Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
117/13.1T4AVR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: RETRIBUIÇÃO
ESPECIAL ATRIBUIÇÃO
CLÁUSULA
CONTRATO COLECTIVO DE TRABALHO
MOTORISTA
TRANSPORTE INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DA IRREDUTIBILIDADE DA RETRIBUIÇÃO
Data do Acordão: 01/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: CL.ª 74ª/7 DO CCT ENTRE A ANTRAM E A FESTRU; ARTºS 2º E 7º/2/4 DA LEI Nº 23/12, DE 25/6.
Sumário: I – O pagamento do montante devido ao trabalhador por força da cláusula 74ª/7 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a ANTRAM e a FESTRU, publicado no BTE 1ª série, nº 9, de 8/3/80, não pressupõe uma efectiva prestação de trabalho extraordinário e nocturno, sendo devido em relação a todos os dias do mês, mesmo que de descanso obrigatório, de férias, feriados ou folgas, independentemente da prestação efectiva de qualquer trabalho suplementar ou nocturno, acrescendo à retribuição base devida, sendo idêntico ao que é devido aos trabalhadores, em geral, que prestem a sua actividade laboral em regime de isenção de horário de trabalho.

II – Esta prestação constitui uma retribuição especial destinada a compensar os trabalhadores pela maior penosidade, esforço e risco acarretados pela possibilidade de desempenho de funções no estrangeiro.

III – A referida cláusula consagra um direito dos motoristas em serviço no transporte internacional a receber uma retribuição especial e específica que integra a retribuição global do trabalhador, não estando em causa qualquer compensação de trabalho suplementar efectivamente prestado pelo trabalhador.

IV – Da interpretação dos artºs 2º e 7º/2/4 da Lei nº 23/12, de 25/6, não pode extrair-se qualquer argumento no sentido da redução imperativa da prestação devida a título da cl.ª 74ª/7 citada, nos termos em que esta deveria ser quantificada à data da entrada em vigor dessa lei.

V – A Lei 23/12 deixou intocado o princípio da irredutibilidade da retribuição consagrado no artº 129º/d do CT/09, do qual resulta que a entidade empregadora só pode diminuir a retribuição nos casos previstos no próprio CT/09 ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.

VI – A diminuição do montante da retribuição específica da cl.ª 74ª/7 citada, por via da alteração imperativa da retribuição do trabalho suplementar, não se inclui entre os casos de admissibilidade de redução unilateral da retribuição previstos no CT/09 ou em qualquer dispositivo convencional aplicável à relação de trabalho entre as partes.

VII – É lícito ao empregador deixar de pagar ao trabalhador tal retribuição específica da cl.ª 74ª/7 se cessar de modo lícito a situação que serviu de fundamento à sua atribuição, ou seja, a afectação do motorista profissional ao serviço do transporte internacional, sem que daí decorra a violação do princípio da irredutibilidade da retribuição.

VIII – Ao invés, este princípio terá plena aplicação enquanto se mantiver o desempenho das funções de motorista afecto ao serviço do transporte internacional.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I - Relatório

O autor propôs contra a ré a presente acção com a forma de processo comum, pedindo que:
a) seja declarada ilegítima e ilícita a diminuição da retribuição paga pela ré ao autor, desde Agosto de 2012, a título de cláusula 74ª, nº 7 do CCTV aplicável;
b) seja declarado que a prestação auferida pelo autor, a título de cláusula 74ª, nº 7 do CCTV, à data da entrada em vigor da Lei 23/12, de 25/6, não pode ser diminuída por aplicação dessa Lei, e consequentemente ser a ré condenada a pagar ao autor a título de cláusula 74ª, nº 7 uma importância não inferior a € 393,90;
c) a ré seja condenada a pagar ao autor, desde Agosto de 2012, a diferença que se apurar devida entre o liquidado mensalmente a título de cláusula 74ª, nº 7 do CCTV e a importância de € 367,80;
d) a ré seja condenada a pagar ao autor juros à taxa legal, desde do vencimento das importâncias em causa até efectivo e integral pagamento.
Alega, em resumo, que sendo trabalhador subordinado da ré com a categoria de motorista profissional afecto ao serviço do transporte internacional, auferia da ré, a título de cláusula 74ª/7 do CCTV aplicável à relação de trabalho, uma quantia não inferior a € 393,90, sendo que a partir de Agosto de 2012, com fundamento na entrada em vigor da Lei 23/12, de 25/6, e das restrições por esta impostas em matéria de remuneração de trabalho suplementar, a ré reduziu aquela prestação retributiva para € 318,19, o que viola o princípio da irredutibilidade da retribuição.
A ré contestou, pugnando pela integral improcedência da acção.
Sustenta, em resumo, que a prestação retributiva prevista na cláusula 74ª/7 é, tecnicamente, remuneração do trabalho suplementar, não estando por isso abrangida pelo princípio da irredutibilidade da retribuição, estando antes sujeita às reduções imperativas à remuneração do trabalho suplementar decorrentes da Lei 23/12, de 25/6.
No despacho saneador, conheceu-se do mérito da acção e proferiu-se decisão de que cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:
Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, julgando-se a presente acção provada e procedente decide-se:
1 - Que o montante da prestação prevista no nº 7 cláusula 74ª da da CCT celebrada entre a ANTRAM – Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias e FESTRU - Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários Urbanos, publicada no BTE, de 08-03-1980, não pode ser reduzido por força da aplicação do art. 268º do C.Trabalho, na redacção introduzida pela Lei 23/2012 de 25.6 e do art. 7º, nº 4 desta mesma Lei, sendo ilícita a redução dessa prestação feita pela R. desde Agosto de 2012.
2 - Condena-se a Ré a pagar ao Autor a esse título a quantia mensal de € 393,90 que vinha pagando, bem como a diferença entre esse valor e o montante efectivamente pago (€ 318,19) desde Agosto de 2012 até ao trânsito em julgado da decisão da presente acção.
3 - Condena-se a Ré a pagar ao Autor juros de mora sobre as quantias mensais em dívida, desde a data do vencimento de cada uma das retribuições até efectivo e integral pagamento.”.
Do assim decidido, recorreu a ré, sustentando que a sentença recorrida “Deve ser substituída por outra que decida ter sido lícita a diminuição do valor pago ao A., Recorrido, a título de clª 74ª, nº 7 por força da entrada em vigor da Lei nº 23/2012, de 25 de Junho, com as legais consequências.”.
Apresentou as conclusões a seguir transcritas:
[…]
O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela integral manutenção do julgado.
A senhora Procuradora-Geral Ajunta emitiu no sentido de que o recurso deve improceder.
*
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir.
*
II – Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, é a seguinte a única questão a decidir: as alterações introduzidas pela Lei 23/12, de 25/6, em matéria de pagamento de trabalho suplementar, repercutem-se ou não no cálculo do montante devido por força da cláusula 74ª/7 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a ANTRAM - Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias e a FESTRU - Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários Urbanos, publicado no BTE, 1ª série, nº 9, de 8/3/80, com as sucessivas actualizações de que foi objecto – cfr. BTE´s nºs 18/86, 12/81, 16/82, 18/83, 18/86, 18/87, 28/88, 20/89, 19/90, 18/91, 25/92, 25/93, 24/94, 20/96 e 30/97  (doravante CCTV/80).
*
III – Fundamentação

