Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
631/13.9TBGRD-L.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 03/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA/INST. LOCAL DA GUARDA - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 188º, NºS 1 E 3, DO CIRE
Sumário: I – No actual quadro legal – após as alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012 de 20/04 – apenas há lugar à abertura do incidente de qualificação da insolvência em duas situações e momentos: na sentença em que se declara a insolvência (situação em que é aberto oficiosamente pelo juiz, caso disponha, nesse momento, de elementos que o justifiquem) ou num momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria e ao abrigo do disposto no art. 188º, nº 1, do CIRE, sejam efectuadas pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado dentro do prazo aí assinalado.

II – Ao contrário do que acontece com o parecer previsto no nº 3 do citado art. 188º - que, por corresponder a um acto obrigatório da tramitação do incidente já aberto e em curso, deve ser entendido como um dever funcional do administrador que não se extingue pelo decurso do prazo legalmente fixado para a sua apresentação – o requerimento/alegações a que alude o nº 1 da citada norma, através do qual se pretende desencadear a abertura do incidente de qualificação, apenas pode ser apresentado dentro do prazo fixado na lei, não podendo ser atendido, para esse efeito, o requerimento (alegações) apresentado pelo administrador – ou por qualquer interessado – após o decurso desse prazo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de insolvência referentes a A... , S.A. – cuja insolvência foi decretada por sentença proferida em 09/07/2013 – veio o Sr. Administrador de Insolvência – em 01/07/2014 – requerer a abertura do apenso de qualificação de insolvência e apresentar o parecer referido no art. 188º, nº 2, do CIRE no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa, mais propondo que seja afectado por tal qualificação o administrador B....

Na sequência desse facto, foi proferido despacho – em 04/07/2014 – onde se decidiu não declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência dada a extemporaneidade do parecer, uma vez que tal incidente não havia sido declarado aberto na sentença proferida em 08/07/2013, a assembleia de apreciação do relatório teve lugar em 06/09/2013 e o parecer apenas veio a ser apresentado em 01/07/2014.

Discordando dessa decisão, o Sr. Administrador da Insolvência veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

a) Dispõe a al. i), do n.º 1, do art.º 36.º, do C.I.R.E., que " … na sentença que declarar a in­solvência o juiz: i) Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação, declara aberto o incidente de qualificação, com caráter pleno ou limitado ... ";

b) Por sua vez, dispõe o n.º 1, do art.º 188.º, do mesmo diploma legal, que "... até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes ... ";

c) O parecer do Administrador de insolvência deu entrada em 01.07.2014, estando ultrapassados os 15 (quinze) dias referidos no n.º 1, do art.º 188.º.

d) Todavia, e atendendo à complexidade dos presentes autos, como é do conhecimento do próprio Tribunal a quo, o administrador não tinha elementos probatórios para alegar o que quer fosse sobre esta matéria nos 15 (quinze) dias subsequentes à assembleia de credores para apreciação do relatório uma vez que não tinha quaisquer tipo de documentos ou informações sobre a Insolvente;

e) Após ser nomeado como administrador de insolvência contactou o administrador em funções (que foi ouvido em juízo sobre a matéria), que reiterou em diversas ocasiões, que não conhecia nem conhece a insolvente, não tendo quaisquer documentos na sua posse, não sabia onde estavam, nem podia indicar quem os tivesse - como este referiu, nem sabia onde eram as instalações da Insolvente, pois nunca lá foi;

f) Por sua vez, o T.O.C. da Insolvente reiterou que não tinha quaisquer documentos em sua posse, que os mesmos estavam na empresa, não indicando a ciência certa onde ficava a mesma;

g) Desde logo, em 11.12.2013, quando as pessoas visadas foram ouvidas no tribunal sobre a vida societária, contabilidade e actividade da Insolvente, já o prazo dos 15 (quinze) dias, previstos no n.º 1, do art.º 188.º, do C.I.R.E., estava largamente esgotado;

