Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
138/06.0GBSTR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
MOTIVAÇÃO
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS: 127º, 410º, 412º,428º DO CPP
Sumário: 1.O recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.
2.Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

3.A diversidade das versões expostas não faz, necessariamente, operar o princípio in dubio pro reo. Este pressupõe um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório.

Decisão Texto Integral: A - Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca da Sertã correu termos o processo comum singular supra numerado no qual é arguido F.., divorciado, reformado, nascido em 29/…1955, em …. Sertã, titular do Bilhete de Identidade n.º…. emitido em 19/…/2003, filho de J. e de M., residente…., Sertã, e este foi, por sentença de 22-/…/ 2009:

Condenado pela prática, em autoria material, de um crime de dano com violência, p. e p. pelo artigo 214.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão.

Cuja execução foi suspensa, pelo período de 15 (quinze) meses, subordinada à condição de o arguido proceder, no referido período, ao fAssociação de Apoio às Crianças Infectadas pelo vírus da sida e suas Famílias” (Rua Pedro Calmon, n.º 29, 1300-455 Lisboa - tel: 213625771/2; fax: 217957423), comprovando nos autos esse pagamento.

E foram julgados os pedidos de indemnização civil deduzidos pelos demandantes A. e M. parcialmente procedentes por provados e, em consequência, condenado o demandado F  a pagar:

-  ao demandante A a quantia de € 63,30 (sessenta e três euros e trinta cêntimos) a título de danos patrimoniais; e o montante de sendo € 600,00 (seiscentos euros) a título de danos não patrimoniais sofridos por aquele;

- à demandante M. a quantia de € 3.483,67 (três mil quatrocentos e oitenta e três euros e sessenta e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais; e o montante de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) a título de danos não patrimoniais sofridos por aquela;….


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A. e M. deduziram pedidos de indemnização cível contra o arguido F. nos termos exarados a fls. 123 e segs., peticionando a condenação deste a pagar-lhes o montante global de € 8.623,80, sendo € 2.500,00 a título de danos morais sofridos por cada um dos demandantes, € 63,30 a título de danos patrimoniais sofridos pelo demandante Américo e € 3.560,50 a título de danos patrimoniais sofridos pela demandante M.

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Inconformado, interpôs o arguido o presente recurso peticionando a sua absolvição ou, caso assim não se entenda, seja decretada a nulidade da sentença por violação do disposto no n° 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, com as seguintes conclusões:

1) A douta decisão ora impugnada incorreu, por um lado e salvo o devido respeito, num claudicante apuramento da matéria de facto provada e, por outro, numa tergiversante fundamentação que descurou o correcto entendimento dos princípios do in dubio pro reo e da livre convicção do julgador, ao ter dado como provados os factos 3 a 17, ali melhor descritos, que contradizem as declarações prestadas pelos ofendidos em sede de julgamento.

2) O ofendido A começou por referir que, no dia a que os factos se reportam, se tinha deslocado, juntamente com a sua esposa, à localidade do .. - a fim de aí entregar uma encomenda de velas ao sacristão, de seu nome J, o qual posteriormente transportou até casa, permanecendo à conversa com o mesmo - acrescentando que o recorrente passou de carro, dizendo «boa tarde» e que não lhe terá respondido porque estavam de relações cortadas.

3) O ofendido também refere que o recorrente passou uma segunda vez, repetindo o cumprimento, numa alegada intenção provocatória que tenta ilustrar ao declarar que todos estariam de relações cortadas com aquele.

4) Logo nesta ocasião, a testemunha JN juntou-se ao grupo que ali se encontrava e se, por um lado, quanto a este indivíduo, o ofendido não soube esclarecer se também ele se encontrava de relações cortadas com o recorrente, por outro, veio o próprio esclarecer o Tribunal que retribuiu o cumprimento ao recorrente, seu vizinho, não tendo falado em qualquer relacionamento tenso com o mesmo.

5) Isto é, o esforço que o ofendido nestes autos empreendeu no sentido de retratar o recorrente como uma pessoa de mau trato encontra aqui, desde logo, a sua primeira incongruência, não podendo igualmente deixar de causar estranheza o facto de o casal, unidos no medo e no suposto trauma que sofreram com a conduta do recorrente, tenham divergido num pormenor tão simples quanto este; de facto, a ofendida M assegurou veementemente que todos os que ali se encontravam estavam de relações cortadas com o recorrente.

6) O que é certo é que o recorrente tem casa na localidade onde se cruzou com os ofendidos; conhece os seus vizinhos e mantém relações cordiais com eles; até a testemunha J N veio dizer que nunca teve nenhuma questão com o arguido.

7) Por outro lado, resulta como conveniente o relato do ofendido de que, ao longo da sua vida, tenha consultado psiquiatras e andado em tratamento com «neurologistas» e, no entanto, seja peremptório em afirmar que só precisamente depois dos factos tenha voltado a consultar, por uma vez apenas como resulta dos autos um especialista dessa área; isto é, a contradição é patente.

8) Mais: após ter confirmado que foi desde uns alegados telefonemas ameaçadores - cuja autoria imputou ao arguido que ficou com receio deste, Américo Silva não soube explicar porque é que, após se ter cruzado em sentido contrário com o recorrente, já no caminho mais longo que tinha escolhido como forma de o evitar e já na subida até ao local onde tudo se terá alegadamente passado, não fez imediatamente marcha-atrás, na certeza de que, como diz, reconheceu o carro «logo cá do fundo», precisando a distância em «trezentos metros».

9) Resulta igualmente como estranho o facto de A não saber dizer se a sua esposa também reconheceu o automóvel; é que ficou claro, segundo o ofendido, que ambos trocaram abundantes impressões acerca da atitude anterior do seu cunhado e irmão, aqui recorrente e do medo que a mesma lhes tinha instilado.

10) Quanto à questão de saber porque é que não recuou, afastando-se do carro do Recorrente, o ofendido declara que não responde a essa pergunta; e quando é aventada a hipótese mais provável de, no instante em que supostamente se deu conta de que o carro que tinha avistado a trezentos metros - era realmente do arguido, ter-se prestado a avançar, qual atitude natural ou instintiva de fugir ao alegado perigo, A perde-se em congeminações acerca de transgressões estradais que, note-se, acabou por cometer.

