem, na qualidade de administradora provisória do condomínio, diligenciou para a conclusão das partes comuns, encontrando-se o prédio inacabado, levando a entidade administrativa à eminente decisão de demolir o prédio;

ao intentar a presente ação executiva, a exequente atua em abuso de direito, devendo, em consequência, ser extinta a execução;

- a exequente coartou a possibilidade do oponente usar a fração em causa para o fim a que o levou a contratar os empréstimos aqui em execução;

- recusou a dação em cumprimento do imóvel;

- não concluiu a construção das 10 frações de que é titular;

- não diligenciou, na qualidade de administradora provisória do condomínio, as resoluções da CM de Vila Nova de Poiares para preservação da segurança e salubridade do edifício;

sendo a fração do opoente inabitável, está gorado o escopo que determinou a celebração dos contratos de mútuo e legitima a resolução dos contratos, em conformidade com o disposto no art. 437º do Cód. Civil ou a recusa das prestações;

assim, é legítimo ao oponente recusar o pagamento das prestações dos contratos de mútuo enquanto a exequente não cumprir a sua obrigação de conclusão das frações de que é titular e nas partes comuns do prédio, pelo que, também por este motivo a execução deve ser julgada extinta.

A exequente apresentou contestação no sentido da improcedência da oposição.

O juiz a quo, considerando reunirem os autos todos os elementos para o conhecimento do mérito, proferiu sentença a julgar improcedente a oposição, determinando o prosseguimento da execução.


*

Inconformados com tal decisão, os executados/oponentes dela interpuseram recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia - Cfr. art.º 615º n.º 1 al. d) do CPC.

2. O recorrente alegou que a exequente, na qualidade de administradora provisória do prédio não logrou pela conclusão das partes comuns do edifício nem pela conclusão das 10 frações que adquiriu ao construtor, o que impossibilitou que o recorrente pudesse habitar a sua fração.

3. A sentença recorrida é absolutamente omissa quanto a esta questão. O mesmo se diga em relação aos factos alegados pela recorrente quanto às diligências que desencadeou para lograr a dação em pagamento.

4. A exequente detinha, nos termos do art.º 1435º-A n.º 1 do CC a qualidade de administradora provisória do condomínio do prédio onde se encontram as frações adquiridas com recurso ao mútuo em discussão nos presentes autos.

5. A exequente era titular de 10 frações no edifício, adquiridos em processo de execução ao construtor, de que era credora hipotecária.

6. O construtor foi dissolvido e liquidado administrativamente.

7. A exequente detinha a dupla qualidade de administradora provisória e detentora da maioria das frações, por via de sucessão com o construtor.

8. De entre as funções do Administrador do Condomínio, destaca-se a previsão do art.º 1436º al. f) do CC, que estatui o dever do Administrador realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns.

9. Atos conservatórios são os destinados a evitar a deterioração ou destruição dos bens, podendo ter natureza material ou judicial.

10. Impunha-se à exequente, na qualidade de administradora provisória do condomínio que diligenciasse no sentido da conclusão das partes comuns do prédio.

11. Sem que se achem concluídas as partes comuns do edifício este é inabitável, incluindo, naturalmente, as frações do recorrente - Desde logo, impossibilita e emissão de licença de utilização.

12. A exequente não se pode eximir desta dupla qualidade que detém. Por um lado, administradora provisória do condomínio e, por outro, credora hipotecária do executado, ora recorrente.

13. Não pode, por um lado exigir o cumprimento do contrato de mútuo celebrado com o exequente e, por outro, por via da omissão de atuação na qualidade de administradora do condomínio, impedir a fruição da fração.

14. Se o fizer - como fez - atua com manifesto abuso de direito, devendo a sua pretensão improceder.

15. Não é consentâneo com os ditames da boa-fé, considerar que a exequente é tão só e apenas mutuante nos contratos em causa nos presentes autos, quando é simultaneamente detentora da maioria das frações e detém a qualidade de administradora provisória do condomínio.

16. Ao adquirir todas as frações do empreiteiro, que constituem a maioria do capital investido no prédio, não só a exequente se tornou administradora provisória do condomínio como até substituiu o empreiteiro na obrigação de conclusão das partes comuns do edificou, por via da sucessão na sua posição contratual.

17. Atento o poder que, por esta via, lhe ficou investido, apenas a exequente tinha a possibilidade (desde logo financeira) para concluir o edifício (falamos das partes comuns) e, desta forma, tornar o prédio habitável.