h) Tanto o Apelante como o próprio Tribunal a quo tem vindo a conhecer os documentos e a vida societária da Insolvente na justa medida em que sociedade C..., S.A., os junta ao processo para defender os seus próprios interesses - Sociedade esta que até pelo menos 31.12.2012 era a única titular da totalidade das acções representativas do capital so­cial da Insolvente;

i) Até Julho de 2014, o Administrador de Insolvência e ora Apelante mais não fez que re­colher elementos que lhe permitissem chegar a uma conclusão sobre a origem da situação de insolvência da Insolvente - munido dos mesmos, elaborou o seu parecer indicando os factos e motivos pelo qual se devia qualifica a insolvência como culposa;

j) Saliente-se que, atenta a complexidade dos factos e vertida nos vários apensos dos presentes autos, jamais o administrador de insolvência conseguiria elaborar um relatório/alegações sobre esta matéria nos 15 (quinze) dias seguintes à assembleia de credores para apreciação do relatório uma vez que, nessa data, os factos que constam no parecer da qualificação não eram do conhecimento dos autos nem do administrador de insolvência;

k) Mas nada obsta a que, no início do processo não existam elementos mas que, após e no decurso deste, venha a ter conhecimento desses elementos (até oficiosamente) - no caso concreto, esses elementos só foram possíveis de ser conhecidos durante a pendencia do processo e após assembleia de credores para apreciação do relatório; 

I) Não pode o juiz nem o administrador de insolvência, porque decorridos os 15 (quinze) dias após a assembleia de credores, "fechar os olhos" a uma possível responsabilidade pela situação de insolvência - sobretudo decorrente de factos supervenientes;

m) No caso do administrador de insolvência, o direito e dever de alegar e dar parecer sobre a qualificação da insolvência não se esgota nem caduca pelo facto de ser tardiamente apresentado e fora do prazo pois o prazo de 15 (quinze) dias vertidos no art.º 188.º, n.º 1, deve ser entendido com meramente ordenador para o administrador de insolvência, porquanto em matéria de insolvência estão subjacentes interesses de ordem pública;

n) Pois o administrador de insolvência tem o dever jurídico de adoptar comportamentos com vista a salvaguardar interesses alheios, exigindo-se o seu acatamento ou cumprimento em ordem a respeitar o direito subjectivo alheio.

o)             Mal andou o legislador ao efectuar uma reforma no âmbito da qualificação onde equipara o administrador de insolvência às partes e aos credores.

p) Pois se a estes tem aplicação a preclusão do direito de praticar o acto acarretada pelo decurso do prazo estabelecida no nosso ordenamento processual civil o mesmo não tem aplicação sobre o juiz e administrador de insolvência que intervém no processo de insolvência enquanto entidade coadjuvante da aplicação da justiça.

q) Ou seja, surge no processo para praticar um acto e não para exercitar um direito próprio ou sequer no cumprimento de qualquer ónus ou dever jurídico, mas antes porque sobre ele impende um dever funcional uma vez que, contrariamente às partes e aos credores, o parecer/alegações do administrador de insolvência respeitam e compreendam um verdadeiro dever funcional;

r) Quanto a isto, reitera-se e é facilmente apreensível pela consulta aos autos e diversos apensos, que o administrador só elaborou o parecer nesta fase porque só neste momento, atendendo às vicissitudes do processo e complexidade dos factos, teve condições e conhecimentos de facto para elaborar o seu parecer, fundamentando-o devidamente e apresentando os correspondentes meios probatórios;

s) Se anteriormente à alteração legislativa operada com a Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, não existiam dúvidas que o parecer do administrador de insolvência e prazos para a sua junção sobre a qualificação da culpa era meramente ordenador;

t) o parecer do administrador da insolvência continua a ser um elemento relevante na decisão do incidente de qualificação da insolvência - e na sua própria tramitação no âmbito de um dever funcional que sobre o mesmo impende;

