Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1801/06.1TAAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 05/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA-AVEIRO-1º JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 97º Nº 4 E 123º CPP
Sumário: A falta de fundamentação do despacho de não pronúncia não constitui nulida­de, mas apenas uma mera irregularidade a dever ser atempadamente suscitada perante o juiz de instrução, sob pena de se considerar sanada.
Decisão Texto Integral:
A recorrente “Y... – Companhia de Seguros S. A.” não se conformando com o despacho de não pronúncia do arguido FP..., vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:
1ª A recorrente está em desacordo com a douta decisão instrutória que decidiu não pronunciar o arguido pela prática de 10 crimes de falsificação de documento, aceitando apenas a não pronúncia quanto à emissão do certificado nº 155109/2005.
2ª No que respeita ao certificado n° .../2004, não é aceitável que, tendo o contrato de seguro que vigorava na X...-B... sido anulado em Fevereiro de 2004 - conforme declaração desta seguradora junta no decorrer da instrução - o segurado e o mediador desconhecessem em Outubro (data da emissão do certificado), isto é, oito meses depois, que o seguro não estava em vigor. É inaceitável a justificação apresentada pelo arguido. Aliás, o tempo verbal utilizado no despacho "será" já exprime as dúvidas do decisor.
3ª A emissão do certificado teve por finalidade colmatar essa ausência de seguro, não tendo sido preenchida qualquer proposta, nem paga à seguradora qualquer quantia pela cobertura dos riscos associados à emissão do certificado.
4ª Foi abalada a segurança do comércio jurídico em consequência dos efeitos jurídicos derivados da emissão do certificado.
5ª No que respeita ao certificado nº .../2005, a decisão de não pronúncia assenta na afirmação de que a assistente teria em seu poder o original do certificado pelo que não se verificaria o intuito fraudulento de demonstrar perante qualquer autoridade a existência de seguro.
6ª Tal afirmação não corresponde à verdade. Os documentos que a assistente juntou aos autos são os triplicados dos certificados. Não são os originais ou, dito de outra forma, a primeira via dos certificados. Pelo que falece a razão invocada para a não pronúncia.
7ª O certificado foi emitido sem que tivesse sido preenchida qualquer proposta de seguro não tendo sido paga à assistente qualquer quantia pelos riscos que assumia, sofrendo o prejuízo patrimonial correspondente ao período de validade do seguro.
8ª Foi abalada a segurança do comércio jurídico pelos efeitos jurídicos associados ao certificado nas legislações portuguesa e europeia.
9ª No que respeita aos certificados nºs. …. foram apresentadas duas razões para a não pronúncia do arguido pela prática do crime resultante da emissão dos certificados:
-que a assistente tinha na sua posse os originais dos certificados
-que "em relação a cada um deles foram fornecidas pelo arguido explicações lógicas e verosímeis":
10ª Com todo o respeito, que é muito, por quem proferiu tal decisão, as razões apontadas falecem por completo.
11ª Desde logo porque, como se referiu atrás, os documentos que estão nos autos não são os originais aos quais a assistente nunca teve acesso uma vez que foram entregues aos interessados nos seguros.
12ª Em segundo lugar porque fundamentar a não pronuncia em simples explicações do arguido não é nada. Trata-se de urna expressão vaga, imprecisa. Corresponde à não fundamentação da decisão o que implica a nulidade da decisão.
13° A fundamentação da não pronuncia tem de ser precisa, explicativa, justificativa. Para mais quando se encontram documentos juntos aos autos que contrariam a versão do arguido. É o que sucede com a proposta junta no decorrer da instrução respeitante ao veículo … que desmente o alegado pelo arguido no art. 42° do requerimento de abertura da instrução.
14ª Em todos estes casos foram emitidos pelo arguido certificados sem que tivessem sido simultaneamente preenchidas as respectivas propostas de seguro, verificando-se uma prática reiterada do arguido do crime de falsificação de documento.
15ª Foi abalada a segurança do comércio jurídico pela associação entre os certificados e os respectivos efeitos jurídicos previstos nas legislações portuguesa e europeia.
16ª A assistente sofreu os prejuízos decorrentes da assunção de riscos sem o recebimento dos correspondentes prémios.
17ª As explicações dadas pelo arguido no decorrer da instrução não são suficientes para afastar os dados objectivos constantes dos autos e que contrariam a sua versão pelo que entendemos que existem maiores probabilidade da sua condenação do que da absolvição.
18ª Deve, por isso, para além do mais que foi já objecto de pronúncia, ser o arguido FP... pronunciado pela prática de 10 crimes de falsificação de documento p.p .. à data dos factos, pelos arts. 255º al. a) e 256° nº 1 al. b) do Código Penal de 1995, e actualmente pelas disposições conjugadas dos arts. 255° al. a) e 256º nº 1 al. d) do Código Penal na redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro.
Nestes termos, e nos demais que V.Exas. suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente.

