Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
960/21.8T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
PROCESSO CRIME
ABSOLVIÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 225.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, NA REDAÇÃO DA LEI N.º 48/2007, DE 29-08, E 496.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Tendo o autor estado privado da liberdade durante 276 dias, em que esteve sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância eletrónica, vindo a ser absolvido no respetivo processo crime, e demonstrado ali que não cometeu os ilícitos que lhe eram imputados – a sua absolvição não decorreu do princípio do in dubio pro reo –, assiste-lhe o direito a indemnização, a suportar pelo Estado Português.

II – Num tal caso, mostra-se equitativo fixar a indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 27.500,00, sabido que o lesado sofreu constrangimentos quanto ao cuidar do seu rebanho, sentiu tristeza e angústia, passou noites sem dormir, teve alergia causada pelo dispositivo de vigilância, que determinou um episódio de urgência hospitalar, suportou os comentários e reflexos de tal situação na comunidade local, embora com permanência na sua residência, junto da família, onde exerceu a atividade de exploração de um café, nos moldes em que o fazia antes.

Decisão Texto Integral:

Relator: Arlindo Oliveira
Adjuntos: Emídio Francisco Santos
Catarina Gonçalves

            Processo n.º 960/21.8T8GRD.C1 – Apelação

            Comarca da Guarda, Guarda, Juízo Central Cível e Criminal

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA, já identificado nos autos, interpôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o Réu Estado Português.

Pede que o Estado seja condenado a pagar-lhe a quantia de 21.592,96 euros a título de danos patrimoniais e a quantia de 55.200,00 euros a título de danos não patrimoniais.

Para tanto, em síntese e com relevo, o Autor alega que foi arguido no processo nº 266/16...., que correu termos no Tribunal da Comarca ..., Juízo Central Cível e Criminal ... - Juiz ..., processo em que lhe foram aplicadas as medidas de coacção de proibição de contactar, por qualquer meio e por qualquer forma, com as vítimas e testemunhas identificadas nos autos e à obrigação de Permanência na Habitação com Recurso a Vigilância Electrónica, tendo aguardado os termos do processo sujeito a esta última medida de coacção, que foi mantida na decisão instrutória, e, após julgamento, foi absolvido, pelo acórdão proferido em 19 de Dezembro de 2019, data em que cessou a medida de coacção de OPHVE, sendo restituído à liberdade, tendo estado privado da liberdade entre 18 de Março de 2019 e 19 de Dezembro de 2019, num total de 276 dias; que após recurso, o acórdão transitou em julgado 10 de Março 2021, mantendo o Tribunal da Relação de Coimbra aquela decisão, resultando daquele acórdão a absolvição do arguido, em razão de ter ficado demonstrado que o arguido não foi agente dos crimes que lhe eram imputados, porque a factualidade provada não permitiu a imputação ao arguido aqui autor dos crimes pelos quais vinha acusado, resultando a inocência do mesmo, não resultando da prova produzida ou da factualidade provada qualquer dúvida à absolvição do aqui autor, aí arguido.

Mais alega que não praticou os crimes de que foi acusado naquele processo pois não reduziu BB e CC a estado ou condição de escravo, nunca os alienou, cedeu, adquiriu ou apossou e nunca os ofereceu, entregou, aliciou, aceitou, transportou, alojou ou acolheu para exploração do trabalho ou escravidão, por meio de violência, rapto, ameaça grave, ou através de ardil ou manobra fraudulenta; ou com abuso de autoridade resultante de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar, ou aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade, ou mediante consentimento da pessoa que tivesse controlo, sob os referidos BB e CC.

Alega ainda o Autor que a OPHVE causou-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais, respectivamente, a perda de 115 cabeças de gado, que ao custo médio de 150,00 euros por animal, representou uma perda efectiva de 17.250,00 €; foi obrigado a ter de ressarcir o IFAP, em razão da diferença de efectivo registada, na quantia de 802,96 euros, em razão do excesso de apoio recebido, e, pela falta de assistência devida viu ainda comidos pelas raposas, 22 borregos e 20 borregas, que valiam à data da venda 70,00 euros o macho e 100,00 euros a fêmea, o que perfaz um prejuízo de 3.540,00 euros.

Relativamente aos danos não patrimoniais alega que sentiu uma enorme injustiça, revolta emocional, sentimentos de tristeza e desgosto, passou a ser motivo de conversas, sempre com um teor depreciativo e negativo, o que o deixou ainda mais desgostoso, triste e abatido, durante todos os dias que esteve privado da liberdade e ainda hoje não conseguiu lavar a sua imagem porque há sempre quem desconfie das suas boas intenções e, ver os animais morrerem por falta dos seus cuidados, causou-lhe sentimentos profundos de tristeza, revolta e de impotência durante os dias em que esteve privado da liberdade.

Alega ainda que se viu impedido de realizar os seus actos de realização pessoal e que o acumular de sentimentos, causaram-lhe um imenso e intenso sofrimento interior, mau estar psíquico, inúmeras noite sem dormir e estado profundo de choro onde chegou a recear pelo seu futuro, pelo futuro dos animais e pelo futuro da sua família, vivendo durante 276 dias, com um sentimento de aperto no coração e de infelicidade que lhe retirava a vontade de viver, vivendo cabisbaixo durante todo esse tempo; e que sofreu imensas dores físicas, porque o dispositivo de controlo à distancia instalado no tornozelo do Autor, causavam-lhe uma alergia, que fazia inchar a perna, ao ponto de a sentir estrangulada, atento o inchaço que padecia, o que lhe causava imenso mau estar e dores corporais intensas e um enorme sofrimento, que chegou a determinar episódio de urgência hospitalar.

*

O Réu Estado Português contestou, impugnando os factos alegados pelo Autor, defendendo que não se verificam os requisitos para a procedência do pedido, com o fundamento em que não se demonstrou que o autor tenha sido absolvido no processo por não ter praticado os factos de que era acusado, mas sim pela aplicação do princípio do in dubio pro reo.

Anda que assim fosse, não se encontram demonstrados os factos em que o autor funda os alegados danos patrimoniais e pede que o mesmo seja condenado por litigar com má-fé, com o fundamento em que o mesmo, com vista a tal fim, omitiu e alterou a verdade dos factos, uma vez que lhe foi sendo dada autorização para tratar do rebanho de que era proprietário.

Realizou-se audiência prévia, no decurso da qual, foi proferido despacho saneador tabelar e fixados o valor da causa, o objecto do litígio e os temas da prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, e finda a mesma foi proferida a sentença de fl.s 207 a 280, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte jugar a presente acção improcedente, por não provada e, consequentemente, foi o réu absolvido do pedido e;

Foi condenado o autor, como litigante de má fé, na multa de 10 (dez) Uc´s.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso o autor AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 335), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1- Nos presentes autos o recorrente/autor peticionou nos termos e para o efeito das disposições do artigo 225 do CPP, que o Estado/Réu, fosse condenado a pagar-lhe a quantia de 21.592,96 euros a título de danos patrimoniais e pagar-lhe a quantia de 55.200,00 euros a título de danos não patrimoniais;

2- A douta sentença recorrida absolveu o estado e condenou o Autor/recorrente AA como litigante da má-fé em multa que fixou em 10 (dez) unidades de conta.

3- O Autor/recorrente, inconformado com tal decisão, apresenta o presente recurso;

4- Para tanto deixa impugnada a matéria de facto por não concordar com a decisão do tribunal recorrido quanto a esta;

5- Não concorda com certos factos que foram dados por provados, defensando que certos factos provados que constam da decisão recorrida deviam ter sido dados por não provados, assim como defensa que certos factos que foram dados por não provados deveriam ter sido dados por provados;

6- Isto porque o tribunal errou na apreciação da prova;

7- Assim o recorrente impugna a factualidade dada por provada constante da sentença, factos provados, 54; 55; 56; 57; 58; 59; 60 e 61;

8- Funda-se tal impugnação em erro do tribunal na apreciação da prova, pois a lógica da vida, conjugada com a prova documental junta (Documento 14; Documento nº 4, folhas 114 a 131); a prova testemunhal de DD, bem como a correta consideração do sentido e significado do principio in dubio pro reo e da presunção de inocência, implicam a alteração da factualidade em crise, no sentido de serem o supra transcritos factos dados por não provados, à exceção do facto 56, que deve na parte que se defensa ser considerado provado, eliminando-se deste a expressão “contrariamente ao que pretende fazer crer” uma vez que tanto em audiência de julgamento tanto da petição inicial, resultam factos que demonstram que o Autor jamais ocultou o que quer que fosse do tribunal com interesse à descoberta da verdade, nos termos que o tribunal recorrido conclui;

9- Da sentença recorrida resultaram como não provados os seguintes factos:

(…)

10- E quanto a estes entende o recorrente que o tribunal recorrido, não apreciou devidamente a prova testemunhal e documental;

11- Defensado por tudo quando decorre da fundamentação supra, que aqui se dá por integralmente reproduzida, que tais factos deviam ter sido dado por provados;

12- Porquanto no que toca aos factos em crise, o tribunal considera certos factos por não provados, por entender que absolvição do aqui recorrente, arguido no processo nº 266/16.... resultou de aplicação do princípio IN DUBIO PRO REO;

13- O que não ocorreu, nos termos do resultante da fundamentação de facto e de direito do acórdão proferido no processo nº 266/16...., constante de folhas 117 º a 131º (DOCUMENTO Nº4 junto com a PI);

14- De onde resulta que nesse referido processo não houve sequer aplicação do princípio do IN DUBIO PRO REU;

15- Sendo que a inocência do recorrente resulta do princípio penal da presunção de inocência, atenta a inexistência de prova em contrário;

16- Ora ao contrário do sistema norte americano, que final declara os arguidos culpados ou inocentes, o nosso sistema judicial, não o faz.

17- Isto alicerçado ao testemunho de DD, EE, FF, GG, HH

18- Bem como da conjugação do resultante do conteúdo dos documentos 8 e 9 e 15, documento nº 17, documento nº 12;

19- Te todo o conjugado, entende o recorrente resultar a prova dos factos mencionados em 9 das conclusões;

20- Defensando a final que os mesmos sejam dados por provados e assim pela transição dos mesmos para a factualidade dada por provada.

21- Na procedência da visada alteração à matéria de facto provada e não provada, há que subsumir os factos ao direito.

22- A visada alteração à matéria de facto, visa também a alteração da decisão de direito;

23- Uma vez que nos termos do artigo 27º nº5 da C.R.P, está previsto o dever do estado indemnizar o lesado, com base na previsão do artigo 225º e seguintes do Código de Processo Penal;

24- O artigo 225º do Código de processo Penal estabelece o direito a indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada;

25- Estabelecendo o nº 1 do referido artigo, que quem tiver sofrido obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização pelos danos sofridos, quando nos termos da alínea c) se comprovar que o arguido não foi o agente do crime;

26- Fundamenta-se assim a peticionada indemnização na alínea c) do artigo 225 nº1, na medida em que está devidamente comprovada a inocência autor, bem como resulta da defensa alteração à matéria de facto que o mesmo não praticou o crime, por tudo quanto ficou demonstrado, inclusive da fundamentação de direito e de facto do acórdão que absolveu o aí arguido aqui recorrente nos termos suprarreferidos.

27- Na medida em que não resultou minimamente provado que o aqui autor aí arguido, tenha praticado os crimes pelos quais foi acusado e julgado e, portanto, submetido medida de coação privativa da liberdade;

28- Nem tão pouco resultou a mínima dúvida atenta a prova produzida e da factualidade provada no que concerne à absolvição do aqui autor aí arguido, que beneficia assim do principio da presunção de inocência, uma vez que o nosso sistema judicial ao contrario do sistema norte americano que a final se pronuncia pela inocência ou não inocência dos arguidos;

29- No sentido, do dever indemnizatório, veja-se o disposto no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-09-2014, relativo ao processo 2208/11.4TVLSB.L1-7, onde de pode ler no seu sumário:

30- “Se no acórdão absolutório (penal) se chegar à conclusão de que o arguido não praticou o crime ou que atuou justificadamente nenhuma questão se suscita quanto ao dever de indemnizar. Pelo contrário, se nesse acórdão se suscitarem dúvidas sobre se o arguido cometeu o crime e sendo absolvido apenas em obediência ao princípio “in dúbio pro reo”, e face ao teor literal da alínea c), também não há dúvidas de que a indemnização só será devida se o arguido provar (na acção de indemnização) que efetivamente não praticou o crime ou que actuou justificadamente.”