11) E nem queira o ofendido convencer este Alto Tribunal que apenas não fez naquele primeiro instante o que acabou por fazer depois, apenas porque o recorrente estaria fora do seu automóvel; recorde-se que nas suas declarações, o mesmo alternou, conforme lhe conveio entre dizer que o recorrente estava dentro do carro tendo saído para agredir o casal e que já estaria fora, à beira do mesmo, tendo-se encaminhado para o lugar onde se encontravam.

12) Não pode deixar de causar dúvida mais que razoável, o facto de o ofendido ter tido tempo ou calma para parar o seu veículo a cinco metros do automóvel do recorrente, apitar e estar à espera que aquele o mesmo que, alegadamente, fazia ameaças por telefone ainda fosse cumpridor das normas de trânsito.

13) Por outro lado, a ofendida M afirmou que o ora recorrente terá mostrado um tom agressivo quando cumprimentou, por duas vezes, os seus vizinhos, que na povoação também já mencionada, se tinham juntado ao casal, permanecendo à conversa; e que terá sido a esse primeiro sinal de aviso que, pelo menos o seu marido, tomou a decisão de rumar à casa de ambos, …, pelo trajecto mais longo.

14) Não se compreende, pois, como é que tal sentimento de urgência ou de extremo alerta e cuidado se poderia compaginar com o vagar e o tempo que a mesma despendeu, já na estrada, no encontro que teve com uma conhecida sua, M L.

15) De resto, o seu marido teve a preocupação de, na versão que apresentou dos factos, acrescentar UID toque dramático a tal episódio, declarando que, por diversas vezes, aconselhou a ofendida a sair o mais rapidamente possível do local onde se encontravam.

16) Causará, pois, estranheza seguindo a lógica das declarações do ofendido - o facto de a ofendida lhe ter respondido que já não via a M L há muito tempo e que era sua intenção ali ficar mais UID pouco.

17) Tal como não se compreende porque é que logo no início do seu depoimento, a ofendida M tem a preocupação de mostrar UID suposto clima de tensão comum a todos os que ali se encontravam, para logo de seguida, asseverar que não sentiu medo e que se o tivesse sentido teria procurado refúgio em casa de alguém; deixando apenas para o momento em que privou à beira da estrada com a M L o supostamente verdadeiro sentimento de receio; a única altura em que, alegadamente, o seu «coração ficou preto» ...

18) Não pode deixar de ser legítima a interrogação no sentido de perceber como é que, ao ser feita a escolha por um trajecto mais longo, tenha a mesma perpassado um certo contexto em que o casal não adivinhava, nem pelas aparências, o medo UID do outro, relativamente ao Arguido.

19) Por outro lado, se A não tomou conta ao certo das escoriações que sofreu, tendo apenas referido o lado esquerdo do seu pescoço, já M afirma peremptoriamente que «o braço direito não ... não foi atingido»; tendo sido apenas no momento em que lhe foi feita a ressalva de poder não se ter apercebido de lesões no braço direito do marido, que entendeu por conveniente tornar as suas declarações mais consentâneas com o relatório médico-legal.

20) Quanto ao momento concretamente definido em que os ofendidos se encontraram com o recorrente na estrada, M. diz que viu um carro branco parado ao começo da subida e que só apenas mesmo junto a ele, conseguiu ver que era um Renault … - algo de que A já se teria dado conta a trezentos metros, apenas se preocupando em confirmar a matrícula da viatura.

21) A ofendida diz ainda que só notou realmente medo no seu marido quando o recorrente se dirigiu ao seu automóvel, isto depois de ambos, lado a lado, terem sido agredidos, de A ter trancado as portas do veículo, de ambos se terem cruzado em sentido contrário com o recorrente, de terem sido abordados pelo mesmo, por duas vezes na povoação do … e inclusivamente o senhor J, segundo a ofendida, lhes ter supostamente dito para terem cuidado, uma vez que o recorrente os andaria a provocar.

22) Do relato contraditório dos ofendidos ficou ainda por responder ao certo acerca da quantidade de danos alegadamente provocados pelo recorrente no veículo daqueles, sendo certo que na altura da denúncia, a 24 de Junho de 2006, o recorrente terá dado três toques com duas pedras; seis meses depois apenas dois toques; e na audiência de julgamento, tudo somado pelos depoimentos dos ofendidos, quatro toques.

23) A ofendida M refere um toque na traseira do seu veículo, que A não fez notar nas suas declarações porque, ao contrário da esposa, que transportava ao seu lado, disse que o recorrente, já após todos os estragos produzidos, passou pela frente do veículo, dirigindo-se ao seu Renault...

24) Por outro lado, não deixando de referir que as versões dos ofendidos não coincidem acerca da forma da pedra que foi parar aos pés de M, convém não esquecer que A afirmou não saber onde o recorrente, que, segundo ele, passou, ainda num primeiro momento, à frente do veículo, foi buscar a segunda pedra com que produziu os restantes danos, já no lado do passageiro.

25) M. assevera que o recorrente terá ido buscar a pedra à barreira que existia do lado esquerdo, ou seja, do lado do condutor; referindo ainda que o marido não terá arrancado com o automóvel porque o recorrente, de fora e ao seu lado, estaria nessa tal barreira, em posição de poder ser colhido.

26) No entanto, A. apenas disse que decidiu não arrancar, num primeiro momento, porque o recorrente não teria o direito de o fazer transgredir.

27) E, de acordo com M., também não terá arrancado quando o recorrente deu a volta pela traseira do carro, afirmando desconhecer a razão por que o seu marido pareceu ter ficado à espera que o recorrente voltasse para uma posição próxima relativamente a este.

28) Questionada sobre a possibilidade de haver algum obstáculo que impedisse o Recorrente de se dirigir para o seu Renault… pela frente do veículo do casal, como seria mais lógico, a ofendida diz «não faço ideia... a razão seria ele querer provocar mais danos no carro»; danos que A.. não referiu, porque, segundo ele, o recorrente passou, precisamente, pela frente do veículo.

29) Resulta como nebulosa a parte final dos acontecimentos, nomeadamente o arranque em fuga do casal, em que A e M. contradizem-se, garantindo um que acertou no arguido e na porta do veículo deste e garantindo outro que o seu automóvel não tocou no recorrente; preocupando-se, no entanto, em afirmar, olhando por um qualquer espelho retrovisor, que o arguido se encontrava em pé e aos pulos, o único aspecto em que ambos concordam.

