Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1038/12.0TTLRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: ACÇÃO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
SUSPENSÃO DO PROCESSO
Data do Acordão: 07/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – 1ª SEC. TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 117º/1/A, 119º/4 E 154º/2 DO CPT.
Sumário: I – Da conjugação dos artºs 154º/2 do CPT e 272º/1/1ª parte do nCPC extrai-se interpretativamente o regime jurídico segundo o qual estando pendente uma acção de acidente de trabalho deva ser suspensa a instância na acção para a efectivação de direitos de terceiro conexos com o acidente de trabalho objecto daquela acção, por prejudicialidade daquela em relação a esta.

II – No entanto, tal regime deve ser objecto de uma interpretação e aplicação restritivas de molde a só poder ser aplicado naquelas situações que foram as pensadas como pressuposto do regime normativo do artº 154º do CPT,ou seja naquelas em que já foi ou será necessariamente proferida no processo emergente de acidente de trabalho a decisão susceptível de transitar em julgadoe que se pronuncie sobre a qualificação do acidente e/ou sobre o responsável pela reparação infortunística que seja devida.

III – Reportamo-nos, concretamente, aos processos de acidentes de trabalho em que tenha já sido desencadeada a corresponcdente fase contenciosa, bem assim àqueles em que seja proferida decisão de mérito ao abrigo do artº 138º/2 do CPT, por falta de apresentação do requerimento de junta médica após insucesso da tentativa de conciliação determinado por discordância incidindo exclusivamente sobre a questão da incapacidade do sinistrado.

IV – Esse regime suspensivo não deve aplicar-se, pois, naqueles casos em que não exista garantia processual de que seja realmente proferida uma decisão do tipo da prevista no artº 154º/2 dp CPT.

V – Ou seja, não deve aplicar-se nas situações em que se malogrou a tentativa de conciliação por divergências que se estenderam a outras questões para lá da referente à incapacidade do sinistrado e em que não é apresentada pelo autor a petição inicial no prazo legal cominado no artº 119º/1 do CPT, sendo essa a única forma de, nessas circunstâncias, ser desencadeada a fase contenciosa do processo de acidente de trabalho por aquele a quem exclusivamente é reconhecida legitimidade processual para o efeito – artº 117º/1/a CPT.

VI – Sempre que a instância do processo de acidente de trabalho se suspenda nos termos do artº 119º/4 do CPT, o terceiro que se arrogue a titularidade de um direito conexo com o acidente de trabalho deve ser admitido a exercê-lo através da acção correspondente a tal direito e à forma pela qual o mesmo se pretender exercitar, devendo suscitar nessa mesma acção as questões de qualificação do acidente como de trabalho e do responsável pelas prestações devidas por causa desse acidente.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório


Na primeira secção do trabalho (Juiz 1) da instância central de Leiria do Tribunal da Comarca de Leiria pende desde 23/10/2012 ( ...) um processo especial emergente de acidente de trabalho no qual estão identificados como sinistrado A..., patrocinado pelo senhor doutor B..., como entidade empregadora C... Lda, patrocinada pelo senhor doutor E..., e como seguradora responsável a D... Plc - Sucursal em Portugal - processo 1038/12.0TTLRA.
Nesse processo teve lugar, no dia 2/7/2013, sob a presidência de Exma. Magistrada do Ministério Público e com a participação de todos os intervenientes acabados de indicar, a tentativa de conciliação a que se reporta a referência Citius ..., a qual se gorou por falta de acordo entre os mencionados intervenientes, sendo que a divergência entre eles não se limitou exclusivamente à questão da incapacidade do sinistrado.
Remetidos os autos à secção de processos, os mesmos aguardaram que o sinistrado impulsionasse a fase contenciosa do processo mediante apresentação da correspondente petição inicial, nos termos e para os efeitos previstos no art. 117º/1/a do CPT.
Não tendo sido apresentada petição inicial, no dia 29/10/2013 foi proferido o seguinte despacho: “Nos termos do art 119º nº 4 do CPT declaro suspensa a instância.” – referência Citius ....
Desde então que a instância permanece suspensa uma vez que o sinistrado nunca apresentou a petição inicial que desencadeasse a fase contenciosa do processo de acidente de trabalho.
No dia 20/11/2014, o apelante propôs contra a entidade empregadora e contra a seguradora supra identificadas uma acção em que peticiona a condenação das rés a pagarem-lhe o montante correspondente aos custos da assistência hospitalar prestada ao sinistrado por causa do acidente a que se reporta o processo 1038/12.0TTLRA acima referenciado.
Tal acção foi apensada ao processo acabado de identificar e no dia 21/4/2015 foi nela proferido o seguinte despacho: “Nos presentes autos não se trata apenas de apurar do pagamento ou não de tratamentos hospitalares ao sinistrado mas também de averiguar se existe ou não acidente de trabalho e se este se encontra descaraterizado ou não, o que só nos autos principais se pode decidir.
Dado que a presente ação dos mesmos depende, e tendo em atenção que se deverão evitar decisões contraditórias, o que poderia vir a acontecer caso os autos prosseguissem para julgamento sem decisão nos autos principais, indeferimos o requerido.
Notifique
Aguardem os autos a decisão a proferir nos autos principais.
Leiria, ds”.
Não se conformando com o assim decidido, recorreu o apelante, tendo apresentado as conclusões seguidamente transcritas:
[...]
Não foram apresentadas contra-alegações.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunto entendeu não ser de emitir parecer.
Corridos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir.
*
II) Questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, a questão a decidir nestes autos é a de saber se deve manter-se ou não a suspensão destes autos até que transite em julgado a sentença que venha a ser proferida na acção emergente de acidente de trabalho a que os presentes autos se encontram apensados.
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III) Fundamentação

