Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
114/12.4TBSBG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: CASO JULGADO
ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA PATERNIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1839, 1869, 1871 CC, 494, 498 CPC, 26 CRP
Sumário: 1.- Pode verificar-se a excepção de caso julgado, na sua tríplice pressuposição legal, identidade de sujeitos, identidade de pedidos e identidade de causa de pedir, entre uma acção de impugnação de paternidade e uma outra de investigação de paternidade, se naquela o A. obtém sentença, transitada, que declara que o demandado, pessoa registada como seu filho, não é seu filho, e este último pretende, depois, propor acção para ver reconhecida judicialmente a paternidade daquele.

2.- Há identidade de sujeitos, apesar da diversidade de posição processual, se na acção de impugnação de paternidade o presumido pai é A. sendo R. a pessoa registada como seu filho, e depois este último demanda aquele na acção de investigação de paternidade, sendo irrelevante que este como réu não tivesse apresentado contestação naquela acção de impugnação de paternidade.

3.- Há identidade de pedidos, pois na acção de impugnação de paternidade o A. pretendia e obteve sentença que declarou que o demandado não era seu filho, querendo agora este que se declare na acção de investigação de paternidade que aquele afinal é seu pai.

4.- Há identidade de causas de pedir, pois na acção de impugnação de paternidade o A. invocou que é manifestamente improvável que o demandado seja seu filho, por a mãe ter tido, no período legal de concepção, relações sexuais com outros homens, juízo legal - do art. 1839º, nº 2, do CC - que a sentença acolheu, invocando agora este último que, no período legal de concepção, aquele e sua mãe tiveram relações sexuais e de comunhão duradoura de vida - factos integradores das presunções estatuídas no art. 1871º, nº 1, c), 1ª parte, e e), do CC) -, defendendo-se o pretenso pai com o juízo legal – do art. 1871º, nº 2, do CC - da existência de sérias dúvidas sobre tal paternidade, com base na mesma factualidade que serviu para julgar procedente aquela acção de impugnação de paternidade.

5.- Não é inconstitucional a norma constante da i), do art. 494º, do CPC, quando interpretada no sentido segundo o qual a excepção dilatória do caso julgado abrange, também, as acções não oficiosas de investigação da paternidade.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. AM (…), representado pela sua mãe ML (…), ambos residentes na Suíça, intentou acção declarativa para investigação da paternidade, sob a forma de processo ordinário, contra AJ (…), residente no Sabugal, na qual peticionou que o réu fosse declarado seu pai, que fosse efectuado o respectivo averbamento ao assento de nascimento e que o réu fosse ainda condenado ao pagamento de alimentos provisórios, nos termos do artigo 1821º do CC.

Em suma, alegou que nasceu em 17.3.1999, que este casou com a sua mãe em 29.8.1998, que no período que mediou entre tais datas o réu e a sua mãe mantiveram relações sexuais regulares, que a sua mãe não conheceu outro parceiro sexual, tendo coabitado ambos na mesma casa, aí dormindo, tomando as refeições e fazendo a sua vida quotidiana, como um casal que eram, e que o casamento entre eles foi dissolvido em 11.7.2003. Concluiu, assim, que se presume a paternidade do réu, nos termos do artigo 1871º, nº 1, c) e e), do Código Civil.

Mais disse que, no passado, o réu intentou uma acção de impugnação de paternidade, e que tal acção procedeu apenas porque a sua mãe não teve condições económicas para se deslocar da Suíça a Portugal para a realização da prova pericial (exames hematológicos).

O Réu apresentou contestação, impugnando a versão de factos do autor, invocou que no período legal de concepção a mãe do autor manteve relações sexuais com outros homens, antes de o conhecer a si, descrevendo em concreto as situações e nomeando os homens com os quais teria tido tal relacionamento. Assim como invocou a excepção dilatória de caso julgado, considerando a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir entre a presente acção e aquela que correu termos no Tribunal Judicial do Sabugal sob o nº 240/2001.