30) Embora não se entendendo que a versão dos ofendidos esteja em pé de igualdade com a versão do Recorrente, importando uma repartição do ónus da prova que, no processo penal, não se admite, sempre interessa saber se a versão do recorrente é descabida e desprovida de lógica.

31) O recorrente disse que se vedação quando viu o automóvel cinco metros do seu, saindo lá encontrava a medir uma dos de ofendidos dentro o parar a ofendido A, munido com um ferro e caminhando na sua direcção; ao que o recorrente terá fugido em direcção ao seu automóvel, acompanhado do ofendido a fazer o regresso ao seu próprio carro, onde engatou a primeira e arrancou, acabando por colher aquele e levando-o em cima do capôt.

32) A testemunha J N ao ter confirmado o teor do auto do acidente participado pelo recorrente confirmou a existência de marcas de pneus no asfalto que se prenderiam com um arranque efectuado por um veículo que, à altura da chegada das autoridades, já não se encontrava no local.

33) Tal testemunha admitiu também como possível que a distância entre a porta do recorrente e o local onde o mesmo disse estar à altura da chegada dos ofendidos junto de si era maior do que aquela que correspondesse ao posicionamento do veículo em linha recta vertical e não oblíqua como o mesmo estava.

34) Por o terreno adjacente à estrada ser em terra, impossibilitando uma fuga acelerada e sem derrapagens, mesmo a cinco metros entre uns e outro, o recorrente demoraria sempre mais tempo a chegar ao seu veículo, em posição oblíqua, refugiando-se do ofendido A, do que aquele que gastaria, caso o carro estivesse em posição direita.

35) Se se justifica a descredibilização fundamentada de tal narrativa com o facto de que não haveria tempo para tanto, dada a pressuposta distância de cinco metros entre os dois veículos, também tal argumento deveria servir para analisar um outro aspecto.

36) Ou seja, os ofendidos dizem que o recorrente se dirigiu até ao seu automóvel, munido da pedra que ora é triangular, ora é rectangular, principiando o seu rasto de destruição pelo vidro do lado do condutor, vindo posteriormente ao pára-brisas do lado direito, depois ao esquerdo, prosseguindo para o lado do passageiro e, segundo o depoimento de M, em exclusivo, de seguida dando a volta pela traseira.

37) É em tudo gritante a plausibilidade que se encontra para o tempo que o recorrente conseguiu arranjar para praticar tal acto de violência; sendo ainda certo que, mesmo embora bloqueados com o suposto medo, os ofendidos acabaram por se por em fuga.

38) Por outro lado, persiste a interrogação legítima de como é que o recorrente, munido, como estava, de uma pedra mais não fez do que partir o vidro do lado de A.

39) Junte-se isso ao facto de os ofendidos não terem memória precisa dos ferimentos sofridos por um deles e talvez o juízo decisório já em primeira instância teria sido diferente.

40) Tal como teria sido forçosamente diferente se se tivesse dado o devido valor ao que disse JN acerca da inexistência de vidros espalhados pelo chão; segundo as regras da experiência, sempre haveria de se convir que mesmo um impacto de uma pedra de dentro para fora, teria que deixar alguns vidros no asfalto.

41) E foi mesmo juntamente com a testemunha JN, testemunha M N que garantiram que o arguido foi encontrado a sangrar da cabeça, tendo sido forçado a receber os primeiros socorros no local e vendo o seu carro ser rebocado, o que foi dado como provado na douta sentença.

42) Quanto ao pedido de indemnização demandante M nem a testemunha civil, nem a JM, souberam explicar porque é que em documento apresentado nestes autos e aqui melhor identificado, se diz que, quanto às datas de reparação, não podem as mesmas ser alteradas, subsistindo ainda as maiores dúvidas, no que concerne ao período de privação de uso do veículo sinistrado.

43) Por outro lado, não ficou de modo nenhum respondido a razão pela qual os demandantes, ao terem pago a franquia respectiva à seguradora, não solicitaram junto desta o aluguer do tal veículo de substituição, tudo na certeza de que possuíam um seguro contra todos os riscos; ou seja, o que o recorrente entende é que nunca poderia ser penalizado pelo facto de a demandante ter escolhido uma opção que não encontra directo correspondente nos mecanismos próprios do contrato de seguro automóvel.

44) A ser condenado o Arguido em alguma quantia, apenas o deveria ter sido relativamente ao agravamento do prémio do seguro.

45) Na motivação da douta sentença, o tribunal a quo começa logo por dizer que o arguido apresentou uma versão dos acontecimentos que aqui se discutem completamente inverosímil e contrária à matéria fáctica transmitida pelas testemunhas presentes, os ofendidos A e M; não tendo, pois, levado em consideração pelo peso que deu às suas declarações o facto de que os mesmos eram partes interessadas na procedência da sua versão.

46) Dito de outro modo, a douta sentença obnubilou o princípio do in dubio pro reo ao ter declarado a sua crença integral na versão que os ofendidos apresentaram de acontecimentos que só por eles próprios foram presenciados.

47) E mesmo quando reconhece que o arguido foi alvo de um embate pelo carro do casal, o certo é que se esquece, das incoerências que os seus dois ocupantes revelaram quanto a esse particular, sendo até certo que os danos apresentados no pára-brisas do automóvel dos ofendidos, mesmo segundo as regras da experiência, mostram-se, afinal, quando tudo bem ponderado, compatíveis com a versão do recorrente.

48) É que se se admite que as zonas de impacto são pronunciadas, não esquecendo que o arguido é uma pessoa forte e bem constituída, admitindo que, de acordo com a prova documental, ao capôt do veículo não é conferido o mesmo pormenor que às restantes zonas afectadas, o tribunal a quo poderia ter ainda duvidado do que foi oferecido pelos ofendidos como a absoluta verdade.

49) Resultando como provado que o arguido estaria a medir uma vedação e que, já no final, ficou a sangrar da cabeça, não se compreende como é que o tribunal a quo, no seu douto entendimento, possa ainda dizer que a versão do recorrente não se mostrou como convincente, como, de resto, nem tinha que o mostrar.