A) De facto

Foram dados como provados os factos a seguir transcritos:

1. A R. é uma sociedade comercial anónima que se dedica à actividade de transportes nacionais e internacionais de mercadorias.
2. O A. foi admitido ao serviço da R. em 4.3.1994, através de contrato de trabalho.
3. Ao serviço da R., sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, o A. realiza transporte internacional de mercadorias, deslocando-se, para o efeito, para diversos países estrangeiros transportando mercadorias nas viaturas pesadas que a ré lhe adjudica.
4. O A. encontra-se filiado no Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal.
5. A Ré encontra-se filiada na ANTRAM- Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias- a qual, juntamente com a FESTRU e outras entidades, outorgou o C.C.T.V. celebrado entre a Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários e Urbanos e a ANTRAM- Associação Nacional de Transportadores Rodoviários de Mercadorias, publicado no B.T.E. n.º 9/80, com as alterações publicadas nos B.T.E. n.º 18/86, 20/89, 10/90, 18/91/, 25/92/, 25/93, 24/94, 20/96/ e 30/97.
6. Para pagamento do montante previsto na cláusula 74º, número 7 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a ANTRAM - Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias e FESTRU – Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários Urbanos, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª Série, n.º 9, de 8 de Março 1980, a R. pagava ao A. no ano de 2005, o valor mensal de € 376, 50 e, em consequência do sucessivo aumento de diuturnidades passou a ser de € 385,20 a partir de 1.3. 2006 e de € € 393,90 a partir de 1.3.2009.
7. Com fundamento nas alterações ao pagamento do trabalho suplementar introduzidas pela Lei 23/2012 de 25 de Junho
ao Código do Trabalho, a R., a partir do mês de Agosto de 2012, passou a liquidar mensalmente a Cl.ª74.ª n.º7 do C.C.T.V. pelo valor de € 318,19.”.
*
B) De direito