18. Apenas a exequente tinha a possibilidade e capacidade, atenta sua posição maioritária, de diligenciar pela conclusão das partes comuns do edifício.

19. Não o fez, apesar de se ter comprometido com Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares a lograr tal desiderato.

20. Ora, patenteando este cumprimento e exigindo qualquer contraprestação do executado, a exequente atua como manifesto abuso de direito.

21. O instituto do abuso do direito tutela, deste modo, situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.

22. O Direito não pode deixar de tutelar certas expectativas que espontaneamente emergem dos contratos e das relações interpessoais e, por isso, fixa os limites da responsabilidade na interação social, reconhecendo e criando normas que colidem de forma particular as expectativas criadas.

23. Foram alegados factos em sede de Oposição que, a serem demonstrados, permitiriam demonstrar a existência de uma atuação pela exequente com abuso de direito. Porém, não foi dada possibilidade às partes da discussão oral da causa com a inerente produção de prova.

24. Foi, assim, violado o princípio da imediação que se traduz, essencialmente, no contacto direito entre o juiz e as diversas fontes de prova.

25. A audiência preliminar destina-se a facultar às partes a discussão da matéria de facto e de direito, quando o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, da causa.

26. In casu, foi proferida sentença sem que tal possibilidade fosse facultada às partes, inquinando a mesma de nulidade.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil[1] –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da sentença por conhecer do mérito sem que fosse dada às partes a possibilidade de discussão prévia da matéria de facto e de direito.
2. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
3. Se dos factos alegados se pode concluir que a instauração da execução por parte da exequente constitui um abuso de direito.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

            1. Nulidade da sentença por ter conhecido de mérito sem que fosse dada às partes a possibilidade de discussão prévia da matéria de facto e do direito.

Invoca o apelante a nulidade da sentença decorrente de o juiz a quo ter conhecido do mérito sem que fosse dada às partes a possibilidade de discussão oral e produção de prova dos factos alegados e fundamentadores do instituto do abuso de direito, uma vez que, tendo sido realizada audiência preliminar, a discussão da matéria de facto e de direito não chegou a ocorrer, porquanto, no início da mesma, as partes requereram e foi deferida a suspensão da instância, sem produção de qualquer ato adicional.

Da análise dos autos constata-se que, efetivamente, tendo o juiz a quo convocado as partes para a audiência preliminar, com a finalidade prevista no nº 1, al. b), do artigo 508º-A do anterior CPC – “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte do mérito da causa” – o exercício de tal faculdade não chegou a ser exercido pelas partes, uma vez que, no início da audiência preliminar as partes requereram a suspensão da instância, sendo que, decorrido o prazo de suspensão da instância sem que as partes tenham chegado a acordo, o juiz a quo proferiu de imediato a decisão agora sob recurso.

A questão suscitada pelo apelante consiste, assim, em determinar se esta audição das partes era, ou não, obrigatória, fosse por imposição do artigo 508º-A, nº1, al. b), do CPC (atual 591º, nº1, al. b)), fosse unicamente por força e nas circunstâncias previstas no artigo 3º do CPC, o que nos remete para a qualificação da irregularidade em questão e para a distinção entre “nulidades da sentença” e “nulidades do processo”.

As nulidades da sentença traduzem-se nos vícios ou irregularidades, formais ou substanciais, nela cometidos, tipificados no nº1 do artigo 615º do NCPC (anterior 668º).

As nulidades do processo consistem num vício de carácter formal, podendo resultar da prática de um ato que a lei não admita ou da omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva – nº1 do artigo 195º do CPC (anterior artigo 201º).

A omissão apontada pelo Apelante – consistente em não se ter facultado às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre os factos e o direito –, no caso de se entender que contraria alguma prescrição legal[2], seria suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, e de constituir uma nulidade do processo – artigo 195º do NCPC (anterior artigo 201º).

Tal omissão, a integrar uma nulidade processual secundária, encontrar-se-ia sujeita ao regime previsto nos artigos 199º a 202º do NCPC, devendo ser arguida no prazo geral de 10 dias (art. 149º, nº1 do NCPC) a contar da data em que teve conhecimento da invocada irregularidade, ou seja, a contar da data da notificação da sentença recorrida.

E, tal nulidade, deveria ter sido arguida perante o juiz do processo do tribunal onde foi cometida e não em sede de recurso[3].

