Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HENRIQUE ANTUNES | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO RESPONSABILIDADE OBJECTIVA CAUSALIDADE PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 05/29/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE ALMEIDA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 483º, Nº 2, 503º E 505º DO CÓDIGO CIVIL. | ||
Sumário: | I - Na responsabilidade civil objectiva por danos causados por veículos de circulação terrestre, a imputação objectiva – a causalidade – não obedece ao princípio da adequação, antes é dada pelos riscos próprios do veículo. II - Todavia, mesmo à luz da teoria da adequação, a imputação objectiva do resultado à conduta deve ocorrer quando esta tenha criado – ou aumentado ou incrementado – um risco proibido para o bem jurídico e esse risco se tenha materializado no dano. III - O critério de repartição da responsabilidade, assente nos riscos próprios dos veículos, disposto na lei para o caso de colisão de veículos, é aplicável, por interpretação extensiva, aos danos causados a terceiros pelos veículos que, não tendo embora resultado da sua colisão, tenham por etiologia concorrente aqueles riscos. IV - Os riscos próprios de cada um dos veículos devem ser mensurados, não em abstracto, mas em concreto, tendo em conta as condições que, no caso, se produziram os danos. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
1. Relatório. Seguros A…, SA, interpôs recurso ordinário de apelação da sentença da Sra. Juíza de Direito de Circulo de Almeida que, julgando parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum sumário pelo valor que contra ela e P… Portugal, foi proposta por S…, condenou a primeira e a segunda a pagar à última, solidariamente, e em partes iguais, as quantias de € 10.000 (dez mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia actualizada à presente data, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde a presente decisão e até integral pagamento, de € 10.000 (dez mil euros) a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, quantia actualizada à presente data, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor desde a presente decisão e até integral pagamento, e a título de indemnização pelos demais danos patrimoniais já verificados, o montante de € 8.680 (oito mil seiscentos e oitenta euros), acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde a citação e até integral pagamento. A apelante pede que o recurso seja julgado improcedente em conformidade com as respectivas conclusões. E essas conclusões são as seguintes: … Só a co-demandada respondeu ao recurso, tendo concluído pela improcedência dele.
2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso. … 3. Fundamentos. 3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso. Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC). Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). A causa petendi desenhada pela autora na petição inicial é nitidamente subsumível à responsabilidade subjectiva por factos ilícitos, dita também, responsabilidade delitual – descendente directa da lex aquilia - dado que assenta na violação ilícita ou culposa de direitos subjectivos ou de normas destinadas a proteger interesses alheios (artº 483 nº 1 do Código Civil). Todavia, o evento causador do dano ocorreu numa área ou no desenvolvimento de uma actividade em que é admissível um esquema de imputação diferente: a responsabilidade pelo risco, também chamada imputação ou responsabilidade objectiva, em que, por razões político-sociais, o dano se transfere, da esfera de uma pessoa para a de outra, independentemente do carácter ilícito do comportamento desta última (artºs 483 nº 2, 503 e 505 do Código Civil). Num claro fenómeno de identificação estrutural à responsabilidade pelo risco – que se caracteriza pela atribuição do risco pela ocorrência de determinados danos a pessoa diferente daquele que originariamente os suportou – são aplicáveis as disposições relativas à responsabilidade por factos ilícitos (artº 499 do Código Civil). Diz-se, correntemente, que nos acidentes de viação, a causa petendi é o próprio acidente, mais rigorosamente, o conjunto de factos exigidos pela lei para que o dever de indemnizar – e o correspondente direito à indemnização – se tenha por constituído[1]. Neste contexto, se o autor pede a condenação do lesante na reparação do dano num dos domínios em que vigora a responsabilidade objectiva, mesmo que invoque a culpa do demandado, ele quer, ao menos presuntivamente, que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. Maneira que, se numa acção destinada a exigir a indemnização do dano, o lesado alegar a culpa do lesante, num caso em que excepcionalmente seja admissível a imputação pelo risco, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, ao tribunal é lícito averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, a menos que haja qualquer declaração em contrário do lesado, ou do processo resulte inequivocamente que a vítima apenas pretende a reparação do dano, havendo culpa do lesante[2]. Nestas condições, a sentença apelada, ao amparar a pretensão material da autora da responsabilidade objectiva, moveu-se no âmbito da sua competência decisória e, por isso, não incorreu na falta grave do excesso de pronúncia, por utilizar um fundamento que excede os seus poderes de conhecimento. Lê-se, porém, a dado passo da sentença impugnada, que não é admissível a concorrência entre o risco de um e a culpa de outro para responsabilizar os dois, mas antes terá de se excluir o primeiro. A secura desta afirmação da sentença apelada contrasta vivamente com a delicadeza e a complexidade que deve irrecusavelmente assinalar-se ao problema do concurso entre o risco dos veículos de circulação terrestre e, por exemplo, a conduta – não necessariamente culposa – imputável ao lesado, que merece, da doutrina e da jurisprudência, respostas desencontradas. No ponto assinalado, a decisão impugnada parece fazer-se eco daquela que era, até há bem pouco tempo, o entendimento nemine discrepanti da jurisprudência, que, una voce, recusava terminantemente a possibilidade de concorrência do risco do lesante e de culpa do lesado: sempre que o acidente fosse imputável ao próprio lesado – por culpa ou mesmo só por facto deste ainda que não culposo – ficaria excluída a responsabilidade do lesante. Numa palavra: a culpa ou facto do lesado excluiria sempre o risco do lesante (artºs 503 nº 1 e 505 do Código Civil). E doutrina de indiscutível autoridade científica, dava a esta