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A questão que cumpre conhecer é a de saber se nos autos foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança que permita ao juiz proferir despacho de pronúncia pelos factos respectivos.
A instrução tem por fim a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.286 do C.P.P.).
De acordo com o art. 308 do C.P.P:, se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena o juiz por despacho pronuncia o arguido.
É, pois, de concluir que o arguido só será responsabilizado se existirem “elementos que, logicamente relacionados e conjugados, formem um conjunto persuasivo, na pessoa que examina sobre a existência do facto punível, de quem foi o seu autor e da sua culpabilidade” ou “quando já em face deles seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.”
Portanto, o juiz só deve pronunciar o arguido quando atenta a prova recolhida nos autos formou a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.

Nos presentes autos foram denunciados além do mais, factos integradores do crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº 256 do CPenal, consistente no facto de o arguido FP..., como mediador da “Y...” Companhia de Seguros, S. A.”ter emitido diversos certificados provisórios de seguro, com referência a vários segurados e respeitantes à contratação do seguro obrigatório de responsabilidade civil com aquela seguradora, sem que tivesse remetido à mesma as propostas que corporizavam tal contratação.
Na fase de inquérito o Mº Pº e por despacho proferido a fls 86 e segs e por entender que não se encontravam preenchidos os elementos constitutivos do crime em questão ordenou o arquivamento dos autos.
O Mº Pº acusou o arguido FP..., para além do mais, como autor material de dezassete crimes de falsificação de documento p. e p. pelo art 255, al a) e 156, nº 1, al b) do CPenal de 1995;
E como co-autor de dois crimes de falsificação de documento p. e p. pelo art 26º, 255, al a) e 156, nº 1, al b) do CPenal de 1995;
O arguido, FP..., requereu a abertura da instrução requerendo que seja proferido despacho de não pronúncia do arguido com o consequente arquivamento dos autos.
O Mmo Juiz e por entender que não existem nos autos indícios suficientes que permitam concluir pela prática pelo denunciado dos referidos crimes decidiu não pronunciá-lo.
Será que dos autos resultam os elementos constitutivos de tais crimes?