Assim, a arguição de tal nulidade, unicamente em sede de recurso da sentença final, é perfeitamente extemporânea.

Pelo exposto, não se admite a arguição da invocada nulidade, por extemporânea e por falta de competência funcional do tribunal de recurso para a respetiva apreciação.

2. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Segundo o Apelante/embargante, a sentença recorrida é omissa relativamente às seguintes circunstâncias, por si alegadas como fundamentadoras da atuação da exequente com abuso de direito: na qualidade de administradora provisória do condomínio, não ter logrado concluir as partes comuns do edifício nem as 10 frações que adquiriu ao construtor, circunstâncias que impossibilitaram que o recorrente pudesse habitar a sua fração; e, ainda, quanto às diligências que encetou para dar as frações em pagamento do crédito agora em execução.

Haverá, antes de mais, que explicitar o sentido da nulidade prevista na al. d) do artigo 615º, que ocorre quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

“Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e todas as exceções invocadas ou as que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado[4]”.

Da leitura do requerimento inicial, constata-se que o embargante/apelante faz assentar a natureza abusiva do direito do exequente ao instaurar a presente execução, entre outros, nos seguintes comportamentos da exequente:

- por um lado, nunca concluiu as partes comuns e as 10 frações que veio a adquirir no imóvel, obrigação que lhe advinha da qualidade de administrador provisório do edifício;

- recusou a dação em cumprimento do imóvel oferecida pelo embargante.

O Juiz a quo, fazendo uso da faculdade prevista no nº1 do art. 617º do NCPC, considerou não se verificar a invocada nulidade, com a seguinte argumentação:

“No caso em apreciação nos autos, verificamos que o ora recorrente, entre outras causas, funda a sua oposição à execução no instituto do abuso de direito, por considerar que a exequente, na qualidade de administradora provisória do condomínio, não logrou concluir a construção das partes comuns do edifício nem as 10 frações que adquiriu ao construtor, pelo que ao intentar a presente execução, atuou com manifesto abuso de direito.

Ora, conforme consta da sentença recorrida, quanto à questão do invocado abuso de direito, a presente oposição à execução improcedeu, pois concluiu-se que a exequente não agiu com abuso de direito, porquanto nenhuma responsabilidade lhe poderá ser imputada pelo incumprimento do contrato de compra e venda do imóvel que opoente adquiriu, pois não foi a exequente que vendeu o imóvel ao executado, nem seria a mesma a responsável pela sua conclusão, sendo que a existir responsabilidade pelo incumprimento do contrato de compra e venda, o opoente sempre teria que demandar a construtora em ação própria, sendo que único contrato que efetuou com a exequente foi o contrato de mútuo.”

Os factos que o Apelante refere não terem sido tidos em consideração pelo juiz a quo, inserem-se dentro dos vários comportamentos alegados pelo Apelante como sendo contraditórios com o seu direito a reclamar o crédito em questão, e que levariam a considerar um abuso de direito a respetiva cobrança através da instauração da presente ação executiva.

Embora não tenha feito referência a todos e cada um dos factos alegados a tal respeito no requerimento inicial de embargos, o juiz a quo apreciou o fundamento invocado pelo embargante consistente no exercício abusivo do direito do exequente. Assim, a circunstância de não ter valorizado determinados factos, alegados pelo embargante, ou de não ter feito o devido enquadramento (quanto à alegada obrigação de conclusão do edifício, a embargante faz derivá-la, não do cumprimento do contrato de compra e venda, como se dá a entender na sentença recorrida, mas da qualidade de administradora de condomínio), fará parte da apreciação de mérito da causa, contendendo com discordâncias de fundo relativamente à apreciação de direito efetuada pelo juiz a quo.

De qualquer modo, o reconhecimento da nulidade com base em tal fundamento importaria, tão-somente, que este tribunal conhecesse das questões cuja apreciação foi omitida pelo juiz a quo, em conformidade com o disposto no nº1 do artigo 665º do CPC.

Não se reconhece, assim, a verificação da invocada nulidade.