Questão única: as alterações introduzidas pela Lei 23/12, de 25/6, em matéria de pagamento de trabalho suplementar, repercutem-se ou não no cálculo do montante devido por força da cláusula 74ª/7 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a ANTRAM - Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias e a FESTRU - Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários Urbanos, publicado no BTE, 1ª série, nº 9, de 8/3/80, com as sucessivas actualizações de que foi objecto – cfr. BTE´s nºs 18/86, 12/81, 16/82, 18/83, 18/86, 18/87, 28/88, 20/89, 19/90, 18/91, 25/92, 25/93, 24/94, 20/96 e 30/97.
+
Importa, antes de mais, qualificar a prestação pecuniária devida pelos empregadores aos trabalhadores por força dessa cláusula 74ª/7, nos termos da qual “O trabalhador dos transportes internacionais rodoviários de mercadorias, tem direito a uma retribuição mensal, que não será inferior à remuneração correspondente a duas horas de trabalho extraordinário por dia.”, acrescentando o nº 8 da mesma cláusula que “A estes trabalhadores, de acordo com o estabelecido no número anterior, não lhes é aplicável o disposto nas cláusulas 39.ª (Retribuição de trabalho  nocturno) e 40.ª (Retribuição de trabalho extraordinário).”.
É sabido que a retribuição pode decompor-se em várias parcelas (art. 262º CT), como por exemplo a retribuição-base, os subsídios anuais, o pagamento de despesas, a retribuição por maior trabalho, outros complementos não regulares, outras prestações a cargo do empregador – sobre as diferentes parcelas em que pode decompor-se a retribuição pode consultar-se, por exemplo, Menezes Cordeiro (Manual do Direito do Trabalho, 1991, pp. 723 ss), Romano Martinez (Direito do Trabalho, 2002, pp. 531 e ss), Bernardo Lobo Xavier, (Iniciação ao Direito do Trabalho, 2006, pp. 403 e ss).
É sabido, igualmente, que partindo-se da constatação de que o desempenho da profissão do motorista do serviço internacional determina, por regra, a prestação de trabalho extraordinário e nocturno de difícil apuramento e controlo, bem assim como condições especiais de penosidade, de esforço e de risco ao nível do desempenho, o nº 7 da referida cláusula 74ª prevê uma prestação pecuniária através da qual se visa: a) compensar os trabalhadores do transporte internacional pela maior penosidade, risco e esforço acrescidos inerentes à sua actividade profissional prestada no estrangeiro; b) superar a dificuldade de verificação e apuramento do trabalho extraordinário efectivamente prestado, quando prestado; c) superar a dificuldade de verificação e apuramento do trabalho nocturno prestado, quando o é efectivamente.
Por isso mesmo e tal como vem uniformemente decidindo o STJ, o pagamento de tal prestação não pressupõe uma efectiva prestação de trabalho extraordinário e nocturno, é devida em relação a todos os dias do mês, mesmo que de descanso obrigatório, de férias, feriados ou folgas, independentemente da prestação efectiva de qualquer trabalho suplementar ou nocturno, acrescendo à retribuição base devida, sendo idêntica à que é devida aos trabalhadores, em geral, que prestem a sua actividade laborar em regime de isenção de horário de trabalho.
Não se trata, pois, de retribuição de efectivo trabalho suplementar ou nocturno, sendo que a referência a trabalho extraordinário constante da cláusula 74ª/7 está exclusivamente relacionada com a forma de fixação do montante da prestação devida – no sentido acabado de mencionar, podem consultar-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 12/2/92 (BMJ 414, p. 365), de 2/4/92 (in BMJ 416, p. 485), de 13/10/98 (BMJ 480º, p. 180), de 20/01/99 (BMJ 483º, p. 122), de 20/12/00 (www.dgsi.pt), de 9/4/03 (www.dgsi.pt), de 22/5/02 (www.dgsi.pt), de 18/1/05 (www.dgsi.pt).
Esta orientação jurisprudencial assim sedimentada voltou a ser reafirmada no acórdão do STJ de 9/6/10, publicado no DR, I Série, de 9/7/10, do qual podem extrair-se, entre outros, os seguintes ensinamentos:
a) a prestação devida pela cláusula 74ª/7 constitui uma retribuição especial destinada a compensar os trabalhadores pela maior penosidade, esforço e risco acarretados pela possibilidade de desempenho de funções no estrangeiro;
b) tal prestação faz parte da retribuição global devida ao trabalhador, independentemente da efectiva realização de trabalho extraordinário ou, sequer, do efectivo desempenho de funções em deslocação no estrangeiro, bastando a vinculada disponibilidade do trabalhador para esse efeito, destinando-se a referência feita a «duas horas de trabalho extraordinário», apenas, a fixar a base de cálculo daquela prestação;
c) apesar de ter como base mínima pecuniária de cálculo o mesmo valor diário da remuneração por trabalho extraordinário, a retribuição da cláusula 74ª/7 nada mais tem em comum com ela, sendo devida em relação a todos os dias do mês do calendário.
Concluindo, a cláusula 74ª/7 consagra um direito dos motoristas em serviço no transporte internacional a receber uma retribuição especial e especifica que integra a retribuição global do trabalhador, não estando em causa qualquer compensação de trabalho suplementar efectivamente prestado pelo trabalhador.
Como assim, não acompanhamos a ré, nem o parecer do Exmo. Prof. Dr. Menezes Cordeiro junto aos autos (fls. 29 a 74), na parte em que sustentam que a prestação pecuniária prevista na cláusula 74ª/7 tem a natureza de remuneração de trabalho suplementar calculado e remunerado a forfait.
+
Importa determinar, agora, se por via das restrições directamente introduzidas pela Lei 23/12, de 25/6, em matéria de remuneração de trabalho suplementar, também se reduziram as outras prestações retributivas que não constituindo remuneração de trabalho suplementar são, apesar disso, quantificadas com recurso aos normativos estipulativos da remuneração desse tipo de trabalho.
Estamos claramente colocados perante um problema de interpretação legal a solucionar à luz do disposto no art. 9º/1 do CC[1], com recurso, evidentemente, aos elementos literal, racional ou teleológico e histórico[2], tendo sempre “… em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”, e atendendo a que “Não pode (…) ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”.
