Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117998/10.7YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
FIANÇA
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.595, 767 CC
Sumário: Quando um sócio-gerente de uma sociedade, por dificuldades de tesouraria da mesma, assume pessoalmente, perante o credor, solidariamente com a sociedade, o pagamento do total ainda em dívida e passa, para esse efeito, um cheque pessoal, há uma assunção cumulativa da dívida e não uma fiança.
Decisão Texto Integral:               Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              M (…), Ldª, com sede na ..., ..., ..., instaurou procedimento de injunção contra C (…) Ldª, com sede na ..., nº ..., ..., ..., e contra L (…) residente na Rua ..., nº ..., ..., ... pedindo que estes lhe paguem 5.100€ a título de capital, 158,73€ a título de juros de mora e 51€ pela taxa de justiça paga.

              Alegou em suma que: por contrato celebrado a 18/08/2009 e no exercício da sua actividade comercial, forneceu à requerida material diverso do seu comércio, entre outros materiais que aplicou numa obra adjudicada à requerida. Alegou ainda que, por conta do valor global em dívida – 6.200€ – apenas foram pagos 1.100€, permanecendo em dívida 5.100€. Por dificul-dades de tesouraria da requerida, o requerido, enquanto sócio gerente da requerida, assumiu perante a requerente, pessoal e solidariamente com a requerida, o pagamento do total ainda em dívida, tendo para o efeito, inclu-sive, emitido e entregue à requerente um cheque pessoal que, apresentado a pagamento, veio a ser devolvido. Assim, pela assunção pessoal da dívida da requerida deve o requerido ser solidariamente responsável pelo seu pagamento.

              O requerido deduziu oposição, excepcionando a sua ilegitimi-dade e, no mais, impugnou o teor da factura referida pela requerente, dizendo que quem contratou foi a sociedade de que era sócio gerente e que esta, actualmente, se encontra insolvente.

              Por via da oposição, seguiram os autos os termos do regime da ac-ção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emer-gentes de contratos.

              Tomando conhecimento da oposição, a requerente, em sede de audiência, como se lhe impunha e permite o artigo 3.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (= CPC), propugnou pela legitimidade do requerido e reque-reu a desistência da instância quanto à requerida, a qual foi logo homolo-gada por sentença.

              (aproveitou-se o relatório da sentença recorrida)

              Depois do julgamento, foi proferida sentença julgando improce-dente a excepção de ilegitimidade do requerido e condenando o mesmo ao pagamento à requerente de 5.100€, acrescidos de juros de mora vencidos desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, à taxa legal em vigor.

              O requerido interpôs recurso desta sentença, para que seja revogada, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
         (…)
         X. Nestes termos, o recorrente não pode aceitar a decisão do tribunal a quo em condená-lo como principal devedor da dívida da requerida, devido ao regime da assunção da dívida, com uma responsabilidade solidária para com esta.
         XI. Assim, segundo o nosso entendimento, o recorrente, é responsável, enquanto fiador, pelo cumprimento da obrigação da requerida perante a recorrida e é responsável nos mesmos termos que a sociedade, já que a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor – cfr. art. 634º do CC.
         XII. Havendo, portanto, um erro de julgamento nesta matéria. Situação que deveria ter sido observada e fundamentada pelo tribunal a quo e após uma leitura atenta da fundamentação de facto e de direito verifica-se uma falta de pronúncia por parte do tribunal a quo, no que concerne a à situação em apreço ser qualificada de fiança ou de assunção de dívida, que de acordo com o previsto na lei terá que ser sancionada com a nulidade.

              A requerente contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

                                                                 *

              Questões que importa solucionar:

              (…)

              São os seguintes os factos dados como provados:
         A) A requerente, é uma sociedade que se dedica ao fabrico e comércio de móveis.
         B) A requerida é uma sociedade por quotas que se dedica à construção civil, actualmente insolvente.
         C) O requerido é sócio gerente da requerida.
         D) No exercício da sua actividade comercial, a requerente a pedido da requerida, forneceu e aplicou numa obra da desta diversos materiais constantes da factura n.º 161, datada de 12/08/2009, a saber “Painéis – Arpa compacto fenólico 8 mm; Base de suporte em alumínio 40x20; 19 placas c/3050x1300; desperdício de utilização de placas com veio horizontal; 2 placas com 3050x1300 de perfil de inox escovado quinado de remate em «U» com arredondamento”, no valor de 6.200€.
         E) A factura foi entregue à requerida que a recebe, não tendo reclamado das quantidades, características e preços dos materiais adquiridos e respectiva aplicação.
         F) Por conta do valor global desta factura, a requerida procedeu ao pagamento de 1.100€;
         G) Por dificuldades de tesouraria da requerida, o requerido assumiu pessoalmente perante a autora, solidariamente com a requerida, o pagamento do total ainda em dívida.
         H) Para esse efeito, chegou a passar um cheque pessoal que, apresentado a pagamento, veio a ser devolvido.