31- Resulta do caso concreto, da demonstração do douto acórdão que a privação da liberdade que o aqui autor, aí arguido, cumpriu, veio a revelar-se necessariamente injustificada;

32- Não beneficiando sequer o mesmo da aplicação do principio in dúbio pro reu, nos termos em que o tribunal recorrido tantas vezes o menciona erradamente.

33- Resultando em consequência, o direito a ser ressarcido pelos danos patrimoniais e morais sofridos termos das mencionadas disposições a ser ressarcido pelos danos, nos termos supra fundamentados.

34- No âmbito das invocadas normas, que caracterizam a responsabilidade civil do Estado, nos termos constantes do artigo 225 do Código de Processo Penal, ante da defensa factualidade a dar por provada, verifica-se a responsabilidade do estado por via da alínea c) do artigo 225 nº1, uma vez que se verifica o nexo de causalidade originada pela privação da liberdade geradora dos factos que justificam a responsabilidade civil do estado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais peticionados.

Nestes termos deve a douta sentença recorrida ser revogada e em consequência o estado ser condenado nos precisos temos peticionados na petição inicial.

Absolvendo-se o Autor aqui recorrente, do pedido de litigância de má fé

formulado pelo réu.

E assim se fazendo JUSTIÇA!

Contra-alegando, o réu, Estado Português, pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que a prova produzida foi bem apreciada, defendendo, em consequência que se deve manter a factualidade dada como provada e não provada na decisão recorrida e, designadamente que se deve manter a sua condenação por litigância de má fé e devendo subsistir a absolvição do réu do pedido porquanto, “o mesmo não foi absolvido por ter sido considerado inocente (…) mas por falta de prova” e “a não prova dos factos não é sinónimo de inocência”, pelo que não se verificam os requisitos previstos nos artigo 225.º do Código de Processo Penal, para que o Estado Português possa ser responsabilizado pelo pagamento da peticionada indemnização.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.   

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, nos seguintes termos:

- os factos constantes dos itens 54.º a 61.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados, com excepção do item 56.º, em que se deve eliminar a expressão “contrariamente ao que se pretende fazer crer) e;

- toda a matéria dada como não provada, deve passar a considerar-se como provada;

B. Se, em face da pretendida alteração da matéria de facto dada como provada e não provada, se verificam os requisitos para o autor ser indemnizado pelos danos que sofreu, em virtude de ter estado sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica;

C. A assim se considerar, qual o montante da indemnização a atribuir ao autor e;

D. Se o autor litiga de má fé.

A matéria de facto a ter em consideração será fixada após a apreciação do recurso, na sua vertente de facto.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, nos seguintes termos:

- os factos constantes dos itens 54.º a 61.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados, com excepção do item 56.º, em que se deve eliminar a expressão “contrariamente ao que se pretende fazer crer) e;

- toda a matéria dada como não provada, deve passar a considerar-se como provada.

No que a esta questão respeita, entende o ora recorrente, que o Tribunal devia dar como provada e não provada a factualidade constante dos itens em referência, em conformidade com o que antecede, com base nos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, EE, FF, GG e II.

Bem como no teor dos documentos n.º 4 e 14 (quanto aos factos provados) e n.º 8, 9, 12, 15 e 17 (quanto aos não provados).

Por seu lado, com base nos mesmos elementos probatórios, o réu pugna pela imutabilidade da referida matéria de facto, considerando ter sido bem apreciada a prova produzida e consequente manutenção da decisão recorrida.

Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.

Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que, em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.

Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são, pois, elemento determinante da decisão de facto.

Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.

Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.

Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.

Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.

As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem grandes possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.

A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.

Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciaria, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.

Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?

Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e seg.s e de 30/05/2013, Processo 253/05.7.TBBRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 662.º, do CPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados (sem prejuízo, como acima referido de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção).

Vejamos, então, a factualidade posta em causa pelo ora recorrente, nas respectivas alegações de recurso.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, nos seguintes termos:

- os factos constantes dos itens 54.º a 61.º, dos factos provados, que devem passar a considerar-se como não provados, com excepção do item 56.º, em que se deve eliminar a expressão “contrariamente ao que se pretende fazer crer) e;

- toda a matéria dada como não provada, deve passar a considerar-se como provada.

Para facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tal factualidade:

“54. A medida de coacção que lhe foi imposta no âmbito do processo n.º 266/l 6.4JAGRD, não impediu o Autor de assegurar, por si ou através de terceiros, os cuidados considerados adequados a salvaguardar o bem-estar dos animais, como o próprio Autor admitiu no processo n.º 266/1 6.4.J AGRD; (artigo 47º da contestação)

55. Que aliás foram também garantidos por entidades terceiras (Veterinário Municipal e DGV), a quem o Tribunal comunicou o estatuto processual do Autor e a necessidade de salvaguardar aquele rebanho; (artigo 48º da contestação)

56. Na impossibilidade dos arguidos, foi contratado tratado pessoal para tratar dos animais, e o Autor pôde manter a prestação de alguns cuidados àqueles animais, desde Julho de 2019, e de forma ampla passou a cuidar daqueles animais pelo menos desde Setembro de 2019, contrariamente ao que pretende fazer crer; (artigo 49 da contestação)

57. Bem sabendo o autor que nenhuma razão lhe assiste na pretensão que deduz contra o Réu Estado; (artigo 50º da contestação)

58. Alterando conscientemente a verdade dos factos; (artigo 51º da contestação)

59. Omitindo factos relevantes para a boa decisão da causa; (artigo 52º da contestação)

60. Deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar; (artigo 53º da contestação)

61. Fazendo, um uso malicioso e abusivo, manifestamente reprovável, do presente processo, com o fim de alcançar um objectivo ilegal. (artigo 54º da contestação)

*

Factos Não Provados:

- Do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, resultou a absolvição do arguido, em razão de aí ter ficado demonstrado que o arguido não foi agente dos crimes que lhe eram imputados; (artigo 12º da petição inicial)

- Para tanto considerou o acórdão que a factualidade provada não permitiu a imputação ao aí arguido aqui Autor dos crimes pelos quais vinha acusado, resultando assim a inocência do mesmo; (artigo 13º da petição inicial)

- Não residindo da prova produzida ou da factualidade provada qualquer dúvida à absolvição do aqui Autor, arguido naquele processo; (artigo 14º da petição inicial)

- O Autor não praticou os crimes de que foi acusado no processo nº 266/16...., pelos quais sofreu medida de coacção restritiva da liberdade; (artigo 15º da petição inicial)

- O Autor relativamente a BB e CC, nunca os reduziu a estado ou condição de escravo; (artigo 16º da petição inicial)

- Nunca os alienou, cedeu, adquiriu ou apossou; (artigo 17º da petição inicial)

- Nunca os ofereceu, entregou, aliciou, aceitou, transportou, alojou ou acolheu para exploração do trabalho ou escravidão, por meio de violência, rapto, ameaça grave, ou através de ardil ou manobra fraudulenta; ou com abuso de autoridade resultante de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar, ou aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade, ou mediante consentimento da pessoa que tivesse controlo, sob os referidos BB e CC; (artigo 18º da petição inicial)

- O Autor há longos anos que conjuntamente com a sua esposa detém uma exploração de gado Ovino. (artigo 20º da petição inicial)

- todos (artigo 22º da petição inicial)

- Aquando da imposição da medida de coacção privativa da liberdade, o arguido viu-se privado de prestar todos os cuidados que oferecia ao seu rebanho; (artigo 25º da petição inicial)

- inicialmente (artigo 26º da petição inicial)

- Nessa decorrência, o Autor teve logo elevadas perdas de efectivos na medida em que viu, inúmeras ovelhas e borregos a morrer atenta a falta de cuidados necessários na parição; (artigo 28º da petição inicial)

- Por essa razão (artigo 29º da petição inicial)

- Contudo as autorizações concedidas revelaram-se aquém do necessário; (artigo 31º da petição inicial)

- Não conseguindo o Autor, evitar a morte de elevado número de animais, atenta a sua ausência; (artigo 32º da petição inicial)

- A ausência do Autor em razão da medida privativa que lhe estava imposta levou também a que os animais estivessem vulneráveis ao ataque de lobos e raposa que efectivamente sofreram, o que igualmente contribuiu para a diminuição do efectivo; (artigo 33º da petição inicial)

- Nesta decorrência a privação da liberdade imposta ao arguido, custou-lhe a diminuição do seu efectivo em 115 animais, que ao custo médio de 150€ por animal, representou uma perda efectiva de 17.250,00€. (artigo 34º da petição inicial)

- Tais perdas obrigaram o Autor a ter de ressarcir o IFAP, em razão da diferença de efectivo registada, na quantia de 802,96€, em razão do excesso de apoio recebido; (artigo 35º da petição inicial)

- Pela falta de assistência devida, o Autor viu ainda comidos pelas raposas, 22 borregos e 20 borregas, aquando e depois do nascimento dos mesmos, que valiam à data da venda 70,00€ o macho e 100€ a fêmea, o que perfaz um prejuízo de 3.540,00€. (artigo 36º da petição inicial)

- O que denegriu a sua imagem e o seu bom nome; (artigo 42º da petição inicial)

- Na medida em que passou a ser motivo de conversas, sempre com um teor depreciativo e negativo; (artigo 43º da petição inicial)

- O que lhe chegou ao conhecimento e o deixou ainda mais desgostoso, triste e abatido; (artigo 44º da petição inicial)

- Sentimentos que se percutiram intensamente durante todos os 276 dias que esteve privado da liberdade; (artigo 45º da petição inicial)

- E que ainda hoje se percutem na sua vida na medida em que ainda não conseguiu lavar a sua imagem, na medida em que há sempre quem desconfie das suas boas intenções; (artigo 46º da petição inicial)

- Ao ver os animais morrerem por falta dos seus cuidados, causou-lhe também sentimentos profundos de tristeza, revolta e de impotência, atento o condicionalismo da privação da liberdade a que estava adstrito; (artigo 48º da petição inicial)

- Sentimentos se se repercutiram igualmente sempre durante os 276 dias em que esteve privado da liberdade; (artigo 49º da petição inicial)

- A privação da liberdade a que esteve adstrito nesses 276 dias, acompanhada da perda de elevando número de animais pelos quais tinha carinho e estima, feriu seu ego, ao ponto de se sentir infeliz, por se ver impedido de realizar os seus actos de realização pessoal; (artigo 52º da petição inicial)

- chegou a recear pelo seu futuro, pelo futuro dos animais e pelo futuro da sua família; (artigo 53º da petição inicial)

- vivendo assim cabisbaixo durante todo esse tempo; (artigo 54º da petição inicial)”.

Como acima já referido e consta da sentença recorrida, a matéria de facto em causa foi considerada como provada e não provada, com base na seguinte fundamentação (cf. fl.s 252 a 257 – depois de, cf. fl.s 227 a 251, se ter feito a análise dos documentos juntos e um resumo dos vários depoimentos prestados):

“Da análise da prova produzida e que fundou a convicção do Tribunal, há que dizer, relativamente aos factos provados, que assim foram julgados com base na análise conjunta de toda a prova produzida, acabando por se recolherem da prova elementos coincidentes que permitiram concluir pela dinâmica dos factos nos termos provados e que resultou da conjugação dos factos articulados pelas partes com os documentos juntos aos autos.

Contrariamente ao alegado pelo Autor na petição inicial, basta a leituras dos acórdãos proferidos no processo comum colectivo n.º 266/16...., para se concluir que foi absolvido, não porque não praticou os factos de que foi pronunciado, mas antes, porque não se logrou provar aqueles factos.

Não se provou que era inocente, tendo o mesmo beneficiado naquele processo do princípio do in dubio pro reo.

Impunha-se ao Autor demonstrar nos autos, em cumprimento do ónus da prova que lhe cabe, alegar factos e prová-los, que, sem quaisquer dúvidas, afastassem a possibilidade de poder ter praticado os factos de que foi pronunciado no processo referido – ser inocente, o que não fez.

Limitou-se a alegar, que foi declarado inocente no acórdão proferido nesta instância, facto que não corresponde à verdade, como resulta da leitura do acórdão, pois “no que respeita aos factos que não resultaram provados (que vinham imputados aos arguidos na pronúncia), tal ficou a dever-se à inexistência ou insuficiência da prova acerca dos mesmos produzida (…)”.