Quanto ao elemento literal, lido e relido o art. 7º/2/4 da Lei 23/12, de 25/6, dele não se extrai a mínima referência, ainda que meramente implícita ou indirecta, a outras prestações retributivas para lá das correspondentes à prestação de trabalho suplementar ou em dia feriado, designadamente a prestações que eram determinadas com recurso aos critérios de quantificação da retribuição do trabalho suplementar que então se encontravam em vigor.
O nº 2 reporta-se, apenas, ao “… descanso compensatório por trabalho suplementar prestado em dia útil, em dia de  descanso semanal complementar ou em feriado.”, e o nº 4 aos “Acréscimos de pagamento de trabalho suplementar …” e à “Retribuição do trabalho normal prestado em dia feriado…”.
Essa ausência de qualquer referência a prestações retributivas para lá das correspondentes à prestação de trabalho suplementar ou em dia feriado também se verifica na nova redacção conferida pela Lei 23/12 aos arts. 268º/1 e 269º/2 do CT.
Quanto ao elemento racional ou teleológico, lida a exposição de motivos da proposta de Lei 46/XII dela também não se extrai qualquer referência a qualquer propósito de redução de outras prestações retributivas calculadas com recurso aos critérios quantificadores da remuneração de trabalho suplementar.
Nela se lê, apenas, o seguinte: “Ao nível da organização do tempo de trabalho, é adotado um conjunto de medidas em diversas áreas, com destaque para as matérias relativas à flexibilidade do tempo de trabalho, à retribuição do trabalho suplementar, às férias, feriados e faltas e à redução ou suspensão da laboração por motivos de crise empresarial.
(…)
A nível da retribuição de trabalho suplementar, salienta-se:
i) A eliminação do descanso compensatório em caso de prestação de trabalho suplementar, assegurando-se, em qualquer caso, o descanso diário e o descanso semanal obrigatório;
ii) A redução para metade dos valores pagos a título de acréscimo de retribuição;
iii) Em consonância com estas alterações, a redução para metade do acréscimo de retribuição devida por trabalho normal prestado em dia feriado em empresa não obrigada a suspender o funcionamento nesse dia.
Deve sublinhar-se que estas medidas assumirão caráter imperativo relativamente aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e aos contratos individuais de trabalho, pelo período de dois anos, contados da entrada em vigor das alterações ao Código do Trabalho. Após este período, no que concerne aos valores devidos a título de acréscimo de pagamento por trabalho suplementar ou de trabalho normal prestado em dia feriado em empresas não obrigadas a suspender o funcionamento nesse dia, e, caso as disposições que os preveem não sejam objeto de modificação, serão estes valores reduzidos a metade, até aos montantes previstos no Código do Trabalho.”.
Nem uma palavra, portanto, sobre propósitos de redução de outras prestações retributivas calculadas com recurso aos critérios quantificadores da remuneração do trabalho suplementar ou prestado em dia feriado então em vigor.
Ainda neste domínio importa ter em consideração que, como supra dito, a prestação prevista na cláusula 74ª/7: a) visa compensar o motorista do serviço internacional, para lá da eventual prestação de trabalho suplementar e independentemente dela, pela maior penosidade, risco e esforço acrescidos inerentes à sua actividade no estrangeiro, bem como a eventual prestação de trabalho nocturno de difícil verificação, controlo e apuramento, não sendo possível individualizar qual a parcela dessa retribuição especial que se reporta a trabalho suplementar, a que se reporta a trabalho nocturno e a que se reporta a compensação por especial penosidade, risco e esforço; b) tem uma natureza próxima da retribuição por isenção de horário.
Ora, lida aquela exposição de motivos, dela não se extrai o mínimo propósito de redução da retribuição por trabalho nocturno, nem da remuneração devida a título de isenção de horário de trabalho.
Assim sendo, sustentar-se que a redução imposta pelo legislador à remuneração do trabalho suplementar determina correspondente redução da prestação prevista na cláusula 74ª/7, significaria ter de sustentar-se que o legislador de 2012 também teria pretendido reduzir as prestações pecuniárias devidas pela prestação de trabalho nocturno ou em regime de isenção de horário de trabalho ou ainda em particulares condições de esforço, risco e penosidade, o que manifestamente não se deduz da Lei 23/12, nem da exposição de motivos da correspondente proposta de lei.
No que respeita ao elemento histórico, apesar da Lei 23/12 ter sido elaborada e aprovada em pleno período de vigência do denominado “Memorando da Troyka” (Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades da Política Económica), com um propósito ainda não alcançado de dar cumprimento aos termos no denominado “Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego”, assinado no dia 18/1/2012, pelo Governo e alguns dos parceiros sociais com assento na Comissão Permanente de Concertação Social, e num contexto socioeconómico a pressionar a redução dos custos empresariais com a mão-de-obra, o certo é que não divisamos ter sido assumido pelo legislador um propósito de redução generalizada e indiscriminada das prestações retributivas devidas aos trabalhadores do sector privado, maxime daquelas que não representando a remuneração de trabalho suplementar ou prestado em dia feriado  eram e são determinadas quanto à sua grandeza quantitativa com recurso aos critérios de quantificação da remuneração de trabalho dessa natureza.