50) O tribunal recorrido não poderia dizer, num primeiro momento, que o recorrente se encontrava a medir uma vedação, para depois já o desacreditar quando o mesmo declarou ter sido vítima de uma agressão por parte dos ofendidos, acabando até por dar como provado que o mesmo ficou a sangrar da cabeça; e isto sem esquecer ainda que das declarações prestadas pelos ofendidos resulta uma manifesta incerteza ou incoerência acerca da possibilidade de o seu automóvel ter tocado no corpo do arguido.

51) Se ao julgador está reservado o princípio da livre convicção, o mesmo tem de ser observado dentro de certos parâmetros e combinado com o princípio do in dubio pro reo.

52) Para que este venha a ser respeitado torna-se necessário que o juízo decisório ultrapasse o limiar da subjectividade de onde começa por partir e atinja o patamar de uma dúvida que tem de ser racional e susceptível de ser objectivável.

53) Não há melhor momento para encarar tal dúvida quando ela se apresente num contexto como o dos autos, em que das declarações de partes interessadas e únicas testemunhas se retiram objectivas contradições que poderiam muito bem ter constituído esse núcleo de razoabilidade que daria cumprimento tanto a um como a outro princípio, concretizando ainda a garantia da presunção da inocência.

54) Uma presunção de inocência que, segundo o que se lê, teria, afinal e inaceitavelmente, que repartir um qualquer ónus da prova não consagrado ou estabelecido em processo penal.

55) Foram violadas, entre outras, as normas dos artigos 127°, do Código de Processo Penal, Constituição da República Portuguesa, mostrando-se, em consequência, incumprido o princípio do in dubio pro reo.

TERMOS EM QUE:

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e a decisão proferida substituída por outra que absolva o recorrente tanto da prática do crime como do pedido de indemnização civil por que foi condenada.


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Contra motivou a ofendida e demandante cível defendendo a manutenção do decidido.

Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Sertã concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se na íntegra a sentença recorrida.

O Exmº. Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação reservou a sua posição para a audiência de julgamento.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal e o arguido não apresentou resposta.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal (artigo 423 do CPP).


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B - Fundamentação:

B.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1) Desde data concretamente não apurada, o arguido vinha mantendo um desentendimento com a sua irmã M e com A, marido daquela.
2) No dia 24 de …de 2006, pelas 18 horas e 30 minutos, o arguido encontrava-se parado próximo de um cruzamento sito em… Sertã, a analisar e medir uma vedação existente na berma da estrada, no respectivo lado direito, atento o sentido ascendente da via.
3) O arguido aproximou-se do veículo então conduzido por A, onde este fazia transportar M.
4) − Aquele veículo conduzido por A tinha a matrícula ….NG, era da marca “Ford”, modelo .. e pertencia a M
5) − A parou o seu veículo, uma vez que o arguido tinha imobilizado o automóvel que conduzia, de matrícula ---ST, quase no meio da estrada.
6) − O arguido muniu-se com uma pedra de xisto, em forma de triângulo, com cerca de 12 de base, 8 cm de altura e 10 cm de espessura.
7) − O arguido aproximou-se do automóvel onde se encontravam A e M, bateu com tal pedra várias vezes no vidro da porta do condutor, dizendo, nomeadamente, “ó cabrão, abre a porta, meu cabrão, eu quero-te matar a ti e a essa puta”.
8) − Seguidamente, o arguido procurou abrir a porta do condutor, o que não logrou fazer por se encontrar trancada.
9) − Após, o arguido arremessou tal pedra contra o vidro da porta do condutor, pelo que, desse modo, o vidro estilhaçou-se e a pedra veio a entrar dentro do automóvel onde estava A.
10) − Desse modo e devido à projecção dos estilhaços, causou o arguido escoriações no antebraço esquerdo e direito de A e equimose da pálpebra superior, o que lhe determinou oito dias para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
11) − De seguida, o arguido muniu-se com uma outra pedra e, com ela, bateu por diversas vezes no lado direito do pára-brisas do automóvel de M partindo-o.
12) − Após, o arguido procurou abrir a porta do passageiro do lado direito da frente do veículo, onde se encontrava M mas não o logrou fazer, por a porta se encontrar trancada.
13) − Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, resultaram estragos no automóvel de M.
14) − O arguido agiu de forma livre, voluntária, com o propósito concretizado de, com a conduta descrita, estragar o vidro do veículo que sabia pertencer a terceiro, bem sabendo que agia contra a vontade da sua legítima dona, bem sabendo ainda que, com a sua conduta e ao partir o dito vidro da forma descrita, poderia molestar, como molestou, a saúde de A, resultado esse que representou e com o qual se conformou.
15) − O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
16) − Quando A arrancou com o Ford em velocidade acelerada, além de bater com o carro no arguido, também embateu na porta do lado do condutor do Renault onde ele se aprestava para entrar, porta que ficou com estragos.
17) − Logo após, e mais adiante, A parou o carro que conduzia para se inteirar do estado do arguido, prosseguindo depois a sua marcha.
18) − O arguido ficou a sangrar na cabeça.
19) − O arguido chamou o 112 através de um telemóvel que uma senhora que mora nas imediações lhe facultou.
20) − O arguido recebeu tratamento médico no Centro de Saúde da Sertã no próprio dia 24 de .. de 2006.
21) − A e M foram ao Centro de Saúde de Sertã, com o que o demandante A despendeu a quantia de € 3,30.
22) − M participou o sucedido à sua Seguradora “Companhia … S.A.”, a qual reparou a viatura e prevê uma agravação da apólice do seguro em € 38,81 por ano.
23) − Enquanto a viatura, com a matrícula ….NG, se encontrou a reparar, a ofendida M. necessitou de um veículo de substituição, no período compreendido entre 26 de… de 2006 e 11 de … de 2006, tendo pago o montante de € 54,90 por dia, o que perfaz um total de € 2.580,30, a que acresce o respectivo IVA, perfazendo o total de € 3.122,17.
24) − M pagou ainda uma franquia de sinistro no valor de € 361,50.
25) − A necessitou ainda de tratamento psiquiátrico por causa do comportamento do arguido, tendo dispendido a quantia de € 60,00.
26) − A e M ficaram aterrorizados com a violência do ataque de que foram alvos.
27) − A e M chegaram a temer pela própria vida.
28) − A passou várias semanas sem conseguir sair de casa, a não ser para consultas médicas.
29) − A viveu momentos de pânico e muita ansiedade, sem conseguir dormir e temendo que o arguido concretizasse as ameaças proferidas.
30) − A sentiu dores nos braços, peito e cabeça, atentas as escoriações sofridas nas referidas partes do corpo.
31) − O arguido recebe € 545,65 mensais de reforma e tem diversos imóveis.
32) − O arguido paga € 250 mensais de renda da habitação e € 30 euros mensais de prestação de alimentos.
33) − O arguido cultiva uma horta donde retira alimentos para consumo próprio.
34) − O arguido é divorciado e tem o 9.º ano de escolaridade.
35) – O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
36) Por sentença proferida em 19 de … de 2005, e transitada em julgado em 3 de .. de 2005, nos autos de Processo Comum Singular n.º ../03.1TASRT, do Tribunal Judicial da Comarca da Sertã, foi o ora arguido condenado, pela prática, em 17/…/2003, de um crime de desobediência e de um crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, na pena de multa de 140 dias, à taxa diária de € 5,00. Por decisão de 15/…/2008, foi declarada extinta, por cumprimento, a pena em que o arguido havia sido condenado.
37) Por acórdão proferido em 18 de .. de 2007, transitado em julgado em 19 de Novembro de 2007, nos autos de Processo Comum Colectivo n.º …./02.8GBSRT, do Tribunal Judicial da Comarca da Sertã, foi o ora arguido condenado, pela prática, em 13 de … de 2002, de um crime de maus tratos a cônjuge, previsto e punido nos termos do disposto nos artigos 152.º-A, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 (três) anos.