u) Logo, se não exerce direitos próprios (não sendo parte), não faz sentido consubstanciar o prazo de 15 (quinze) dias vertido no n.º 1, do art.º 188.º, do C.I.R.E., como um prazo de caducidade, nem sujeitar o juiz ou o administrador de insolvência a tal desiderato;

v) É verdade que o incidente de qualificação passou a ser uma fase facultativa do processo e a sua abertura despertada pelo juiz, caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação;

w) Mas vedar ao administrador de insolvência a possibilidade de alegar e ao juiz a possibilidade de abrir o incidente posteriormente, quando tem conhecimento a posteriori e superveniente de "factos/elementos" susceptíveis de integrar uma insolvência culposa, é ir um longe demais;

x) Pois, nestes casos, e atendendo a principios de protecção de credores, justiça e lei, o incidente da qualificação da insolvência devia deixar de ser facultativo e passar a ser obrigatório e indispensável, mesmo fora dos prazos estabelecidos no art.º 36.º e 188.º n.º 1.

y) Pois são "prazos" meramente reguladores ordenadores ou de organização processual, sem cominação processual (e muito menos substantiva), e cuja ultrapassagem, não pode nunca fazer caducar um direito que o administrador e o juiz não detêm.

z) Sobretudo, quando a matéria que consubstancia uma possível insolvência culposa vem ao conhecimento do juiz e do administrador de insolvência após a assembleia de credores - como é o caso.

Nestes termos, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que decida pela admissão do parecer do Administrador de insolvência sobre a qualificação da culpa seguindo-se a demais tramitação do CIRE.

O Ministério Público apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1. Por sentença datada de 09/07/2013, foi declarada a insolvência da sociedade "" A..., SA", sendo que nela não foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência.

2. A assembleia de credores, para apreciação do relatório do Administrador da Insolvência, foi realizada no dia 06/09/2013.

3. O relatório/parecer do Administrador da Insolvência sobre a qualificação da Insolvência foi apresentado no dia 01/07/2014, ou seja vários meses após a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório.

4 - Ultrapassado o prazo de quinze dias a que alude o artº 188, nº 1, do CIRE, a Mma Juiz "a quo" proferiu despacho, datado de 04/07/2014, declarando a "manifesta extemporaneidade" do requerimento/parecer de qualificação da insolvência apresentado pelo Administrador da Insolvência, "e, consequentemente, não declarar aberto o incidente de qualificação de insolvência".

5 - Sufragando o entendimento perfilhado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06/12/2011 - Processo n° 1556/09.8TBAMT-W.Pl, bem assim pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14/04/2011 - Processo nº 881/07. 7TBVCT-S. Gl, também nós entendemos que o facto de o Administrador da Insolvência não ter apresentado o seu parecer quanto à qualificação da insolvência no prazo legalmente previsto, não faz precludir a possibilidade de o fazer mais tarde e de a tal parecer se atender.

6 - Assim sendo, em nosso entendimento, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se, consequentemente, o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que admita a abertura do incidente de qualificação da insolvência.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o requerimento ou parecer apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência após o decurso do prazo previsto no art. 188º, nº 1, do CIRE deve ou não ser atendido e considerado para efeitos de declarar a abertura do incidente de qualificação da insolvência ao abrigo da norma citada.


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III.

Considerou a decisão recorrida – para fundamentar a decisão de não declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência – que, ao contrário do que acontecia antes da alteração legislativa introduzida no CIRE pela Lei nº 16/2012 de 20/04, não é obrigatório que tal incidente seja declarado aberto na sentença que declara a insolvência e que, não sendo aberto nesse momento, só poderá vir a sê-lo se o administrador ou algum interessado vierem a apresentar alegações em conformidade com o disposto no art. 188º, nº 1, e dentro do prazo aí assinalado. Mais diz a decisão recorrida que, ao invés do que sucedia anteriormente, o parecer do administrador não é obrigatório pelo que deixou de ser sustentável o entendimento de que esse prazo não é peremptório.