Aliás, lido o referido Memorando da Troyka, designadamente o seu ponto 4 dedicado ao “Mercado de Trabalho e Educação”, dele se extrai como objectivos a alcançar, na parte que releva para os efeitos aqui em análise, o de “…facilitar os regimes dos tempos de trabalho para conter flutuações de emprego ao longo do ciclo, acomodar melhor as diferenças de padrões de trabalho nos diferentes sectores e empresas e aumentar a competitividade das empresas…”, assumindo o Governo Português, nessa matéria e com vista a alcançar aqueles objectivos, os compromissos de “Implementação dos Compromissos acordados no Acordo Tripartido de Março, em relação ao regimes dos tempos de trabalho e regime da redução temporária do período normal de trabalho ou suspensão do contrato de trabalho em situação de crise empresarial, facilitando o cumprimento de requisitos por parte dos empregadores para a introdução e renovação destas medidas.” e de “Revisão da retribuição especial pela prestação de trabalho suplementar prevista no Código do Trabalho: (i) redução para o máximo de 50% (dos actuais 50% para a primeira hora de trabalho suplementar, 75% para as horas seguintes e 100% para o trabalho suplementar em dia de descanso semanal ou em feriado); (ii) eliminação do descanso compensatório correspondente a 25% do trabalho suplementar prestado.” – ponto 4.6.
Dele não se extrai, pois, seja como objectivo, seja como compromisso para o alcançar, o de se determinar uma redução imperativa das prestações retributivas diversas das correspondentes à remuneração do trabalho suplementar, mas determinadas com recurso aos critérios quantificadores desta última remuneração.
Por outro lado, lido na parte com relevo para a situação em análise o Compromisso para o Crescimento, Competitividade e Emprego (ponto A), dele se extai o seguinte:
Por outro lado, é necessário aproximar os valores devidos em caso de prestação de trabalho suplementar daqueles que são aplicados em países concorrentes, assegurando contudo a adequada compensação do trabalhador pelo esforço acrescido inerente a este tipo de prestação. Assim, as Partes Subscritoras aceitam:
i) Eliminar, com carácter imperativo, relativamente a IRCT’s ou contratos de trabalho, o descanso compensatório, assegurando-se, em qualquer caso, o descanso diário e o descanso semanal obrigatório;
ii) Reduzir para metade os montantes pagos a título de acréscimo pela retribuição de trabalho suplementar (25% na primeira hora ou fração desta e 37,5% por hora ou fração subsequente, em caso de trabalho suplementar prestado em dia útil; 50% por cada hora ou fração, em caso de trabalho suplementar prestado em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, ou em feriado);
iii) Reduzir para metade os montantes atuais devidos a título de acréscimo retributivo pela prestação de trabalho suplementar constantes de IRCT ou contrato de trabalho;
iv) Durante dois anos, contados da entrada em vigor da lei que proceda às referidas reduções, os limites legais, com a redução operada, têm natureza absolutamente imperativa sobre quaisquer IRCT’s ou contratos de trabalho;
v) Decorrido o prazo de dois anos referido no item iv), aplicam-se os limites constantes de IRCT ou contrato de trabalho, reduzidos nos termos do item iii) se entretanto os mesmos limites não tiverem sido objeto de alteração, em sede de IRCT ou contrato de trabalho, caso em que se aplicarão os montantes resultantes dessas alterações;
vi) Reduzir para metade a retribuição do trabalho normal prestado em dia feriado em empresa não obrigada a suspender o funcionamento, sem prejuízo da manutenção da possibilidade de opção do empregador pelo descanso compensatório.”.
Também aqui não se encontra a mínima referência a qualquer propósito de redução imperativa de outras prestações retributivas para lá das destinadas à remuneração do trabalho suplementar propriamente dito e do trabalho normal prestado em dia feriado.
Do exposto se conclui, assim, no sentido de que da interpretação dos arts. 2º e 7º/2/4 da Lei 23/12 não pode extrair-se qualquer argumento no sentido da redução imperativa da prestação devida a título da referida cláusula 74ª/7 nos termos em que esta deveria ser quantificada à data da entrada em vigor dessa Lei; através desses normativos legais, o legislador apenas consagrou, como era sua intenção, uma redução imperativa das prestações retributivas destinadas à remuneração do trabalho suplementar propriamente dito e do trabalho normal prestado em dia feriado.
+
No entanto, existem prestações retributivas que eram e continuam a ser determinadas na sua grandeza quantitativa por remissão legal ou convencional para os critérios quantificadores da remuneração do trabalho suplementar, como sucede, por exemplo, com a cláusula 74ª/7 em apreço ou com a remuneração da isenção do horário de trabalho supletivamente fixada pelo art. 265º/1 do CT/09, que não foi alterado pela Lei 23/12.
A este específico propósito, invocamos aqui a lição de António Nunes de Carvalho (Tempo de Trabalho, in RDES, ano LIII, Janeiro/Junho, Ano 2012, n.ºs 1-2, pp. 45-46), onde pode ler-se o seguinte: “Quanto à Convenção Colectiva, podemos figurar várias hipóteses. Pode suceder que a convenção se limite a remeter para a regra legal, que se refira genericamente ao valor da hora de trabalho suplementar ou que articule essa referência com a definição do próprio valor de trabalho suplementar (remetendo para tal definição). Mas, em qualquer dos casos, a questão com que nos defrontamos é a mesma: a remissão operada para o critério de retribuição do trabalho suplementar torna esse critério como mero facto, que incorpora na regulação do montante do subsídio de isenção do horário de trabalho, ou, pelo contrário, torna-o como verdadeiro critério normativo, válido imediatamente para a definição do subsídio de isenção de horário de trabalho? Parafraseando BAPTISTA MACHADO, diríamos que “no primeiro caso, dada a sua própria intenção ou função regulamentadora, o elemento ou efeito normativo a que ela se refere não pode ser visado senão como um facto”, enquanto “no segundo caso, esse elemento ou efeito não pode ser visado senão como um critério normativo a que se quer atribuir validade”. Dizendo de outro modo, é necessário apurar se a remissão para o critério de retribuição do trabalho suplementar é uma remissão material ou uma remissão formal. Tratando-se de um problema de interpretação da norma remissiva, é, neste caso, crucial ter presente que em algumas situações se trata de remissão intra-sistemática (para outra cláusula da convenção colectiva que não foi alterada pelas partes, sofrendo apenas suspensão na respectiva vigência), enquanto noutras situações teremos remissão extra-sistemática, para a lei.