Não resulta daquele acórdão a absolvição do arguido, em razão de aí ter ficado demonstrado que o arguido (Autor nestes autos) não foi agente dos crimes que lhe eram imputados, a inocência do mesmo, contrariamente à versão apresentada pelo Autor.

Por outro lado, da análise dos documentos juntos pelo Autor aos autos, ou conjugados com os depoimentos das testemunhas inquiridas nestes autos, não se pode concluir, julgar provado, que o Autor não tenha praticado factos subsumíveis nos crimes de que foi pronunciado no processo comum colectivo n.º 266/16...., ou que não tenha reduzido BB e CC, a estado ou condição de escravo; que não os tenha alienado, cedido, adquirido ou apossado; oferecido, entregue, aliciado, aceitado, transportado, alojado ou acolhido para exploração do trabalho ou escravidão, por meio de violência, rapto, ameaça grave, ou através de ardil ou manobra fraudulenta; ou com abuso de autoridade resultante de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar, ou aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade, ou mediante consentimento da pessoa que tivesse controlo.

Como se viu, dos acórdãos proferido naquele processo, resulta ter sido absolvido por ter beneficiado do princípio do in dubio pro reo e as testemunhas inquiridas, mulher e filhos do arguido (sendo uma das testemunhas, DD, co-arguido naquele processo), limitaram-se a dizer o que já tinham dito naquele processo, insuficiente para julgar provado que o arguido não cometeu os crimes de que estava pronunciado; até pela própria relação familiar e interesse, ainda que indirecto, na decisão que venha a ser proferida nos autos e porque, dos depoimentos resultou claro, até, a existência de vínculo laboral dos ofendidos, procurando as testemunhas justificar a razão de os ofendidos viverem nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritas no acórdão proferido - as testemunhas e declarações de parte prestadas pelo Autor de modo algum contrariaram os factos provados e não provados no acórdão.

Por outro lado, quer dos documentos, quer dos depoimentos prestados e declarações de parte do Autor, os alegados danos patrimoniais e não patrimoniais, ficaram por provar, e tal ónus competia ao Autor.

Não se acreditou nos depoimentos das testemunhas relativamente à alegada morte dos animais pois, por um lado, é obrigatória a comunicação das mortes, desaparecimentos, abates e nascimento, como bem sabe o Autor.

Ainda que se pudesse aceitar, que algum cordeiro tenha falecido após o nascimento (e não se provou tal facto), não se acredita que o Autor e o seu filho DD, durante o período de tempo em que estiveram sujeitos à medida de coacção de OPHVE, não tivessem a preocupação de monitorizar, controlar, através de terceiro (seja algum familiar ou pessoas contratadas) os nascimentos e as mortes de ovelhas e cordeiros, ainda mais sendo beneficiários de subsídios do IFAP e sabendo que tinham que fazer aquelas comunicações.

Não se acreditou minimamente na versão dos filhos do Autor, de que, a partir de determinada altura preferiram não comunicar as mortes e desaparecimentos para não preocupar o pai – decerto, este (e o outro filho), não deixariam de lhes ir perguntando do estado e número dos animais. Depoimentos cuja veracidade também é afastada pelo depoimento da testemunha HH, não sendo minimamente credível que um pastor, um dono de um rebanho, não controlasse quer o estado, necessidades do rebanho, nascimento, mortes e desaparecimentos. O Autor não esteve preso, afastado da sua casa, esteve sujeito à medida de coacção de OPHVE, sendo-lhe possível estar em contacto permanente com quem ia sendo contratado ou estivesse incumbido de tratar do rebanho.

E basta ler os requerimentos que foram juntos ao processo em que foi julgado, para também afastar a credibilidade de tais depoimentos.

De facto, apenas em 17 de Junho de 2019 é que requereu autorização para desempenhar a sua actividade profissional, em terem contratado um funcionário “para colmatar a sua falta na exploração” até à semana anterior àquele dia. E, talvez para dar força a tal pedido, referiu em tal requerimento que tinham “nos últimos 3 meses morrido 72 animais”, talvez para que o tribunal autorizasse mais rapidamente o requerido.

E, a partir de tal data e depois da informação do veterinário municipal, o Autor e o seu filho foram sendo autorizados a realizar a sua actividade, nos termos descritos, não tendo voltado a referir-se a mortes, desaparecimentos de animais.

E se o Autor não comunicou as mortes e desaparecimentos, é porque não se verificaram, ou, a verificarem-se, terá sido em número muito reduzido e em animais ainda não registados (mas também esse acontecimento, a ocorrer, se não provou).

Se dúvidas houvesse, basta reler os requerimentos e o relatório social juntos ao processo n.º 266/19...., para se concluir que coram concedidas autorizações aos arguidos naquele processo para assegurar o acompanhamento e tratamento do seu rebanho, que foram sendo autorizadas de forma limitada a partir de Julho de 2019 e passaram a ser de forma ampla e nos exactos termos pretendidos pelo Autor a partir de 13 de Setembro de 2019.

E o Autor declarou no julgamento, processo n.º 266/16...., "que, apesar do Sr. BB dar uma ajuda, se ele lá não estivesse, o próprio arguido faria o trabalho, o que, aliás, tem acontecido desde que eles saíram, não tendo, desde então contratado ninguém, acrescentando que mesmo depois deste processo, com a autorização de duas horas para ele e duas para o filho, conseguem tratar de tudo''.

Relativamente aos alegados sofrimentos do Autor, resultaram apenas nos termos julgados provados, porque as declarações daquele e depoimentos das testemunhas são insuficientes, por si só, para concluir de modo diverso, tendo presente o que já se referiu em relação às testemunhas e, no que diz respeito às dores sofridas, as fotografias e declarações do Autor as declarações de parte do mesmo, para se concluir que se verificaram.

Por último, há que referir que é flagrante a omissão pelo Autor, na petição inicial, de factos essenciais e cujo desconhecimento não podia ignorar: omitiu autorizações que lhe foram sendo concedidas a partir de 17 de Junho de 2019, a fim de tratar do seu rebanho; as próprias afirmações e requerimentos que apresentou naquele processo, o saber da obrigatoriedade de comunicação de falta de animais, não desconhecendo que o número de animais que “desapareceram” não aconteceu, bem como procurar fazer crer que teve que ressarcir o IFAP, quando nunca lhe competiria ao Autor e que a notificação foi feita à sua mulher por ser proprietária de uma exploração registada em nome dela e que não se confunde com a do Autor, e que tal notificação é para audiência prévia.

Também referir que o Autor bem sabia e sabe que não foi absolvido por ter sido considerado inocente, que não praticou os crimes de que tinha sido pronunciado, mas porque não se provaram os factos constantes na pronúncia, beneficiando do princípio do in dúbio pro reo.

Postura processual do arguido que se enquadra no instituto da litigância de má-fé, e que o tribunal não pode deixar de reprovar e agir em conformidade, o que se fará a final.

Quanto aos demais factos que não resultaram provados, tal aconteceu em virtude de a prova documental não ter sido suficiente e idónea para prova de tais factos, ou encontrarem-se os mesmos em contradição com os factos julgados provados, ou é matéria de direito alegada nos articulados.”.

Vejamos, então, se dos depoimentos e documentos invocados pelo recorrente, e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que a supra mencionada matéria de facto seja modificada ou alterada.

Esta, no essencial, resume-se a saber se o autor ficou impossibilitado de cuidar do seu rebanho e, em consequência disso, sofreu os alegados prejuízos e se a sua absolvição se ficou a dever ao princípio do in dubio pro reo ou porque se demonstrou não ter praticado os factos de que era acusado.

Foram, ouvidos, na íntegra, os depoimentos prestados referidos pelo recorrente.

A testemunha DD, referiu ser filho do autor, tendo sido co-arguido no processo crime e sujeito à mesma medida coactiva e explorar, conjuntamente com os pais, o rebanho.

Disse que a exploração está registada em 3 nomes: cada um dos pais e dele próprio mas, funciona como um único rebanho.

Aquando da aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação, no início foram dois amigos e familiares que cuidaram do gado, o que acarretou problemas porque eram pessoas que não estavam habituadas a isso, não tinham experiência e os próprios animais “fugiam deles”, porque eram desconhecidas e estavam habituados ao pai.

Relativamente à morte de animais e não obstante saber que era obrigatório fazer a respectiva comunicação “no período da obrigação de permanecer em casa não fez as comunicações, porque não tinha cabeça para isso”.

Referiu que quando recomeçaram a tomar conta do rebanho havia uma “diferença de 115 animais, nas explorações do pai e da mãe”. Aperceberam-se disso quando foram tosquiar as ovelhas. “O meu pai deu pela falta dos animais. Morreram ou desapareceram. Vimos carcaças em vários lados e apareceu lã em alguns locais”. E “algumas ovelhas apareciam sem as crias e desapareceram 42 borregas”. Atribuindo tal facto aos lobos, raposas e cães vadios, porque segundo referiu “os animais não eram deixados à noite, no sítio próprio”. O que só acontecia porque não era o pai a vigiar e cuidar do rebanho.

“As pessoas iam informando da morte dos animais”.

Mais disse que o valor de uma borrega anda nos 100 euros e a de um borrego pelos 80 euros e uma ovelha entre 200 a 250 euros.

Pela testemunha EE, foi referido que é filho do autor e viveu com os pais até 2005/7, tendo-os, enquanto residiu com os pais e quando estudante, nas férias, ajudado na agricultura.

Descreveu as condições em que os assistentes no processo crime viviam em casa dos pais.

Descreveu, igualmente, as condições e sentimentos vivenciados pelo pai durante o período de permanência na habitação, referindo que o pai sofreu muito com isso.

“Encontraram espinhaços de ovelha na serra”.

Durante a noite, o rebanho ficava parqueado em locais vedados ou no armazém.

Por FF, foi dito que é esposa do autor, com quem vive há 43 anos.

Referiu que os assistentes viviam com eles “como família, bem tratados. Tinham animais que vendiam e ficavam com o dinheiro”, tendo sido ela e o autor que lhes ofereceram tais animais.

Quando foi “preso”, “o meu marido sentiu-se triste e revoltado. Noites que não dormia nem dorme. As pessoas falavam, era o prato do dia. Era um falatório e através da internet. Era uma vergonha”.

Acrescentando que “algumas pessoas deixaram de ir ao café. O meu marido sentia e sente vergonha”.

Por GG, foi dito que é filha do autor e que o ajudou com o rebanho, aos fins de semana e férias, na altura em que aquele esteve em prisão domiciliária.

Mais referiu que as pessoas que estavam em casa dos pais “eram tratados como família. Participavam em todas as festas como os demais”.

Disse que iam ajudar a tratar do rebanho “mas sem os cuidados que o pai tinha” e que houve alguns animais que “desapareceram”. “Vimos alguns cheios de feridas e com bichos e a coxear, por ataques de animais”. “Algumas apareceram mortas no armazém. Vi outras moribundas e carcaças de ovelhas na serra”.

Acrescentou que as cercas estavam danificadas e “não as sabiam reparar”.

Quanto às consequências do facto de o pai ter sido obrigado a ficar em casa, referiu que “ficou de rastos. Apático”.

A testemunha HH, referiu que é Médico Veterinário na Câmara Municipal ..., e já conhecia ao autor e a sua exploração, qualidade em que foi contactado pelo Tribunal para se inteirar do estado do rebanho, tendo-se deslocado ao local, na sequência do que elaborou a informação de fl.s 135/6, cujo teor confirmou em audiência.

Disse que a aparência dos animais era “normal” e que não havia “diminuição do efectivo”.

Em caso de morte do animal, há o dever de comunicação e procede-se à sua recolha e que há subsídios para os ataques de lobos e diz que “podem desaparecer animais sem comunicação”, mas “não é normal desaparecer um número muito elevado. Podem ser mortos vários num ataque, mas ficam no local. Quando se prove o ataque de lobos, é elaborado um auto”.

Acrescentou que, em sua opinião, “é difícil desaparecerem 100 ovelhas sem se dar conta, mesmo ao longo de 2 meses, sendo normal fazer-se a contagem dos animais”.

Analisando a informação de fl.s 135/6, datada de 10 de Julho de 2019, no essencial, ali se refere que havia um único responsável pelo maneio de todos os animais, que se “encontravam em boas condições corporais” e que “ainda não tinham sido tosquiados, o que já deveria ter acontecido para evitar problemas de saúde aos animais”. Não havia forragem armazenada, alimentando-se, exclusivamente, do pasto”. Que era necessário mais gente para o maneio dos animais e se não fossem tomadas medidas “os rebanhos podem ficar ao abandono ou entrarem numa situação de défice alimentar com consequências graves para a saúde e bem estar dos animais”.