solução uma base dogmática estável, colocando o problema do concurso entre a responsabilidade subjectiva e a objectiva no plano da causalidade: a verificação, no caso concreto, de que o acidente era imputável ao lesado ou a terceiro ou a causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, quebraria o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano, excluindo inexoravelmente a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, dado que o dano deixaria, então, de ser um efeito adequado do risco do veículo. De resto, de harmonia com este ponto de vista, dada a severidade da responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não seria justo nem razoável sobrecarregá-lo ainda com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação[3]. Todavia, a verdade é que ao fazer-se absorver o fundamento objectivo da responsabilidade pela demonstração da autonomia causal de qualquer conduta imputável – atribuível – ao lesado, aquela solução redunda num tratamento mais favorável do detentor do veículo de circulação de terrestre. É exacto que outra doutrina sustentava, veementemente, que para o acidente podiam concorrer, a um tempo, o perigo especial do veículo e o facto de terceiro ou do lesado, caso em que deveria proceder-se à repartição da responsabilidade ou, ao menos, atenuar-se a obrigação de indemnizar fundada no risco[4]. A doutrina dominante[5] era, porém, a de uma interpretação estritamente causalista da norma contida no artº 505 do Código Civil que enfatizava o primado da culpa, não admitindo qualquer solução ponderativa: a concepção, mais preocupada com a função reparadora da responsabilidade civil e com a tutela da vítima e que, em coerência rejeitava a visão absorvente da culpa do lesado, era nitidamente minoritária. Simplesmente, é claro que o entendimento, doutrinaria e jurisprudencialmente dominante, do problema – assente numa solução extremista de tudo ou nada[6] – uniformiza as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação e desvaloriza a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária, conduzindo, por vezes, a resultados chocantes, formalmente exactos mas materialmente inexplicáveis[7]. Sensível ao irrecusável desamparo do lesado que decorre de uma leitura da norma considerada à luz estrita da causalidade – sobretudo nos casos em que o dano é atribuído exclusivamente a uma falta leve do lesado e à conduta inesperada de pessoas desadaptadas ao tráfego[8], em atenção à pouca mobilidade e à dificuldade de percepção da pessoa idosa ou deficiente e à normal imprudência da criança que se atravessa de repente na via ou que corre atrás de uma bola – e impressionada pelo nada indemnizatório como preço de pequenos descuidos, a doutrina mais recente orienta-se para a admissibilidade da concorrência do riso com a culpa do lesado, ou mais exactamente, do concurso do risco com o facto, culposo ou não, da vítima, só excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo quando o acidente seja devido, com ou sem culpa, unicamente ao próprio lesado ou a terceiro[9]. E a jurisprudência não deixou de se mostrar permeável a esta evolução doutrinária. Exemplo acabado disso mesmo é, decerto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2007[10] que – de forma não inteiramente acorde – concluiu que o artº 505 do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso a culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veiculo. Nestas condições, a afirmação apontada da decisão recorrida só é exacta à sombra da jurisprudência e da doutrina, tradicionais: para que também o seja à luz da orientação mais recente, de uma e de outra, é necessário demonstrar que, no caso, o acidente se ficou a dever unicamente a uma culpa negligente do lesado – a autora - ou de terceiro. Na espécie do recurso – de acordo com a matéria de facto disponível a que não é apontado, nesse particular, qualquer error in iudicando – não há a mínima razão para assacar tanto à lesada como a … sequer uma qualquer culpa negligente. Porém, de harmonia com a alegação da apelante, essa culpa negligente, ainda que puramente presumida, é assacável – desde que se corrija o erro de julgamento de que se encontra ferida a decisão da questão de facto - ao condutor do veículo automóvel …, M…. Em todo o caso – alega ainda a recorrente - não se verifica entre o dano reparável e o acto de condução automóvel de …, à luz da teoria da causalidade adequada, qualquer nexo de causalidade. Sustenta, enfim, a recorrente, que há que proceder à repartição do risco criado pelos dois veículos automóveis intervenientes no acidente, risco, que, no seu ver, deve ser distribuído da forma seguinte: 25% para o veículo …; 75% para a viatura …. Maneira que tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações de ambas as partes, as questões concretas controversas que o acórdão deve resolver, são as de saber se: a) O tribunal da audiência incorreu, na decisão da questão de facto, num error in iudicando, tanto por contradição sobre pontos determinados dessa decisão como por erro na aferição ou valoração das provas; b) O facto de que resultou o dano reparável é imputável a uma culpa ainda que presumida do condutor do veículo automóvel …, M…; c) O dano indemnizável é objectivamente imputável à conduta do condutor do motociclo …, P…; d) O risco e, portanto, a contribuição dos veículos … e … para aquele dano, deve ser repartido na proporção de 75% para o primeiro e de 25% para o segundo. A resolução destes problemas vincula, naturalmente, ao exame, leve mas minimamente estruturado, dos pressupostos do dever de indemnizar na responsabilidade delitual e objectiva e, finalmente, dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto. 3.2. Pressupostos do dever de indemnizar na imputação delitual. A imputação delitual, quer dizer, o esquema pela qual é possível assacar a uma pessoa um dano para efeitos de indemnização, reclama uma conduta ilícita e culposa do infractor (artº 483 nºs 1 e 2 do Código Civil). Se o quadro dos elementos em que decompõe a responsabilidade delitual – ilicitude e culpa – é relativamente estável o mesmo não sucede, porém, com o conteúdo específico de cada um desses elementos. A discussão gravita em torno da relação entre a ilicitude e o dolo ou a negligência e, consequentemente, à volta do conteúdo material e da função que deve ser assinalado à culpa. Tradicionalmente, o dolo e a negligência são integrados na culpa. Nesta concepção, para que haja ilicitude, basta que o acto seja causa adequada de um resultado antijurídico; desde que da conduta