Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2684/09.5YYPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: CESSÃO FINANCEIRA
FACTORING
LIVRANÇA
DEFESA
EXECUTADO
Data do Acordão: 12/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 577º E 587º DO C. CIV.; 46º, AL. C) DO CPC.
Sumário: I – Numa livrança dada à execução (título executivo – artº 46º, al. c) do CPC) e encontrando-se no domínio das relações imediatas podem os avalistas executados apor ao exequente o incumprimento do acordo de preenchimento que tenham subscrito.

II – O “factoring” é um negócio jurídico que, estruturalmente, se baseia na cessão de créditos (artº 577º e segs. do CCiv.), pressupondo uma actividade continuada de transmissão de créditos.

III – Mediante o contrato de factoring permite-se que o titular de créditos, designado aderente ou cliente, transfira todos ou alguns créditos provenientes da sua actividade para o factor /cessionário financeiro).

IV – A transmissão cinge-se a “créditos de curto prazo”, derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços, recorrendo-se a este contrato atípico com vista a resolver problemas de gestão financeira de empresas, tais como financiamentos, antecipações de capital.

V – Feita a transferência dos créditos, o factor passa a ser o credor (assumindo o risco de incumprimento por parte dos devedores cedidos) e pode exigir o respectivo pagamento aos devedores que eram do aderente – “factoring pró soluto”.

VI – Porém, é admissível que se acorde um factoring pro solvendo (factoring com recurso), em que o factor não corre tal risco, pois o cedente garante a solvência dos devedores cujos créditos foram cedidos.

Decisão Texto Integral: I- RELATÓRIO

I.1- Por apenso à execução comum contra si instaurada, em que é exequente, «B..., Instituição Financeira de Crédito, S.A.»,  e executados, A... e M..., veio este executado deduzir em 13.1.10 oposição, alegando, em resumo, que a exequente deu à execução uma livrança em que foram avalistas os executados e que serviu de garantia ao bom cumprimento do contrato de factoring que a exequnete celebrou com a sociedade, «Transportes C..., Ldª», sem dizer sobre a forma como surgiu a dívida que titula, já que, se os clientes da sociedade não pagassem os créditos que a exequente adquiriu, era a eles que ela deveria accionar e não à sociedade e/ou seus avalistas.

Não houve contestação.

Em saneador-sentença datado de 14.4.2011, julgou-se a oposição totalmente improcedente.

I.2- Apelou o executada/oponente, concluindo assim, em síntese nossa, as alegações de recurso:

[…]

I.3- Não foram apresentadas contra-alegações.

Nada havendo a obstar ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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II - FUNDAMENTOS

II.1 - de facto

Foram estes os factos dados como provados:

            1. A exequente celebrou com a sociedade «Transportes C..., Ldª» um contrato de factoring, nos termos do qual:

“Para permitir ao aderente realizar, nas melhores condições, o produto das suas vendas firmes e de prestações efectivas de serviços, com maior eficiência adminstrativa e financeira, relativamente à cobrança dos seus créditos, a factor compromete-se a:

a) Adquirir créditos do aderente sobre os seus devedores até aos montantes a todo o tempo acordados;

b) Efectuar adiantamentos ao aderente sobre os créditos por este cedidos;

Assumir a responsabilidade da cobrança dos referidos créditos, podendo renunciar a exigi-los do aderente no caso de ser declarada a falência dos devedores, nos termos fixados no art.14º (…) (art.1º).

“Os créditos com recurso que não sejam pagos pelos devedores serão devolvidos ao aderente decorrido o prazo estabelecido no art.18 (art.12º, nº5).

2. «Transportes C..., Ldª» e os executados, estes como avalistas, subscreveram o documento de fls.39, nos termos do qual “A B... fica desde já autorizada a preencher a referida livrança pelo saldo em dívida de capital, juros e demais encargos e despesas, até ao limite total de 600.000 euros, fixando-lhe o vencimento e montante, caso o contrato não seja pontualmente cumprido em todas as suas cláusulas, fazendo deste título o uso que melhor entender.”