Mais se refere que a Câmara Municipal não poderia assegurar o bem estar e a protecção dos animais, apenas podendo o Veterinário Municipal “adotar o controlo sistemático das condições dos animais com visitas periódicas”.

Conclui que deveria ser concedida autorização aos arguidos para tomar dos rebanhos; ou considerar a venda dos animais e que o maneio dos rebanhos “exige três ou quatro pessoas com conhecimentos e experiência de Agropecuária”.

Ora, compulsados estes depoimentos, bem como os demais elementos probatórios referidos na fundamentação da matéria de facto constante da sentença recorrida (acima, parcialmente, transcrita), esta (fundamentação) não obstante se mostrar consentânea com o que resulta do teor literal de tais depoimentos e demais elementos de prova, salvo o devido respeito por contrária opinião, não é suficiente para se poder concluir, como se concluiu na sentença recorrida.

Como já se referiu, o recorrente, pretende que se dê como provado que teve os prejuízos que alega e que a causa da sua absolvição no processo crime foi por se ter entendido que o autor não praticou os factos que lhe eram imputados e não por decorrência da aplicação do princípio do in dubio pro reo.

 Ao invés, na sentença recorrida, com base no que consta dos itens 53.º a 61.º dos factos provados e toda a matéria não provada, extraiu-se a conclusão contrária.

Por ora, movemo-nos no domínio do facto.

E, relativamente ao que conta dos itens 53.º, 54.º e 57.º a 61.º, analisando o seu teor, tem de se concluir que os mesmos não encerram quaisquer factos, mas sim conclusões.

Efectivamente, saber se o Acórdão proferido no processo crime, absolveu os arguidos por se ter demonstrado que não praticaram os factos que tipificam os ilícitos penais que lhes eram imputados ou apenas com base no princípio do in dubio pro reo é uma conclusão a extrair do teor daquele, do que ali consta como provado e não provado, aliada à análise da respectiva fundamentação/motivação da respectiva matéria de facto no mesmo dada como provada e não provada.

O mesmo se diga no que concerne à redacção das alíneas a) a g) dos factos não provados (na sentença recorrida não se procedeu à numeração de tal matéria, o que aqui se faz, seguindo a sua ordem, para facilitar a decisão desta questão).

A manterem-se as redacções de tais itens e alíneas, automaticamente, ficava decidida a acção.

Assim, por não conterem a descrição de quaisquer factos, mas conclusões, eliminam-se o item 53.º dos factos provados e as alíneas a) a g), dos dados como não provados.

De igual forma, o teor do item 54.º dos factos provados não contém factos.

Saber se da aplicação da referida medida coactiva o autor ficou impedido de assegurar os cuidados devidos e necessários aos animais – fundamento de uma vertente da peticionada indemnização – é algo que terá de se extrair dos factos que fundamentem tal conclusão/pedido.

Assim, elimina-se o item 54.º dos factos provados.

Mutatis mutandis o mesmo se diga quanto aos itens 57.º a 61.º dos factos provados.

O que dos mesmos consta é a reprodução dos preceitos legais que regulam a condenação por litigância de má fé.

Ora, esta tem de extrair-se da factualidade alegada por contraponto ao que vier a ser dado como provado – como nessa sede melhor se explicitará – e não da circunstância de, em sede de matéria de facto, assim se concluir, reproduzindo o texto dos preceitos legais que fixam os requisitos da litigância de má fé.

Consequentemente, eliminam-se os itens 57.º a 61.º dos factos provados.

Com idêntica fundamentação, se elimina do item 56.º dos factos provados, a sua parte final; ou seja, a expressão “contrariamente ao que pretende fazer crer”.

Relativamente à demais matéria dada como não provada e que se prende com a questão dos alegados prejuízos consistente na perda de animais e danos não patrimoniais sofridos pelo autor, retém-se o seguinte:

- alínea h); mantém-se como não provada, uma vez que quanto a tal se demostrou o que consta do item 12.º dos factos provados, não impugnado;

- alínea i); mantém-se como não provada, atento o que consta do item 13.º dos factos provados, igualmente, não impugnado;

- alínea j); passa a considerar-se como provada.

Efectivamente, enquanto o arguido não foi autorizado a prestar cuidados ao rebanho (em Julho de 2019), não os pode prestar, porque não podia sair da sua residência, o que, como é óbvio, o impossibilitava de o fazer;

- alínea l); mantém-se como não provada, em face do que consta do item 16.º dos factos provados, não impugnado;

- alínea m); mantém-se como não provada.

Não se demonstrou que houvesse perdas de animais, como resulta do depoimento da testemunha HH, conjugado com o teor da sua informação, junta a fl.s 135/6.

Por outro lado, como consta dos itens 35.º a 47.º dos factos provados, só em Junho de 2019 é que os arguidos requereram lhes fossem dadas autorizações para cuidar do rebanho, que lhes foram sendo concedidas, como ali consta.

Não consta uma única prova documental que comprove o aparecimento de animais mortos ou feridos, carcaças ou lã de animais mortos, para o que bastava uma simples fotografia.

Sem esquecer que, como referiu a testemunha HH, o desaparecimento de 100 ovelhas teria de ser, de imediato, detectável.

De igual forma, inexiste qualquer comunicação da perda do efectivo, que era obrigatória e comprovando-se a perda de animais por ataques de lobos, havia direito a um subsídio, o que tudo aconselhava tal comunicação. Não sendo crível que os amigos e familiares do autor que detectaram tamanhas mortes de animais, disso não tenham informado o autor.

- Daqui resulta, também, que se mantenham como não provadas as matérias que constam das alíneas n) a r, t e bb) a ff).

- Relativamente à alínea s); mantém-se como não provada, em face do teor do item 48.º dos factos provados, não impugnado.

Por último, no que concerne às alíneas u) a aa); que se prendem com o estado de espírito em que ficou o autor, no decurso da aplicação da medida de coacção a que foi sujeito, entendemos que a matéria delas constante deve passar a ser dada como provada.

Efectivamente, não obstante o que já consta como provado nos itens 19.º a 28.º dos factos provados, atento a que se trata de meios pequenos, ambiente de aldeia, em que tudo se sabe e tudo se comenta, nem sempre com respeito pela verdade dos factos, isto conjugado com os depoimentos, quanto a tal, prestados pelos familiares do autor, aliado ao facto de uma pessoa que sempre esteve ligado ao maneio e cuidado de rebanhos, de um momento para o outro se ver confinado à sua habitação e impossibilitado de continuar a exercer tais trabalhos, seguramente, que a nível psíquico e afectivo, isso deixa profundas marcas, para mais, quando se está convicto da injustiça de tal situação.

Pelo que, o teor das alíneas u) a aa), passa a integrar o elenco dos factos provados.

Como acima já se referiu, relevante para averiguar dos pressupostos da obrigação de indemnização por parte do réu, Estado Português, importa ter em atenção, para além dos factos que no Processo Crime foram dados como provados (e transpostos para a sentença recorrida), os factos que ali foram considerados como não provados e que constam nos autos (cf. doc. n.º 4, junto com a p.i. – fl.s 41 a 113), pelo que, por força do disposto no artigo 607.º, n.º 4, aplicável ex vi artigo  663.º, n.º 2, ambos do CPC, se passa, ainda, a considerar como provado, o seguinte:

Conforme fl.s 14 v.º a 19 (fl.s 47 v.º a 50 dos autos), no Acórdão proferido nos autos com o n.º 266/16...., da matéria constante da pronúncia, não se provou que:

“1. Em data não concretamente apurada, mas no início do ano de 2005, os arguidos, de comum acordo e em comunhão de esforços e de fins, decidiram recrutar indivíduos desempregados, com apoio familiar e recursos económicos inexistentes ou muito débeis, dependentes do álcool e/ou do tabaco e/ou diminuídos a nível cognitivo, a fim de prestarem trabalho para os mesmos nas quintas que exploram na localidade de ..., ..., a troco de nada mais que alojamento e alimentação precários.

2. Em concretização de tal desígnio, no ano de 2005, os arguidos abordaram BB e CC, aos quais prometeram um emprego na respetiva exploração agropecuária, em troca de um salário, acrescidos de alimentação e habitação, bem como de descontos para regime de proteção social, propostas essas aceites por BB e CC.

3. Os arguidos, relativamente ao regime laboral que prometeram a BB e CC, apenas no que diz respeito ao BB cumpriram parcialmente o acordado no primeiro mês de prestação de trabalho com o pagamento do ordenado estipulado.

4. Os arguidos, aproveitando-se da grande debilidade socio-económica e da situação de especial vulnerabilidade de BB e CC, nada mais cumpriram quanto às contraprestações devidas pela prestação da respetiva força de trabalho.

5. Os arguidos passaram a tratar BB e CC por “criados”, e obrigavam-nos a iniciar os trabalhos entre as 5h30m/6h30m, consoante fosse verão ou inverno, terminando a jornada de trabalho pelas 22h00m, sem direito a tempos de repouso, feriados ou dias festivos, mediante a atribuição de escassa alimentação e muito precárias condições de habitabilidade.

6. O quarto referido em 11. dos factos provados era onde os assistentes para além de dormirem, também residiam.

7. O local onde os arguidos colocaram BB e CC a residir não tinha qualquer isolamento contra o frio, nem as mínimas condições de higiene.

8. Os arguidos sujeitavam BB e CC a precárias e degradantes condições de saúde física e psíquica, alojamento, higiene e segurança.

9. Quando BB e CC regressavam molhados pela chuva e com frio, não tinham possibilidade sequer de se enxugar e aquecer.

10. Ao longo de todo o período de tempo em que BB e CC trabalharam para os arguidos, quando aqueles não executavam os trabalhos que lhes estavam atribuídos da forma pretendida pelos arguidos, estes intimidavam-nos e atemorizavam-nos, exigindo que trabalhassem mais e melhor, deixando BB e CC sem qualquer capacidade de reagirem.

11. BB e CC não se insurgiam, mais frequentemente contra com as descritas condições de vida e laborais, por temerem ser agredidos física e verbalmente por parte dos arguidos, como efetivamente foram por inúmeras vezes, ou ver a sua situação de vida ainda mais prejudicada.

12. Para concretizar os seus intentos, durante o período de tempo em que os assistentes viveram e sua casa, os arguidos retiveram os documentos pessoais de BB e CC, entre os quais os respetivos bilhetes de identidade/cartão de cidadão, com o propósito de evitar que se ausentassem.

13. BB combinou com os arguidos um ordenado de €200,00 (duzentos euros) por mês e descontos para a Caixa Geral de Aposentações.

14. BB recebeu o ordenado de € 200 do primeiro mês.

15. Em data não concretamente apurada, mas no decurso do mês de maio de 2016, BB chateou-se com o arguido AA, tendo-lhe pedido satisfações sobre o pagamento dos ordenados que lhe devia, como o havia feito em circunstâncias anteriores, tendo o AA respondido, como respondeu nas noutras ocasiões, que era o BB quem lhe devia doze anos de renda de casa e de gastos com alimentação.

16. O arguido DD actuou nos termos descritos em 16. dos factos provados, apenas aparentando estar a ajudar o BB.

17. BB nunca viu qualquer documento relacionado com a sua conta bancária, à qual nunca teve acesso, bem assim nunca teve qualquer conhecimento do desfecho do pedido de atribuição da reforma em ....

18. O arguido DD apropriou-se e fez suas as quantias referidas em 18. dos factos provados, em prejuízo do assistente JJ.

19. O referido em 20 dos factos provados acontecia por o assistente BB temer ser agredido física e verbalmente por parte dos arguidos, como efetivamente foi por inúmeras vezes, ou ver a sua situação de vida ainda mais prejudicada.