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E como não provados os seguintes factos:
I. − O arguido havia colocado o seu veículo matrícula ….-ST no meio da estrada, de modo a impedir a passagem do veículo dos queixosos.
II. − M nunca mais conseguiu sair de casa descansada.
III. − M ainda hoje receia que, em qualquer lugar, lhe apareça pela frente o arguido e protagonize novas agressões, ou que concretize as ameaças de morte proferidas.
IV. − M passou também várias noites sem dormir.
V. − Seguidamente, o arguido bateu por diversas vezes com aquela pedra naquela porta do automóvel.
VI. − De imediato aquele A saiu do Ford e, munido de um ferro, ameaçou o contestante de morte, no que foi secundado pela esposa Â.
VII. − O arguido fugiu em direcção ao Renault estacionado. E o A e M, vendo gorada a hipótese de o agredirem com o ferro, meteram-se dentro do Ford e arrancaram em alta velocidade.
VIII. − Com o embate, o arguido foi levado pelo Ford, em cima de cujo capôt percorreu cerca de 20 a 30 metros, sendo depois projectado para o lado esquerdo da estrada, onde ficou prostrado e inanimado no solo durante cerca de 20 a 30 minutos, sem que o assistente e a esposa, que bem viram que o contestante estava ferido.


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E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:
“Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, inexistindo, portanto, quaisquer critérios pré-definidores do valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios.
A convicção do Tribunal fundou-se em todos os meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento, nomeadamente, nas declarações do arguido F, e das testemunhas A, M, JM , V N, S P, F, H, J N, HP, AR, AV, F, C, E, M, JN, MF, MM, bem como nos documentos juntos aos autos, designadamente, de fls. 7-9, 33-38, 40, 56-58, 64-65, 128-132, 167, 169-170, 190-191, 224-233, 250-256, 282-295, 301-306, 384, e o certificado do registo criminal do arguido de fls. 172-174.
Quanto ao arguido F, a verdade é que não foi convincente nas suas declarações, aliás, faltou claramente à verdade nas declarações que produziu sobre os factos que lhe são imputados na acusação pública, mostrando-se também hesitante e intranquilo nas respostas e afirmou factos frontalmente contrários ao afirmado por testemunhas que o Tribunal julgou credíveis, e contrários aos elementos documentais constantes nos autos, pelo que aquelas declarações apenas auxiliaram o Tribunal a formar a convicção em sentido contrário à versão do arguido.
De referir também que o arguido em nada auxiliou o Tribunal na tarefa de apreender a realidade dos factos.
O arguido apresentou na audiência de discussão e julgamento, em sua defesa, uma versão manifestamente inverosímil, não só por ser contrária às regras da experiência e do normal acontecer dos factos, mas igualmente por ser frontalmente oposta à matéria fáctica transmitida pelas testemunhas presentes: os ofendidos A e M.
Nesse sentido, saliente-se a circunstância de o arguido afirmar que estava junto à traseira do seu veículo, do lado direito, e viu o carro conduzido pelo ofendido A parar a cerca de 5 metros do carro do arguido, aquele sair empunhando um ferro e dirigir-se para o arguido, mas após dar uns passos, vendo que o arguido se dirigia em fuga para o interior do seu carro, então, segundo o arguido, o ofendido tem tempo para dar meia volta, voltar ao seu veículo (onde estava a ofendida M), entrar no mesmo, engatar a 1.ª velocidade, percorrer uns metros e ainda assim bater no arguido quando este estava a entrar o seu carro pelo lado do condutor.
Acresce que os danos ostentados pelo carro dos ofendidos são incompatíveis com o cenário relatado pelo arguido. Com efeito, referiu o arguido que foi atropelado, tendo o seu corpo sido projectado contra o pára-brisas do carro dos ofendidos. Contudo, o arguido não foi capaz de explicar porque motivo o vidro lateral ficou estilhaçado, ou porque o pára-brisas apresenta duas zonas bastante pronunciadas de impactos distintos, ou ainda porque o capôt não apresenta qualquer dano.
Ao invés do declarado pelo arguido, acreditamos plenamente na versão dos ofendidos, a qual se mostra vertida nos factos assentes. Efectivamente, o carro dos ofendidos bateu no corpo do arguido, mas tal resultou apenas fruto de um acto de desespero, pois os ofendidos após presenciarem estupefactos e paralisados de medo à conduta do arguido em bater repetidamente com a pedra nos vidros do carro em que estavam os ofendidos e ouvirem a ameaça proferida pelo arguido, temeram o pior, e quando viram o arguido dirigir-se ao seu veículo, empreenderam uma manobra de fuga.
O Tribunal valorou positivamente os depoimentos das testemunhas A, M
Com efeito, porque sempre mostraram um raciocínio coerente, nunca deixando transparecer qualquer contradição dos factos relatados; e porque em momento algum invocaram matéria fáctica que contrariasse as regras da experiência e do normal acontecer dos factos, as referidas testemunhas lograram convencer o Tribunal sobre a realidade dos factos imputados ao arguido na acusação pública tal como foram considerados provados e sobre os quais foram inquiridas.
O Tribunal também valorou positivamente os depoimentos das testemunhas VN, SP, F, H, J,H, AR, A, F, C Cruz, EF A, JN , MF, MN, porquanto foram credíveis quanto aos factos que constam do elenco da matéria provada, já que cabalmente fundamentaram a razão de ciência quanto a esses factos.
O Tribunal não valorou o depoimento de M E porque, como a mesma claramente referiu, dos factos nada sabe, porque na altura estava de férias e não os presenciou.
A comprovação da situação pessoal e económica do arguido decorreu das declarações deste, sendo certo que não se produziu prova em sentido.
A respeito dos antecedentes criminais do arguido, foi determinante o teor do certificado do registo criminal junto aos autos.
Finalmente, na parte em que os factos não resultaram provados, tal circunstância deve-se quer à inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer à circunstância de se terem provado factos contrários”.