decorra um resultado contrário ao direito, existe ilicitude; esta reclama apenas o desvalor do resultado, sendo-lhe indiferente as características intrínsecas da conduta. A doutrina mais moderna, sob o signo declarado da teoria finalista da acção, desloca o dolo e a negligência da culpa para a ilicitude, subjectivizando-a. Nesta concepção subjectiva da ilicitude não é, portanto, suficiente que o resultado da conduta seja contrário ao direito; para que haja licitude, a conduta deve ser dolosa ou negligente. Ao lado do desvalor do resultado exige-se o desvalor da própria acção. O que daqui decorre para a caracterização da culpa é meramente consequencial: incluído o dolo e a negligência na ilicitude, não é possível continuar a valorar a culpa pela relação psicológica da conduta com o seu autor: a aferição da culpa passa a depender de critérios estritamente normativos, reconduzindo-se a um juízo de censura ético-jurídica da conduta. A culpa decorre de um juízo de censurabilidade ou de reprovação do comportamento do agente, de um juízo de desvalor assente na constatação de que esse agente, nas circunstâncias específicas em que actuou poderia ter conformado a sua conduta – dolosa ou negligente e, portanto, ilícita - de modo a assegurar o dever cujo cumprimento, nessas mesmas condições, lhe era exigível. Resta dizer que a censurabilidade do comportamento do agente é um juízo feito pelo tribunal sobre a sua atitude ou motivação, tal como pode deduzir-se dos factos provados; na formulação desse juízo de reprovação, o tribunal socorre-se, naturalmente, de regras de experiência e critérios sociais. Na imputação delitual, seja dolosa ou simplesmente negligente, o ónus da prova dos factos que fundamentam o juízo de censura ético-social do agente – e não do juízo de censurabilidade em si mesmo - onera o lesado; o não cumprimento desse ónus de prova comporta uma vantagem relevante para o lesante, uma vez que impõe ao tribunal que decida contra quem aquele ónus onera (artºs 342 nº 1, 346, in fine, e 487 nº 1 do Código Civil e 516 do CPC). A prova dos factos que fundamentam o juízo de reprovação da conduta do lesado, cabe ao lesante, mas este está dispensado de os invocar visto que incumbe ao tribunal conhecer deles oficiosamente (artº 572 do Código Civil). A indagação da culpa do responsável revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Para facilitar o funcionamento da imputação delitual, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.e., o encargo de demonstrar a sua existência. Existindo uma presunção de culpa, é ao autor do dano que fica onerado com encargo de demonstrar que não teve culpa na ocorrência (artº 350 nºs 1 e 2 do Código Civil). Uma presunção de culpa extraordinariamente relevante é, decerto, a que vulnera o condutor por conta de outrem, aplicável nas relações entre ele e o titular do direito à indemnização (artº 503 nº 3, 1ª parte, do Código Civil e Assento do STJ 1/83, DR, I Série, nº 146, de 28 de Junho de 1983[11]). Em face deste Assento levantou-se, porém, a dúvida relativa à extensão da presunção de culpa do condutor por conta de outrem ao caso da colisão de veículos, designadamente quando um dos veículos seja conduzido pelo próprio dono e outro circule por conta de outrem (artº 506 do Código Civil). Apesar de todas as razões que induziram o legislador a sujeitar o condutor por conta de outrem à presunção de culpa nas relações do condutor com os terceiros lesados no acidente, procederem no sentido de o considerarem subordinado à mesma presunção, no caso de a colisão de veículos se dar entre o condutor por conta própria e o condutor por conta de outrem, a verdade é que aquela dúvida só foi esclarecida por outro Assento do STJ: o Assento nº 3/94 – DR I Série-A, nº 66, de 19 de Março de 1994 - de harmonia com o qual, a responsabilidade por culpa presumida do comissário, estabelecida no artº 503 nº 3, 1ª parte, do Código Civil, é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no artº 506 nº 1 do Código Civil. Em todo o caso, trata-se se uma presunção meramente relativa ou iuris tantum: ela limita-se a inverter o ónus da prova e, portanto, pode ser afastada mediante prova em contrário – a prova da não culpa (artº 350 nº 2, 2ª parte, do Código Civil). Ao contrário do direito penal, o direito civil conhece um ilícito geral de negligência (artº 483 nºs 1 e 2 do Código Civil). O que confere especificidade e autonomia ao ilícito negligente é a violação, pelo agente, de um dever objectivo de cuidado a que, no caso, estava juridicamente vinculado. Sempre que se infrinjam regras de cuidado, de prudência, de atenção ou diligência - ocorre um delito negligente. Contudo, a concepção da violação do cuidado objectivamente devido como elemento individualizador do delito negligente é apenas uma proposta de solução possível: o conceito de criação ou de incremente de um perigo não permitido, importado da dogmática penal[12], é também apto a densificar o conteúdo do ilícito negligente. De harmonia com a teoria do risco permitido, a imputação do resultado à conduta do agente só ocorre quando o comportamento tenha criado, ou aumentado ou incrementado um risco proibido, desde que esse risco se tenha materializado no resultado danoso[13]. Sempre que o agente tenha criado um risco não permitido ou aumentado o risco já existente e esse risco conduza à produção do resultado concreto, este deve ser-lhe objectivamente imputado; inversamente, a imputação deve ter-se por excluída, por exemplo, quando a conduta que produziu o evento não tenha ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido. A diferença entre uma e outra proposta de solução é mais aparente do que real, dado que numa perspectiva prático-normativo, os dois conceitos acabam por se equivaler: a determinação do cuidado objectivamente devido corre paralelamente aos limites do risco permitido[14]. Seja como for, há sempre que proceder à concretização das normas de cuidado, à determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto, i.e., dos deveres que devem ser observados pelo agente para que se possa excluir a imputação por negligência. A imputação negligente não se basta com a inobservância do cuidado geral com que toda a pessoa se deve comportar na interacção social; a sua comprovação exige, antes, a violação de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respectivo, ou, dito doutro modo: na aferição do preenchimento do ilícito negligente, assume importância nuclear a determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto. Como é natural, o mais importante