Sustenta a recorrente e no que respeita ao certificado n° … , que não é aceitável que, tendo o contrato de seguro que vigorava na X...-B... sido anulado em Fevereiro de 2004 - conforme declaração desta seguradora junta no decorrer da instrução - o segurado e o mediador desconhecessem em Outubro (data da emissão do certificado), isto é, oito meses depois, que o seguro não estava em vigor. Entende que é inaceitável a justificação apresentada pelo arguido. Portanto, o que a recorrente tem é uma diferente convicção e pretende que este tribunal valore a prova apresentada de acordo com a sua convicção.
O Tribunal ouviu o arguido que referiu que após a emissão do certificado verificou que o veículo tinha seguro válido na seguradora B... e, por isso ficou o certificado sem efeito. A seguradora B... veio a anular aquele seguro reportando os efeitos da anulação a data anterior à da emissão do certificado. Assim e tal como refere o tribunal a explicação dada pelo arguido tem credibilidade na medida em que não se vislumbra que benefícios teriam os intervenientes com a emissão do certificado.
No que respeita ao certificado nº … , alega a recorrente que a decisão de não pronúncia assenta na afirmação de que a assistente teria em seu poder o original do certificado pelo que não se verificaria o intuito fraudulento de demonstrar perante qualquer autoridade a existência de seguro. Tal afirmação não corresponde à verdade. Os documentos que a assistente juntou aos autos são os triplicados dos certificados. Não são os originais ou, dito de outra forma, a primeira via dos certificados. Pelo que falece a razão invocada para a não pronúncia. O certificado foi emitido sem que tivesse sido preenchida qualquer proposta de seguro não tendo sido paga à assistente qualquer quantia pelos riscos que assumia, sofrendo o prejuízo patrimonial correspondente ao período de validade do seguro.
Ao contrário do que sustenta a recorrente, no que a este certificado respeita, o Tribunal, também atendeu às declarações do arguido que mereceram credibilidade. Este afirmou que se tratou de uma mudança do veículo abrangido pela apólice para que o veículo … pudesse ser deslocado para a oficina uma vez que o mesmo se encontrava parado.
O facto de o certificado ter sido emitido com a validade de apenas dois dias vem corroborar a versão do arguido. O arguido refere que a Y... conseguiu obter o original do certificado.
Tal como refere o tribunal a emissão do certificado não é suficiente para se concluir pelo intuito fraudulento de demonstrar, perante qualquer autoridade, a existência de seguro.
No que respeita aos certificados nºs. …a recorrente vem arguir a nulidade do despacho de não pronúncia por o mesmo não se encontrar devidamente fundamentado.
Tal como vem referido no acórdão desta relação do processo nº 1303/09.4PBLRA.C1 relato pelo Exmo Desembargador Brízida Martins, o dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência, em primeiro lugar, do disposto no art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, em cujos termos “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma previstas na lei”.
No entanto, tal dever de fundamentação, no âmbito do processo penal e na perspectiva do arguido, surge, igualmente, como uma das suas garantias constitucionais de defesa, expressas no art.º 32.º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental.
Tal implica que, ao proferir-se uma decisão judicial, se conheçam as razões que a sustentam, de modo a permitir aferir se a mesma está fundada na lei.
É isso que decorre expressamente do disposto no art.º 97.º, n.º 4 do Código Processo Penal, ao estabelecer que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
Donde que essa exigência seja, simultaneamente, um acto de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das garantias de defesa, ambas com assento constitucional, de forma a se aferir da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias.
Daí que a fundamentação de um acto decisório deva estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, sendo certo que no caso de uma sentença deve obedecer ainda aos requisitos formais enunciados no citado art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Mas essa mesma exigência legal de fundamentação de uma sentença, não se encontra transponível para outras decisões judiciais, salvo para os acórdãos a proferir pelos tribunais superiores, mas aqui também com especificidades [425.º, n.º 4].
Tudo isto para se conhecer, ao fim e ao cabo, qual foi o efectivo juízo decisório em que se alicerçou o correspondente sentenciamento, designadamente os factos acolhidos e a interpretação do direito perfilhada, permitindo o seu controlo pelos interessados e, se for caso disso, por uma instância jurisdicional distinta daquela.
Assim e à partida, não cumprem estes requisitos os actos decisórios que não tenham fundamento algum, por mínimo que seja, e aqueles que se revelem insuficientemente motivados.
Porém, também não se deve exigir que no acto decisório fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser.
O que importa é que a motivação seja necessariamente objectiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido.
Muitas vezes confunde-se motivação com prolixidade da fundamentação e esta apenas serve para confundir ou obnubilar a compreensibilidade que deve ser uma característica daquela.
A propósito da suscitada falta de descrição factual na decisão instrutória dos factos suficientemente “apurados” e dos “não apurados” mencionados no requerimento de abertura da instrução, a jurisprudência dos nossos Tribunais tem alinhado as seguintes três posições:
– A decisão instrutória deverá conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitem chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária, acarretando essa falta de descrição factual a nulidade da decisão instrutória [art.ºs 308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, al. b); Ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 1 de Março de 2005, in recurso n.º 1481/04-1];
– A omissão da descrição e especificação dos factos do requerimento instrutório que se devam considerar suficientemente indiciados ou não, constitui uma irregularidade que influi no conhecimento da causa, que pode ser conhecida oficiosamente [art.º 123.º, n.º 2; Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 12 de Fevereiro de 2007, in recurso n.º 2335/06-1; de 4 de Julho de 2005, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo IV, pág. 300];