Deve, igualmente, ponderar-se que o preceito remissivo nasce de um acordo, expressão da autonomia privada, ora na sua vertente negocial, ora como autonomia colectiva.
Tendemos a considerar que quando a convenção colectiva, remetendo para o critério de remuneração do trabalho suplementar, o faz para uma sua cláusula (isto é, para um critério que ela própria define, ainda que em termos paralelos aos da lei), essa remissão deve ser interpretada em sentido material. E, nessa medida, não é relevante que essa cláusula, como critério normativo, tenha a sua eficácia suspensa por força do n.º 4 do art.º 7º da Lei n.º 23/2012: continuará a ser eficaz, nos seus precisos termos, por força e para os estritos efeitos da remissão (remissão estática). Pelo contrário, a mera remissão operada pelo instrumento de regulamentação colectiva para o critério legal de pagamento do trabalho extraordinário terá o sentido de uma remissão formal (e dinâmica).”.
Ora, na situação em apreço, o que verdadeiramente está em causa é, justamente, um caso de remissão intra-sistemática por parte da cláusula 74ª/7 do CCTV/80 para outra cláusula desse mesmo CCTV/80 (a 40ª), não tendo esta última sido objecto de qualquer alteração por via do contrato individual do trabalho ou de alterações ao mesmo.
Tudo a significar, por força da aplicação dessas cláusulas 40ª e 74ª/7 à relação de trabalho entre o autor e a ré, que à data da entrada em vigor da Lei 23/12 o autor tinha direito a uma retribuição específica correspondente a duas horas de trabalho extraordinário por dia, sendo a primeira remunerada com um acréscimo de 50% sobre o valor da hora normal e a segunda com um acréscimo de 75%.
É certo que aquela cláusula 40ª se deve ter por suspensa nos termos do art. 7º/4/a da Lei 23/12.
Porém, menos certo não é, como flui do supra exposto, que essa suspensão se deve ter por circunscrita à remuneração do trabalho suplementar propriamente dita, mantendo-se a vigência e eficácia dessa cláusula nos casos em que se faz por remissão para a mesma, contida no próprio CCTV/80, a determinação quantitativa de outras prestações retributivas devidas aos trabalhadores.
+
Como resulta do supra exposto, à data da entrada em vigor da Lei 23/12, o autor tinha direito a receber da ré uma retribuição específica correspondente a duas horas de trabalho extraordinário por dia (cláusula 74ª/7 do CCTV/80), sendo a primeira remunerada com um acréscimo de 50% sobre o valor da hora normal e a segunda com um acréscimo de 75% (cláusula 40ª do CCTV/80).
Por outro lado, o autor ficou constituído no direito a essa retribuição específica a partir do momento em que entre ele e a ré se celebrou o mútuo acordo a que se alude na cláusula 74ª/1/1ª parte do CCTV/80, por força do qual aquele direito passou a integrar o estatuto remuneratório do autor (cláusula 74ª/1/2ª parte do CCTV/80).
Tanto quanto resulta dos factos provados, esse mútuo acordo remonta, pelo menos, ao ano de  2005, a partir do qual a ré passou a pagar ao autor a retribuição específica ora em análise – ponto 6º dos factos provados.
Como assim, sufragar-se a posição da recorrente, tal redundaria numa aplicação imediata à relação de trabalho entre o autor e a ré da suspensão cominada no art. 7º/4/a da Lei 23/12 por referência à cláusula 40ª do CCTV/80, em consequência do que a quantificação da cláusula 74ª/7 deveria passar a fazer-se por remissão para o art. 268º/1 do CT/09, na redacção introduzida por aquela Lei, passando a primeira hora a ser remunerada com um acréscimo de 25% sobre o valor da hora normal e a segunda com um acréscimo de 37, 5%.
É certo que à redução retributiva daí decorrente não se opõe qualquer garantia constitucional referente a proibição de redução de retribuições.
Com efeito, “Não consta da Constituição qualquer regra que estabeleça a se, de forma directa e autónoma, uma garantia de irredutibilidade dos salários. Essa regra inscreve-se no direito infraconstitucional, tanto no Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas (artigo 89.º, alínea d)), como no Código do Trabalho (artigo 129.º, n.º 1, alínea d)).
Vem arguido que tal garantia, ainda que integrando a legislação ordinária, goza de “força constitucional paralela”, por via do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição.
Deve começar por se anotar que tal regra de direito ordinário apenas vale para a retribuição em sentido próprio. Na verdade, ela não abrange, por exemplo, as ajudas de custo, outros abonos, bem como o pagamento de despesas diversas do trabalhador (Maria do Rosário Ramalho, Direito do Trabalho, II, Situações laborais individuais, Coimbra, 2006, p. 564 e 551). Nessa medida, os subsídios de fixação e de compensação de que gozam os magistrados, expressamente equiparados a ajudas de custo, encontram-se, à partida, fora do âmbito da garantia.
Mas importa sobretudo sublinhar que a regra não é absoluta. De facto, a norma que proíbe ao empregador, na relação laboral comum, diminuir a retribuição (artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do Código de Trabalho) ressalva os “casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva do trabalho”. Quanto à relação de emprego público, admite-se que a lei (qualquer lei) possa prever reduções remuneratórias (cfr. o citado artigo 89.º, alínea d)). O que se proíbe, em termos absolutos, é apenas que a entidade empregadora, tanto pública como privada, diminua arbitrariamente o quantitativo da retribuição, sem adequado suporte normativo.
Deste modo, não colhe a argumentação de que existiria um direito à irredutibilidade do salário que, consagrado na legislação laboral, teria força de direito fundamental, por virtude da cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da Constituição. Se assim fosse, o legislador encontrar-se-ia vinculado por tal imperativo, o que, como vimos, não sucede. Em segundo lugar, não se pode dizer, uma vez garantido um mínimo, que a irredutibilidade do salário seja uma exigência da dignidade da pessoa humana ou que se imponha como um bem primário ou essencial, sendo esses os critérios materiais para determinar quando estamos perante um direito subjectivo que se possa considerar "fundamental" apesar de não estar consagrado na Constituição e sim apenas na lei ordinária (Cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª ed., Coimbra, 2009, p. 79-80).