O Apelante, depois de fazer alusão à complexidade dos autos e à dificuldade (ou impossibilidade) de apresentar o parecer dentro do prazo definido na lei, sustenta – no que é acompanhado pelo Ministério Público – que o direito e dever de apresentar esse parecer não caduca pelo decurso do aludido prazo, sendo que, por estar em causa, o exercício de um dever funcional, esse prazo deve ser entendido como meramente ordenador.

Analisemos, portanto, a questão.

O CIRE[2] – antes da alteração introduzida pela citada Lei nº 16/2012 – determinava, no art. 36º, i), que, na sentença que declarava a insolvência, o juiz, sem prejuízo do disposto no artigo 187º, declarava aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno ou limitado. É certo, portanto, que, ressalvando a situação prevista no art. 187º, o incidente de qualificação de insolvência era sempre aberto oficiosamente pelo juiz logo aquando da declaração da insolvência. Determinava, por outro lado, o art. 188º, nº1, que, até 15 dias depois da realização da assembleia de apreciação do relatório, qualquer interessado poderia alegar, por escrito, o que tivesse por conveniente para efeito de qualificação da insolvência como culposa e, em conformidade com o disposto no nº 2, nos 15 dias subsequentes, deveria o administrador da insolvência apresentar parecer sobre os factos relevantes, formulando uma proposta de qualificação e identificando, se fosse o caso, as pessoas que deveriam ser afectadas pela qualificação.

Entendia-se, então – maioritariamente – que a não apresentação do parecer do administrador da insolvência dentro do prazo que estava assinalado na lei não impedia que esse parecer não viesse a ser apresentado em momento posterior. Considerava-se, com efeito, que a obrigação de apresentação desse parecer correspondia a um dever funcional do administrador e que, sendo um elemento relevante para a decisão, não poderia deixar de ser admitido em momento posterior, devendo mesmo o juiz providenciar junto do administrador pela emissão e junção do parecer e, persistindo o administrador na sua omissão, poderia até haver lugar à sua destituição por justa causa na medida em que estava em causa um incumprimento reiterado dos seus deveres funcionais. Entendia-se, portanto, que, tendo em conta o carácter essencial e obrigatório do aludido parecer e o facto de estar em causa um dever funcional, o aludido prazo era meramente ordenador e sem carácter preclusivo do dever de apresentar o parecer, ainda que tardiamente.

Assim entendiam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[3] e assim se entendia na jurisprudência, como revelam, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 23/02/2012, 06/12/2011 e 29/10/2009 (proferidos nos processos nºs 621/09.6TBOAZ-A.P1, 1556/09.8TBAMT-W.P1 e 10/07.7TYVNG-B.P1, respectivamente) e o Acórdão da Relação de Guimarães de 14/04/2001 (proferido no processo nº 881/07.7TBVCT-S.C1)[4].

E também nós concordamos com esse entendimento.

De facto, estando aberto o incidente – que, como se referiu, era sempre aberto pelo juiz oficiosamente – o parecer do administrador era um acto obrigatório desse incidente (tal como era a decisão a proferir pelo juiz) e que, além da sua extrema relevância para auxiliar o juiz na sua decisão, se assumia, naturalmente, como um dever funcional do administrador. Ou seja, estando aberto o incidente, o administrador tinha o dever de emitir o parecer que era imposto por lei, tal como o juiz tinha o dever de proferir decisão, qualificando a insolvência como fortuita ou culposa. E, estando em causa o cumprimento de um dever funcional de carácter obrigatório, impunha-se concluir que o decurso do prazo estabelecido na lei para a prática desse acto não extinguia o dever de o praticar (tal como o decurso do prazo previsto na lei para o juiz proferir a decisão não extingue o dever de a proferir), devendo ser atendido o parecer que viesse a ser apresentado em momento posterior e devendo mesmo o juiz tomar as providências adequadas para que tal parecer fosse apresentado e podendo, em última instância e em caso de reiterado incumprimento daquele dever, haver lugar à destituição do administrador por justa causa.