A) De facto.

Os factos provados são os que resultam do relatório desta decisão.
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B) De direito

Questão única: saber se deve manter-se ou não a suspensão destes autos até que transite em julgado a sentença que venha a ser proferida na acção emergente de acidente de trabalho a que os presentes autos se encontram apensados.

Nos termos do art. 154º/2 do CPT “As decisões transitadas em julgado que tenham por objecto a qualificação do sinistro como acidente de trabalho ou a determinação da entidade responsável têm valor de caso julgado para estes processos.”.

A propósito da norma correspondente do art. 156º do anterior CPT, escreveu Alberto Leite Ferreira que “Depois de se ocupar nos artigos 102.º a 146.º dos processos para efectivação de direitos resultantes de acidentes de trabalho e doenças profissionais pelo seu titular, o artigo 156.º regula o processo para efectivação dos mesmos direitos por parte de terceiros. É o que acontece, por exemplo, com os processos emergentes de questões (…) hospitalares (…) ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho (…).
Há que notar, todavia, que nestes processos destinados a dar efectivação a direitos de terceiros conexos com acidentes de trabalho (…) não pode discutir-se a qualificação do sinistro (…) como acidente de trabalho (…) nem tão-pouco a determinação da entidade patronal, mas apenas a questão conexa em si. É que no processo que emergiu do acidente (…) já foi discutido, apreciada e decidida a natureza do acidente como acidente de trabalho (…), assim como a questão da identidade do responsável pelas suas consequências. A decisão proferida sobre qualquer destas questões, uma vez transitada, adquire força de caso julgado que obsta à sua reapreciação.” - Código de Processo do Trabalho Anotado, Coimbra Editora, 1989, pp. 581 e 582.
Da norma legal ora em questão e dos ensinamentos acabados de transcrever decorre que: a) o que nela se regulamenta são os efeitos do caso julgado formado em torno da decisão proferida no processo de acidente de trabalho nas acções em que, como na presente, terceiros pretendam ver reconhecidos direitos conexos com o acidente de trabalho objecto daquele processo; b) é pressuposto de aplicação dessa norma que no processo de acidente de trabalho tenha já transitado em julgado a decisão que se tenha pronunciado sobre a qualificação do sinistro como acidente de trabalho e/ou a determinação da entidade responsável pela reparação infortunística devida por acidente desse tipo.
Ora, no caso em apreço não está verificado o pressuposto de aplicação acabado de enunciar, pois que nem sequer ainda se iniciou a fase contenciosa do processo de acidente de trabalho no termo da qual deve ser proferida decisão que se pronuncie sobre a qualificação do acidente e sobre o responsável pelas prestações infortunísticas devidas.
Como assim, não podia ser com fundamento na norma em questão que o tribunal recorrido determinou a suspensão destes autos até ao trânsito em julgado da decisão final a proferir no processo de acidente de trabalho a que este processo foi apensado, tanto mais quanto é certo que a mesma não comina qualquer efeito suspensivo do tipo do que a decisão recorrida pretendeu impor.
Admite-se, no entanto, que da conjugação dos arts. 154º/2 do CPT e 272º/1/1ª parte do NCPC se possa extrair interpretativamente o regime jurídico segundo o qual estando pendente uma acção de acidente de trabalho deva ser suspensa a instância na acção para a efectivação de direitos de terceiro conexos com o acidente de trabalho objecto daquela acção, por prejudicialidade daquela em relação a esta.