Foram juntos aos autos pelas partes cópias da sentença proferida no dito processo 240/2001, bem como das respectivas p.i. e contestação.

*

Foi, depois, proferido saneador-sentença, que, julgando procedente a referida excepção, determinou a extinção da instância.

*

2. O A. interpôs recurso, tendo formulado as seguintes conclusões.

(…)

4. Igualmente contra-alegou o Mº Pº, tendo concluído que:

(…)

II – Factos Provados

Os factos provados são os que decorrem do relatório supra, os que emergem da sentença recorrida, que abaixo se irá transcrever, e os que especificaremos, advenientes do referido Proc.240/2001.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º, nº 3, e 685º-A, do CPC).

Nesta conformidade as questões a decidir são as seguintes.

- Existência de caso julgado.

- Inconstitucionalidade do caso julgado em acção de investigação de paternidade.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“O artigo 494º i) do CPC eleva à categoria de excepção dilatória o caso julgado. Esta excepção, cuja matriz acolhe ideia de proibição de repetição, possui uma dupla vertente, verificando-se sempre que já tenha sido proferida decisão de mérito num processo anterior (caso julgado material) e ainda quando tenha sido proferida decisão sobre questões de cariz processual (caso julgado formal).

A excepção do caso julgado visa evitar que um determinado tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão judicial pregressa, com claros prejuízos para a segurança e certeza jurídicas e ainda, … para o prestígio da administração da justiça.

(…)

Tal-qualmente flui do artigo 498º n.º1 do CPC, repete-se a causa quando se propõe acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

Nos termos dos n.ºs 2, 3 e 4 do citado preceito haverá identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, haverá identidade de pedidos quando nos mesmos se pretenda obter o mesmo efeito jurídico e, por último, a identidade da causa de pedir sucederá quando as pretensões deduzidas procedem do mesmo facto jurídico.

Estaremos perante um caso passível de ser subsumido ao disposto no artigo 498º do CPC? Existirá, in casu, uma tríplice identidade de pedidos, sujeitos e causa de pedir?

Compulsado o articulado inicial e a certidão relativa ao processo 240/2001, concluímos que estão em causa duas acções sobre o estado das pessoas: uma acção de investigação da paternidade e uma acção de impugnação da paternidade …

…a acção de impugnação de paternidade …devendo o Autor, nos termos do artigo 1839º n.º 2 do CC, fazer prova de que tal paternidade é manifestamente improvável.

Por seu turno, na acção de investigação da paternidade, prevista no artigo 1869º do CC, cujas raízes remontam ao direito romano, o investigante “precisa de convencer o tribunal de que o réu é o progenitor do filho”, provando o vínculo biológico ou beneficiando de uma presunção - Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira 4 Ob. Cit., página 216.

Ora, como facilmente se depreende da análise das duas acções, o objecto é idêntico, apesar de ser apresentado de maneiras distintas. Com efeito, independentemente das veredas processuais inerentes a cada uma das acções, o que verdadeiramente está em causa é saber se o ora Réu é, ou não, o progenitor do ora Autor.

No que directamente tange à tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causa de pedir, entendemos que a mesma se encontra verificada.

A identidade das partes é notória, estando tanto o Autor como o Réu abrangidos pelo caso julgado da decisão anterior.

Saliente-se que a diversidade da posição processual em nada obsta a esta conclusão, ou seja, o facto de o ora Réu ter sido Autor na acção anterior, e vice-versa, em nada macula a referida identidade.

Por sua vez, a causa de pedir prende-se, em ambas as acções, com a existência, ou a inexistência, de filiação biológica, alegando-se factos para negá-la na acção de impugnação e para afirmá-la na acção de investigação da paternidade.