elemento concretizador do cuidado objectivamente devido no caso concreto é o que resulta normas jurídicas de comportamento, contidas em leis ou regulamentos, como por exemplo, o Código da Estrada (CE). A violação dessas normas constituirá indício claro de uma contrariedade ao cuidado objectivamente devido[15]. É o que decerto ocorre, por exemplo, com a norma jurídica de comportamento contida, por exemplo, no 24 nº 1 do Código da Estrada que impõe a regulação, em cada momento, da velocidade instantânea de harmonia com as condições concretas de circulação, de modo a tornar possível a execução segura de qualquer manobra previsivelmente necessária, e, em espacial a imobilização, no espaço livre e visível à sua frente. Note-se, porém, que se o desacatamento de normas dessa natureza constitui um indício da infracção do cuidado objectivamente exigível, poderá não ser suficiente para fundamentar de forma definitiva essa violação: que o que é perigoso em abstracto pode deixar de o ser no caso concreto, é coisa que se compreende por si[16]. É o que ocorre também, por exemplo, no caso de condução sob a influência do álcool (artº 31 nº 1 a) do CE). A lei proíbe, justificadamente, a condução sob o efeito do álcool, considerando sob a influência do álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue superior a 0,5 g/l (artº 81 nºs 1 e 2 do CE). Assim, se o desacatamento da proibição de condução sob o efeito do álcool possibilita, prima facie, a imputação da violação ao cuidado objectivo não é, de per se, apta a demonstrar uma efectiva infracção desse cuidado. Esta conclusão é imposta pelo facto – empiricamente comprovável – de o álcool não afectar de uma maneira uniforme o consumidor e, portanto, de os seus efeitos, designadamente no plano neuro-motor, variarem de pessoa para pessoa. Assim, o tribunal não pode extrair, da simples presença de álcool no sangue, a violação do dever cuidado, visto que não há qualquer regra de experiência ou standart que torne irrecusável essa ilação. Para que a correspondente imputação da infracção do dever de cuidado possa ser deduzido da taxa de alcoolemia é necessário considerar outros parâmetros. Assim, para fundamentar de forma definitiva essa violação, é indispensável assentar no carácter determinante desse facto na eclosão do dano, como sucederá, por exemplo, mostrando-se que a presença de álcool no sangue causou uma alteração das faculdades neuro-motoras do condutor, com a consequente perturbação, v.g., da sua capacidade de percepção e de reacção. É precisamente esta ideia que subjaz à exigência, repetidamente formulada pela jurisprudência, da prova de um nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente[17]. Assim, quando o perigo típico de comportamento pressuposto pela norma jurídica falte excepcionalmente, em virtude da especial configuração do caso concreto, não pode esse comportamento ser considerado como contrário ao cuidado objectivamente devido. E o inverso também pode ser verdadeiro: apesar da observância da norma, legal ou regulamentar, poderá ainda assim, existir uma violação do cuidado objectivamente exigível, embora, em tal caso, se deva ser particularmente rigoroso na afirmação da existência de um delito negligente[18]. Negativamente, a imputação delitual negligente é delimitada pelo chamado princípio da confiança. A este princípio bem pode imprimir-se esta formulação: quem se comporta de harmonia com o cuidado objectivo deve poder confiar que o mesmo acontecerá com os outros, excepto se tiver motivo fundado para crer – ou dever crer – de outro modo. A justificação substantiva deste princípio e, portanto, a determinação do seu âmbito de actuação, pode sintetizar-se nesta proposição: como regra geral não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie que os outros cumprirão os seus deveres de cuidado. Encontrando o princípio da confiança o seu fundamento material no princípio da auto-responsabilidade, segue-se que não é juridicamente exigível, que se deva contar sempre com aquelas pessoas que violam as regras jurídicas de comportamento e, por essa via, as normas de cuidado. Há uma tendência frequente para concluir sem mais que não pode socorrer-se do princípio da confiança aquele que se comporta em violação do dever objectivo de cuidado. Feita assim, a afirmação é inteiramente inexacta, dado que bem pode suceder que, v.g., o facto e o dano consequente não possam objectivamente ser imputados àquela violação do dever – logo de acordo, de resto, com o critério da imputação objectiva, de harmonia com o qual é necessário que seja o perigo típico criado ou potenciado pela conduta aquele que se concretiza, ele próprio e não outro, no resultado danoso. Na lei civil fundamental portuguesa, o cuidado objectivamente devido e concretizado com apelo ao bom pai de família, portanto, ao cidadão normal, ao homem médio (artº 487 nº 2 do Código Civil). O critério definidor do esforço que é objectivamente exigível a cada pessoa é, assim, além de normativo, objectivo e generalizador, e, portanto, não entra em linha de conta com as capacidades pessoais do agente concreto, caso estas sejam inferiores às do homem médio. Como as considerações anteriores deixam antever, uma coisa é a constatação da violação objectiva de um dever de cuidado outra bem diferente a imputação objectiva do dano à violação desse dever[19]. Para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, não é suficiente comprovação do elemento caracterizador do ilícito negligente, que o especializa e que lhe confere autonomia - a violação do cuidado objectivamente devido no caso concreto: é ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta. De harmonia com o princípio que a responsabilidade civil só intervém relativamente a comportamentos humanos e se exige, para a constituição do dever de indemnizar, um resultado, há sempre que verificar não apenas se esse resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído – imputado - à conduta. É a exigência de um relacionamento ou de uma conexão dessa conduta com o evento a que se procura dar resposta com a causalidade. Uma orientação que tem merecido um apoio generalizado é a da causalidade adequada ou da causalidade jurídica sob a forma de adequação, que, simplificadamente, pode formular-se assim: um facto é causa de um resultado, sempre que, em termos de normalidade social, seja adequado a produzir esse resultado (artº 563 do Código Civil)[20]. A finalidade evidente da teoria da causalidade adequada é a limitar a imputação do resultado às condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Há, porém, domínios em que as soluções que resultam da aplicação da teoria da causa adequada não são inteiramente satisfatórias, o que sucede, sobretudo, em actividades que, comportando em si mesmas riscos consideráveis são, todavia, legalmente permitidas. Está nessas condições, por exemplo, a circulação rodoviária em que, na generalidade dos casos, a conduta se revela adequada à produção do resultado, sem que, sob pena de paralisação ou de retrocesso da vida económica e social, seja possível proibi-la. A teoria da adequação depara-se, pois, com várias dificuldades. Uma delas resulta do facto de o critério de adequação dever ser geral e abstracto, enquanto, depois de o resultado verificado, dificilmente se poder negar a sua previsibilidade e normalidade. O que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante e não ex post, portanto segundo um juízo de prognose póstuma: com este oximoro quer-se significar que o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que a conduta foi praticada e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a acção praticada teria como consequência a produção do evento[21]. Caso conclua que a produção do evento era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação objectiva não deverá ter lugar. A adequação deve, naturalmente, referir-se a todo o processo causal e não só ao resultado, sob pena de um alargamento excessivo da imputação. É neste contexto que se situam os problemas da intervenção de terceiros ou da interrupção do nexo de causalidade, que têm em vista aqueles casos em que o resultado se verifica em consequência de uma co-actuação do lesado ou de terceiro. O critério da causalidade resolve o problema por recurso ao concurso real de causas adequadas, simultâneas ou subsequentes, considerando qualquer dos lesantes responsável pela reparação de todo o dano[22]. Esta conclusão impõe-se ao menos nos casos em que a causa operante interrompeu a série causal hipotética e em que a causa operante só provocou o dano porque os termos da causalidade hipotética já decorridos favorecem a sua eficácia causal, de tal modo que o dano, tal como concretamente se verificou, não se teria verificado se não fossem esses termos. Quando isso suceda, estamos perante um caso de concorrência efectiva de causas – e não de um caso de causalidade hipotética e, portanto, não se coloca o problema da relevância negativa da causa hipotética. Todavia, estes casos não podem, em rigor, assumir relevo de um ponto de vista de pura causalidade, devendo valer para eles a solução disponibilizada pelo critério da criação ou, em caso de concurso de riscos, da potenciação do risco permitido. Na verdade, em face das dificuldades do critério da adequação não são de estranhar as propostas da sua correcção, por recurso aos conceitos de risco permitido e do fim de protecção da norma. De harmonia com a teoria do risco permitido, a imputação do resultado à conduta do agente só ocorre quando o comportamento tenha criado, ou aumentado ou incrementado um risco proibido, desde que esse risco se tenha materializado no resultado danoso[23]. Sempre que o agente tenha criado um risco não permitido ou aumentado o risco já existente e esse risco – e não outro - conduza à produção do resultado concreto, este deve ser-lhe objectivamente imputado. A obrigação de indemnização tem por escopo fundamental a remoção do dano imputado e, portanto, a medida da indemnização é, por regra, simplesmente a do dano efectivamente imputado ao lesante (artº 562 do Código Civil). Questões como o nexo de causalidade transcendem, por isso, a problemática da determinação da indemnização. Todavia, o Código Civil actual rompeu com o princípio da não influência da culpa sobre o quantum respondeatur, permitindo ao juiz, nos casos em que a imputação delitual opere por ilícito negligente, fixar a indemnização, equitativamente, em montante inferior ao dano, desde que o justifiquem não só o grau de culpa do lesante, como também a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (artº 494 do Código Civil). E o concurso de riscos - ou, se se preferir, a contribuição causal de terceiro para a verificação do dano - é certamente, uma das demais circunstâncias do caso a ponderar pelo tribunal. Todavia, a fixação da indemnização em valor inferior ao do dano justifica-se sempre que os danos sejam provocados por terceiro – e na medida em que o sejam – ainda que não voluntariamente ou ainda que licitamente. Verdadeiramente, não há aqui uma limitação da indemnização – mas apenas uma delimitação dos danos que ao lesante devem ser imputados, pelo que a redução prescinde da comprovação, relativamente a esse terceiro, dos pressupostos da imputação delitual. Na espécie do recurso, é indubitável que o dano indemnizável foi produzido num domínio ou no desenvolvimento de uma actividade em que é admissível uma responsabilidade pelo risco ou uma responsabilidade objectiva. Um caso significativo dessa responsabilidade é a que vulnera aquele que tem a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilize no seu próprio interesse (artº 503 nº 1 do Código Civil). A responsabilidade pelos riscos próprios dos veículos de circulação terrestre recai sobre aquele que tenha a sua direcção e efectiva e o utilize no seu próprio interesse, ainda que através de comissário (artº 503 nº 1 do Código Civil). São, portanto, dois os requisitos desta autónoma modalidade de responsabilidade objectiva: a direcção efectiva do veículo; a utilização dele no seu próprio interesse. A direcção efectiva equivale ao controlo material do veículo, a título de posse ou detenção: é responsável quem tenha o domínio de facto sobre a viatura; a utilização no seu próprio interesse visa evitar a imputação objectiva ao comissário, que utiliza o veículo não no seu próprio interesse, mas em proveito ou sob as ordens de terceiro – o comitente. Portanto, direcção efectiva não é simples sinónimo de ter o volante nas mãos no momento do acidente. Todavia, a propriedade do veículo faz presumir – embora se trate de uma pura presunção hominis ou judicial – a direcção efectiva e o interesse na sua direcção pelo dono[24]. A imputação objectiva – a causalidade – obedece, como sucede, aliás, em todos os casos de responsabilidade objectiva, a regras específicas: não há que falar, por exemplo, em adequação. Como já se notou, o que releva, neste plano, são os riscos próprios do veículo e são eles que permitem e dão a medida daquela imputação objectiva. No caso de colisão de veículos, sem que seja possível imputar a