A verdade é que o regime legal do incidente de qualificação da insolvência veio, entretanto, a ser alterado pela citada Lei 16/2012 e, ao contrário do que sucedia antes, o incidente de qualificação da insolvência passou a ter carácter não obrigatório.

É isso que decorre, desde logo, da exposição de motivos da proposta de Lei n.º 39/XII (que veio dar origem à citada Lei), onde se afirma o seguinte: “outra das novidades consiste na transformação do actual incidente de qualificação da insolvência de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processos de que a insolvência foi criada de forma culposa pelo devedor ou pelos seus administradores de direito ou de facto, quando se trate de pessoa colectiva (artigos 36.º, 39.º, 188.º, 232.º e 233.º)”.

Com efeito, o art. 36º, nº 1, i), passou agora a dispor que, “na sentença que declarar a insolvência, o juiz (...) caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com caráter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º”, dispondo, por outro lado, o art. 188º, nº 1, que “até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes”.

É certo, portanto, que o referido incidente deixou de ter carácter obrigatório, sendo que a lei apenas prevê a sua abertura em duas situações e momentos: na sentença em que se declara a insolvência (situação em que é aberto oficiosamente pelo juiz, caso disponha, nesse momento, de elementos que o justifiquem) ou num momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria, sejam efectuadas pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado nos quinze dias subsequentes à realização da assembleia de apreciação do relatório (ou, tendo em conta o disposto no art. 36º, nº 4, nos quinze dias subsequentes ao 45.º dia subsequente à data da prolação da sentença de declaração da insolvência, caso não haja lugar à aludida assembleia).

Registe-se que, uma vez aberto o incidente – seja oficiosamente aquando da declaração da insolvência, seja na sequência da iniciativa do administrador ou de qualquer interessado nos termos do art. 188º, nº 1 – o administrador da insolvência (caso não tenha sido dele a iniciativa de propor a qualificação da insolvência como culposa) deverá apresentar parecer sobre os factos relevantes no prazo de vinte dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, como decorre do disposto no nº 3 do citado art. 188º.

O parecer do administrador a que alude o citado nº 3 equivale ao parecer a que a lei aludia antes da referida alteração (sendo que a redacção do actual nº 3 é idêntica – salvo no que toca aos prazos – à redacção do nº 2 do art. 188º antes daquela alteração) e, portanto, valem, relativamente a esse parecer, as considerações supra efectuadas a propósito da natureza desse acto e a propósito do incumprimento do prazo estabelecido na lei para a sua apresentação. Com efeito, estando já em curso – porque já foi declarado aberto – o incidente de qualificação, o aludido parecer (a que alude o citado nº 3) é um acto obrigatório e corresponde ao cumprimento do dever funcional do administrador e, portanto, tal como o juiz não pode deixar de proferir decisão, ainda que ultrapassado o prazo legalmente previsto para o efeito, o administrador também não fica desvinculado do dever de apresentar o seu parecer por ter decorrido o prazo que a lei estipula. Assim, ainda que tardiamente, o aludido parecer pode e deve ser apresentado e admitido, devendo mesmo o juiz tomar as providências necessárias com vista ao efectivo cumprimento daquele dever e à emissão do parecer.

O mesmo não acontece, porém, com as alegações previstas no actual nº 1 do art. 188º, já que o que está aí em causa não é a prática de um acto que seja obrigatório por fazer parte de um procedimento ou incidente já em curso, mas sim a iniciativa processual – que pode ou não ser exercida – tendo em vista a eventual abertura do incidente de qualificação da insolvência.

Embora, no regime actual, essa iniciativa possa também ser exercida pelo administrador da insolvência – ao contrário do que acontecia no regime anterior e dado que, neste regime, o incidente era sempre aberto oficiosamente – tal não corresponde, propriamente, ao parecer que a lei impõe como obrigatório por estar inserido num incidente já aberto e já em curso.