***

Cumpre conhecer.

B.2.1 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Por outro lado, em obediência ao n.º 3, do art. 412º, do Código de Processo Penal o recorrente deveria especificar, sob pena de rejeição do recurso nos termos do art. 420º, n.º 1, do mesmo diploma, as provas que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, sendo certo que tal especificação haveria de fazer-se por referência aos respectivos suportes técnicos, conforme o preceituado no n.º 4 do citado preceito legal.

O recorrente tinha, ainda, o ónus de especificar, relativamente a cada prova que considera­va impor uma decisão diversa da assumida pelo tribunal a quo, a parte concreta das declarações e/ou dos depoimentos produzidos em julgamento e gravados em fita magnética, com referência aos respectivos suportes técnicos.

Impõe-se apurar se tal ocorre.


*

B.2.2 - O recurso sobre matéria de facto está estabelecido na lei de forma irrestrita quanto ao seu objecto potencial, quer para apreciação dos vícios indicados nos nºs. 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal, quer para a apreciação de outros vícios de facto da decisão, desde que possam ser apreciados numa base puramente racional (erros de apreciação, erros de raciocínio, contradições, insuficiências) ou que assentem numa base factual ou probatória existente nos autos (lógica factual, prova documental ou por referência a declarações orais documentadas).

Tais considerandos e opções legislativas estão intimamente ligados à existência efectiva de um recurso em matéria de facto, no assegurar de um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, inclusive sob a cominação de omissão de pronúncia se a Relação – Tribunal superior com competência ampla na matéria, desde que cumpridos certos requisitos de impugnação – não conhecer de facto onde devia conhecer.

 Essa possibilidade de recurso não está, por outro lado, limitada às hipóteses de invocação dos vícios contidos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

Esses os pontos de facto que fundamentam a existência de um recurso de revista alargada e balizam a sua possibilidade de conhecimento ou o seu objecto.

Nestes, o recorrente não tem mais que indicar a sua existência impondo-se ao tribunal – por mero dever de ofício – deles conhecer, desde que o vício seja patente e resulte da simples leitura da decisão recorrida.

Mas se o recorrente pretende invocar tais vícios para além da simples narrativa judicial e fazer apelo a outros elementos de prova, aí já terá que cumprir o seu ónus de impugnação especificada.

Mas, além disso, pode o recorrente invocar vícios que não sejam “notórios”, que saiam fora da previsão balizadora de segurança judicial pretendidos com o recurso de revista (artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal).

Aquém desses vícios de conhecimento oficioso há todo um campo de possibilidade de recurso em matéria de facto que se não limita aos vícios do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Serão todos os casos de erro, não notório, na apreciação da prova de que o tribunal de recurso se aperceba na reanálise dos pontos de facto apreciados e permitidos pelo recurso em matéria de facto. Entram neste campo os error in judicando (erros de julgamento), nos quais se incluem os erros na apreciação das declarações orais prestadas em audiência e devidamente documentadas e a não ponderação ou errada ponderação de prova documental que, não sendo notórios, impõem uma diversa ponderação. Assim como o uso inadequado de presunções naturais, conhecimentos científicos, regras de experiência comum ou simples lógica.

Serão os casos que Pinto de Albuquerque qualifica como “delimitação negativa do erro notório na apreciação da prova” [1] e que se não reconduzam a meras irregularidades ou nulidades, que essas cabem no âmbito de aplicação do nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Estamos, pois, a falar do âmbito de aplicação geral contido no nº 1 do artigo 410º do Código de Processo Penal (“Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”).

Não deixam de ser fundamentos de recurso em matéria de facto e, como tal, sujeitos à disciplina espartana do artigo 412º do Código de Processo Penal, mas onde recai sobre o recorrente o ónus de indicar prova que “imponha” diversa decisão.

Temos, assim, que o recurso de facto nos apresenta duas vias de invocação: (1) invocação dos vícios da revista alargada (410º, nº 2 do Código de Processo Penal) por simples referência ao texto da decisão recorrida; (2) alegação de erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação.

Se no primeiro caso ao recorrente se pede, apenas, a sua alegação, aliás, não essencial, já que de conhecimento oficioso (pois que são os vícios extremos, em absoluto não tolerados pela ordem jurídica), já no segundo caso se impõe ao recorrente o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.  

E não se espante essa disciplina recursal, esse “especial ónus de alegação”, pois que contrapartida da possibilidade de amplo recurso em matéria de facto.

Aliás, di-lo o legislador de forma clara no preâmbulo do Dec-Lei nº 39/95 de 15-02-1995 (Diário da República nº 39 Série I Parte A de 15/02/1995):

Importava, pois, ao consagrar tão inovadora garantia, prevenir e minimizar os riscos de perturbação do andamento do processo, procurando adoptar um sistema que realizasse o melhor possível o sempre delicado equilíbrio entre as garantias das partes e as exigências de eficácia e celeridade do processo de modo a obviar que o aparente reforço daquelas pudesse redundar na violação do fundamental e básico direito à obtenção de uma decisão final em prazo razoável.

A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.

Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712.º) - e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância - possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.”.