3. Se a propositura da presente execução configura um abuso de direito.

O embargante opõe-se ao prosseguimento da presente execução com fundamento, entre outros, em que a sua instauração constitui um abuso de direito, com base nos seguintes factos:

- os contratos de mútuo que sustentam a execução movida nos autos principais, foram celebrados pelo ora oponente com o escopo exclusivo de adquirir imóvel para habitação própria e permanente;

- a construção do prédio foi financiada pela exequente, cujo empréstimo se encontrava garantido por hipoteca sobre o edifício e respetivas frações;

- a C (…) Lda., não concluiu a obra, deixando de nela fazer qualquer trabalho em 2003, acabando tal sociedade por ser dissolvida em 2009;

- encontrando-se tal edifício constituído em propriedade horizontal, a exequente veio a adquirir 10 (dez) frações no edifício em causa, no âmbito de execução por si movida contra a C (…);

- com a paralisação da obra, a fração do embargante é inabitável;

- oponente intercedeu junto da exequente, na qualidade de proprietária maioritária do edifício, para que fosse negociada uma alternativa para o iminente incumprimento do contrato de empréstimo firmado entre as partes, propondo a entrega da fração para liquidação da dívida e com pagamento do remanescente;

- a exequente nunca concluiu as 10 frações de que é proprietária no edifício em causa, nem, na qualidade de administradora provisória do condomínio, providenciou para a conclusão da obra nas partes comuns, encontrando-se  a obra no estado em que estava quando foi abandonado pela construtora.

Há abuso de direito sempre que o seu titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social deste direito – artigo 334º do Código Civil.

Entendendo-se a boa-fé como norma de conduta, significa que as pessoas se devem comportar, no exercício dos seus direitos e deveres, com honestidade, correção e lealdade, de modo a não defraudar a legítima confiança ou expectativa dos outros.

O abuso do direito abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal quanto à sua intensidade ou execução, de modo a comprometer o gozo dos direitos de terceiro e criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do titular e as consequências que os outros têm que suportar. Exige-se que, ao exercer o direito, o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.

Um dos comportamentos que tem vindo a ser considerado como uma das variantes do abuso de direito, por violação manifestamente excessiva dos limites impostos pelo princípio da boa-fé, é o denominado venire contra factum proprium.

A locução venire contra factum proprium exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios.

 “Trata-se aqui da proibição da conduta contraditória, isto é, de impedir uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente. Parte-se de uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objetivamente considerada, é de molde a criar noutrem uma situação objetiva de confiança, ou seja, a convicção de que aquele sujeito jurídico se comportará, no futuro, coerentemente com aquela conduta. É necessário que, com base na situação de confiança criada, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe resultarão danos se a sua confiança legítima vier a sair frustrada[5]”.

Segundo Baptista Machado, os efeitos do abuso do direito nesta especial modalidade exigem a verificação dos seguintes pressupostos:

1 – Uma situação objetiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;

2 – Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;

3 – Boa-fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou contraparte só merecerá proteção jurídica quando de boa-fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico[6].

Como refere Menezes Cordeiro[7], o abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si mas diferidas no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pela segundo – o venire. Só se considera como “venire contra factum proprium” a contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor.

Contudo, o venire contra factum proprium só é proibido em circunstâncias especiais – como afirma Paulo Mota Pinto, no plano dogmático não se poderá afirmar um princípio geral de proibição do comportamento contraditório: “fora dos casos em que assumiu compromissos negociais, o indivíduo é livre de mudar de opinião e de conduta[8]”.

E, em igual sentido, de inexistência, na Ciência do Direito e nas ordens jurídicas por ele informadas, de uma proibição genérica de contradição, se pronuncia Menezes Cordeiro[9].

O venire aparece assim ligado fundamentalmente à proteção da confiança: um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos.

O princípio da confiança exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas[10].

“A confiança digna de tutela tem de radicar em algo objetivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura[11]”.

Segundo o Apelante, o comportamento contraditório da exequente reside na circunstância de, por um lado, exigir o cumprimento do contrato de mútuo e de, por outro lado, por via da omissão da sua obrigação, na qualidade de administradora provisória do edifício, de concluir as partes comuns, impedir a fruição da fração por parte do embargante, por o prédio se encontrar inacabado.

Tal raciocínio pressupõe, antes de mais, que se reconheça que sobre o exequente – na qualidade de administrador provisório, pelo facto de se tratar do condómino cujas frações representam a maior percentagem do capital investido (art. 1435º-A) – impende a obrigação de conclusão das partes comuns.

O apelante faz assentar tal obrigação de conclusão das partes comuns, no preceituado no disposto na al. f), do artigo 1436º do Código Civil, segundo o qual são funções do administrador “realizar atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns”.