                                                                 *

              Antes de mais, diga-se que os factos relativos à assunção da dívida foram admitidos por acordo.

              Como diz a sentença recorrida:
         “ […] quanto à assunção da dívida pelo requerido que é alegada pela requerente, aquele não impugnou especificadamente tal matéria em sede de oposição, conforme é imposto pelo art. 490º do CPC, razão pela qual, relativamente a essa matéria, houve acor-do entre as partes. Todavia, mesmo que assim não tivesse sido, re-sultou à saciedade, do depoimento do escriturário a trabalhar por conta da requerente (depoimento esse espontâneo, coerente e segu-ro [o qual, em virtude das suas funções, mostrou ter conhecimento directo dos factos, por os ter presenciado]), que o requerido assu-miu a dívida da requerida pessoal e solidariamente com a reque-rente.”

                                                                 *

              Quanto à fundamentação de direito, diz a sentença recorrida:
         “Resulta da factualidade dada como provada que a quantia peticionada pela requerente onerou originariamente a requerida, enquanto sociedade construtora da obra onde foram empregues os materiais fornecidos […].
         Contudo, face às dificuldades daquela em pagar a quantia em dívida o seu sócio gerente, o requerido, assumiu o pagamento da quantia em dívida, a título pessoal, assim se juntando à requerida na obrigação em causa. Com efeito, ao assumir a dívida da requerida não pretendeu o requerido exonerá-la do pagamento, mas sim, solidariamente, proceder ao pagamento da quantia em dívida. Isso mesmo o demonstra o cheque por si subscrito a título pessoal e sobre a sua conta bancária pessoal […]”