De resto, o legislador constituinte teve a preocupação de estabelecer uma densa rede protectiva da contrapartida remuneratória da prestação laboral, dando consagração formal, no texto da Constituição, às garantias que entendeu serem postuladas pelas exigências de tutela, a este nível, da condição dos trabalhadores. Assim é que, para além do reconhecimento do direito básico à retribuição, manda-se observar o princípio de que “para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna” (alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º), fixa-se como incumbência do Estado “o estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional” (alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo), acrescentando-se, na revisão de 1997, a imposição constitucional de “garantias especiais dos salários” (n.º 3 do artigo 59.º). Não é de crer que o programa constitucional, tão exaustivamente delineado, nesta matéria, só fique integralmente preenchido com a atribuição da natureza de direito fundamental legal ao direito à irredutibilidade da retribuição, qualificação para a qual não se descortina fundamento material bastante.
Direito fundamental, esse sim, é o "direito à retribuição", e direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, como é pacífico na doutrina e este Tribunal tem também afirmado (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 620/2007). Mas uma coisa é o direito à retribuição, outra, bem diferente, é o direito a um concreto montante dessa retribuição, irredutível por lei, sejam quais forem as circunstâncias e as variáveis económico-financeiras que concretamente o condicionam. Não pode, assim, entender-se que a intocabilidade salarial é uma dimensão garantística contida no âmbito de protecção do direito à retribuição do trabalho ou que uma redução do quantum remuneratório traduza uma afectação ou restrição desse direito.
Inexistindo qualquer regra, com valor constitucional, de directa proibição da diminuição das remunerações e não sendo essa garantia inferível do direito fundamental à retribuição, é de concluir que só por parâmetros valorativos decorrentes de princípios constitucionais, em particular os da confiança e da igualdade, pode ser apreciada a conformidade constitucional das soluções normativas em causa.
Tem sido essa, aliás, a orientação constante deste Tribunal, sempre que chamado a julgar questões atinentes, directa ou indirectamente, a reduções remuneratórias. Foi assim no Acórdão n.º 303/90, sobre vencimentos dos ex-regentes escolares, no Acórdão n.º 786/96, sobre alterações ao Estatuto dos Militares das Forças Armadas, com repercussão no subsídio da condição militar, e no Acórdão n.º 141/2002, referente à fixação de limites de vencimentos a funcionários em funções em órgãos de soberania, a membros dos gabinetes de órgãos de soberania, a funcionários dos grupos parlamentares e a funcionários das entidades e organismos que funcionam juntos dos órgãos de soberania, a qual importou uma efectiva e significativa redução dos vencimentos auferidos por esses sujeitos. Independentemente do sentido das pronúncias, foi exclusivamente à luz do conteúdo normativo desses princípios que elas foram emitidas.” – acórdão do Tribunal Constitucional nº 396/2011, de 21/9/11, proferido no âmbito do processo n.º 72/11; no seu acórdão nº 353/2012, de 5/7, o Tribunal Constitucional respondeu mais uma vez de modo afirmativo à questão de saber se é possível reduzir os direitos salariais dos trabalhadores do sector público, contanto que, designadamente, se respeite o princípio da igualdade.
Ainda assim, importa ter presente que a Lei 23/12 deixou intocado o princípio da irredutibilidade da retribuição consagrado no art. 129º/d do CT/09, do qual resulta que a entidade empregadora só pode diminuir a retribuição nos casos previstos no próprio CT/09 ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
A diminuição do montante da retribuição específica da cláusula 74ª/7 por via da alteração imperativa da retribuição do trabalho suplementar não se inclui entre os casos de admissibilidade de redução unilateral da retribuição previstos no CT/09 ou em qualquer dispositivo convencional aplicável à relação de trabalho entre o autor e a ré.
Por consequência, à redução da retribuição específica da cláusula 74ª/7 pela qual propugna a recorrente opõe-se a dita garantia de irredutibilidade da retribuição.
Não desconhecemos que: a) o princípio da irredutibilidade da retribuição não incide sobre a globalidade da retribuição, mas apenas sobre a retribuição estrita, ficando dela afastadas as parcelas retributivas previstas para compensação de situações de maior esforço ou penosidade do trabalho, ou para compensação de situações de desempenho específicas (vg. isenção de horário de trabalho), ou ainda para compensação de situações de maior trabalho (trabalho prestado além do período normal de trabalho) - v.g. acórdãos do STJ de 17/1/07, proferido na revista 2188/06, de 9/1/08, proferido na revista 2906/07, e de 16/1/08, proferido na revista 3786/07; b) tais remunerações só serão devidas enquanto perdurar a situação em que assenta o seu fundamento; c) a cláusula 74ª/7 constitui, justamente, uma retribuição específica destinada a compensar uma situação mista de maior penosidade do trabalho, de desempenho  em condições específicas e de maior trabalho, não estando abrangida pela garantia da irredutibilidade da retribuição se, e apenas se, cessar o desempenho das funções no âmbito do transporte internacional de mercadorias.
Assim, é lícito ao empregador deixar de pagar ao trabalhador tal retribuição específica da cláusula 74ª/7, se cessar de modo lícito a situação que serviu de fundamento à sua atribuição, ou seja, a afectação do motorista profissional ao serviço do transporte internacional, sem que daí decorra a violação do princípio da irredutibilidade da retribuição.
Ao invés, aquele princípio de irredutibilidade terá plena aplicação enquanto se mantiver o desempenho das funções de motorista afecto ao serviço do transporte internacional.