Ora, a obrigação aí prevista nada tem a ver com a realização de obras necessárias à conclusão de um edifício, nomeadamente das suas partes comuns.

Tal função respeita, em primeiro lugar, à conservação dos direitos sobre as partes comuns. Como salientam Aragão Seia[12], e Pires de Lima e Antunes Varela[13], entre os atos conservatórios referidos na alínea f), cabem, por ex., a instauração de providências cautelares relativamente às partes comuns (v. g., um embargo de obra nova realizada numa parte comum) e a interrupção de um prazo de prescrição ou de usucapião. Ou como escreve Henrique Mesquita, trata-se “de actos que nada resolvem em definitivo, que não comprometem o futuro e que apenas visam manter uma coisa ou um direito numa dada situação[14]”.

Dentro de uma visão mais atualista, podemos entender que atos conservatórios são os destinados a evitar a deterioração ou destruição dos bens, podendo ter natureza material ou judicial.

Defendendo que a citada norma deve ser objeto de uma interpretação extensiva, Sandra Passinhas considera que o administrador tem poderes de gestão e representação processual em tudo o que não contenda com a propriedade ou a posse dos bens comuns (em que só agirá quando devidamente autorizado): “O administrador tem o poder-dever de realizar as medidas cautelares adequadas a evitar prejuízos na coisa comum, pode propor uma ação para obter o ressarcimento dos danos causados às partes comuns do edifício condominial, deve salvaguardar o edifício condominial de moléstias, perigos ou prejuízos causados por terceiros[15]”.

Também Ana Sardinha e Francisco Cabral Metelo[16], englobam em tais atos conservatórios todos e quaisquer atos que visem assegurar ou preservar as partes comuns: atos de gestão que, eventual e independentemente, se sobreponham à própria vontade, individual, dos condóminos.

Contudo, uma coisa é a obrigação de proceder a reparações urgentes com vista a evitar a degradação das partes comuns e outra é a pretensão, face a um edifício que ainda se encontra inacabado – “ficando por fazer os acabamentos quer das partes comuns quer das frações” – de que a exequente, na qualidade de administradora provisória, teria a obrigação de ela própria assegurar a execução das obras necessárias à conclusão do edifício.

Ora, da citada norma não decorre a alegada obrigação do exequente de proceder, por ele próprio e à sua custa (seja como proprietário de 10 das frações do edifício, seja na qualidade de administrador provisório daí decorrente), à conclusão da edificação do imóvel constituído em propriedade horizontal, seja nas frações por si adquiridas seja nas partes comuns.

Assim sendo, cai por terra a alegada contraditoriedade do comportamento do exequente – decorrente do facto de, por um lado, não ter criado as condições necessárias à habitabilidade da fração do embargante, e de, por outro lado, lhe vir exigir o cumprimento do contrato de mutuo celebrado com vista à respetiva aquisição – dispensando-nos da análise dos demais requisitos do abuso de direito.

Quanto ao facto de a exequente não ter aceitado a sua proposta de entrega da fração para liquidação da dívida, disponibilizando-se a liquidar a quantia remanescente, optando por instaurar a presente execução para a sua cobrança, a iniciar necessariamente pela penhora da fração hipotecada a favor da exequente, também não se descortina que, por si só, possa configurar uma situação de abuso de direito.

A dação em pagamento constitui uma causa de extinção da obrigação que pode assumir duas modalidades: a dação em cumprimento, prevista nos arts. 837º a 839º, do CC, que se traduz na realização de uma prestação diferente da que é devida com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação; a dação em função do cumprimento, prevista e regulada no artigo 840º do CC, que, não tem por fim imediato a extinção da obrigação mas assegurar (facilitar) o seu cumprimento[17].

De acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 837º e 846º do CC, o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que for devida.

E das circunstâncias alegadas pelo Apelante não sobressai a ilegitimidade de tal recusa ou que esta surja como contraditória com a posterior reclamação do crédito por parte do exequente, sendo a propositura da ação executiva, precisamente o passo “natural” seguinte ao incumprimento do contrato de mútuo por parte do Apelante.

Por outro lado, ainda que se verificasse alguma contraditoriedade em tais comportamentos, sempre faltariam ostensivamente os demais requisitos do abuso do direito na modalidade do venire – uma situação de confiança por parte do embargante que tenha sido criada pelo comportamento anterior do exequente/mutuário.