              E acrescenta:
         “Com efeito, dispõe o art. 595º/1b) do CC (= Código Civil) que “a transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se… por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.” E adianta o n.º 2, dispondo que “em qualquer dos casos a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor; de contrário, o antigo de-vedor responde solidariamente com o novo obrigado.”
         Consagra o legislador o instituto da assunção de dívida ou transmissão singular de dívida. Com Antunes Varela: “Como o próprio nome indica, a assunção de dívida é a operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efectuar a pres-tação devida por outrem. A assunção opera uma mudança na pes-soa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo, nem da identidade da obrigação.” (Das Obrigações em Geral, vol. II, p. 361).
         A assunção da dívida pode ser liberatória nos casos previstos na primeira parte do n.º 2 do art. 595º do CC, isto é, dependendo de declaração expressa do credor, o devedor originário pode ficar, pela assunção da dívida por novo devedor, dela exonerado, ou, como acontece na maioria dos casos, ser uma assunção cumulativa da dívida, em que devedor originário e novo devedor se obrigam simultaneamente, sendo ambos solidariamente responsáveis perante o credor. A exigência de consentimento do credor para exoneração do devedor originário prende-se com a necessária protecção do credor, configurando-se, na maioria dos casos, situações de assunção cumulativa da dívida em que o novo devedor quase surge como garante da dívida primeiramente assumida pelo devedor originário, numa figura por vezes difícil de distinguir da fiança. Na assunção cumulativa da dívida, “ao afirmar que os dois devedores respondem solidariamente a principal intenção da lei é conceder ao credor o poder de exigir indistintamente de qualquer deles o cumprimento integral da obrigação.” (A. Varela, ob. cit. p. 378).
         Veja-se, a este propósito, e com pertinência, o que dispõe o ac. do STJ de 22/02/2005, relatado pelo conselheiro Pinto Monteiro (04A3894 da base de dados do ITIJ):
         “O Código de Seabra não referia a assunção de dívida, embora a doutrina já admitisse essa possibilidade. O CC em vigor reconhece expressamente a possibilidade de transmissão a título singular de dívidas. Essa assunção pode ocorrer por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor; por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor (art. 595º do CC). No primeiro caso é necessária a intervenção de três sujeitos: o antigo devedor, o novo devedor e o credor. No segundo caso há um contrato entre o assuntor e o credor, sendo desnecessário o consentimento do antigo devedor. A assunção de dívida, liberatória do antigo devedor só tem lugar havendo expressa declaração do credor nesse sentido. Não existindo essa declaração, estar-se-á perante uma assunção cumulativa da dívida, também designada por co-assunção da dívida, adjunção à dívida ou adesão à dívida. Neste caso (a que o Prof. Vaz Serra no seu anteprojecto chama de contrato a favor do credor) o antigo devedor continua a responder solidariamente (embora se trate de uma solidariedade imperfeita) com o novo obrigado. A responsabilidade do novo devedor vem juntar-se à do antigo, que continua vinculado a par dele. Sendo essencial para o credor a pessoa do devedor, a lei estabelece uma medida de protecção do mesmo. Se o credor não exonerar expressamente o antigo devedor, poderá exigir de qualquer deles o cumprimento da obrigação. Podendo o credor aceitar a prestação de terceiro (art. 767º do CC), o acordo entre aquele e o assuntor pode fazer-se independentemente da intervenção do primitivo devedor - Prof. Vaz Serra, Assunção de Dívida, BMJ n.º 72, pág. 189; Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral 3ª ed., 2º vol, pág. 326; Prof. Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Reimpressão, Coimbra 1982, págs. 148/149; Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4ª edição, pág. 566. Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1ª ed., 1986 (reimpressão) 2º, pág. 114/115: "a existência normal de uma fonte originante da assunção não é necessária para a subsistência desta. Entende o Direito que, uma vez celebrada a transmissão da dívida, não seria justo sujeitar o credor que, fiado nas aparências, deu o seu assentimento, às vicissitudes possíveis na relacionação verificada entre os devedores inicial e posterior". A assunção da dívida é assim um acto abstracto, subsistindo independentemente da existência ou validade da sua fonte; Prof. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 2002, II, págs. 64/65. Sendo o contrato transmissivo em si mesmo válido e idóneo, o novo devedor, neste caso o recorrente, responde nos precisos termos em que se obrigou, pelo pagamento de uma dívida efectiva por cujo pagamento era responsável um terceiro.”. 
         Veja-se, igualmente, e em situação em tudo semelhante à dos presentes autos, o ac. do STJ de 13/10/2009, relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova (574/07.5TBPFR.P1.S1 da base de dados do ITIJ):
         “Assumindo anterior sócio e gerente de determinadas sociedades o pagamento de dívidas por elas contraídas junto da aqui autora – o que ele fez mediante a entrega de cheques devolvidos ulteriormente por falta de provisão – e tendo parte dessas dívidas sido contraídas antes do registo de cessação das referidas funções de sócio e gerente, pode o Tribunal da Relação, no âmbito dos seus poderes de cognição em matéria de facto, concluir no sentido de que esse comportamento revela um inequívoco (art. 217º/2 do CC) acordo constitutivo de contrato de assunção de dívida a que se refere o art. 595º/1b) do CC”.
                                    I

               Em traços largos, pode dizer-se, como o faz o recorrente na 1ª parte da conclusão VI, que “na fiança o fiador pretende responsabilizar-se acessó-ria e, em geral, subsidiariamente, por uma dívida alheia; na assunção de dívida, o assuntor faz sua a obrigação que recaía sobre o devedor inicial, respondendo, assim, por dívida própria.” Isto se não se esquecer que, como resulta da doutrina e jurisprudência citadas na sentença recorrida, existe a assunção liberatória e a assunção cumulativa ou co-assunção da dívida.

               Por isso, seria mais preciso dizer-se, como diz Antunes Varela, que: “O assuntor, pelo contrário, ou é o único obrigado (caso da assunção liberatória) ou é o devedor principal, juntamente com o primitivo devedor. Além disso, tomando sobre si a posição jurídica do antigo devedor, o assuntor faz sua a obrigação que recaía sobre este no momento da assunção, respondendo assim por dívida própria” (pág. 353 da 4ª edição do 2º vol, Almedina).

               E continua Antunes Varela: “Na prática, a qualificação das espéci-es que suscitem dúvidas dependerá dos resultados a que conduzirem a inter-pretação e a integração das declarações sobre que assenta o contrato. […] As regras da interpretação negocial mandam, neste como nos demais casos, atender não só aos termos das declarações dos contraentes, mas a todas as demais circunstâncias que precederem ou rodearam a celebração do contra-to e ainda aos fins visados pelas partes […]” (págs. 353/354).

              A ênfase no que resultar do contrato, resulta também do que diz Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, 1991, pág. 693, embora a propósito do contrato celebrado pelo assuntor e o devedor: “as relações entre estes são reguladas no contrato em que se baseia a assun-ção […]”.