E não só aí, também nas alterações ao Código de Processo Penal onde, desde 1998 (Lei nº 59/98, de 25-08) e, com mais acutilância na Lei n.º 48/2007, de 29/08, essa necessidade de equilíbrio entre o amplo recurso em matéria de facto e o ónus de impugnação especificada mais se notam (v. g. a expressão “devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” do nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).

E é assim que se vem firmando jurisprudência exigente quanto à necessidade de estrita observância desse ónus como ocorreu com o acórdão do STJ de 9 de Março de 2006 “(1) – Se o recorrente se dirige à Relação limitando-se a indicar alguma prova, com referência a suportes técnicos, mas na totalidade desses depoimentos e não qualquer segmento dos mesmos, não indica as provas que impõem uma decisão diversa quanto à questão de facto, pois o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Por isso que o artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” (de referir, apenas, que o conceito de “acta” abrange os registos magnetofónicos ou digitais).

Assim, sistematizando, ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:
a) - A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
b) - A indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
c) - A indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal).

Cumpridos estes ónus de carácter processual estará garantido o amplo recurso em matéria de facto?

Sim, mas com uma precisão. O legislador não exige, apenas, que o recorrente indique as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que o recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto.

A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.

Como se afirma no acórdão do STJ de 15-12-2005 (Proc. 2.951/05, sendo relator o Cons. Simas Santos), “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.”

Ou, como se decidiu no acórdão do STJ de 10-01-2007 (Rel. Henriques Gaspar no Proc. 06P3518): “I - O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP – ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.

E a justificação surge cristalina. A apreciação da prova no julgamento realizado em 1ª instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. E constitui uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento.

Daí a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão.

Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção (declarações, depoimentos, acareações) – assente que obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”.

Impõe-se-lhe que “imponha” uma outra convicção. É imperativo que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais. Não apenas o relativo do “possível”, sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Por outro lado, como se afirma no acórdão do STJ de 9 de Março de 2006 “(1) – Se o recorrente se dirige à Relação limitando-se a indicar alguma prova, com referência a suportes técnicos, mas na totalidade desses depoimentos e não qualquer segmento dos mesmos, não indica as provas que impõem uma decisão diversa quanto à questão de facto, pois o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Mais recentemente, em acórdão desta Relação, afirmou-se “… ao determinar o n.º 6, do art.º 412º que “no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas (…)”, se terá que concluir que as concretas provas terão de corresponder a segmentos das declarações ou do depoimento e não a toda a extensão dos mesmos” - Ac. RC 21-07-2009 (Luís Medeira Ramos, Proc 407/07.2GBOBR.C1)

Assim, a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, sim para os concretos locais da gravação que suportam a tese do recorrente.

Por isso que o artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação” (de referir, apenas, que o conceito de “acta” abrange os registos magnetofónicos ou digitais).

No mesmo sentido o acórdão da Relação do Porto de 14 de Fevereiro de 2000 (Relator Desemb. Baião Papão). “A referência aos suportes técnicos aludida no nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal é a indicação das metragens da fita gravada que contenha as declarações, depoimentos ou acareações que o recorrente decide invocar, com referência ao número e ao lado da cassete em que se inscrevam”.

É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ou menos certo ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.

Impõe-se apurar se o recorrente o fez em concreto.

Em boa verdade, a posição do recorrente consubstancia-se na pretensão de ignorar o seu ónus de impugnação especificada, transformando-o num ónus, para o tribunal de recurso, de fazer um novo julgamento com apreciação da quase totalidade da prova produzida em 1ª instância.

Isto é, o tribunal de recurso vê-se na situação de fazer um julgamento ex novo, desprezando o julgamento em 1ª instância. Na prática está encontrada a forma de a Relação julgar um recurso em 1ª instância, mais que anulando, apagando em absoluto o julgamento já realizado.

Não há dúvida que indicou os pontos de facto que entendeu incorrectamente julgados, os factos provados sob 3 a 17 (conclusão 2ª).

O mesmo não ocorre com o seu “específico ónus de alegação”, o ónus de o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos suportes técnicos.

Como se constata das suas conclusões (aliás, também das motivações), o recorrente – neste ponto – apenas suscita um problema, associado à invocação de violação do princípio da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, com vários argumentos de apreciação probatória (conclusões 1ª a 41ª).

Mas da sua argumentação não decorre a existência de qualquer dos vícios típicos da revista alargada e denota a sua intenção de expor ao tribunal de recurso a “sua” convicção quanto à produção da prova. Ou seja, pretende que o tribunal de recurso homologue a sua visão dos factos em substituição da convicção alcançada pela primeira instância.

A pretensão é legítima. Mas está sujeita ao referido condicionante de cariz processual.

Esse condicionante de cariz processual é o já invocado “ónus de impugnação especificada” nos termos do artigo 412º, nºs. 3 e 4 do Código de Processo Penal.

A esse respeito o recorrente discorre sobre apreciação da prova mas, apesar de fazer apelo ao depoimento de testemunhas, às suas declarações e dos ofendidos, limita-se a indicar os seus depoimentos na totalidade, dispensando-se de indicar os concretos excertos dos seus depoimentos e não os indicando por referência aos suportes técnicos de forma específica e individualizada.

Não cumpriu, pois, o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado.

Para além disso impõe-se afirmar que nenhum dos argumentos avançados pelo recorrente coloca em crise a apreciação da prova realizada pelo tribunal recorrido.

Os seus argumentos são, apenas, a sua visão dos factos, uma das visões possíveis, clara e adequadamente afastada pelo tribunal recorrido na sua fundamentação factual.

E não apenas por referência a elementos subjectivantes – depoimentos e declarações (o que sempre seria possível), mas com apelo a elementos objectivos adjuvantes.

 Desde logo os danos na viatura, como ressaltam das fotografias de fls. 227 a 233, que se vêm como confirmadores da versão dos ofendidos, atendida por aquele tribunal.

Nas fotos de fls. 228 a 231 é evidente que os danos causados são incompatíveis com a versão do recorrente e compatíveis com a versão dos ofendidos. Os danos ali expostos só podem ser resultantes de um bater de objecto contundente no vidro pára-brisas e a própria entrada dos vidros quebrados (foto de fls. 233) só é compatível com a versão dos ofendidos.

Por outro lado, o croquis que consta do auto de fls. 34, apesar de realizado apenas com a versão do recorrente por os ofendidos se terem retirado do local de embate das duas viaturas demonstra, ou confirma, a versão dos ofendidos, a acolhida pelo tribunal recorrido.