No entanto, tal regime deve ser objecto de uma interpretação e aplicação restritivas de molde a só poder ser aplicado naquelas situações que foram as pensadas como pressuposto do regime normativo do art. 154º do CPT, ou seja, naquelas em que já foi ou será necessariamente proferida no processo emergente de acidente de trabalho a decisão susceptível de transitar em julgado e que se pronuncie sobre a qualificação do acidente e/ou sobre o responsável pela reparação infortunística que seja devida.
Reportamo-nos, concretamente, aos processos de acidentes de trabalho em que tenha já sido desencadeada a correspondente fase contenciosa, bem assim como àqueles em que seja proferida decisão de mérito ao abrigo do art. 138º/2 do CPT, por falta de apresentação do requerimento de junta médica após insucesso da tentativa de conciliação determinado por discordância incidindo exclusivamente sobre a questão da incapacidade do sinistrado.
Esse regime suspensivo não deve aplicar-se, pois, naqueles casos em que não exista garantia processual de que seja realmente proferida uma decisão do tipo da prevista no art. 154º/2 do CPT.
Estamos a pensar, a respeito de quando acabou de referir-se, naquelas situações em que se malogrou a tentativa de conciliação por divergências que se estenderam a outras questões para lá da referente à incapacidade do sinistrado e em que não é apresentada pelo autor a petição inicial no prazo legal cominado no art. 119º/1 do CPT, sendo essa a única forma de, nessas circunstâncias, ser desencadeada a fase contenciosa do processo de acidente de trabalho por aquele a quem exclusivamente é reconhecida legitimidade processual para o efeito – art. 117º/1/a CPT.
Note-se que nesses casos, para lá da suspensão da instância cominada no art. 119º/4 do CPT, o decurso do tempo, por mais longo que seja, não tem qualquer espécie de efeito sobre a instância processual, sendo inaplicável o instituto da deserção da instância (art. 281º NCPC) e o regime do art. 332º/2 do CC[1], a significar que nesses casos a pendência da acção de acidente de trabalho sem que seja proferida decisão de mérito poderá perpetuar-se indefinidamente.
Nesses casos, entre os quais se integra a acção do tipo da dos autos, a aplicação do regime de suspensão da instância a essas acções equivaleria, na prática, a admitir-se a possibilidade de o terceiro que se arrogue a titularidade de um direito conexo com um acidente de trabalho ficar praticamente impossibilitado de exercer esse direito, designadamente nas situações de inércia definitiva do autor em apresentar a petição inicial, com violação manifesta da garantia de acesso aos tribunais decorrente do art. 20º/1 da CRP e do art. 3º do NCPC.
Assim sendo, sempre que a instância do processo de acidente de trabalho se suspenda nos termos do art. 119º/4 do CPT, o terceiro que se arrogue a titularidade de um direito conexo com o acidente de trabalho deve ser admitido a exercê-lo através da acção correspondente a tal direito e à forma pela qual o mesmo se pretender exercitar, devendo suscitar nessa mesma acção as questões da qualificação do acidente como de trabalho e do responsável pelas prestações devidas por causa desse acidente.
Flui de quanto vem de referir-se que o despacho recorrido não pode subsistir.
*
IV) – Decisão

Acordam os juízes que integram esta secção social do Tribunal Relação de Coimbra no sentido de revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Coimbra, 8/7/2015
 (Jorge Manuel Loureiro - Relator)

 (Ramalho Pinto)

 (Azevedo Mendes)



[1] Neste sentido, v.g., acórdãos do STJ de 22/3/07, proferido no âmbito do processo 06S3782, de 12/5/94, proferido no âmbito do processo 004166,