- O despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de fundamentação das sentenças, estabelecidas no art.º 374.º, n.º 2, mas apenas ao dever genérico previsto no art.º 97.º, n.º 4, consistindo a falta de fundamentação numa irregularidade, sujeita ao regime geral do art.º 123.º, devendo para o efeito ser atempadamente suscitada perante o juiz, sob pena de se considerar sanada [Acs. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Janeiro de 2004, in CJ, Tomo I, pág. 125; de 14 de Outubro de 2004, in CJ, Tomo IV, pág. 145; do Tribunal desta Relação de Coimbra, de 14 de Junho de 2006, in recurso n.º 823/06; do Tribunal da Relação do Porto, de 1 de Setembro de 2007, in recurso n.º 5119/07-1].
Num outro registo, anota o Ex.mo Desembargador Alberto Mira, ainda a propósito da questão suscitada, que “há quem entenda que se trata de uma irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Neste sentido, v. g., Acs. da Relação de Guimarães de 05-01-2004 (proc. n.º 293/04-1) e de 12-02-2007 (proc. n.º 2335/06-1); e Ac. da Relação do Porto de 16-12-2009 (proc. n.º 568/0 GFVNG.P1), todos publicados in www.dgsi.pt.
Diversamente, referem outros tratar-se de uma nulidade oficiosamente cognoscível em sede de recurso. Cfr. Acs. da Relação de Évora de 22-11-2005 (proc. n.º 1324/05-1); da Relação de Lisboa de 10-07-2007 (proc. n.º 1075/07-5); e da Relação do Porto de 17-02-2010 (proc. n.º 58/07.1 TAVNH.P1), os dois últimos publicados no sítio www.dgsi.pt.”
Precisando a posição sufragada no caso concreto, aduz ainda que “Quanto a nós, seguimos, ao “pé da letra”, a posição assumida no Ac. da Relação do Porto de 07-07-2010 Proc. n.º 102/08.5 PUPRT.P1, relatado por Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt., importando distinguir os casos de despacho de pronúncia com falta de narração dos factos indiciados dos casos de despacho de não pronúncia deficientemente fundamentado por não conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de indícios.
A nulidade que se vislumbra decorre do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, reportada ao n.º 2 do artigo 308.º, do CPP.
É de admitir que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade, por omissão de narração dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento, seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema e o princípio da acusação.
Efectivamente, nesta situação, se a falta de descrição dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, determinando a rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º 3, al. b) do CPP], seria destituído de todo o sentido que a falta de factos do despacho de pronúncia não consubstanciasse nulidade de conhecimento oficioso.
Dito de outro modo: os casos elencados no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm na previsão das diversas alíneas do n.º 3 do artigo 283.º constituem uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.
Os demais casos do n.º 3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação se traduza numa nulidade que é sanável e, assim, dependente de arguição.
Consequentemente, deveria ter sido suscitada, pelo assistente, perante o tribunal a quo (e não em recurso), no prazo de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1, do CPP), contados a partir da notificação ao arguido do despacho de não pronúncia. Porque assim não sucedeu, está sanada.”
Quid iuris?
Propendemos a aceitar como boa a terceira posição referida no aludido aresto pois que a mais consentânea com o princípio da legalidade dos actos, tal como está actualmente consagrado no art.º 118.º.
Aí se estabelece no seu n.º 1 que “A violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, consagrando-se um apertado princípio da taxatividade ou de “numerus clausus” das nulidades.
Todos os demais vícios que não sejam expressamente atingidos pela nulidade, são irregularidades, tal como decorre da regra subsidiária do seu n.º 2 – aqui se alude que “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular”.
Ora, a deficiência de fundamentação das decisões jurisdicionais, não surge no catálogo das nulidades absolutas e como tal insanáveis do art.º 119.º, nem no quadro das nulidades relativas do subsequente art.º 120.º, nem expressamente em qualquer disposição legal.
É um facto que existe a injunção constitucional de fundamentação das decisões judiciais, imposta pelos citados art.ºs 205.º, da Constituição da República Portuguesa e 97.º, n.º 4.
Mas o legislador apenas quis acometer de nulidade da decisão instrutória aquela que represente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação pública ou no requerimento para abertura da instrução conducente à pronúncia, face ao previsto no art.º 309.º, assim como aquela que, pronunciando, não respeite o registo legal descritivo da acusação, enunciado no art.º 283.º, n.º 3, mediante remissão do art.º 308.º, n.º 2.
Sucede que o rigor descritivo da pronúncia não se deve estender ao despacho de não pronúncia, porquanto o segmento normativo do art.º 283.º, n.º 3 é privativo da regulação daquele libelo, já que o seu proémio apenas menciona que “A acusação contém, sob pena de nulidade”, e isto sem que se mostre o despacho de arquivamento, previsto no art.º 277.º, sujeito aos mesmos rigores descritivos.
Aliás, caso se sustente essa interpretação extensiva do art.º 283.º, n.º 3 ao despacho de não pronúncia, estaria formalmente ausente do mesmo um juízo crítico da prova, tal como se impõe para a fundamentação da sentença, como resulta do art.º 374.º, n.º 2.
De resto, se o legislador quisesse ferir de nulidade a deficiência de fundamentação da decisão instrutória teria consagrado uma disposição idêntica à do art.º 379.º, n.º 1 que comina com esse preciso vício as circunstâncias aí enunciadas, que correspondem à preterição das menções referidas no artigo 374.º, n.º 2 e 3, b), à condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos e das condições dos artigos 358.º e 359.º e à omissão ou excesso de pronúncia.
Donde assim a conclusão de que o despacho de não pronúncia não está sujeito às exigências de das sentenças, estabelecidas no art.º 374.º, n.º 2, mas apenas ao dever genérico previsto no art.º 97.º, n.º 4, consistindo a deficiência da sua fundamentação numa irregularidade, sujeita ao regime geral do art.º 123.º.
Irregularidade (ou, concedendo, mesmo nulidade sanável) a dever ser atempadamente suscitada perante o juiz de instrução, sob pena de se considerar sanada, não podendo desde logo e sem essa arguição prévia ser fundamento de recurso, o que só sucede quando se impugna uma sentença [379.º, n.º 2].
No caso vertente e nesta parte do despacho a Sra juiz foi demasiado sintética. Contudo, não tendo procedido o recorrente, da forma acima exposta não pode agora o mesmo, com este preciso fundamento, vir impugnar o despacho de não pronúncia.

Assim, não merece qualquer censura o despacho recorrido.

Termos em que se nega provimento ao recurso.

Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 ucs.

Alice Santos (Relatora)
Belmiro Andrade