3. A exequente é portadora de uma livrança subscrita por «Transportes C..., Ldª», avalizada pelos executados, emitida no dia 12.2.2009, vencida no dia 27.2.2009, no montante de 101.173,65 €.

4. Apresentada a pagamento na data do vencimento a quantia nela aposta não foi paga.

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            II.2 - de direito

            É questão decidenda saber se os elementos fornecidos pelo processo justificavam a antecipação do conhecimento imediato do mérito.

            A 1ª instância decidiu julgar improcedente a oposição, por entender que no contrato de factoring junto a fls.44-52 as partes acordaram também na modalidade de factoring pro solvendo, ou seja, créditos adquiridos com recurso em que o cedente (a sociedade transportadora) garantia a solvência dos devedores, o que justificou a subscrição da livrança associada a um pacto de preenchimento, e que o executado não alegou, como lhe cabia, que os créditos cedidos à exequente e que deram lugar ao preenchimento da livrança tivessem sido adquiridos sem recurso.  

            O executado/recorrente insurge-se contra este entendimento, argumentando que só em julgamento poderão as partes esclarecer acerca dos contornos que assumiu a livrança abusivamente preenchida e a origem da pretensa dívida nela titulada, pelo que a decisão foi precipitada.

            Assiste-lhe razão.

            Vejamos.

            De harmonia com o disposto no art.45º/1, C.P.C., toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

No caso em exame, serve de fundamento à execução a livrança cujo original está junto a fls.40. Trata-se de um documento particular com exequibilidade atribuída pela al.c) do art.46º/C.P.C., constando no verso a frase “por aval ao subscritor”, escrita duas vezes e por baixo de cada uma das frases, uma assinatura.

É verdade e não se questiona, que a livrança dada à execução se encontra no domínio das relações imediatas, ou seja, não está na posse de alguém estranho ás relações cartulares, e como tal, podem os avalistas executados apôr à exequente o incumprimento do acordo de preenchimento que tenham subscrito.

Tal como consta da missiva datada de 31.5.07 enviada pela sociedade «Transportes C..., Ldª» à «B...» (fls.39) que acompanhou a dita livrança, com valor e data de vencimento em branco e avalizada pelos executados, a mesma “cauciona o contrato de factoring nº (…) celebrado em 1.6.07 (…) e que dele fica a constituir parte integrante. (…) A «B...» fica desde já autorizada a preencher  a referida livrança pelo saldo em dívida do capital, juros, demais encargos e despesas … caso o contrato não seja pontualmente cumprido em todas as suas cláusulas…”.

Tanto quanto julgamos perceber, na sentença seguiu-se o entendimento de que a livrança servia  para cobrir o risco da solvência dos créditos com recurso, e que cabia ao executado alegar que afinal os créditos que deram lugar ao preenchimento da livrança foram adquiridos sem recurso.

Analisemos, em síntese, os contornos desta figura contratual, conhecida por cessão financeira ou factoring, seguindo a referência sumária feita por Pedro Romano Martinez na sua obra, «Contratos em especial», 2ª ed., pág.330-335.

O factoring é um negócio jurídico que, estruturalmente, se baseia na cessão de créditos (art.577º e segs. C.C.). Diferentemente desta, prevista para situações isoladas, o factoring pressupõe uma actividade continuada de transmissão de créditos. Mediante o contrato de factoring, permite-se que o titular de créditos, designado aderente ou cliente, transfira todos ou alguns créditos provenientes da sua actividade para o factor (cessionário financeiro).

A transmissão cinge-se a “créditos de curto prazo”, derivados da venda de produtos ou da prestação de serviços, recorrendo-se a este contrato atípico com vista a resolver problemas de gestão financeira de empresas, tais como financiamentos, antecipações de capital. Assim, o cedente recebe o montante (parcial) dos créditos antecipadamente à data dos respectivos vencimentos, financiando-se e reduzindo despesas de gestão e cobrança de tais créditos, e por seu turno, o factor, normalmente uma empresa especializada em gestão e cobrança de créditos, adquiri-os, administra-os e cobra-os, instituindo-se uma espécie de conta corrente entre as partes, sendo remunerado pelo aderente.

Feita a transferência dos créditos, o factor passa a ser o credor e pode exigir o respectivo pagamento aos devedores que eram do aderente; passam a ser devedores do factor.