Por último, quanto à identidade de pedidos, cumpre referir, na esteira de Lebre de Freitas 5 Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 2ª edição, Coimbra Editora, página 349, que se deverá atender “ao objecto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem (…)”, sendo “inadmissível a formulação, em nova acção, dum pedido inverso ao da primeira” 6 Ob. Cit., página 349.

No caso em análise é precisamente isso que sucede, uma vez que o Autor pretende agora que o tribunal declare que o Réu é seu pai, quando na acção anterior o tribunal declarou (passamos a citar) que “o menor AM (…) não é filho do Autor”.

Consideramos, por isso, que estamos igualmente perante uma identidade de pedidos.

(…)

Considerando este acervo de motivos, entendemos que assiste razão ao Réu e que se verifica nos presentes autos a excepção dilatória de caso julgado material (artigo 494º i) do CPC)…”- fim de transcrição.

2.1. Tal como referido na sentença recorrida, decorre do art. 498º, nº 1, do CPC, que existe repetição da causa quando se propõe acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

Concretizando tal preceito, estabelece-se, nos termos dos nºs 2, 3 e 4, do mesmo preceito que haverá identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; haverá identidade de pedidos quando nos mesmos se pretenda obter o mesmo efeito jurídico; e haverá identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, sendo este nas acções constitutivas o facto concreto que se invoca para obter o efeito pretendido (consagração legal da chamada teoria da substanciação).

O apelante questiona no presente recurso apenas os 1º e 3º requisitos.

Quanto ao primeiro não há dúvida que existe identidade de sujeitos. Embora em posições processuais diferentes, o ora A. e o ora R. são os mesmos do ponto de vista jurídico.

Na verdade, naquele Proc.240/2001, de impugnação de paternidade foi A. o ora R., enquanto foram aí RR o ora A. e sua mãe (neste referido processo a mãe do ora apelante apresentou contestação - vide cópia da certidão junta aos autos, referente a tal processo, a fls. 57/58).

Alega o ora apelante que naquela acção ninguém apresentou defesa em seu nome, pelo que não foi parte na dita acção. É, salvo o devido respeito, absurdo tal entendimento.

Se o ora apelante foi R. na dita acção é óbvio que foi parte em tal processo. O facto de ter havido inacção do curador especial, que foi nomeado ao ora apelante em virtude da sua menoridade, por não ter apresentado contestação nesse Proc.240/2001, nem do Mº Pº, em representação do menor, que igualmente não apresentou contestação, só significa que quer o curador quer o Mº Pº, podendo reagir processualmente, apresentando defesa, não o fizeram, mas tal abstenção não tirou, obviamente, ao aí R./ora apelante a condição de parte em tal processo.   

Quanto ao terceiro requisito também se verifica identidade de causa de pedir.

Na verdade em ambas as acções as pretensões procedem do mesmo facto jurídico: concepção e nascimento do A. das relações sexuais entre o R. e a mãe do A.

De facto, na acção de investigação de paternidade, nos termos dos arts. 1869º e 1871º do CC, a causa de pedir é o facto natural da filiação e os factos dos quais ela se presume, aí especificados, considerando-se ilidida a presunção quando haja dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado (vide neste sentido A. Castro, D. Proc. Civil, Vol. III, pág. 394, e Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, D. Família, Vol. II, T. I, pág. 216). Enquanto na acção de impugnação de paternidade, nos termos do art. 1839º, nº 2, do CC, o objecto do processo é a manifesta improbabilidade da paternidade do marido da mãe (mesmos autores e ob. cit., pág. 133).  

No nosso caso, e debruçando-nos mais de perto sobre ele, vemos que o A. alegou na p.i., que era filho do ora R. baseando-se nas presunções estabelecidas no mencionado art. 1871º, nº 1, c), 1ª parte, e e), ou seja, existência de relações de comunhão duradoura de vida e/ou sexuais no período legal de concepção - primeiros cento e vinte dias, dos trezentos que precederam o nascimento do A.