Ali as medições B, C, G e H confirmam o acerto da apreciação da prova realizada pelo tribunal recorrido. A estranha localização do carro do recorrente (oblíqua, a deixar pouco espaço disponível na faixa de rodagem), a largura da faixa de rodagem, o espaço disponível (1,90 m) para a passagem da viatura dos ofendidos e as marcas no pavimento, tudo converge para a confirmação do acerto na apreciação da prova efectivada pelo tribunal recorrido., 

Não há, pois, erro na apreciação da prova nem violação do princípio da livre apreciação da prova. 


*

B.2.3 - Resulta do disposto no art. 431º, b), do Código de Processo Penal, que havendo documentação da prova, como no caso se verifica, a decisão do Tribunal de 1ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o que não ocorre na totalidade no caso em apreço.

Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 259/2002, de 18/6/2002 (publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002), «quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 4l2º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.»

A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.

Seguindo esta orientação, que se perfilha, o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 140/2004, de 10/3/2004 (publicado no D. R. II Série, n.º 91 de 17/4/2004), veio uma vez mais proclamar que não é inconstitucional a norma do art. 412°, n.º 3, al. b) e n.º 4, do CPP quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.

Não há, desta forma, que pensar em despacho de aperfeiçoamento nos termos do decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 140/2004, de 10/3/2004.

O recurso, nesta parte, é manifestamente improcedente.

Assim sendo, estando esta Relação impossibilitada de modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto nesses pontos, cumpre tão só aferir, nesta sede, da existência dos vícios das alíneas do n.º 2, do art. 410º, do CPP pois, a existirem podem determinar o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art. 426º, n.º 1, do citado diploma legal.

Assim, teremos que nos ater ao texto da decisão recorrida.

Haverá que apreciar a seguinte matéria suscitada pelo recorrente nas suas conclusões: violação do princípio in dubio pro reo; pedido cível.


*

B.3 - Nem, por outro lado, ocorre violação do princípio in dubio pro reo.

Ao tribunal impunha-se uma decisão em função de toda a prova produzida de forma a obter uma verdade judicial, resultado do seu convencimento quanto à verificação dos factos, no caso, a imputação dos factos ao arguido.

Questão está em saber se essa verdade judicial, essa probabilidade que roça a certeza existe no caso dos autos ou se, ao invés, não estaremos já no campo de exclusão do “meramente possível”.

Neste campo, a fundamentação factual do tribunal recorrido permite-nos afirmar (reafirmar, diríamos) que a sua convicção se forma na credibilidade subjectiva atribuída aos depoimentos dos ofendidos com exclusão das declarações do arguido. Mas não só.

É patente que existem elementos objectivos que enformam o convencimento subjectivo do tribunal.

Portanto, não foi apenas na atribuição de credibilidade às declarações dos ofendidos que o tribunal recorrido assentou a imputação do facto ao arguido, também noutros elementos objectivos.

Assim, a convicção do tribunal recorrido, fazendo apelo necessário a um convencimento subjectivo, a convicção psicológica de que os ofendidos estão a dizer a verdade, adjuvado pelos referidos elementos objectivos, permite afirmar que não é patente, ostensivo, a necessidade de recurso ao princípio in dubio pro reo.

Não se revela nos autos que a aplicação do princípio in dubio pro reo se imponha, pois que, avaliada a prova segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduziu à dúvida no espírito do tribunal sobre a existência do facto.

A circunstância de existirem duas versões dos factos e de o tribunal recorrido ter fundado a sua convicção - não exclusivamente - nas declarações dos ofendidos não autoriza a conclusão de que existe violação do princípio in dubio pro reo.

O princípio in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997.

Essa «dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» - Ac. STJ de 25-10-2007, in proc. 07P3170, relator Cons. Carmona da Mota, citando a autora anteriormente citada.

A diversidade das versões expostas não faz, necessariamente, operar o princípio in dubio pro reo. Este pressupõe um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório.

O que não ocorre no caso em apreço.

Entende-se, portanto, que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).

Não há, pois, que censurar o tribunal recorrido na apreciação e fundamentação da prova por ele efectuada e pela não aplicação do princípio in dubio pro reo.


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B.4 - Quanto ao pedido cível o recorrente suscita – nas conclusões - três problemas: o período de privação do uso do veículo; o veículo de substituição; a consulta de psiquiatria.

Quanto ao primeiro ponto o recorrente apenas afirma haver dúvidas quanto ao período de privação do uso por referência a uma pretensão de alteração das datas de reparação do veículo, não atendida.

Tal questão (pretensão à alteração da data de reparação) é manifestamente insuficiente para pôr em crise o facto dado como provado.

Se as datas da reparação – na disponibilidade da companhia seguradora e da oficina e não dos ofendidos – não foram alteradas, não houve reflexo no período de privação.

 Por outro lado, o próprio período de privação – de 26.06 a 11.08 – está dentro dos parâmetros habituais e não é excessivo, visto englobar não só a reparação, também a deslocação à oficina do perito da companhia seguradora para a necessária inspecção do veículo e a avaliação do montante da reparação (com o consequente período de autorização administrativa interna da seguradora para a realização da reparação).

Quanto ao segundo ponto (montante pago pela ofendida pelo veículo de substituição) não se demonstra que a existência do contrato de seguro imponha à companhia seguradora a cedência gratuita de um veículo de substituição e a prática habitualmente seguida demonstra que tal veículo só é colocado à disposição do segurado contra o pagamento de uma taxa.

Quanto ao terceiro ponto, não está em causa o saber se uma consulta de psiquiatria será suficiente para o tratamento do ofendido, sim o saber se o ofendido fez tal despesas. Provada a despesa como resultante dos factos imputados ao recorrente, provado está o dano, que deve por este ser ressarcido.

Improcede, pois, o recurso.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 4ª Secção deste tribunal em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, com 3 (três) UCs. de taxa de justiça.

Acrescem, nos termos do artigo 420º, nº 1, al. a) e 3 do Código de Processo Penal, 3 (três) Ucs. de taxa de justiça

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Coimbra, 24 de Fevereiro de 2010

João Gomes de Sousa

Calvário Antunes


[1]  - in “Comentário do Código de Processo Penal“, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pags. 1100-1101.