              Ora, no caso dos autos apontam para a assunção cumulativa da dívida, os termos utilizados (facto G)): ‘assunção solidária com a sociedade do pagamento da dívida’, e não ‘garantia de pagamento’. Não tanto – embora também – pela palavra solidariedade, pois que a característica oposta da subsidiariedade é apenas uma característica normal da fiança e não uma característica necessária, visto que pode ser afastada pela vontade das partes. Mas pelo facto de ser falar na “assunção” e “do pagamento da dívida”, e não de garantir o seu pagamento.

              Depois, e como sublinhou a sentença, o requerido, para esse efeito, chegou a passar um cheque pessoal que, apresentado a pagamento, veio a ser devolvido (facto H)). Ora o cheque é normalmente um meio de paga-mento, não uma forma de garantir dívidas.

              Para além disso, e como também foi referido pela sentença, o requerido assumiu o pagamento da dívida por dificuldades de tesouraria da sociedade (parte inicial do facto G)). Ora um dos indícios – ao menos quando junto com outros - que apontam para a assunção cumulativa da dívida é o facto de, aquando da declaração do novo devedor, tanto o credor quanto o declarante terem conhecimento de que o devedor principal não estava em condições de pagar, uma vez que não se verifica a característica essencial da fiança, traduzida na esperança de que o devedor principal pagará ao fiador sub-rogado (parafraseou-se Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Colecção Teses, Almedina, 2000, pág. 279; o mesmo indício é referido Mariana Fontes da Costa, no seu artigo sobre A assunção cumulativa de dívida como meio (de garantia) do cumprimento, na publicação conjunta em Garantias das Obrigações, Almedina, Julho de 2007, pág. 394).

              Por fim, um outro indício é o referido por Antunes Varela na sequência da passagem acima transcrita: “A jurisprudência e a doutrina dominantes na Alemanha entendem que, na dúvida, só deve aceitar-se a existência duma assunção de dívida quando o terceiro tiver um interesse real (objectivo) próprio na relação obrigacional (como sucede no caso da mulher do arrendatário, interessada em impedir o despejo, ou no caso do credor hipotecário empenhado em evitar a desistência do empreiteiro [está aqui a fazer referência a um dos casos citados por Mota Pinto, na obra e local já referidos acima]) e não apenas um interesse pessoal em ajudar o devedor”. E mais à frente acrescenta que “entre as circunstâncias concomitantes do contrato [a atender na interpretação negocial] não deixa de interessar sobremaneira, como puro critério heurístico embora, o aspecto substancial destacado pelos autores germânicos”.

              Ora, como o ac. do STJ de 13/10/2009 citado na sentença recorrida lembra:
         “Certo é, porém, que o réu tinha um interesse próprio em querer assumir o pagamento da dívida visto que foi sócio e gerente das duas sociedades, verificando-se ainda, no que respeita às primeiras 20 facturas, que correspondem elas a fornecimentos anteriores à data do registo da cessação das suas funções de gerente. Não estando aqui em causa saber se o réu deve ser responsabilizado nos termos do art. 78º do CSC, certo é que a possibilidade de o réu poder ser responsabilizado por ocorrências durante o período da sua gerência leva a que não se possa excluir a ideia de que, para além de um inegável interesse pessoal, existia também um interesse próprio, real”.

              De facto, o réu, enquanto sócio e gerente da sociedade de que assumiu a dívida, não é um desinteressado nos negócios desta. Enquanto sócio, tem interesse na subsistência da sociedade e em que esta dê lucro, e por isso interesse em que esta celebre negócios. E é quase idêntico o seu interesse enquanto gerente da mesma. E a desvalorização deste critério em simples indício, um de vários, permite considerar que não é necessário que exista um exacto interesse económico directo na relação obrigacional (neste sentido, Januário Gomes, obra citada, pág. 278, e Mariana Fontes da Costa, obra citada, pág. 395).

              Todos estes indícios apontam, pois, no sentido da assunção cumula-tiva da dívida e não da fiança, sendo que em sentido contrário não existe nenhum indício porque o requerido não alegou qualquer outro, nomeada-mente o que só agora, no recurso, pretendeu invocar. Ou seja, existem fac-tos provados suficientes, para funcionar como indícios também suficientes para afastar uma presunção natural, na dúvida, no sentido da fiança (presunção esta referida por Januário Gomes, obra citada, pág. 282; no mesmo sentido, Mariana Fontes da Costa, obra citada, pág. 395, citando Larenz, fala em dar-se, na dúvida, preferência interpretativa à fiança). 

              Quando se quer fazer vingar uma interpretação de uma declaração negocial com um sentido que tem aparentemente muito menos a ver com o seu teor literal do que a interpretação seguida numa decisão recorrida, ao menos têm que ser alegados factos que permitam essa interpretação. E têm que ser provados antes da sentença. Não podem ser invocados só nas alegações de recurso.