Naturalmente que a iniciativa do administrador com vista à abertura do incidente de qualificação, a que alude o citado nº 1, não deixará de ser vista como um dever funcional, porquanto, tendo conhecimento de elementos relevantes para efeitos de qualificação, o administrador terá o dever – decorrente das funções para as quais foi nomeado – de levar esses factos ao conhecimento do juiz para eventual abertura do incidente de qualificação. No entanto, essa iniciativa não pode ser encarada como um acto obrigatório que deva ser praticado pelo administrador em qualquer circunstância (ele apenas será praticado se existirem factos relevantes para efeitos de qualificação) e que, como tal, possa ser controlado pelo juiz.

Com efeito, ao contrário do que acontece com o parecer previsto no actual nº 3 – que, estando já inserido num incidente em curso, tem que ser obrigatoriamente apresentando, podendo o juiz aperceber-se da sua falta e tomar as providências necessárias com vista à sua junção (e que, em última instância, poderão reconduzir-se à destituição do administrador por justa causa) – a iniciativa a que alude o nº 1 pode ou não ser exercida e, tendo decorrido o prazo ali estabelecido, o juiz não pode concluir que o administrador tenha omitido a prática de um acto que devesse ter praticado (tendo decorrido aquele prazo sem que o administrador tenha apresentado quaisquer alegações referentes à qualificação da insolvência, o juiz apenas poderá concluir que o mesmo não teve conhecimento de quaisquer factos relevantes para esse efeito e por isso não tomou qualquer iniciativa).

É certo, portanto, que as considerações feitas a propósito do parecer a que alude o nº 3 (e a que aludia o nº 2 da citada norma antes da alteração efectuada pela Lei supra citada) não são válidas para a iniciativa prevista no nº 1.

Refira-se que, não obstante aludir à junção do parecer (fazendo referência, aliás, à anterior redacção do art. 188º, como se depreende da alusão ao respectivo nº 2), o acto praticado pelo Sr. Administrador apenas poderá ser entendido como correspondendo ao requerimento ao que alude o nº 1 da norma citada na sua actual redacção, porquanto, a junção do parecer a que alude o nº 3 pressupõe que já tenha sido declarado aberto o incidente, o que aqui não acontecia.

O que está em causa, portanto, no presente recurso, não é o parecer a que alude o nº 3, mas sim o requerimento (alegações) previsto no nº 1 e que o Sr. Administrador veio apresentar muito para além do prazo legalmente estabelecido para o efeito.

Mas, não obstante o que se disse, poderá ainda assim afirmar-se que o juiz não poderá deixar de admitir tal requerimento e declarar aberto o incidente – se o considerar oportuno em face dos factos que sejam invocados – ainda que tal iniciativa seja exercida pelo administrador após o termo do prazo legalmente estabelecido?

Não encontramos razões válidas para que assim deva ser considerado.

Já vimos que não valem aqui as razões invocadas para admitir o parecer a que alude o nº 3 tardiamente apresentado, porquanto, ao contrário do que acontece com este parecer, a iniciativa prevista no nº 1 não é um acto obrigatório que esteja inserido no âmbito de um incidente já em curso, mas sim um acto que, podendo ou não ser praticado, apenas tem em vista facultar ao juiz elementos que se entendam ser relevantes e que lhe permita declarar aberto o incidente.

Por outro lado, ainda que aquela iniciativa por parte do administrador radique nas suas funções, a verdade é que o seu conteúdo não diverge do direito que assiste a qualquer interessado de tomar tal iniciativa e, portanto, a admitir-se que o administrador pudesse tomar aquela iniciativa depois de decorrido o aludido prazo, também teria que ser admitida a iniciativa que nas mesmas circunstâncias fosse tomada por qualquer outro interessado, já que não vislumbramos razões que nos permitam tratar de forma diversa as duas situações.

Mas, a admitir-se essa situação, qual seria a utilidade do prazo fixado no nº 1? Porque razão o legislador teria fixado aquele prazo se, afinal, o acto poderia ser praticado para além dele? E a admitir-se que o decurso desse prazo não impedia o exercício daquela iniciativa, ela poderia ser exercida até quando? Até ao encerramento do processo?

