Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/12.5TXCBR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS
ADAPTAÇÃO À LIBERDADE CONDICIONAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 07/20/2023
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO ARTº 405º CPP
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 154.º, 188.º E 235.º, TODOS DO CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE
ARTIGO 20.º, N.º 1, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 399.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: É recorrível a decisão do Tribunal de Execução das Penas que indefere liminarmente o requerimento para apreciação da adaptação à liberdade condicional prevista no artigo 188.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
Decisão Texto Integral:


Reclamação - artº 405º CPP

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Reclamante ………………….AA…………………....Ministério Público
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Sumário:

É recorrível a decisão do Tribunal de Execução das Penas que indefere liminarmente o requerimento para apreciação da adaptação à liberdade condicional prevista no artigo 188.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

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I. Relatório

a) A presente reclamação vem dirigida ao despacho do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, do pretérito dia 27 de junho, o qual não admitiu o recurso interposto pelo reclamante relativamente à decisão do mesmo tribunal que lhe indeferiu liminarmente a apreciação do pedido de adaptação à liberdade condicional previsto no artigo 188.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
O despacho tem o seguinte teor: «A fls. 69 e ss., veio o condenado recorrer da decisão que indeferiu liminarmente a requerida adaptação à liberdade condicional.
Cumpre decidir.

Nos termos do disposto no art. 235º nº 1 do CEP “das decisões do tribunal de execução de penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei”.
Como se constata da leitura do regime referente à adaptação à liberdade condicional, consagrado no art. 188º do CEP, não se encontra prevista a possibilidade de recurso.
Na verdade, o art. 188º nº 6 do CEP, que remete para o regime referente a
tramitação da liberdade condicional, expressamente exclui a aplicabilidade do disposto no art. 179º, que rege sobre o recurso.
Assim, a decisão que não concede a adaptação à liberdade condicional é irrecorrível.

Neste sentido, e entre outros, já se pronunciou o Ac. da RC de 5/2/2014

(disponível em www.dgsi.pt), segundo o qual “É irrecorrível a decisão do TEP que nega ao condenado o pedido de concessão de adaptação à liberdade condicional em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância”.
No caso, o recurso vem interposto do despacho que indeferiu liminarmente o pedido de adaptação.
Ora, se nem da decisão que negue (ou conceda) a adaptação à liberdade condicional é admissível recurso, não se vê como possa ser recorrível o despacho que liminarmente a indefira.
De outro lado, sempre se dirá que estando o regime de recursos no âmbito das decisões do tribunal de execução de penas limitado pelo quanto dispõe o acima citado art. 235º do CEP, não existe qualquer outra norma ao abrigo da qual o recurso do despacho em crise pudesse ser admitido.
Face ao exposto, e por inadmissibilidade legal, não admito o recurso interposto a fls. 69 e ss. Notifique.»
b) Os fundamentos da reclamação são os seguintes: «(…) 8. Por Despacho de 27/06/2023, ora em crise, o Tribunal a quo decidiu pelo indeferimento por inadmissibilidade legal do Recurso interposto, porquanto não decorre do art. 188º do CEP a recorribilidade de tal decisão.
9. Sucede que, pese embora o CP (nos arts. 61º e 62º) e o CEP (nos arts. 173º a 188º) autonomizarem estes dois institutos, é certo e manifesto que estes têm o mesmo objetivo e têm regimes legais no seu todo semelhantes.
10. Com efeito o regime da adaptação à liberdade condicional no art. 62º do CP é estabelecido por remissão ao art. 61º do mesmo diploma legal.
11. E do mesmo modo, o regime previsto no art. 188º do CEP mimica, salvo pontuais exceções, o regime para a atribuição da liberdade condicional.
12. Isto porque, em ambos os casos, está em causa a ressocialização do condenado e a avaliação do condenado em situação de liberdade, ou quase liberdade.
13. De resto, mesmo numa perspetiva sistemática e à luz do princípio da unidade do sistema jurídico não se vislumbra razão para admitir Recurso das decisões (in)deferimento da Liberdade Condicional e não para o instituto da Adaptação à Liberdade Condicional.
14. Sendo certo que o Legislador não determinou expressamente a irrecorribilidade do Despacho que (in)defere a concessão da Adaptação à Liberdade Condicional.
15. Atenta à natureza destes institutos, à sua posição sistemática e ainda considerando a unidade de todo o sistema jurídico é manifesto que a mens legislatoris se encaminha no sentido da extensão da admissão do Recurso de tais decisões ao regime da Adaptação à Liberdade Condicional.
16. Sendo que tal viabilidade é que mais oferece garantia de proteção e tutela ao condenado, nos termos dos arts. 3º do CEP e 20º e 32º da CRP na medida em que oferece sindicância à decisão pelo Tribunal superior.
17. Face ao exposto, o Despacho de que se reclama violou o disposto nos artigos art. 61º e 62º do CP, os arts. 3º n.º 1, 179º e 188º do CEP e ainda os arts. 20º e 32º da CRP, pelo que deverá este ser revogado e substituído por outro que admita o Recurso Interposto, seguindo-se os demais termos.
Nestes termos e com o mui douto suprimento de vossas excelências, deverá ser dado inteiro provimento à presente Reclamação, revogando-se, em consequência, o douto despacho recorrido, sendo o mesmo substituído por outro em que, acolhendose as razões invocadas pelo reclamante, admita o recurso interposto. Assim se fazendo justiça!»
II. Objeto da reclamação