culpa de nenhum dos condutores intervenientes – porque nenhum deles teve comprovadamente culpa ou, simplesmente, porque não se conseguiu provar ou atribuir a qualquer deles a causa do incidente, há distinguir duas hipóteses: a de ambos os veículos terem contribuído para os danos; a de apenas um deles ter causado esses danos. Neste último caso, a responsabilidade corre por conta de quem, a qualquer título – v.g., pelo risco – responda pelo veículo causador dos danos (artº 503 nº 1 do Código Civil). No primeiro, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos contribuiu para os danos. A medida do risco é dada pela perigosidade típica de cada veículo, pela idoneidade de cada um deles para, nas condições ocorridas, provocar danos. Um veículo pesado de mercadorias, ao menos em abstracto, implica mais riscos do que um veículo ligeiro de passageiros. Mas um motociclo pode implicar riscos severos, dada a sua instabilidade e a desprotecção dos seus tripulantes – condutor e passageiros. O caso que a lei regula directamente é a da responsabilidade pelos danos causados pela colisão - que tanto pode dar-se pelo choque, quando ambos estão em circulação, como pelo abalroamento do veículo que esteja parado ou diminua a velocidade, por um outro em marcha - nos próprios nela veículos intervenientes – em ambos ou em apenas um deles (artº 506 nº 1 do Código Civil). Mas a norma é também aplicável, por interpretação extensiva, aos danos que a colisão tenha causado a terceiros, sem que se apure a culpa de qualquer dos condutores: estes terceiros serão indemnizados pelos envolvidos na colisão de veículos, na proporção dos riscos respectivos[25]. Todavia a mesma solução deve valer – também por interpretação extensiva[26] – para os casos em cujo processo causal interferiram simultaneamente dois veículos, mas sem que se tenha registado entre eles uma colisão. Realmente, os critérios que mandam atender à contribuição do risco quanto aos danos causados pela colisão, procedem no sentido de outro critério não dever vigorar quanto os danos, que não resultando embora da colisão entre os dois veículos, tenham como etiologia concorrente os riscos próprios desses veículos. Qualquer outro critério – v.g., repartição igualitária da responsabilidade - seria ilógico e, além de ilógico, incorreria na probabilidade séria de ser injusto. Quer num caso como noutro a razão de decidir é a mesma e por isso – por um argumento de identidade de razão ou a pari – mesma deve ser a decisão. No caso de dúvida na repartição dos riscos, a lei determina que a respectiva medida seja considerada igual (artº 506 nº 1 do Código Civil). Se a responsabilidade pelo risco recair sobre várias pessoas, todos respondem solidariamente pelos danos, mesmo quando haja culpa de algum ou algumas (artº 507 nº 1 do Código Civil). Chamado algum dos responsáveis solidários a satisfazer a indemnização, coloca-se, naturalmente, o problema da regulação das relações entre eles, o mesmo é dizer, do regresso. O direito de regresso obedece aqui a regras especiais. Assim, se todos respondem pelo risco, a indemnização reparte-se entre os responsáveis com o interesse de cada um na utilização do veículo (artº 507 nº 2, 1ª parte). Assim, por exemplo, o locador e o locatário respondem ambos de acordo com a responsabilidade pelo risco. Mas será o locatário, por ter maior interesse na utilização do veículo, que suportará a maior parte da indemnização. Nos casos em que não se consiga determinar a medida desse interesse, ele presume-se igual. Vale, também no plano das relações internas entre os vários responsáveis, directamente ou por interpretação extensiva, o nº 2 do artº 506 do Código Civil. Como se vê o caso que está no pensamento da lei é de haver diferença de interesses dos vários responsáveis no tocante à utilização de um mesmo veículo e, portanto, a regra não é aplicável nos casos em que à pluralidade de responsáveis pelo risco correspondem veículos diversos. Neste caso, nas relações internas entre os vários responsáveis vale, evidentemente, a regra da proporção em que o risco de cada um dos veículos contribuiu para os danos: a indemnização será repartida de harmonia com essa contribuição. Mas isto releva apenas nas relações internas entre os vários responsáveis pela indemnização e do respectivo direito de regresso. No plano externo, i.e., no confronto com o credor da indemnização, a sua responsabilidade é solidária. Na espécie do recurso, a sentença apelada foi terminante em concluir que não ficou demonstrada a culpa dos condutores dos veículos, que não houve culpa da parte do condutor do … e que a presunção de culpa deste se mostra ilidida. A recorrente concorda com a sentença impugnada em que, realmente, em que não ficou provada a culpa efectiva do condutor do …. Mas, no seu ver, como se não fez prova da ausência de culpa daquele condutor, deve funcionar a presunção de culpa que o vulnera. Todavia, a exactidão desta conclusão reclama, na perspectiva do recorrente, a modificação do julgamento da questão de facto, modificação que seria imposta por duas razões diversas: por um lado, a contradição material em que incorreu a decisão de facto no tocante aos pontos de factos insertos na base instrutória sob os nºs 3 e 27; por outro, o erro de julgamento, por equívoco na valoração das provas, dos pontos de facto, insertos na mesma base, sob os nºs 3, 27, 28 e 29. 3.4. Poderes de controlo da Relação relativamente ao julgamento da matéria de facto do tribunal recorrido e reponderação daquele julgamento. 3.4.1. Contradição intrínseca da decisão da matéria de facto. O controlo efectuado pela Relação sobre a decisão da 1ª instância relativa à matéria de facto pode visar a anulação dessa decisão. Sempre que considere contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto, a Relação anula a decisão da 1ª instância e reenvia-lhe o processo para que proceda a novo julgamento (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC). Porém, o uso pela Relação de poderes cassação, no caso de contradição sobre pontos determinados da matéria de facto, só é admissível se do processo não constarem todos os elementos de prova que serviram de base a decisão da matéria de facto que permitam a sua reapreciação: caso contrário, a Relação deve simplesmente proceder à substituição daquela decisão, suprindo, ela mesma, o vício de julgamento de que essa decisão se encontre ferida (artº 712 nºs 1 e 4, 1ª parte, a contrario, do CPC). O exercício pela Relação de poderes de cassação surge, portanto, na hipótese apontada, como nitidamente