A isso objectou o R./apelado, na contestação, que existiam dúvidas sérias, sobre a sua paternidade, pretendendo ilidir tais presunções, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, porquanto no indicado período legal de concepção a mãe do A. havia mantido relações sexuais com outros homens, antes de o conhecer a si, descrevendo em concreto as situações e nomeando os homens com os quais teria tido tal relacionamento, acrescentando outros factos instrumentais adjuvantes (vide arts. 22º a 28º de tal articulado). Ora, esta alegação foi justamente a que foi produzida na p.i. da acção de impugnação de paternidade (vide arts. 13º a 18º, e 24º a 26º de tal articulado, cuja cópia se encontra a fls. 47/53 dos autos). E foi com base na prova de que a mãe do A. foi vista, no período legal de concepção, acompanhada de outros homens, quer em lugares públicos, quer no interior de viaturas automóveis, que ambos, ora R. e mãe do A. só se conheceram 2 meses antes do casamento, ocorrido este quase no final do período legal de concepção, e que o A. não era considerado pelos familiares e amigos do R. como seu filho, que levou o tribunal no apontado processo - além da falta de colaboração da mãe do A. para efectivação de exames hematológicos, que levou o julgador a inverter o ónus da prova – a considerar que era manifestamente improvável que o R./apelado fosse o pai do ora recorrente.     

Isto é, face à referida factualidade em apreço nas duas acções, semelhante, estava em questão saber se o R. e a mãe do A. tinham tido relações sexuais exclusivas no período legal de concepção, tendo o R./apelado suscitado fortes dúvidas nesse sentido (no Proc.240/2001 à sombra do art. 1839º, nº 2, do CC, e na presente acção à sombra do art. 1871º, nº 2, do mesmo diploma) tendo o mesmo R./apelado recebido do julgador o juízo positivo de que tais dúvidas eram fortes, juízo que se revela mais sólido naquele tipo de acção, pois aí exigia-se que a possibilidade do A. ser pai era manifestamente improvável enquanto na presente acção bastaria um juízo de dúvidas sérias.   

Por conseguinte, tendo sido decidido, no mencionado Proc.240/2001, que o ora A. não é filho do ora R., como decorre expressamente do segmento decisório da sentença aí proferida (vide cópia de tal sentença a fls. 13/18 e 67/72 dos presentes autos), resulta evidente a excepção de caso julgado.

Não procedem, assim, as conclusões de recurso, 1ª a 9ª, 11ª a 13ª, 15ª e 16ª.

2.2. Alega o recorrente que o R. e o A. sempre se trataram como pai e filho, o mesmo tendo feito sempre a família do R.

Arrima-se o recorrente a uma situação factual que poderia importar o preenchimento da presunção legal de paternidade estabelecida no dito art. 1871º, nº 1, a), do CC. Todavia tal alegação não foi produzida na p.i., tratando-se de matéria nova, pela 1ª vez invocada em recurso.

Como é sabido, é Jurisprudência pacífica e Doutrina corrente, que os recursos são entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la, como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último. Aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la, modificá-la ou confirmá-la, salvo, como é óbvio questões de conhecimento oficioso. É que os recursos não se destinam a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório, questões que não foram discutidas entre as partes nos momentos próprios e decididas pelo tribunal recorrido (vide Prof. Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. 1, 2ª Ed., pág. 7/8, A. Abrantes Geraldes, Recursos em Proc. Civil, 2ª Ed., págs. 25/26 e 94/95, e por ex. Acds. do STJ de 29.4.98, BMJ 476, pág.401, de 26.10.99, BMJ 490, pág. 250, de 10.5.00, BMJ 497, pág. 343 e de 1.10.02, C.J., T. 3, pág. 65).

São, pois, infundadas as conclusões de recurso, 14ª, 31ª a 33ª. 

3. Relativamente à consideração que a imposição do caso julgado, previsto no art. 494º i) do CPC, nas acções de investigação não oficiosa de paternidade, revela interpretação inconstitucional, por violação do art. 26º, nº 1, da Const. da República Portuguesa, não subscrevemos tal entendimento do recorrente.