            Por via de regra, o factor assume o risco de incumprimento por parte dos devedores cedidos. Esta é a modalidade de factoring pro soluto (factoring sem recurso), que corresponde à cessão de créditos comuns, prevista no art.587º/C.C.. Admite-se, porém, que se acorde um factoring pro solvendo (factoring com recurso), em que o factor não corre tasl risco, pois o cedente garante a solvência dos devedores cujos créditos foram cedidos.

            O factoring pro solvendo constitui uma situação excepcional, e na hipótese em análise as partes previram-no, como resulta dos arts.7º/2 e 12º/5 do contrato ajuizado. Neste, numa primeira leitura, detecta-se que o factor - a exequente - se compremeteu a adquirir créditos do aderente «Transportes C..., Ldª» sobre os seus devedores, assumindo o risco do incumprimento por parte destes, ou seja, créditos sem recurso (pro soluto). Foram estes, essencialmente, os créditos que o factor aceitou que lhe fossem transferidos.  

            Como antes dito, a livrança accionada caucionava o contrato de factoring, garantindo o seu integral cumprimento.   

            No entanto, e ao contrário do que se considerou na sentença, não se poderá desde já ter como assente, que a exequente ao accionar a livrança pretendeu cobrar-se dos créditos não pagos que lhe foram cedidos com a garantia da solvência dos devedores. Portanto créditos com recurso. Foi por isso que na oposição, visando demonstrar que a livrança foi indevidamente preenchida, o executado avalista veio dizer que os créditos cedidos eram sem recurso (ainda que não use esta terminologia), e nestas condições, assumindo a exequente o risco do incumprimento, cabia-lhe proceder á sua cobrança pois é essa sua função.

Conforme atrás referido, a livrança em causa encontra-se no âmbito das relações imediatas, porque entre o portador e as pessoas accionadas não se interpuseram outros obrigados. Sendo a exequente portadora legítima da mesma, não tinha o dever de alegar a origem da dívida, uma vez que baseia a sua pretensão, não na relação subjacente à subscrição da livrança, mas sim no direito cartular, bastando aqui a subscrição do título pelo executado.

No entanto, no requerimento executivo (cuja cópia solicitámos ao tribunal recorrido já que não acompanhava estes autos como se impunha) alega a sociedade exequente ter adquirido, no ãmbito do ajuizado contrato de factoring, créditos no montante de 101.173,65 € titulados por várias facturas, que não foram pagas no vencimento, nem posteriormente. Mais alega ser portadora duma livrança naquele montante, avalizada pelos executados, e que constitui título executivo.

Neste caso, pode o accionado, por virtude da livrança, opor excepções que visem invalidar a obrigação causal, e bem assim os vícios que invalidem as características específicas da literalidade e da autonomia do título cambiário, ou ainda o preenchimento abusivo, invocando ter havido abuso na execução do acordo de preenchimento, cabendo-lhe o ónus da prova.

Na presente oposição o executado tomou posição sobre o preenchimento abusivo, ao questionar a origem da dívida titulada pelas facturas que no entender da exequente justificaram o accionamento da livrança.

Impõe-se, portanto, apurar se na base do título cambiário estão créditos com recurso.

Daqui decorre que a antecipação do conhecimento imediato do mérito no saneador foi prematura.

Consequentemente, sendo controvertida a matéria de facto, deve a oposição prosseguir com a selecção dos factos, instrução e julgamento.

O apelante tem, pois, razão em boa parte do concluído. Mas já não tem razão quando assaca à sentença o vício (formal) da nulidade contemplado no art.668º/-c), C.P.C., que reside na oposição entre a decisão e os fundamentos em que ela assenta – a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto. Ora, na sentença em recurso pode ter existido uma errada interpretação jurídica dos factos apurados, situação que se configura como erro de julgamento. Não de nulidade.   

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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se, na procedência da apelação, em revogar o saneador-sentença recorrido, para que o processo prossiga os seus ulteriores termos.

Custas pela apelada.

Notifique.


Regina Rosa (Relatora)
Artur Dias
Jaime Carlos Ferreira