Saber se a decisão do Tribunal de Execução das Penas que indeferiu liminarmente o requerimento para apreciação da adaptação à liberdade condicional, antecipando esta, é recorrível.
III. Fundamentação (a) Matéria processual

A matéria a considerar é a que consta do relatório que antecede.
b) Apreciação da questão colocada

Entende-se que a decisão mencionada é recorrível pelas razões que a seguir se indicam.
1 – O artigo 235.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, prevê os casos em que as decisões do juiz são recorríveis para o tribunal da Relação, nestes termos:
«1 - Das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei.
2 - São ainda recorríveis as seguintes decisões do tribunal de execução das penas:
a) Extinção da pena e da medida de segurança privativas da liberdade;

b) Concessão, recusa e revogação do cancelamento provisório do registo criminal;
c) As proferidas em processo supletivo.»

Verifica-se que o artigo 188.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, que trata da matéria relativa à adaptação do condenado à liberdade condicional, não prevê a possibilidade de recurso relativamente à decisão que rejeita o respetivo pedido.

Verifica-se, inclusive, que o n.º 6 deste artigo 188.º manda aplicar a este incidente

(adaptação do condenado à liberdade condicional) a tramitação prevista nos artigos 174.º a 178.º e a alínea b) do artigo 181.º do Código, deixando de fora desta remissão o artigo 179.º que prevê, precisamente, o recurso relativamente à decisão que aprecia o pedido de liberdade condicional.
Com efeito, como se disse, o legislador ao tratar do incidente da adaptação do condenado à liberdade condicional não quis incluir, na remissão que fez para os artigos da liberdade condicional, o direito ao recurso, pois se tivesse sido essa a sua intenção teria alargado a aludida remissão abrangendo também o artigo 179.º do referido código.
Temos aqui um domínio que consagra uma solução oposta à adotada no artigo 399.º do Código de Processo Penal, onde se estabelece, como regra, que todas as
decisões desfavoráveis são recorríveis.