No Ac. do T. Constitucional 108/2012, em DR, 2ª Série, de 11.4.2012, que se passa a transcrever na parte relevante, disse-se que:

“5. Diversamente do que sucede em outros ordenamentos jurídicos, que, ou remetem para a lei a fixação final dos efeitos das declarações de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Tribunal Constitucional (artigo 94.º da Constituição alemã e artigo 164.º da Constituição espanhola), ou conferem a essas decisões apenas eficácia ex nunc (artigo 136.º da Constituição italiana), a Constituição portuguesa é explícita quanto ao grau com que censura o direito ordinário que contrarie, para usar as palavras do seu artigo 277.º, as “normas” e “princípios” que nela se contêm. De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 282.º da CRP, será inválido o direito comum que for julgado inconstitucional através de declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, de tal modo que essas declarações produzirão efeitos “desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional”. O grau de censura que o legislador constituinte português reservou para o fenómeno da inconstitucionalidade é um grau intenso; (…) Contudo, e como que quer que seja que se configure a sua explicação, a verdade é que ela denota uma especial intenção do legislador constituinte em garantir a força normativa da constituição, através da fixação, ao nível mais alto da hierarquia das normas, de instrumentos destinados a expurgar do ordenamento jurídico atos [normativos] inconstitucionais.

Esta intenção, que o artigo 282.º corporiza, traduz-se numa regra (a da eficácia ex tunc das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral) que conhece apenas duas exceções. (…) Outra é a que consta da primeira parte do nº 3 do mesmo artigo 282.º. As decisões do Tribunal a que se refere o preceito produzem efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, ficando no entanto ressalvados os casos julgados.

6. A razão que justifica esta segunda exceção encontra-se no princípio da segurança jurídica, que decorre do princípio mais vasto de Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da CRP.

O Estado de direito é, também, um Estado de segurança. Por isso, dificilmente se conceberia o ordenamento de um Estado como este que não garantisse a estabilidade das decisões dos seus tribunais. Ao contrário da função legislativa, que, pela sua própria natureza, tem como característica essencial a autorrevisibilidade dos seus atos (nos limites da Constituição), a função jurisdicional, que o artigo 202.º da CRP define como sendo aquela que se destina a “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”, a “reprimir a violação da legalidade democrática” e a “dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”, não pode deixar de ter como principal característica a tendencial estabilidade das suas decisões, esteio da paz jurídica. Por esse motivo, o artigo 282.º ressalvou, como derrogação à regra da eficácia ex tunc das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a intangibilidade do caso julgado, opondo assim ao valor negativo da inconstitucionalidade o valor positivo da questão já decidida pelo tribunal.

Ao estabelecer esta oposição, fazendo nela prevalecer a força vinculativa do caso julgado, o legislador constituinte revelou a forma como procedeu à ponderação de dois bens ou valores: entre a garantia da normatividade da constituição, e a consequente forte censura dos atos inconstitucionais, e a garantia da estabilidade das decisões judiciais, especialmente exigida pelo Estado de direito, a constituição optou em princípio pela segunda, salvos os casos, impostos pelo princípio do favor rei, previstos na segunda parte do nº 3 do artigo 282.º

A uma ponderação de bens feita pelo próprio legislador constituinte, e em cujo resultado se inscreve a prevalência nítida de um dos bens ou valores em conflito, não pode o intérprete contrapor a sua própria ponderação.