20. BB aguentou viver nas condições descritas até ser hospitalizado no dia 5 de dezembro de 2016.

21. Os arguidos, em comunhão de esforços e identidade de fins, em execução de plano previamente delineado entre ambos, agiram consciente e livremente:

i. com intenções concretizadas de recrutar, aliciar, acolher e alojar BB e CC para os sujeitarem a trabalhos excessivos e não pagos;

ii. com intenções concretizadas de, para atingirem o referido propósito, ludibriar BB e CC através de erro em que ardilosamente os induziram, mediante promessas de integração num posto de trabalho remunerado, com regalias sociais, alimentação e em alojamento condignos, promessas que sabiam, antecipada e deliberadamente, que não iriam cumprir;

iii. aproveitando-se das débeis condições psíquicas e inexistente suporte familiar de BB e CC, razões pelas quais foram BB e CC seduzidos e aceitaram as propostas de trabalho dos arguidos; os quais retiveram os documentos de identificação, e outros, de BB e CC para que as mesmos não se ausentassem, sujeitando-os, efetivamente, a mais de 11 anos de trabalhos excessivos e em condições laborais e de vida degradantes, assim obtendo enriquecimento ilegítimo na mesma medida que causaram prejuízo patrimonial para BB e CC.

22. Mais agiram os arguidos, em comunhão de esforços e identidade de fins, em execução de plano previamente delineado entre ambos, reiterada, delibera e persistentemente ao longo de mais de onze anos, aproveitando-se de especial vulnerabilidade dos assistentes, sem qualquer respeito pela dignidade que merece qualquer ser humano, com intenções concretizadas de as reduzir à condição de meras coisas, objetos ou animais de sua pertença, ou seja, subjugaram-nos a uma completa relação de domínio imposto por meio de violência física e psíquica, receio, medo, inquietação, com abuso de autoridade derivada de ascendente económico e em função do trabalho, não tendo BB e CC qualquer poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho, apenas fornecendo os cuidados estritamente essenciais à sobrevivência necessária à continuidade o desempenho da atividade laboral.

23. Foram BB e CC constrangidos, deliberadamente pelos arguidos, a trabalhar e a viver sem o mínimo de condições de habitabilidade, higiene, saúde física e psíquica, privacidade, alimentação e trabalho, sobrecarregando-os com trabalhos excessivos, sendo maltratados física e psicologicamente pelos arguidos, por forma a subjugá-los inteiramente à sua vontade e caprichos, privando-os de toda e qualquer liberdade, nomeadamente liberdade física de movimentos, liberdade de decisão e liberdade de ação, reduzindo-os a “coisa sua” e a um estado de sujeição total, tratando-os como seres destituídos de dignidade humana.

24. Com a conduta descrita revelam os arguidos não possuir qualquer respeito para com BB e CC, enquanto pessoas e seres humanos, violando os mais elementares princípios e deveres da vida humana, bem assim da vida em sociedade.

25. Causaram, pois, as referidas condutas assumidas pelos arguidos danos irreparáveis na personalidade e na integridade física e psíquica de BB e CC.

26. Bem sabiam, os arguidos, serem as condutas que assumiram proibidas e puníveis por lei penal.

27. Agiu o arguido DD consciente e livremente, fazendo integrar no seu património o montante total de €1.330,95, à revelia do destinatário de tal pensão de reforma, bem sabendo o arguido DD que tal quantia não lhe era destinada nem lhe pertencia e que, ao atuar da forma descrita, agiu contra a vontade do seu legítimo proprietário.

28. Para o efeito, o arguido DD, por meio de meio ardiloso e aproveitando-se do facto dele não saber ler nem escrever, convenceu o BB de que trataria das burocracias necessárias e à revelia daquele, da mesma se fez co-titular, com a intenção concretizada de, mediante engano a que induziu o BB, se apropriar, como se apropriou, da pensão de reforma deste.

29. Bem sabia, o arguido DD, ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.”.

 

Consequentemente, quanto a esta questão, procede, parcialmente, o recurso:

 - eliminando-se os itens 53.º, 54.º e 57.º a 61.º dos factos provados;

- elimina-se do item 56.º, a expressão contida na sua parte final “contrariamente ao que pretende fazer crer”;

- eliminam-se as alíneas a) a g), dos factos não provados e;

- passando a considerar-se como provada a matéria de facto descrita nas alíneas j) e u) a aa), dos factos não provados e;

- aditam-se aos factos provados, os que foram dados como não provados constantes da pronúncia criminal e ora transcritos;

- mantendo-se inalterada a demais matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida.

Assim, é a seguinte a matéria de facto a considerar como provada:

1. O Autor foi arguido processo criminal com o nº 266/16...., que correu termos no Tribunal da Comarca ..., Juízo Central Cível e Criminal ... - Juiz ...; (artigo 1º da petição inicial)

2. No decorrer do inquérito daquele processo, o Autor foi submetido a interrogatório judicial em 18 de Março de 2019 e foram-lhe aplicadas as medidas de coacção de Proibição de contactar, por qualquer meio e por qualquer forma, com as vítimas e testemunhas já identificadas nos autos e de Obrigação de Permanência na Habitação com Recurso a Vigilância Electrónica, a implementar de imediato. (artigos 2º e 3º da petição inicial)

3. O Autor aguardou os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de Obrigação de Permanência na Habitação com Recurso a Vigilância Electrónica; (artigo 4º da petição inicial)

4. Naquele processo foi proferida acusação e requerida instrução bem como a alteração do estatuto coactivo, tendo a decisão instrutória mantido a medida de coacção de Obrigação de Permanência na Habitação com Recurso a Vigilância Electrónica; (artigo 5º da petição inicial)

5. O Autor foi pronunciado por de 2 crimes de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º n.º 1 alíneas a) a e) e n.º 7 do Código Penal e por de 2 crimes de escravidão, p. e p. pelo art.º 159.º do Código Penal; (artigo 6º da petição inicial)

6. Procedeu-se à audiência de julgamento e o Autor, arguido naquele processo, foi absolvido, por Acórdão de 19 de Dezembro de 2019; (artigo 7º da petição inicial)

7. Tendo cessado em 19 de Dezembro de 2019, a medida de coacção, sendo o arguido restituído à liberdade; (artigo 8º da petição inicial)

8. O Autor esteve o privado da liberdade entre 18 de Março de 2019 e 19 de Dezembro de 2019, o correspondente a 276 dias; (artigo 9º da petição inicial)

9. Foi interposto recurso do acórdão proferido naquele processo, pelo assistente BB; (artigo 10º da petição inicial)

10. Recurso que foi admitido e apreciado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que lhe negou provimento, por acórdão de 10 de Março 2021, mantendo na integra o acórdão recorrido; (artigo 11º da petição inicial)

11. O Autor há longos anos que tem uma exploração de gado Ovino e a sua mulher tem outra exploração de gado ovino. (artigo 20º da petição inicial)

12. Sendo o próprio que sempre se ocupou do manejo do gado, bem como de todos os cuidados à exploração que possui; (artigo 21º da petição inicial)

13. Designadamente de pastoreio, alimentação, limpeza dos locais de parqueamento bem como de cuidados de saúde e maternidade inerentes à designada exploração; (artigo 22º da petição inicial)

14. Em 21-01-2019, de acordo com o Sistema Nacional de informação e registo animal, o Autor bem como a sua mulher, possuíam em conjunto 238 cabeças de gado, sendo 113 da exploração do Autor e 105, da exploração da mulher do Autor; (artigo 23º da petição inicial)

15. No ano seguinte 28-01-2020, o Autor em conjunto com a mulher, possuíam 123 animais, sendo 55 da exploração do Autor e 68 da exploração da mulher do Autor; (artigo 24º da petição inicial)

16. Foram prestados cuidados ao rebanho por amigos e familiares do Autor; (artigo 26º da petição inicial)

17. Contudo e apesar de todos os esforços encetados por aqueles que o ajudavam, atenta a falta de experiência e conhecimentos específicos, não poderiam colmatar a ausência do Autor; (artigo 27º da petição inicial)

18. Foram sendo concedidas autorizações ao Autor para tratar do rebanho depois do relatório do veterinário Municipal e dos requerimentos apresentados posteriormente; (artigo 30º da petição inicial)

19. O Autor sempre foi visto na localidade e perifericamente ao local onde habita, como uma pessoa de bem, séria, honrada, honesta e bem visto por todos os que aí vivem; (artigo 37º da petição inicial)

20. Era igualmente bem tratado e bem reconhecido no meio profissional onde está inserido, a nível da pastorícia; (artigo 38º da petição inicial)

21. Aquando da comunicação da aplicação ao autor da medida de coacção privativa da liberdade, o Autor sentiu uma enorme injustiça, que se traduziu para si numa enorme revolta emocional; (artigo 39º da petição inicial)

22. Que lhe incutiram sentimentos de tristeza e desgosto, atenta a situação de privação de liberdade em que foi colocado; (artigo 40º da petição inicial)

23. A privação da liberdade que o Autor sofreu, foi logo conhecida no meio social onde habita; (artigo 41º da petição inicial)

24. O Autor sempre teve um grande afecto pelos seus animais, o que faz que, com a idade que tem hoje em dia, continue a árdua actividade que é a pastorícia; (artigo 47º da petição inicial)

25. O Autor, sempre participou em diversas feiras e festividades ligadas à pastorícia, onde exibia os seus melhores exemplares, bem como os seus rebanhos; (artigo 50º da petição inicial)

26. O que alimentava o ego do Autor, e que acarretava um forte sentimento de realização e felicidade; (artigo 51º da petição inicial)

27. Por causa da privação da liberdade, o Autor esteve noite sem dormir e chorou; (artigo 53º da petição inicial)

28. Viveu durante 276 dias, em razão da privação da liberdade, com um sentimento de aperto no coração, com um sentimento de infelicidade que lhe retirava a vontade de viver; (artigo 54º da petição inicial)

29. O dispositivo de controlo à distancia instalado no tornozelo do Autor, causavam-lhe uma alergia, que fazia inchar a perna, ao ponto de a sentir estrangulada, atento o inchaço que padecia, o que lhe causava imenso mau estar e dores corporais intensas e um enorme sofrimento, que chegou a determinar episódio de urgência hospitalar; (artigo 56º da petição inicial)

30. São os seguintes os factos provados relativos à prática dos factos pelo Autor, no Acórdão proferido no processo comum colectivo n.º 266/1 6.4.J AGRD:

“4. No ano de 2005, em primeiro l ugar, BB e depois CC, foram para casa dos arguidos. tendo passado a trabalhar para os mesmos na sua exploração agropecuária.

5. Nessa altura, os assistentes BB e CC, encontravam-se em más condições socioeconómicas.

6. BB e CC trabalhavam para os arguidos. o primeiro apenas a guardar o rebanho; e o segundo também realizava certos trabalhos agrícolas. sem erem um horário pré-definido e sem o gozo de férias.

7. Os assistentes iniciavam o trabalho, em regra. no Verão, entre as 6h-7 h da manhã e no Inverno cerca das 8h-9 h, e no final do dia regressavam a casa, no Verão, cerca das 21 h e no Inverno cerca das 17h-l 8 h, tendo sempre um período de almoço que não era fixo, sendo que no Verão, entre as 10h-1 1 h e as 1 8 horas, não estavam com o rebanho e tinham, normalmente, esse período de descanso.

8. Os arguidos não procederam ao pagamento de quaisquer salários aos assistentes, nem procederam a descontos para qualquer sistema de proteção social.

9. Os arguidos davam aos assistentes dormida em sua casa, alimentação, roupa e suprimiam as demais despesas dos assistentes.

10. BB e CC passaram a residir com os arguidos em casa destes, e a dormir num quarto existente numa das casas pertença dos arguidos, sita junto ao café que exploram.

11. O quarto onde dormiam BB e CC não tinha aquecimento e não tinha casa-de-banho.

12. Os assistentes BB e CC viveram em casa dos arguidos ao longo de mais de onze anos.

13. BB, nascido a .../.../1943 era analfabeto, não sabendo ler nem escrever e foi trabalhar para os arguidos. na respetiva exploração agropecuária, no dia 5 de fevereiro de 2005 e esteve a trabalhar para os arguidos durante 11 anos e 10 meses, dando-lhe estes alojamento, alimentação e vestuário e pagando as demais despesas, designadamente de higiene e barbeiro, um maço de tabaco por dia e, por vezes, alguns montantes, incertos, em dinheiro, nomeadamente €5, € 10,00 ou € 20.

14. Os arguidos nunca efetuaram descontos para a Caixa Geral de Aposentações ou para qualquer outro sistema de proteção social.

(...)

24. Na exploração agropecuária dos arguidos e a mando destes, por vezes, trabalhava com o tractor, com a motosserra ou pastoreava gado, situação que se manteve durante cerca de 12 anos, até agosto de 2017.

25. Durante esse período de tempo, o CC não recebeu qualquer salário e nunca os arguidos efetuaram descontos, a favor do CC para a Caixa Geral de Aposentações, ou para qualquer outro sistema de proteção social.