              No sentido da decisão recorrida vão os acórdãos por ela citados, sendo notória que é a mesma a razão de decidir naqueles e na decisão recor-rida, como aliás se irá vendo.

              E ainda o ac. do TRC de 26/01/2010 (221/08.8TBVGS.C1: II - Provando-se que num contrato de empreitada celebrado entre a autora (empreiteira) e a 1ª ré (comitente), os 2º e 3º réus assumiram perante a empreiteira a dívida da dona da obra, tendo pago até parte dela através de cheques, está-se perante um contrato de assunção cumulativa de dívida.) e do STJ de 24/11/2009, publicado na CJSTJ.III, págs. 158 e segs, citado (embora mal identificado) pela requerente nas suas contra-alegações: I. Subsume-se à co-assunção de dívida a comprovação factual de que o réu assumiu também ele, pessoal-mente e com a anuência do credor, a responsabilidade do pagamento da quantia mutuada, emitindo a favor do autor mutuante dois cheques e obrigando-se a efectuar a prestação decorrente do contrato de mútuo).

                                                                 II

              Nas conclusões VII e VIII, o recorrente aproveita a última passagem citada da obra de Antunes Varela e o acórdão do STJ de 06/05/2004 (que cita nas suas alegações sem indicar o local onde ele está publicado, que é a base de dados do ITIJ sob o nº. 04B1317) para defender que no caso se está perante uma fiança.

              Mas, quanto à passagem de Antunes Varela já se viu que pode ser utilizada como a referência a um dos indícios a apontar para a assunção cumulativa da dívida e não para a fiança. E quanto ao acórdão do STJ, constata-se que ele até concluiu que, no caso que decide, apesar da cláusula contratual à primeira vista apontar para uma garantia e para uma fiança (e foi como tal entendida pelo tribunal da 1ª instância e pelo TR), se tratava de uma assunção cumulativa da dívida…

              E a opinião (= “afigura-se-lhe”; repetida nas conclusões IX e XI: “afigurando-se”, “nosso entendimento”) de que “terá pretendido apenas prestar uma fiança e não assumir como própria a dívida da requerida” é irrelevante, por não ter apoio factual.

                                                                 III

              Diz o recorrente que não tinha qualquer interesse real, objectivo e próprio no negócio jurídico. Se assim fosse, tal era uma boa razão para não ter celebrado o acordo de assunção de dívida. Ou uma boa razão que devia ter sido alegada para tentar convencer do contrário do que se deu como provado em G), inclusive neste recurso, pondo em crise esse facto. O que não foi feito.

              De qualquer modo, como se viu acima, esta conclusão de ausência de interesse é contrária à do ac. do STJ de 13/10/2009, já referido acima. E já se viu também que existe um interesse sério do requerido, enquanto gerente e sócio da sociedade de que assumiu a dívida, que pode funcionar, junto com outros, como um dos indícios no sentido da assunção cumulativa da dívida.

                                                                IV

              Por fim, o recorrente diz que é “pouco provável que pretendesse assumir como sua aquela obrigação, prescindindo, designadamente, do direito de vir a exigir da requerida a quantia que viesse a pagar”, o que tem a ver com a 2ª parte da sua conclusão VI: “Daí que o fiador que cumpre em lugar de devedor fique sub-rogado nos direitos do credor, enquanto o assuntor, porque cumpre uma obrigação própria, não beneficia de tal sub-rogação.” Assim é, como explica Antunes Varela, obra citada, pág. 353. E pode-se mesmo entender que, em princípio, nem gozará do direito de regresso contra a requerida, no caso de pagar a dívida (ainda Antunes Varela, obra citada, pág. 367), ao contrário do que pretende a requerente nas suas contra-alegações de recurso. Mas isto trata-se apenas de uma nova boa razão para que o requerido não devesse ter assumido a dívida solidariamente com a requerida. Ou uma boa razão que devia ter sido alegada – permitindo a sua ponderação - para tentar convencer do contrário do que se deu como provado em G), inclusive neste recurso, pondo em crise esse facto. O que não foi feito.

                                                                 *

              Sumário:

              Quando um sócio-gerente de uma sociedade, por dificuldades de tesoura-ria da mesma, assume pessoalmente, perante o credor, solidariamente com a so-ciedade, o pagamento do total ainda em dívida e passa, para esse efeito, um cheque pessoal, há uma assunção cumulativa da dívida e não uma fiança.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.

              Custas pelo requerido.

Pedro Martins ( Relator )
Virgílio Mateus
António Carvalho Martins