No caso, invoca o recorrente o maior peso que certos direitos fundamentais (como aqueles que, constantes do nº 1 do artigo 26.º da CRP, são atuados através das ações de investigação da paternidade) terão sobre o princípio da força vinculativa do caso julgado, partindo da ideia segundo a qual este segundo princípio deve ceder perante o imperativo de garantia da Constituição. É por isso que sustenta que, uma vez declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do Código Civil que previa um prazo de dois anos para a interposição das ações de investigação da paternidade, terá o autor de ação interposta em momento anterior ao da declaração de inconstitucionalidade o direito a interpor nova ação, direito esse conferido por uma leitura restritiva da norma de direito processual civil que define o âmbito e o alcance da exceção dilatória do caso julgado. Engana-se, porém, ao defender que tal interpretação restritiva é imposta pela Constituição. Não o é. A ponderação, feita pelo próprio legislador constituinte no nº 3 do artigo 282.º da CRP, entre censura da inconstitucionalidade por um lado e proteção do caso julgado por outro – com prevalência deste último sobre o primeiro –, ao ser reveladora do peso que detém, no sistema constitucional, o princípio da segurança jurídica, é também reveladora da opção de princípio que, neste domínio, o legislador constituinte tomou: a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de qualquer norma de direito ordinário (e quaisquer que sejam os valores constitucionais que esta última tenha ofendido), se, por regra, apaga os efeitos que a norma ilícita produziu, não apaga as situações em que tal norma tenha sido aplicada em casos definitivamente decididos pelos tribunais.

Sendo esta a opção de princípio que o legislador constituinte tomou, claro se torna que não resulta da Constituição o dever de interpretar restritivamente as normas do Código de Processo Civil que definem o âmbito e o alcance da exceção dilatória do caso julgado. Não há, face à Constituição, o dever de interpretar essas normas de forma a excluir do seu âmbito de aplicação as ações não oficiosas de investigação da paternidade, pese embora a especial repercussão jusfundamental que detém o regime comum dessas ações.

7. Esta conclusão não exclui que o legislador ordinário possa, em situações justificadas, permitir que se reabram casos jurisdicionalmente já definidos. É o que acontece nas hipóteses expressamente previstas pelos artigos 1813.º e 1868.º do Código Civil, relativas às ações oficiosas de investigação da paternidade e da maternidade, onde se estipula que a improcedência da ação [oficiosa] “não obsta a que seja intentada nova ação de investigação (…), ainda que fundada nos mesmos factos”.

Nas suas alegações, a recorrente invoca estas previsões normativas (às quais faz acrescer uma outra, inserta no regime tutelar de menores) a um duplo título: primeiro, enquanto lugar paralelo da solução que, no seu entender, deveria ser aplicada, também, às ações não oficiosas de investigação da paternidade; segundo, enquanto argumento para sustentar a inconstitucionalidade da não aplicação do mesmo regime às ações não oficiosas, por violação do princípio da igualdade. A nenhum destes títulos tem a recorrente razão.

Antes do mais, e quanto ao primeiro, haverá sempre que distinguir entre inconstitucionalidade e conceções do bom direito. Ainda que se entenda, como o parece fazer a recorrente, que, “de jure condendo”, deveria ser estendido o regime previsto nos artigos 1813.º e 1868.º do Código Civil para as ações oficiosas de investigação da maternidade e da paternidade às ações não oficiosas, de tal não decorre que seja inconstitucional a leitura feita pela decisão recorrida, segundo a qual se não verifica, face ao teor literal das normas pertinentes, a referida extensão. É que uma coisa é a conceção que se possa ter quanto à mais acertada solução legislativa a adotar sobre determinada matéria; e outra, bem diversa, o juízo de inconstitucionalidade que sobre essa solução legislativa eventualmente recaia. Como é evidente, ao Tribunal cabe apenas formular este último. E é esse juízo de inconstitucionalidade, o único que ao Tribunal cabe, que, pelas razões já expostas, se não apresenta, no caso, fundamentado.