Note-se que, relativamente ao parecer a que alude o nº 3, o incumprimento do prazo previsto para a sua apresentação pode ser controlado pelo juiz e demais intervenientes (porquanto, sendo um acto obrigatório que faz parte de um incidente já em curso, é fácil verificar o seu incumprimento) e poderá ser sancionado com a eventual destituição do administrador por incumprimento dos seus deveres. Tal não acontece, porém, com a iniciativa prevista no nº 1 e, portanto, a admitir-se que o administrador poderia exercê-la para além do prazo fixado, inexistiria qualquer sanção para o efeito, porquanto não o juiz e demais intervenientes não poderiam ter conhecimento prévio do incumprimento de qualquer dever do administrador.

  Diz o Apelante que o nem o juiz nem o administrador podem fechar os olhos a uma possível responsabilidade pela situação de insolvência quando estão em causa factos que apenas vieram ao seu conhecimento quando já havia decorrido o prazo supra referido.

Tal afirmação reconduz-nos às seguintes questões: poderá o juiz, no actual regime legal, declarar aberto o incidente de qualificação em qualquer fase do processo? Se o juiz tomar conhecimento, por força de elementos que sejam juntos aos autos, de factos que evidenciem, com alguma clareza, uma situação de insolvência culposa, deverá “fechar os olhos” (como diz o Apelante) por ter decorrido o momento processual que a lei estabelece para a abertura do incidente?

Parece-nos, de facto, que, perante o regime legal actualmente vigente, o juiz apenas poderá, oficiosamente, declarar aberto o incidente na sentença que declara a insolvência se dispuser, então, de elementos relevantes; fora desse momento apenas poderá fazê-lo na sequência de iniciativa formulada pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado dentro do prazo assinalado na lei. O que se compreende, já que, por regra e sem prejuízo das excepções consagradas na lei, o juiz não tem o poder de, oficiosamente, dar início a acções ou incidentes e decretar providências sem que seja formulado um pedido nesse sentido (cfr. art. 3º do C.P.C.).  E, se é certo que no regime anterior, o juiz tinha o poder/dever de declarar aberto esse incidente em qualquer circunstância, parece indiscutível que o legislador limitou agora esse poder ao momento em que é proferida a sentença que declara a insolvência, sendo que, a partir desse momento, entendeu o legislador não atribuir ao juiz qualquer poder de actuar oficiosamente nesse domínio e apenas podendo actuar – declarando aberto o incidente – mediante iniciativa do administrador ou de qualquer interessado. E, não obstante estar consagrado, no processo de insolvência, o princípio do inquisitório (cfr. art. 11º), importa notar que tal apenas acontece relativamente aos factos que fundam a decisão (podendo o juiz investigar e considerar factos que não foram alegados), sem que esteja aí abrangida a possibilidade de o juiz também poder actuar oficiosamente ao nível da abertura de um incidente e do decretamento de providências sem que tal lhe tenha sido pedido. E, salvo o devido respeito, não estando consagrada legalmente a possibilidade de o juiz actuar oficiosamente, ao nível da abertura do incidente de qualificação da insolvência, para lá do momento em que é proferida a sentença, impõe-se concluir que, por força dos princípios gerais consagrados no nosso sistema processual civil, tal não será possível.