No caso em apreço, não cessou a afectação do autor ao dito serviço do transporte internacional, que continuou a desempenhar.
Consequentemente, não podia a recorrente reduzir ao autor tal retribuição específica, por a tanto obstar a dita garantia de irredutibilidade.
+
Diga-se, também, que este Tribunal da Relação já teve oportunidade de se pronunciar, embora a respeito de questão diversa daquela que ora está especialmente em apreciação, sobre a aplicação daquela garantia de irredutibilidade a respeito e no âmbito da retribuição específica da cláusula 74ª/7 que tem vindo a ser referenciada.
Reportamo-nos à questão de saber se o montante dessa cláusula continuou a ser devido, justamente por causa dessa garantia de irredutibilidade,  nos subsídios de férias e de Natal, mesmo depois da entrada em vigor dos Códigos do Trabalho de 2003 e de 2009 e das alterações deles decorrentes quando ao conteúdo desses subsídios, no âmbito das relações de trabalho constituídas anteriormente à data da entrada em vigor do CT/03.
A esse respeito, esta Relação tem-se pronunciado uniformemente no sentido de que no âmbito dessas relações de trabalho o montante da cláusula 74ª/7 continuou a ser devido nos subsídios de férias e de Natal – por todos, acórdão de 6/6/2012, proferido no âmbito da apelação 294/10.6TTFIG.C1, de que foram adjuntos os também aqui adjuntos.
Assim sendo, por identidade de razão e mantendo-se o autor afecto ao serviço do transporte internacional, a dita garantia de irredutibilidade obsta a qualquer redução no montante a que ascendia a retribuição específica da cláusula 74ª/7 devida ao autor à data da entrada em vigor da Lei 23/12.
+
Uma última palavra para referir que não acompanhamos a recorrente quando sustenta que a manutenção da retribuição específica da cláusula 74ª/7 nos termos em que a mesma era calculada antes da entrada em vigor da Lei 23/12 ofende o princípio da igualdade, por implicar uma discriminação entre os motoristas afectos ao serviço nacional, que viram reduzida a remuneração do trabalho suplementar prestado a partir da entrada em vigor da dita Lei, e os motoristas afectos ao serviço internacional, que mantêm intocada aquela retribuição específica.
Sabe-se que o CT/09 consagra o direito à igualdade no acesso ao emprego e no trabalho:
O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.” – art. 24º/1.
O direito referido no número anterior respeita, designadamente:
a) A critérios de selecção e a condições de contratação, em qualquer sector de actividade e a todos os níveis hierárquicos;
b) A acesso a todos os tipos de orientação, formação e reconversão profissionais de qualquer nível, incluindo a aquisição de experiência prática;
c) A retribuição e outras prestações patrimoniais, promoção a todos os níveis hierárquicos e critérios para selecção de trabalhadores a despedir;
d) A filiação ou participação em estruturas de representação colectiva, ou em qualquer outra organização cujos membros exercem uma determinada profissão, incluindo os benefícios por elas atribuídos.” - art. 24º/2.
O mesmo CT/09 prevê como contra-ordenação muito grave a violação desse direito à igualdade (art. 24º/5 CT/09).
Importa dizer, no entanto, que não basta uma qualquer situação de tratamento diferenciado para que se tenha por violado o direito à igualdade consagrado naquele art. 24º/1 e, consequentemente, por preenchida a previsão típica do nº 5 do mesmo normativo.
Com efeito, aquele direito à igualdade constituiu uma das expressões do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado (art. 13º da CRP).
Por outro lado, é hoje pacífico que o princípio da igualdade não proíbe tratamentos  diferenciados de situações distintas, implicando antes que se trate por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual, de tal maneira que só haverá violação desse princípio da igualdade se houver tratamento diferenciado de situações essencialmente iguais.
Por outras palavras, o que esse princípio proíbe são as discriminações, as distinções sem fundamento material, porque assentes, designadamente, em meras categorias subjectivas – cfr. acórdãos do TC nºs 186/90, de 6/06/90, e 319/00, de 21/06/00, bem como Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 128.
Como assim, só pode ter-se por verificada uma situação de violação do princípio da igualdade se demonstrado estiver um tratamento diferenciado assente num qualquer factor de discriminação ilegítimo, designadamente ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical (art. 24º/1 do CT/09).
No caso em apreço, temos apenas um tratamento diferenciado dos motoristas afectos aos transporte nacional no que toca à remuneração do trabalho suplementar propriamente dito que lhes era garantida pelo cláusula 40ª do CCTV/80, relativamente aos seus motoristas afectos ao serviço internacional no que toca à remuneração que, com as finalidades supra referidas e que são mais abrangentes do que a mera compensação pela prestação de trabalho suplementar, lhes era e continua a garantida pela cláusula 74ª/7 do mesmo CCTV/80, ainda que com remissão para aquela cláusula 40ª.
Como assim, tratamentos diferenciados de trabalhadores com categorias profissionais distintas, sujeitos a diferentes condições de risco, esforço e penosidade no que à prestação do trabalho respeita, e relativamente a prestações retributivas diferentes; ou seja, tratamento diferente de situações diferentes a que não obsta o princípio da igualdade.
+
Flui de tudo quanto vem de expor-se que a decisão recorrida deve ser mantida.
*
IV - Decisão

Termos em que deliberam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pela ré.
Coimbra, 23/1/2014.

 (Jorge Manuel Loureiro - Relator)

 (Ramalho Pinto)

 (Azevedo Mendes)


[1] Como está escrito no parecer do Prof. Dr. Menezes Cordeiro que está junto aos autos, “… a interpretação e a integração das convenções coletivas seguem as regras próprias de interpretação e de integração da lei, com cedências subjectivistas quando estejam em causa aspetos que apenas respeitem às partes que as hajam celebrado.”; no mesmo sentido, JOSÉ ANDRADE MESQUITA, Direito do trabalho, 2ª., p. 229.
[2] Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 13ª, p. 181.