Por outro lado, não colhe a invocação, feita pela recorrente, de que, a ser assim, haveria violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, por ser diverso o regime previsto para as ações oficiosas e não oficiosas [de investigação da paternidade e da maternidade]. Como o Tribunal sempre tem dito em jurisprudência constante, sintetizada no Acórdão nº 232/2003, à luz do princípio geral da igualdade, constante do nº 1 do artigo 13.º da CRP, só são censuráveis as diferenças de regimes estabelecidas pelo legislador ordinário que não apresentem, para a medida da diferença, uma justificação razoável e intersubjectivamente percetível. Ora, como a própria recorrente reconhece nas suas alegações, existe uma justificação inteligível para que o regime do artigo 1813.º do Código Civil valha apenas para as ações oficiosas de investigação da paternidade: “ [a]s menores garantias de apuramento da verdade que oferece a ação instaurada pelo Ministério Público (entidade oficial representada por agentes que nem sempre conhecem suficientemente a teia de relações existentes no meio social e familiar em que o nascimento ocorreu e a ação se desenrola) em face da ação proposta pelas pessoas que normalmente gozam da legitimidade para propô-la ou prosseguir com ela …). [Apud ponto I das alegações]. Pode discordar-se da valoração que e legislador fez deste fundamento, ao erguê-lo em medida da diferença entre o regime das ações oficiosas e não oficiosas; mas o que se não pode, como já vimos, é confundir a opinião de discordância com o juízo de inconstitucionalidade” (os sublinhados são nossos).

Consequentemente, concluiu o referido Acórdão por “Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea i) do nº 1 do artigo 494.º do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido segundo o qual a exceção dilatória do caso julgado abrange, também, as ações não oficiosas de investigação da paternidade”.  

Acompanhamos de pleno o que foi expendido em tal aresto, não se vendo fundamento para a pretendida inconstitucionalidade defendida pelo recorrente.

Não procedem, por isso, as conclusões de recurso, 10ª, 17ª a 30ª. 

4. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):

i) Pode verificar-se a excepção de caso julgado, na sua tríplice pressuposição legal, identidade de sujeitos, identidade de pedidos e identidade de causa de pedir, entre uma acção de impugnação de paternidade e uma outra de investigação de paternidade, se naquela o A. obtém sentença, transitada, que declara que o demandado, pessoa registada como seu filho, não é seu filho, e este último pretende, depois, propor acção para ver reconhecida judicialmente a paternidade daquele;

ii) Há identidade de sujeitos, apesar da diversidade de posição processual, se na acção de impugnação de paternidade o presumido pai é A. sendo R. a pessoa registada como seu filho, e depois este último demanda aquele na acção de investigação de paternidade, sendo irrelevante que este como réu não tivesse apresentado contestação naquela acção de impugnação de paternidade;

iii) Há identidade de pedidos, pois na acção de impugnação de paternidade o A. pretendia e obteve sentença que declarou que o demandado não era seu filho, querendo agora este que se declare na acção de investigação de paternidade que aquele afinal é seu pai;

iv) Há identidade de causas de pedir, pois na acção de impugnação de paternidade o A. invocou que é manifestamente improvável que o demandado seja seu filho, por a mãe ter tido, no período legal de concepção, relações sexuais com outros homens, juízo legal - do art. 1839º, nº 2, do CC - que a sentença acolheu, invocando agora este último que, no período legal de concepção, aquele e sua mãe tiveram relações sexuais e de comunhão duradoura de vida - factos integradores das presunções estatuídas no art. 1871º, nº 1, c), 1ª parte, e e), do CC) -, defendendo-se o pretenso pai com o juízo legal – do art. 1871º, nº 2, do CC - da existência de sérias dúvidas sobre tal paternidade, com base na mesma factualidade que serviu para julgar procedente aquela acção de impugnação de paternidade;

v) Não é inconstitucional a norma constante da i), do art. 494º, do CPC, quando interpretada no sentido segundo o qual a excepção dilatória do caso julgado abrange, também, as acções não oficiosas de investigação da paternidade.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas pelo recorrente.

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Moreira do Carmo ( Relator )

Alberto Ruço

Fernando Monteiro