26. CC era retribuído pelos arguidos com as refeições, alojamento, vestuário, pagamento das suas despesas de higiene, barbeiro, um maço de tabaco por dia e, por vezes alguns montantes incertos em dinheiro, nomeadamente €5, €10,00 ou € 20"; (artigo 9º da contestação)

31. No Acórdão proferido no processo comum colectivo n.º 266/16...., provou-se que os ali assistentes viviam e trabalhavam para os ali arguidos, sem que tivessem qualquer remuneração em dinheiro fixa, sem horário estabelecido ou período de férias estipulado. ainda que a versão entretanto trazida ao processo pelos a li arguidos, mormente as justificações e documentos que apresentaram, aliados à demais prova produzida naquele Tribunal não tenham permitido dar como provados os factos que seriam relevantes para as imputações penais efectuadas; (artigo 10º da contestação)

32. Isto porque as declarações dos assistentes se revelaram, naquele julgamento, incongruentes, desprovidas de lógica e rigor, não tendo permitido corroborar quaisquer maus tratos, má alimentação, privação da liberdade, impossibilidade de escolha ou medo; (artigo 11º da contestação)

33. Os detentores de animais ovinos estão obrigados à identificação, registo e circulação dos animais das espécies ovinas e caprinas, encontrando-se todos os dados relativos aos animais coligidos em bases de dados que integram o SlRNA, geridos pela Direcção-Geral de Veterinária e pelo Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas, IP. (artigo 17º da contestação)

34. Entre as comunicações obrigatórias, previstas encontra-se os nascimentos, desaparecimentos, todas as movimentações que ocorram para a exploração ou a partir desta, abates e mortes; (artigo 18º da contestação)

35. Apenas a 17 de Junho de 2019, o arguido deu entrada de requerimento solicitando autorização para desempenhar a sua actividade laboral, em horário e regime considerado adequado e compatível com a medida de coacção, nos termos a fixar pelo Tribunal; (artigo 21º da contestação)

36. Em tal requerimento, o arguido, aqui Autor, invoca que, após a aplicação da medida de coacção, "contrataram um funcionário assalariado para colmatar a sua falta na exploração'', situação que se manteve até à semana anterior ao dia 17 de Junho de 2019; (artigo 22º da contestação)

37. Por despacho de 26 de Junho de 2019 foi indeferida a autorização especial de ausências para desenvolvimento da actividade laboral requerida pelos arguidos e determinada a comunicação ao veterinário municipal para adopção das medidas necessárias e urgentes para assegurar o bem estar e protecção dos animais durante o tempo que vigorasse a medida de coacção; (artigo 25º da contestação)

38. O Médico Veterinário Municipal de ... subscreveu uma comunicação ao tribunal informando das diligências por si efectuadas, no dia 28 de Junho de 2019, que veio a ser junta aos autos a 10 de Julho de 2019, dando conhecimento que os animais (cerca de 400) se encontravam a ser apascentados por uma única pessoa, que se encontravam em boa condições corporais, mas que necessitavam ser tosquiadas, e que a Câmara Municipal não tinha condições para tomar medidas para assegurar o bem-estar e a protecção; (artigo 26 da contestação)

39. Após requerimentos concretizados a 12 de Julho de 201 9 e 1 5 de Julho de 2019, os arguidos foram autorizados a proceder à tosquia dos animais no ovil de ... e a deslocarem-se a diversas propriedades com o objectivo de cortar as suas culturas de grão, centeio e aveia, destinadas a alimentar os animais, tendo apenas sido indeferida a pretensão de proceder ao maneio diário dos animais, entre as 07.00h e as 1 0.00h e as 1 7.00 e as 19.00h, como pretendido; (artigo 27º da contestação)

40. Nesse mesmo despacho foi determinado que se oficiasse à DGV informando-se que os arguidos se encontravam sujeitos à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, que não poderiam deslocar-se às suas propriedades para tomar conta dos seus rebanhos e, nessa medida, deveria existir uma fiscalização periódica aos animais e, caso fosse necessário, adoptadas medidas administrativas, nos termos do artigo 6.º-A, do Decreto-Lei n.º 64/2000, de 22 de Abril, nomeadamente medidas de carácter higiosanitário e de maneio que se mostrem adequadas para corrigir a situação de perigo para os animais que se vier a apurar, designadamente alimentação, abeberamento, alojamento dos animais e, apenas, quando estas medidas não sejam suficientes para pôr termo ao seu sofrimento dos animais, o abate dos mesmos; (artigo 28º da contestação)

41. Por despacho de 5 de Setembro de 2019 foi autorizada a deslocação dos ali arguidos, no dia l0 de Setembro, para realização da sua vacinação, controlo sanitário e desparasitação, na sequência de requerimento para o efeito; (artigo 29º da contestação)

42. Através de requerimento junto a 11 de Setembro de 2019 naquele processo, o exponente DD declarou que "desde que se encontram na actual situação coactiva, e na impossibilidade de o fazerem pessoalmente, têm contratado assalariados rurais que assegurem minimamente o manejo de tal rebanho", o que apenas naquela data deixou de ser possível, tendo-se reiterado a necessidade de deslocação do Autor e do seu filho, o ali arguido DD, ao ovil para assegurar os cuidados aos animais; (artigo 30º da contestação)

43. Nessa sequência, por decisão de 13 de Setembro de 201 9 foi autorizado que os ali arguidos DD e AA, se ausentassem do local da vigilância, um pela manhã e outro pela tarde, pelo período de duas horas, para tratarem de u m rebanho de ovelhas; (artigo 31º da contestação)

44. Posteriormente, por despacho de 8 de Outubro de 2019, o Tribunal veio a autorizar cada um dos ali arguidos a deslocarem-se à sua referida propriedade, 3 horas por dia, sendo o arguido DD entre as 8h e as 11 e o Autor entre as 1 6h e as 19 h; (artigo 32º da contestação)

45. Por fim, por despacho de 30 de Outubro de 2019, o Tribunal autorizou os dois arguidos a deslocarem-se à sua referida propriedade, entre as 8h e as 12horas no período da manhã; e as 14h e as 17 h, no período da tarde. para que cuidassem dos animais; (artigo 33º da contestação)

46. Consta na fundamentação do Acórdão proferido no processo n.º 266/16...., que o arguido declarou, no âmbito daquele julgamento "que, apesar do Sr. BB dar uma ajuda, se ele lá não estivesse, o próprio arguido faria o trabalho, o que, aliás, tem acontecido desde que eles saíram, não tendo, desde então contratado ninguém, acrescentando que mesmo depois deste processo, com a autorização de duas horas para ele e duas para o filho, conseguem tratar de tudo''; (artigo 34º da contestação)

47. Foram concedidas autorizações aos arguidos naquele processo para assegurar o acompanhamento e tratamento do seu rebanho, que foram sendo autorizadas de forma limitada a partir de Julho de 2019 e passaram a ser de forma ampla e nos exactos termos pretendidos pelo Autor a partir de 13 de Setembro de 2019; (artigo 35º da contestação)

48. O documento junto a fls. 147 pelo Autor é uma notificação remetida à mulher do Autor para audiência prévia por o IFAP pretender a recuperação de uma quantia paga em excesso, devido ao apuramento de uma diferença entre o número de animais declarados pela proprietária dos ovinos, para obtenção de subsídios e aqueles que foram verificados na sequência de fiscalização; (artigo 39 da contestação)

49. A morte de animais na sequência de ataques de lobos e raposas, ocorrem no período nocturno e o Autor não dormia junto dos animais para os guardar dessa ameaça, nem o requereu no âmbito do referido processo comum colectivo; (artigo 40 da contestação)

50. Na semana de 14 a 20 de Dezembro de 2020, o valor semanal dos borregos foi de 4,50 euros (peso inferior a 12 kg), 3,39 euros (peso entre 22 a 28 kg) e 2,84 euros (peso superior a 28 kg); (artigo 43º da contestação)

51. Enquanto a ovelha, no mesmo período temporal e tendo por base o sistema de informação de mercados agrícolas, se encontra cotada em valores, por unidade, entre € 10 e € 20.00 e entre 50 e € 70,00; (artigo 44º da contestação)

52. Quando o Autor foi sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, manteve a residência junto do seu núcleo familiar e a sua actividade laboral de exploração de um café, nos exactos termos que o fazia anteriormente, para além de lhe ter sido concedida a possibilidade de acompanhar o seu rebanho; (artigo 45º da contestação)

53. (eliminado)

54. (eliminado)

55. Que aliás foram também garantidos por entidades terceiras (Veterinário Municipal e DGV), a quem o Tribunal comunicou o estatuto processual do Autor e a necessidade de salvaguardar aquele rebanho; (artigo 48º da contestação)

56. Na impossibilidade dos arguidos, foi contratado tratado pessoal para tratar dos animais, e o Autor pôde manter a prestação de alguns cuidados àqueles animais, desde Julho de 2019, e de forma ampla passou a cuidar daqueles animais pelo menos desde Setembro de 2019 (artigo 49 da contestação)

57. (eliminado)

58. (eliminado)

 59. (eliminado)

 60. (eliminado)

61. (eliminado)

62. Aquando da imposição da medida de coacção privativa da liberdade, o arguido viu-se privado de prestar todos os cuidados que oferecia ao seu rebanho; (artigo 25º da petição inicial).

63.  O que denegriu a sua imagem e o seu bom nome; (artigo 42º da petição inicial)

64. Na medida em que passou a ser motivo de conversas, sempre com um teor depreciativo e negativo; (artigo 43º da petição inicial)

65. O que lhe chegou ao conhecimento e o deixou ainda mais desgostoso, triste e abatido; (artigo 44º da petição inicial)

66. Sentimentos que se percutiram intensamente durante todos os 276 dias que esteve privado da liberdade; (artigo 45º da petição inicial)

67. E que ainda hoje se percutem na sua vida na medida em que ainda não conseguiu lavar a sua imagem, na medida em que há sempre quem desconfie das suas boas intenções; (artigo 46º da petição inicial)

68. Conforme fl.s 14 v.º a 19 (fl.s 47 v.º a 50 dos autos), no Acórdão proferido nos autos com o n.º 266/16...., da matéria constante da pronúncia, não se provou que:

“1. Em data não concretamente apurada, mas no início do ano de 2005, os arguidos, de comum acordo e em comunhão de esforços e de fins, decidiram recrutar indivíduos desempregados, com apoio familiar e recursos económicos inexistentes ou muito débeis, dependentes do álcool e/ou do tabaco e/ou diminuídos a nível cognitivo, a fim de prestarem trabalho para os mesmos nas quintas que exploram na localidade de ..., ..., a troco de nada mais que alojamento e alimentação precários.

2. Em concretização de tal desígnio, no ano de 2005, os arguidos abordaram BB e CC, aos quais prometeram um emprego na respetiva exploração agropecuária, em troca de um salário, acrescidos de alimentação e habitação, bem como de descontos para regime de proteção social, propostas essas aceites por BB e CC.

3. Os arguidos, relativamente ao regime laboral que prometeram a BB e CC, apenas no que diz respeito ao BB cumpriram parcialmente o acordado no primeiro mês de prestação de trabalho com o pagamento do ordenado estipulado.

4. Os arguidos, aproveitando-se da grande debilidade socio-económica e da situação de especial vulnerabilidade de BB e CC, nada mais cumpriram quanto às contraprestações devidas pela prestação da respetiva força de trabalho.

5. Os arguidos passaram a tratar BB e CC por “criados”, e obrigavam-nos a iniciar os trabalhos entre as 5h30m/6h30m, consoante fosse verão ou inverno, terminando a jornada de trabalho pelas 22h00m, sem direito a tempos de repouso, feriados ou dias festivos, mediante a atribuição de escassa alimentação e muito precárias condições de habitabilidade.

6. O quarto referido em 11. dos factos provados era onde os assistentes para além de dormirem, também residiam.

7. O local onde os arguidos colocaram BB e CC a residir não tinha qualquer isolamento contra o frio, nem as mínimas condições de higiene.

8. Os arguidos sujeitavam BB e CC a precárias e degradantes condições de saúde física e psíquica, alojamento, higiene e segurança.