Diz o Apelante – conclusão x) das suas alegações – que, atendendo a princípios de protecção de credores, justiça e lei, o incidente de qualificação da insolvência devia deixar de ser facultativo e passar a ser obrigatório e indispensável, mesmo fora dos prazos estabelecidos no art. 36º e 188º, nº 1. Não foi essa, no entanto, a opção do legislador, que entendeu retirar o carácter obrigatório do incidente que estava consignado na lei, passando a determinar que ele apenas teria lugar em determinadas situações e quando existissem elementos que indiciassem uma insolvência culposa. Poderemos até reconhecer que limitar a possibilidade de abertura do incidente ao período temporal acima referido implicará que muitas insolvências culposas não sejam declaradas, já que, os factos relevantes para esse efeito poderão não chegar ao conhecimento do administrador e do juiz dentro do prazo assinalado. Mas essa foi uma opção do legislador que, naturalmente, não nos compete questionar ou comentar. Refira-se que, ainda que pretendesse reduzir a abertura e tramitação do incidente aos casos em que tal se justificasse, o legislador poderia ter mantido o poder oficioso do juiz no sentido de abrir o incidente a qualquer momento (eventualmente, até ao encerramento do processo) e logo que se apercebesse – por si ou por indicação do administrador ou de qualquer interessado – da existência de factos ou elementos relevantes que apontassem para a possibilidade de existência de uma insolvência culposa. Não foi essa, no entanto, a sua opção, porquanto entendeu limitar essa possibilidade aos momentos temporais acima definidos, daí resultando, inequivocamente – sob pena de ser totalmente inútil a previsão legal – que, fora dos momentos e circunstâncias definidas na lei, não será possível declarar aberto o incidente.

Concluímos, portanto, que, ao contrário do que pretende o Apelante e ao contrário do que acontece com o prazo fixado no nº 3 do art. 188º para a apresentação do parecer, o prazo fixado no nº 1 da norma citada não é um prazo meramente regulador ou ordenador; o que aí se prevê é uma iniciativa processual – que pode ser exercida pelo administrador ou por qualquer interessado – no sentido de desencadear a possível abertura do incidente de qualificação da insolvência e que apenas poderá ser admitida se for apresentada dentro do prazo que está fixado na lei.

Alude ainda o Apelante à complexidade dos autos e à superveniência dos factos (dos quais apenas teria tomado conhecimento em momento posterior ao decurso do aludido prazo) para justificar a sua actuação tardia no sentido de desencadear a abertura do acidente.

No entanto, ainda que se admitisse, nos termos gerais que estão definidos na lei processual civil, a possibilidade de o acto ser praticado para além do prazo fixado na lei, sempre se impunha, no mínimo, que, aquando da sua prática, fosse invocado o justo impedimento ou a superveniência dos factos. Mas, a verdade é que o Apelante não o fez, sendo que, quando apresentou o parecer (parecer que corresponde ao requerimento a que alude o nº 1 do art. 188º e não ao parecer a que alude o nº 3), não invocou expressamente essa situação e nem sequer alegou a data concreta em que os factos haviam chegado ao seu conhecimento, importando notar que o acto em questão foi praticado em 01/07/2014 quando já haviam decorrido mais de dez meses sobre o termo do prazo fixado na lei.       

 

Impõe-se, portanto, em face do exposto, confirmar a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – No actual quadro legal – após as alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012 de 20/04 – apenas há lugar à abertura do incidente de qualificação da insolvência em duas situações e momentos: na sentença em que se declara a insolvência (situação em que é aberto oficiosamente pelo juiz, caso disponha, nesse momento, de elementos que o justifiquem) ou num momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria e ao abrigo do disposto no art. 188º, nº 1, do CIRE, sejam efectuadas pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado dentro do prazo aí assinalado.

II – Ao contrário do que acontece com o parecer previsto no nº 3 do citado art. 188º - que, por corresponder a um acto obrigatório da tramitação do incidente já aberto e em curso, deve ser entendido como um dever funcional do administrador que não se extingue pelo decurso do prazo legalmente fixado para a sua apresentação – o requerimento/alegações a que alude o nº 1 da citada norma, através do qual se pretende desencadear a abertura do incidente de qualificação, apenas pode ser apresentado dentro do prazo fixado na lei, não podendo ser atendido, para esse efeito, o requerimento (alegações) apresentado pelo administrador – ou por qualquer interessado – após o decurso desse prazo.


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da massa insolvente.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Reg. nº 210.
[2] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[3] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, pág. 618.
[4] Todos os acórdãos citados estão disponíveis em http://www.dgsi.pt.