Aqui, no Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, só há recurso para a Relação «nos casos expressamente previstos na lei».
Pode-se discordar do teor da norma legal, mas não se pode acusar a mesma de falta de clareza: só há recurso das decisões do juiz quando a lei o diz expressamente, ou seja, tem de dizer algo como: «desta decisão cabe recurso para o tribunal da Relação».
Por conseguinte, face ao teor das normas do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, a conclusão a tirar das mesmas coincide com o teor do despacho reclamado.
2 – Sucede, porém, que a negação de recurso resultante da conjugação dos artigos 235.º, n.º 1 e 188.º, n.º 6, já mencionados, padece de inconstitucionalidade material.
O Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre esta matéria no acórdão n.º 150/2013, publicado no D.R. n.º 87, Série II de 2013-05-07, nos seguintes termos:
«Não julga inconstitucional a norma do artigo 179.º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, na interpretação segundo a qual é irrecorrível a decisão que conheça do pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional, designadamente no caso de indeferimento.»
Porém, recentemente, pronunciou-se em sentido contrário em acórdão proferido no âmbito da reclamação dirigida a esta Relação de Coimbra, no processo 300/18.3TXCBR-I.C1, onde decidiu pela Inconstitucionalidade da «… norma contida no art. 235.º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, na interpretação segundo a qual não é recorrível a decisão que indefere o pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional» e determinou a reformulação, em conformidade, da decisão anterior que tinha indeferido a reclamação contra o não recebimento de recurso.
Bem como no Acórdão n.º 764/2022, publicado no Diário da República n.º 244/2022, Série II, de 2022-12-21, onde se decidiu julgar inconstitucional a norma contida no artigo 235.º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, na interpretação segundo a qual não é recorrível a decisão que indefere o pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional.
Ponderou-se neste acórdão que « Não obstante o vertido na jurisprudência anterior deste Tribunal, é este o sentido que se entende mais conforme à
Constituição, ainda que guiado “apenas” pelo seu artigo 20.º. Efetivamente, a transformação da situação do recluso é de tal forma significativa, na sua aproximação à liberdade (ainda que se trate de mera aproximação), que se projeta, necessariamente, não apenas na dimensão objetiva das ações que lhe são permitidas ou vedadas, mas na própria dimensão interior e subjetiva, enquanto perceção de si enquanto pessoa “mais livre” ou “quase livre”, uma modificação substancial com suficiente afinidade com a total ou “verdadeira” liberdade que justifica a imposição do recurso, não perdendo de vista que “[…] independentemente da posição que se tome relativamente a estar ou não em causa o direito à liberdade – a sua concessão se traduz numa saída do meio prisional, com a consequente
‘libertação’ da pesada carga de limitações inerentes às ‘exigências próprias da execução’ e ainda porque se trata de decisão que contém a concessão (antecipada) da própria liberdade condicional’ (ibidem, p. 754, sublinhado acrescentado), ainda que esta última careça de um novo ato decisório.
Estas as razões – a que se associam, na mesma linha, as que constam das declarações de voto apostas aos Acórdãos n.os 560/2014 e 332/2016 – pelas quais se impõe um juízo de inconstitucionalidade da norma sub judice
Sintetizando, dir-se-á que cumprir pena no estabelecimento prisional é uma situação factual substancialmente diversa daquela em que se cumpre essa mesma pena na habitação, pois neste último caso o recluso não sente o peso da instituição prisional e encontra-se «mais livre», não estando submetido às rotinas e ao horário prisional, podendo conviver com quaisquer pessoas sem restrições, o que representa sem dúvida um incremento do exercício e gozo de direitos individuais que não teria se estivesse no estabelecimento prisional.

É esta a situação em que condenado passa a estar se lhe for concedido o período

de adaptação à liberdade condicional, pelo que a supressão do direito ao recurso e a impossibilidade de gozar desta nova situação, muito mais favorável no que respeita ao cumprimento da pena, viola o direito à tutela jurisdicional efetiva consignado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, onde se dispõe que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.»
Conclui-se pela inconstitucionalidade do artigo 235.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, conjugado com o artigo 188.º do mesmo código, na interpretação segundo a qual estas normas vedam o direito ao recurso das decisões que conheçam do pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional.
3 – Face ao exposto, o recurso é admissível nos termos gerais previstos nos artigos 239.º e 154.º («Sempre que o contrário não resulte da presente lei, são correspondentemente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.»), ambos do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e 399.º do Código de processo penal («É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.»).
Sobe imediatamente – 407.º, n.º 1 –, em separado – artigo 406.º, n.º 1 –, com efeito devolutivo – artigo 408.º, n.º 2, a contrario, todos do Código de Processo Penal.
IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se a reclamação procedente e admite-se o recurso. Sobe imediatamente – 407.º, n.º 1 –, em separado – artigo 406.º, n.º 1 –, com efeito devolutivo – artigo 408.º, n.º 2, a contrario, todos do Código de Processo Penal. Sem custas.

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Alberto Augusto Vicente Ruço

(Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, por competência delegada - Despacho do

Ex.mo Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de março de 2022)