9. Quando BB e CC regressavam molhados pela chuva e com frio, não tinham possibilidade sequer de se enxugar e aquecer.

10. Ao longo de todo o período de tempo em que BB e CC trabalharam para os arguidos, quando aqueles não executavam os trabalhos que lhes estavam atribuídos da forma pretendida pelos arguidos, estes intimidavam-nos e atemorizavam-nos, exigindo que trabalhassem mais e melhor, deixando BB e CC sem qualquer capacidade de reagirem.

11. BB e CC não se insurgiam, mais frequentemente contra com as descritas condições de vida e laborais, por temerem ser agredidos física e verbalmente por parte dos arguidos, como efetivamente foram por inúmeras vezes, ou ver a sua situação de vida ainda mais prejudicada.

12. Para concretizar os seus intentos, durante o período de tempo em que os assistentes viveram e sua casa, os arguidos retiveram os documentos pessoais de BB e CC, entre os quais os respetivos bilhetes de identidade/cartão de cidadão, com o propósito de evitar que se ausentassem.

13. BB combinou com os arguidos um ordenado de €200,00 (duzentos euros) por mês e descontos para a Caixa Geral de Aposentações.

14. BB recebeu o ordenado de € 200 do primeiro mês.

15. Em data não concretamente apurada, mas no decurso do mês de maio de 2016, BB chateou-se com o arguido AA, tendo-lhe pedido satisfações sobre o pagamento dos ordenados que lhe devia, como o havia feito em circunstâncias anteriores, tendo o AA respondido, como respondeu nas noutras ocasiões, que era o BB quem lhe devia doze anos de renda de casa e de gastos com alimentação.

16. O arguido DD actuou nos termos descritos em 16. dos factos provados, apenas aparentando estar a ajudar o BB.

17. BB nunca viu qualquer documento relacionado com a sua conta bancária, à qual nunca teve acesso, bem assim nunca teve qualquer conhecimento do desfecho do pedido de atribuição da reforma em ....

18. O arguido DD apropriou-se e fez suas as quantias referidas em 18. dos factos provados, em prejuízo do assistente JJ.

19. O referido em 20 dos factos provados acontecia por o assistente BB temer ser agredido física e verbalmente por parte dos arguidos, como efetivamente foi por inúmeras vezes, ou ver a sua situação de vida ainda mais prejudicada.

20. BB aguentou viver nas condições descritas até ser hospitalizado no dia 5 de dezembro de 2016.

21. Os arguidos, em comunhão de esforços e identidade de fins, em execução de plano previamente delineado entre ambos, agiram consciente e livremente:

i. com intenções concretizadas de recrutar, aliciar, acolher e alojar BB e CC para os sujeitarem a trabalhos excessivos e não pagos;

ii. com intenções concretizadas de, para atingirem o referido propósito, ludibriar BB e CC através de erro em que ardilosamente os induziram, mediante promessas de integração num posto de trabalho remunerado, com regalias sociais, alimentação e em alojamento condignos, promessas que sabiam, antecipada e deliberadamente, que não iriam cumprir;

iii. aproveitando-se das débeis condições psíquicas e inexistente suporte familiar de BB e CC, razões pelas quais foram BB e CC seduzidos e aceitaram as propostas de trabalho dos arguidos; os quais retiveram os documentos de identificação, e outros, de BB e CC para que as mesmos não se ausentassem, sujeitando-os, efetivamente, a mais de 11 anos de trabalhos excessivos e em condições laborais e de vida degradantes, assim obtendo enriquecimento ilegítimo na mesma medida que causaram prejuízo patrimonial para BB e CC.

22. Mais agiram os arguidos, em comunhão de esforços e identidade de fins, em execução de plano previamente delineado entre ambos, reiterada, delibera e persistentemente ao longo de mais de onze anos, aproveitando-se de especial vulnerabilidade dos assistentes, sem qualquer respeito pela dignidade que merece qualquer ser humano, com intenções concretizadas de as reduzir à condição de meras coisas, objetos ou animais de sua pertença, ou seja, subjugaram-nos a uma completa relação de domínio imposto por meio de violência física e psíquica, receio, medo, inquietação, com abuso de autoridade derivada de ascendente económico e em função do trabalho, não tendo BB e CC qualquer poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho, apenas fornecendo os cuidados estritamente essenciais à sobrevivência necessária à continuidade o desempenho da atividade laboral.

23. Foram BB e CC constrangidos, deliberadamente pelos arguidos, a trabalhar e a viver sem o mínimo de condições de habitabilidade, higiene, saúde física e psíquica, privacidade, alimentação e trabalho, sobrecarregando-os com trabalhos excessivos, sendo maltratados física e psicologicamente pelos arguidos, por forma a subjugá-los inteiramente à sua vontade e caprichos, privando-os de toda e qualquer liberdade, nomeadamente liberdade física de movimentos, liberdade de decisão e liberdade de ação, reduzindo-os a “coisa sua” e a um estado de sujeição total, tratando-os como seres destituídos de dignidade humana.

24. Com a conduta descrita revelam os arguidos não possuir qualquer respeito para com BB e CC, enquanto pessoas e seres humanos, violando os mais elementares princípios e deveres da vida humana, bem assim da vida em sociedade.

25. Causaram, pois, as referidas condutas assumidas pelos arguidos danos irreparáveis na personalidade e na integridade física e psíquica de BB e CC.

26. Bem sabiam, os arguidos, serem as condutas que assumiram proibidas e puníveis por lei penal.

27. Agiu o arguido DD consciente e livremente, fazendo integrar no seu património o montante total de €1.330,95, à revelia do destinatário de tal pensão de reforma, bem sabendo o arguido DD que tal quantia não lhe era destinada nem lhe pertencia e que, ao atuar da forma descrita, agiu contra a vontade do seu legítimo proprietário.

28. Para o efeito, o arguido DD, por meio de meio ardiloso e aproveitando-se do facto dele não saber ler nem escrever, convenceu o BB de que trataria das burocracias necessárias e à revelia daquele, da mesma se fez co-titular, com a intenção concretizada de, mediante engano a que induziu o BB, se apropriar, como se apropriou, da pensão de reforma deste.

29. Bem sabia, o arguido DD, ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.”.

*

Factos Não Provados:

 - Nessa decorrência, o Autor teve logo elevadas perdas de efectivos na medida em que viu, inúmeras ovelhas e borregos a morrer atenta a falta de cuidados necessários na parição; (artigo 28º da petição inicial)

- Por essa razão (artigo 29º da petição inicial)

- Contudo as autorizações concedidas revelaram-se aquém do necessário; (artigo 31º da petição inicial)

- Não conseguindo o Autor, evitar a morte de elevado número de animais, atenta a sua ausência; (artigo 32º da petição inicial)

- A ausência do Autor em razão da medida privativa que lhe estava imposta levou também a que os animais estivessem vulneráveis ao ataque de lobos e raposa que efectivamente sofreram, o que igualmente contribuiu para a diminuição do efectivo; (artigo 33º da petição inicial)

- Nesta decorrência a privação da liberdade imposta ao arguido, custou-lhe a diminuição do seu efectivo em 115 animais, que ao custo médio de 150€ por animal, representou uma perda efectiva de 17.250,00€. (artigo 34º da petição inicial)

- Tais perdas obrigaram o Autor a ter de ressarcir o IFAP, em razão da diferença de efectivo registada, na quantia de 802,96€, em razão do excesso de apoio recebido; (artigo 35º da petição inicial)

- Pela falta de assistência devida, o Autor viu ainda comidos pelas raposas, 22 borregos e 20 borregas, aquando e depois do nascimento dos mesmos, que valiam à data da venda 70,00€ o macho e 100€ a fêmea, o que perfaz um prejuízo de 3.540,00€. (artigo 36º da petição inicial)

- Ao ver os animais morrerem por falta dos seus cuidados, causou-lhe também sentimentos profundos de tristeza, revolta e de impotência, atento o condicionalismo da privação da liberdade a que estava adstrito; (artigo 48º da petição inicial)

- Sentimentos se se repercutiram igualmente sempre durante os 276 dias em que esteve privado da liberdade; (artigo 49º da petição inicial)

- A privação da liberdade a que esteve adstrito nesses 276 dias, acompanhada da perda de elevando número de animais pelos quais tinha carinho e estima, feriu seu ego, ao ponto de se sentir infeliz, por se ver impedido de realizar os seus actos de realização pessoal; (artigo 52º da petição inicial)

- chegou a recear pelo seu futuro, pelo futuro dos animais e pelo futuro da sua família; (artigo 53º da petição inicial)

- vivendo assim cabisbaixo durante todo esse tempo; (artigo 54º da petição inicial)

B. Se, em face da pretendida alteração da matéria de facto dada como provada e não provada, se verificam os requisitos para o autor ser indemnizado pelos danos que sofreu, em virtude de ter estado sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica.

Como resulta do relatório que antecede, o autor pugna pela condenação do Estado Português a pagar-lhe uma indemnização pelo facto de ter estado privado da liberdade, durante 276 dias, durante os quais esteve sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica, vindo a ser absolvido no competente processo crime, sendo seu entendimento que se verificam os pressupostos previstos no artigo 225.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, porquanto demonstrou que não praticou o crime de que era acusado, que lhe era imputado.

Ao invés, a sentença recorrida considerou que no âmbito do processo crime “não se provou que (o autor) era inocente, tendo beneficiado naquele processo do principio do in dubio pro reo”e, consequentemente, considerou que o autor não provou que não tenha praticado os factos que tipificavam a respectiva qualificação como integrando a prática dos crimes de tráfico de pessoas e de escravidão, p.s e p.s, respectivamente, pelos artigos 160.º, n.º 1, al.s a) a e) e n.º 7 e 159.º, n.º 1, ambos do Código Penal, em função do que se considerou inexistir a peticionada obrigação de indemnizar, por parte do Estado Português.

Dispõe o artigo 225.º do CPP, na redacção aqui aplicável – a que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – que:

“1 – Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:

(…)

c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente.”

Como acima se referiu, aquando da apreciação e decisão do recurso de facto e na medida em que se eliminaram o item 53.º a as alíneas a) a g), dos factos não provados, saber se o “arguido foi ou não agente do crime” é uma conclusão a extrair do teor da decisão crime que absolveu o arguido da prática dos crimes que lhe eram imputados, designadamente da factualidade ali dada como não provada, conjugada com a respectiva motivação.

Ora, compulsando os itens 1.º a 29.º da matéria considerada como não provada, nos autos crime, relativamente à matéria constante da pronúncia – acima transcrita, em resultado de ter sido aditada à factualidade a ter em linha de conta para a decisão da questão que nos oupa – é forçoso concluir que se demonstrou que o arguido não cometeu os ilícitos que ali lhe eram imputados.

Efectivamente, lendo e relendo o teor de tais itens, a conclusão a que se chega é a de que os arguidos não praticaram os factos ali descritos e sem os quais não se podem praticar os crimes de tráfico de pessoas e de escravidão que lhe eram imputados.

Isto, independentemente da questão de os arguidos não terem pago às “vítimas” um salário certo e determinado, o que nada  - como se refere no Acórdão Criminal – tem que ver com a prática de tais crimes.

Note-se que se trata de crimes de tráfico de pessoas e de escravidão, que aos arguidos eram imputados, relativamente aquelas pessoas e nas condições descritas na acusação e mantidas na pronúncia, pelo que só se pode entender que os praticaram ou não, naquelas circunstâncias, o que, reitera-se, não se demonstrou, de todo.

Não se trata, por exemplo, de um crime de furto em que, comprovadamente, a coisa foi furtada, ficando sem se saber quem foi o agente do crime e, designadamente, se foi o arguido que de tal crime foi acusado, situação em que por força do princípio do in dubio pro reo se imporia a absolvição do arguido.

Não é o que se passou in casu uma vez que não se demonstrou um, sequer, dos inúmeros factos que ao arguido eram imputados, com vista à obtenção da sua condenação, por tais crimes. Ao invés, nenhum deles se demonstrou.

E lida e relida a convicção/motivação do Tribunal para dar como provada e não provada a matéria de facto atinente, em lado nenhum se faz apelo ao princípio do in dubio pro reo.

Ao invés, por exemplo, a fl.s 54 v.º do Acórdão (67 v.º dos autos), refere-se que “Antes ficou claro para o Tribunal que o assistente (…) ia dizendo coisas diferentes e, muitas delas sem qualquer credibilidade, visando imputar aos arguidos comportamentos que manifestamente não se provaram, nem foram confirmados, pelo contrário (sublinhado nosso), por qualquer outra prova”.