Concluindo, confirma-se o juízo efetuado pela primeira instância de que a situação alegada pelo oponente não é subsumível a um exercício abusivo do direito do mutuante de instaurar a presente execução.

A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo apelante.                     

Coimbra, 06 de outubro de 2015

 Maria João Areias( Relatora)

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. A omissão resultante da violação do princípio do contraditório constitui, não uma nulidade da sentença nos termos do art. 615º do CPC, mas uma nulidade processual, sujeita ao regime de arguição previsto nos arts. 195º e ss..
2. A função atribuída ao administrador pela al. f), do art. 1436º CC, de “realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns”, englobando os destinados a evitar a deterioração ou destruição dos bens, e podendo ter natureza material ou judicial, não abarca a obrigação de conclusão da construção do edifício, ainda que relativamente às partes comuns.
3. A não aceitação de uma proposta de entrega da fração hipotecada e de disponibilização para liquidação da quantia remanescente, não se mostra contraditória com a posterior instauração de ação executiva por parte do credor hipotecário, nomeadamente para efeitos de integrar um eventual abuso de direito por parte deste.
 


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] Adiantando-se que, em nosso entender, o texto do novo código consagrou a não obrigatoriedade da audiência prévia, prevendo a sua convocação por regra, admitindo que o juiz, por decisão discricionária a dispense – neste sentido, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, I Vol., Almedina 2013, pág. 484. Assim sendo, a audição das partes só se imporia se resultante da obediência ao princípio do contraditório consagrado no artigo 3º do CPC, que, no plano das questões de direito, proíbe as decisões-surpresa, isto é, baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes – neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 9. No caso em apreço, tendo o juiz conhecido dos fundamentos dos embargos de executado, considerando que os factos alegados pelo embargante não importavam as invocadas inexequibilidade do título ou abuso de direito, questões relativamente às quais as partes tiveram oportunidade de se pronunciar no requerimento inicial e na oposição, não tinha novamente de os ouvir para tal efeito, não se verificando a invocada nulidade.
[3] “As nulidades dos actos processuais (incluindo as derivadas de erros ou omissões dos funcionários da secretaria) devem ser arguidas, no prazo respetivo, no tribunal onde foram cometidas e não no âmbito do recurso da decisão proferida no pressuposto da sua não verificação” – Acórdão do STJ de 12.10.2006, relatado por Salvador da Costa, disponível in http://www.dgsi.pt.jstj.
[4] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª ed., pág. 704.
[5] Cfr. Acórdão do TRL de 23.04.98, in Bases de Dados Jurídicas, Acórdãos da Relação de Lisboa – disponível em http://WWW.dgsi.pt/jtrl. (nº convencional JTRL00021291).
[6] Cfr., “Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, Obra Dispersa, Vol. I, pag. 415 a 418. Já para Menezes Cordeiro, são quatro os pressupostos da proteção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
1. Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2. Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3. Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4. Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível - “Contrato Promessa – art. 410º, nº3, do CC – Abuso de Direito – Inalegabilidade Formal”, in ROA, nº 58, Vol. II, Julho 1998, pág. 964.
[7] “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, Almedina 2007, pag. 745.
[8] “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil”, in Boletim da FDUC, Vol. Comemorativo 2003, pags. 275 e 276.
[9] Cfr., “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, Almedina 2007, pag. 750
[10] Cfr., António Menezes Cordeiro, in “Do Abuso do Direito: estado das questões e perspectivas”, ROA Ano 65, Vol. II, Set.2005, disponível in http://www.oa.pt.
[11] João Baptista Machado, “Obra Dispersa”, estudo citado, pag. 416.
[12] “Propriedade Horizontal, Condóminos e Condomínios”, 2ª ed. Almedina, pág. 207 e 208.
[13] “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora 1987, pág. 454.
[14] “A Propriedade Horizontal no Código Civil Português, RDES, XXIII, 132, nota 124.
[15] “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, Almedina, págs. 311 e 312.
[16] “Manual do Condomínio (Propriedade Horizontal) e Legislação Anotada”, 5ª ed., Almedina, pág. 123, dando, como exemplo, o caso de o administrador ser forçado, face ás circunstâncias, a proceder, dentro da maior brevidade de tempo possível, à reparação na claraboia ou cobertura de determinado imóvel, por as mesmas terem sido profundamente danificadas devido ao elevado nível de pluviosidade.
[17][17] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado” Vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 124.