E a fl.s 58 v.º (69 v.º dos autos), fez-se consignar o seguinte:

“Resulta, assim, de forma clara (sublinhado nosso) que o assistente não estava com a sua liberdade de movimentos, de forma alguma limitada, nem esteve em casa dos arguidos todos aqueles anos por qualquer imposição, ou por medo, dado que, repetimos, acabou por sair várias vezes e por regressar quando o queria fazer, como ele próprio reconheceu.

(…)

Questionado, referiu que a comer foi sempre bem tratado, que comia com os arguidos e a sua família”.

E a fl.s 65 (73 dos autos):

“Disse, ainda, que no Natal, sempre estava à mesa com os arguidos e a sua família e que também lhe davam prendas, o que não deixa de ser um importante indicador do tipo de relação que mantinham”.

E a fl.s 103 (92 dos autos):

“… não nos parecendo, pelo contrário, nem compatível com toda a prova produzida, dizer que os arguidos ficavam com os documentos do assistente para dessa forma o impedir de sair”.

(…)

Ficou demonstrado que os assistentes saiam quando queriam e chegaram mesmo, até o assistente BB, a estar um tempo ausente, a trabalhar para outra pessoa, pelo que não tem, em nosso entender, qualquer suporte probatório a factualidade imputada aos arguidos, relativamente a esta circunstância, ou seja, pretendendo que os documentos de identificação eram sempre guardados pelos arguidos, para assim os impedirem de sair, o que, também já o referimos, nem os próprios assistentes o confirmaram”.

Idêntica fundamentação é exposta de fl.s 111 a 113 do Acórdão (96 e 97 dos autos) que pela sua extensão nos dispensamos de aqui reproduzir mas de que ressalta a evidência que nenhuma dúvida (sublinhado nosso) subsistiu para o Tribunal no que respeita aos factos imputados aos arguidos que decidiu dar como provados e não provados, nos termos em que o fez”.

Resumindo, resulta dos factos dados como provados e não provados no Acórdão criminal em apreço, que, fora de toda a dúvida, os arguidos não praticaram os crimes que lhes eram imputados, por isso deles sendo absolvidos e não por apelo ao princípio do in dubio pro reo.

De resto e embora isso não releve para o caso em apreço, face ao que antecede, se é certo que o Tribunal Constitucional, cf. seu Acórdão n.º 185/2010, in DR, II.ª Série, de 13/9/10, não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 225.º, n.º 2, do CPP, interpretada no sentido de se não considerar injustificada prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio do in dubio pro reo, mais recentemente, o mesmo Tribunal, cf. Acórdão n.º 284/2020, de 28 de Maio, veio a decidir-se pela inconstitucionalidade do artigo 225.º, n.º 1, al. c), do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, interpretado no sentido de se não considerar que não foi agente do crime a quem foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo.

No entanto, realça-se e reitera-se que in casu a absolvição dos arguidos resultou de ser ter demonstrado que os mesmos não praticaram os crimes que lhes eram imputados.

Por consequência e ao contrário do ajuizado em 1.ª instância, verificam-se os pressupostos previstos no artigo 225.º, n.º 1, al. c), do CPP, na redacção que lhe foi dada pela citada Lei n.º 48/2007, para que o ora autor tenha direito à peticionada indemnização, a suportar pelo Estado Português, nos termos deste preceito, conjugado com o disposto no artigo 27.º, n.º 5, da CRP.

Pelo que, quanto a esta questão, procede o recurso.

C. A assim se considerar, qual o montante da indemnização a atribuir ao autor.

Como resulta da parte conclusiva do petitório do autor, este peticionou a quantia de 21.592,96 €, a título de danos patrimoniais sofridos e decorrentes da perda de efectivos do rebanho e a de 55.200,00 €, a título de danos não patrimoniais, resultantes da sua privação de liberdade, durante 276 dias.

Em 1.ª instância não foi fixada nenhuma indemnização, por se considerar, como acima já referido, que não se verificavam os respectivos pressupostos.

Relativamente aos invocados danos patrimoniais continua a não ser devida qualquer indemnização, porquanto não se provaram os factos em que o autor assenta tal pretensão.

Trata-se de factos constitutivos do direito invocado, pelo que a sua não demonstração, a nível de decisão, tem de ser desfavorável ao autor, como decorre do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

No que concerne aos invocados danos não patrimoniais e porque se verificam os pressupostos para que o autor seja indemnizado, como anteriormente referido, importa fixar a inerente indemnização, o que se passa a fazer.

Nos termos do disposto no artigo 496, n.º 1, do Código Civil:

“Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

Como se colhe do Acórdão do STJ, de 26/6/91, in BMJ 408 – 538, a gravidade do dano mede-se por um padrão objectivo, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, sem ater a personalidades de sensibilidade exacerbada e a apreciar em função da tutela do direito.

Por outro lado, como se refere, no Acórdão do STJ, de 07/06/2011, Processo 3042/06.9TBPNF.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj, importa verificar se os critérios seguidos na fixação desta indemnização, são passíveis de generalização para casos análogos, muito em particular, se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparadas, nomeadamente, tendo em vista as lesões sofridas, suas consequências e a idade das vítimas.

Ou, como se refere no Acórdão do mesmo Tribunal, de 26/01/2012, Processo n.º 220/2001-7.S1, disponível no mesmo sítio do anterior deve “ser tratado por igual o que merece igual tratamento”, para o que se deve atender aos valores que vêm sendo fixados como compensação pelos danos não patrimoniais e no qual se referem os que como tal foram concedidos em alguns Arestos de tal Tribunal.

Entendimento que o STJ vem mantendo, podendo ver-se, exemplificativamente e por último, o seu Acórdão de 21 de Abril de 2022, Processo n.º 96/18.9T8PVZ.P1.S1, disponível no mesmo sítio dos anteriores e em que se refere que o recurso à equidade tem papel preponderante, devendo ter-se em conta as regras da experiência, tendo em vista a actividade levada a cabo pelo lesado, designadamente, a conexão entre as lesões sofridas pelo mesmo e as condicionantes/exigências próprias de tal actividade, bem com as sequelas das lesões e seus reflexos no desempenho da actividade profissional habitual do lesado, sem esquecer os seus rendimentos, idade, tempo de vida activa e esperança média de vida (e embora a maioria dos Arestos em causa se refiram a acidentes de viação, as conclusões extraídas, são, aqui, também, em parte, aplicáveis).

Na categoria dos danos não patrimoniais abarcam-se todas as sequelas que afectam a personalidade do lesado, designadamente, as dores físicas e psíquicas, perdas de capacidade, tanto a nível físico como psíquico, vexames, sentimento de inferioridade por afectação da imagem, a nível estético, a saúde e bem estar, tudo, como acima já referido, a aferir objectivamente.

Cotejando os factos apurados, no que a tal concerne, designadamente os que constam dos itens 2.º a 7.º, verifica-se que o autor esteve privado da liberdade entre 18 de Março e 19 de Dezembro de 2019 (276 dias); embora a partir de Julho de 2019, tenha sido autorizado a, durante algumas horas, sair de casa para cuidar do rebanho (cf. itens 18.º e 39.º a 45.º).

A privação da liberdade gerou no autor as consequências e constrangimentos a que se alude nos itens 21.º a 29.º e 63.º a 67.º, de que ressaltam a tristeza e angústia que sentiu, noites sem dormir, alergia causada pelo dispositivo de vigilância que determinou um episódio de urgência hospitalar e os comentários e reflexos de tal situação na comunidade em que vivia.

A ter, ainda, em linha de conta, que cf. item 52.º, permaneceu na sua residência, junto da família, onde exerceu a actividade de exploração de um café, nos moldes em que o fazia antes.

Tendo em linha de conta os critérios legais aplicáveis e atentas as circunstâncias acima relatadas e que o direito à liberdade de movimentos é de primordial importância para o bem estar de qualquer pessoa (tanto que tem foros de protecção constitucional e qualquer cidadão só dela pode ser privado nos termos previstos no artigo 27.º, n.º 2 da CRP), bem como que não se trata de critérios rígidos nem de quantias pré-determinadas nem fixas, e  até por comparação com outros casos e indemnizações atribuídas, designadamente, nos Acórdãos do STJ, de 11/10/11, Processo n.º 1269/03.6TBPMS.L1.S1 e no Processo n.º 336/14.tTBALM.L1.S2, disponíveis no respectivo sítio do Itij, julgamos ser equitativo e justo, atribuir ao autor, a este título, a quantia de 27.500,00 €.

Assim, fixa-se a indemnização devida ao autor, a título de danos morais, na quantia de 27.500,00 €, o que implica, no que se refere a esta questão, a procedência, parcial, do recurso.

D. Se o autor litiga de má fé.

Na sua contestação, o réu Estado Português, peticionou a condenação do autor como litigante de má fé, com o fundamento em que tem de se considerar que este, dolosamente, deduziu pretensão infundada, bem sabendo que o Acórdão Criminal não o declarou inocente, nem reconheceu que o mesmo não praticou os factos em causa; bem como que, não obstante a medida que lhe foi aplicada, foram sempre prestados os cuidados necessários ao rebanho, pelo que não sofreu os invocados danos (patrimoniais).

Na sentença recorrida concluiu-se pela existência de má fé por parte do autor, com o fundamento em que o mesmo bem sabe que lhe foram concedidas autorizações para cuidar e tratar do rebanho, quando o solicitou e que, por isso, não sofreu danos daí decorrentes, nomeadamente com a perda de efectivos do rebanho; que o Acórdão crime não o declarou inocente ou reconheceu que não praticou os factos que lhe eram imputados, do que concluiu que o autor fez uso reprovável do processo, alterando conscientemente a verdade dos factos e deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, vindo a condenar o autor na multa de 10 Uc´s.

Sem colocar em causa o montante da multa, o autor pugna pela revogação da sentença, nesta parte, por entender que não litigou de má fé, por não se verificarem os respectivos pressupostos.

Posto isto, impõe-se começar por clarificar, antes de nos debruçarmos sobre o “mérito” de tal consideração/condenação, que, para tal juízo de censura processual, relevam apenas e só os factos dados como provados; ou seja, no raciocínio lógico (silogismo judiciário) que conduz à condenação de alguém como litigante de má-fé, a premissa menor só pode ser composta pelo cotejo entre o que a parte alegou e o que, em oposição ao alegado, consta dos factos dados como provados.

Dito doutra forma, o tribunal não pode alicerçar um juízo sobre a má-fé no que se fez constar na motivação da decisão de facto (e, muito menos, na de direito); assim como não pode extrair um juízo de má-fé dum facto não provado, uma vez que, todos o sabemos, num processo, um facto não provado não é sinónimo da prova positiva do facto contrário.

Tendo isto presente, importa salientar que, contrariamente ao entendido na 1.ª instância, consideramos que se verificou uma privação da liberdade do autor em moldes que lhe permitem obter a peticionada indemnização, a esse título.

Por outro lado, o facto de não se terem provados os danos patrimoniais, dada a não demonstração dos respectivos factos, como acima referido, também, não acarreta a prova do seu contrário.

Assim, não se podendo daí concluir que o autor alterou a verdade de factos relevantes (essenciais, segundo o art. 5.º/1 do CPC) para a decisão de causa.

Pode/deve ser considerado litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver, designadamente, deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (cfr. art. 542.º/2/a) e b) do CPC).

Significa isto que a mera falta de razão – quer quando a parte não demonstra a sua versão factual quer ainda quando se demonstra a versão factual oposta – não é por si só suficiente para legitimar uma condenação como litigante de má-fé (em tal hipótese, a “sanção” está justamente na improcedência da sua pretensão ou oposição); sendo necessário, para poder ser proferida uma condenação como litigante de má-fé, que a oposição entre a versão alegada e a que resultou provada seja subjectivamente imputável ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração intencional ou, pelo menos, consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes exige a negligência grave, grosseira.

Inexistem, pois, face ao exposto, fundamentos para que o autor seja condenado como litigante de má fé.

Assim, igualmente, procede esta questão do recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que condena o réu, Estado Português, a pagar ao autor, a quantia de 27.500,00 € (vinte e sete mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, absolvendo-o do demais pedido e;

Se absolve o autor da condenação que lhe foi imposta por litigância de má fé.

Custas, em ambas as instâncias, na proporção dos respectivos vencimentos/sucumbência, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que foi concedido ao apelante e da isenção de que goza o réu, Estado Português, cf. artigo 4.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais.

Coimbra, 22 de Novembro de 2022.