subsidiário, relativamente ao exercício dos poderes de substituição: a Relação só deve actuar os primeiros em última extremidade, quer dizer, quando de, todo, não lhe for possível proceder à reponderação do julgamento da 1ª instância e, consequentemente, à sua substituição[27]. Ponto é, naturalmente, que se verifique uma tal contradição, i.e., que a resposta ou respostas dadas a um ponto de facto colidam com as dadas a outro ou outros. Mas é justamente isso que sucede, no ver da recorrente, entre as respostas encontradas pelo tribunal da 1ª instância para os pontos de facto inclusos na base da prova sob os nºs 3 e 27. E, realmente, depois de declarar provado, em resposta ao quesito 3º, que o condutor do veículo automóvel …, M…, travou ao aperceber-se do despiste do motociclo, julgou provado, ao responder ao enunciado de facto inserto na base da prova sob o nº 27 que aquele mesmo condutor não avistou quer o despiste do motociclo …, quer os seus ocupantes, motorista e passageira. Todavia, uma tal colisão é puramente aparente. Como qualquer outro, o acidente de viação objecto do processo, não é um facto de verificação instantânea, espacio-temporalmente concentrado, antes constitui um processo dinâmico, decomponível num conjunto de eventos naturalísticos, de verificação sucessiva, no espaço e no tempo. É incontroverso que o motociclo …, conduzido por P…, era imediatamente antecedido por um veículo pesado de mercadorias, que, por sua vez era imediatamente antecedido pelo veículo … e que era noite cerrada, não existindo qualquer iluminação. Dado que à frente do veículo … seguia um outro veículo pesado de mercadorias, a interposição deste último veículo não permitiu ao condutor do primeiro percepcionar a perda, pelo condutor do motociclo …, da sua direcção e controlo, o seu despiste e a queda da autora no chão. A única coisa que o condutor do veículo … pode percepcionar foi a realização, pelo veículo pesado de mercadorias que seguia à sua frente, por razões que nesse momento desconhecia, da manobra, de desvio da sua trajectória. Só depois, é que o condutor do veículo … pode aperceber-se da presença de um vulto – o corpo da autora – caído na faixa de rodagem – dado que nesse momento já não se verificava a interposição do veículo pesado que seguia à sua frente - e só então se desviou, não tendo, porém, conseguido que o reboque passasse por aquele vulto sem lhe tocar. Uma leitura das respostas – como, aliás, é feita pela co-demandada na sua alegação de reposta ao recurso – no contexto do processo dinâmico que culminou na produção do dano convence que se verifica qualquer desarmonia ou colisão material entre aquelas respostas, dado que se referem a momentos diferentes daquele processo. Não há, por isso, razão para cassar o julgamento daqueles pontos de facto e, consequentemente, para desfazer qualquer contradição. Mas a recorrente logo obtempera que qualquer daqueles pontos de facto – como também, em parte, os contidos no quesito 2º, 28º e 29º - se encontram feridos de um error in iudicando, por erro na avaliação ou aferição das provas, devendo julgar-se não provados. 3.4.2. Erro de julgamento da questão de facto por erro na apreciação da prova. É indiscutível a afirmação de que, a par da utilização de um processo justo e da escolha e interpretação correctas da norma jurídica aplicável, um dos fundamentos de uma decisão justa é o da verdade na reconstituição dos factos objecto do processo. De nada vale ao juiz uma compreensão exacta da norma aplicável ao caso se, do mesmo passo, se deixa equivocar na apreciação da matéria de facto. O error in judicando da questão de facto traz consigo, inevitavelmente, um erro de direito; erro esse que, nem por ter aquela causa, resultará menos sensível para os destinatários lesados. A reconstrução da espécie de facto, o saber na realidade como as coisas são ou se passaram, quando este conhecimento dependa de elementos de prova cuja apreciação é deixada ao prudente critério do juiz, é uma actividade extraordinariamente delicada – que ele terá de levar a cabo sem nenhuma ou quase nenhuma ajuda, pode dizer-se, da ciência do direito, que, nada ou quase nada, lhe pode dizer[28]. As dificuldades do controlo da exactidão do julgamento da questão de facto resultam, fundamentalmente, da falta de homogeneidade da assunção das provas pelo tribunal de 1ª instância e pela Relação e da natureza da actividade de julgamento da questão de facto. A atribuição ao recurso de apelação da natureza de recurso verdadeiramente global e, correspondentemente, a possibilidade de a Relação conhecer da matéria de facto, pressupõe que a esse Tribunal são garantidas, pelo menos, as mesmas condições que são asseguradas ao tribunal recorrido. O sistema actual de recursos procurou conciliar as garantias da oralidade e da imediação – que contribuem decisivamente para o bom julgamento da causa, em especial, no que se refere à apreciação da matéria de facto – com algumas exigências práticas. Estas exigências conduzem, por exemplo, a que o controlo sobre um decisão relativa ao julgamento de um facto supostamente provado pelo depoimento de uma testemunha, não requeira a presença dessa testemunha perante o tribunal ad quem. É suficiente, na lógica da lei, que seja disponibilizado a este tribunal o registo ou a gravação desse depoimento (artº 685-B nºs 1 b) e 2 e 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC). O registo dos actos de produção da prova é feito por gravação, em regra, por meios sonoros (artºs 522-B e 522 C) nºs 1 e 2 do CPC). Essa gravação é efectuada, também em regra, por equipamentos existentes no tribunal e por funcionário de justiça (artºs 3 nº 1 e 4 do DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro). O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância, pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC). Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[29]. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame. Mas para que a Relação altere e, portanto, substitua, a decisão da matéria de facto da 1ª instância não é suficiente um qualquer erro. Este erro há-de ser manifesto, ostensivamente contrário às regras da ciência, da lógica e da experiência, que aponte, decisiva e inequivocamente, para, o julgamento do facto, um sentido diverso daquele que lhe imprimiu o decisor da 1ª instância - e não, simplesmente, que se limite a sugerir ou a tornar provável ou possível esse outro sentido[30]. Nem, aliás, é difícil explicar a exactidão de um tal entendimento dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto que a lei adjectiva actual reconhece à Relação. De um aspecto, porque esse controlo e a reponderação correspondente da matéria de facto é efectuado, em regra, a partir da reprodução de registos sonoros, rectior, gravações áudio, de depoimentos, ou da leitura fria e inexpressiva da sua transcrição. Ora, é irrecusável que depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode alguma vez ser medido pelo tom em que foram proferidos; a palavra é simultaneamente um meio de exprimir conteúdos de pensamento e de os ocultar; todas as formas de comunicação não verbal do depoente influem, quase tanto como a sua expressão oral, na força persuasiva do seu depoimento[31]. Realmente, a expressão oral é apenas uma parte bem diminuta da comunicação e, por isso, existem aspectos e reacções dos depoentes que apenas podem ser apreendidos e apreciados por quem os constata presencialmente e que a gravação sonora, e muito menos a transcrição, não tem a virtualidade de registar e que, por isso, são irremissivelmente subtraídos à apreciação do último tribunal relativamente ao qual ainda seja lícito conhecer da questão correspondente[32]. Tratando-se de prova pessoal, rectius, testemunhal, o registo – sonoro ou escrito - comporta o risco de tornar formalmente equivalentes declarações substancialmente diferentes, de desvalorizar depoimentos só aparentemente imprecisos e de atribuir força persuasiva a outros que só na superfície dela dispõem. A decisão da matéria de facto, respeita, por definição, à averiguação de factos – i.e., a ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, a qualquer mudança do mundo exterior, ao estado, qualidade ou situação real das pessoas e coisas[33] – e o resultado dessa actividade pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Todavia, essa actividade não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção, não é uma operação pura e simplesmente lógico-dedutiva – mas uma formação lógico-intuitiva. A dificuldades que daqui decorrem para o controlo dessa actividade são meramente consequenciais. Por último, convém ter presente que o controlo da matéria de facto tem por objecto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa percepção própria do material que lhe serve de base (artºs 652 nº 3 e 655 nº 1 do CPC)[34]. Decerto que liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objectivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjectiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros. Mas não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente. O procedimento desenvolvido para estabelecer os factos sobre os quais o tribunal deve construir a sua decisão não é puramente cognitivo, o que explica a inevitável relatividade da certeza histórica de um facto que a prova disponibiliza. Contudo, esse procedimento, na medida em que assenta num esquema lógico, permite estabelecer uma regra de valoração da prova que se analisa nas proposições seguintes: a valoração da prova é uma operação mental que resolve num silogismo em que a premissa maior é a fonte ou o meio de prova – o depoimento, o documento, etc. - a premissa menor é uma máxima de experiência e a conclusão é a afirmação da existência ou a inexistência do facto que se pretendia provar; as regras de experiência são juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos. Deste ponto de vista, a única diferença entre um sistema de prova livre e um sistema de prova legal, consiste no facto de na última, a máxima de experiência, que constitui a premissa menor do silogismo, ser estabelecida ou objectivada pelo legislador, ao passo que, no primeiro, se deixa ao juiz a determinação da máxima de experiência que deve aplicar no caso. Em ambos os casos, o método de valoração da prova não deve ser contrário à lógica, devendo antes ser actuado de harmonia com um critério de normalidade jurídica, derivado do id quod plerumque accidit - daquilo que normalmente sucede[35]. Nestas condições, a apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference. Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[36]. O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis – a realidade ou a inveracidade de um facto – tem menor probabilidade de não ser a correcta. 3.4.2.1. Reponderação da decisão relativa à matéria de facto da 1ª instância. Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, no sentido já apontado. É o caso, por exemplo, da prova testemunhal (artº 396 do Código Civil). Essa apreciação baseia-se – já se notou – na prudente convicção do tribunal sobre a prova produzida, quer dizer, em regras de ciência e de raciocínio e em máximas de experiência (artº 655 nº 1 do CPC). Neste contexto, nada impede, por exemplo, que a convicção do juiz se funde no depoimento de uma única testemunha[37]. As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida. Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela. O primeiro ponto da decisão da matéria de facto que merece a discordância da recorrente é o inserto na base instrutória sob o nº 2, no segmento em se julgou provado passado um curto lapso de tempo não concretamente apurado, mas não superior a 30 segundos (…) De harmonia com a alegação da recorrente, os depoimentos prestados em audiência não permitiram ao tribunal averiguar o lapso de tempo que decorreu entre o despiste do motociclo … e o atropelamento da autora pelo reboque do veículo …. Sendo esta alegação exacta, então é irrecusável que a apelante incorre numa contradição intrínseca quando sustenta, logo de seguida, que aquele lapso de tempo foi superior a 30 segundos e que era isto que deveria constar da resposta impugnada. E que provas dá a recorrente para um tal erro de julgamento – como aliás – para todos os demais? O depoimentos - de parte - da autora, S…, e das testemunhas, … Quanto a este ponto – como, de resto, quanto aos restantes factos cujo julgamento é impugnado – o depoimento da última daquelas testemunhas deve ter-se por inconclusivo, senão mesmo por irrelevante. É que aquela testemunha – como, aliás, fez constar no auto e logo declarou no seu depoimento - não constatou presencialmente o acidente, e a descrição que dele faz no auto teve por base as declarações dos condutores dos veículos intervenientes. Se a testemunha foi clara, no seu depoimento, em afirmar que foi uma noite atribulada devido ao gelo, que o grande inimigo das partes envolvidas foi o gelo, que em pé deslizava e que tinham que se agarrar aos rails para não cair – é evidente que não dispõe de uma razão de ciência para convencer da realidade ou inveracidade dos pontos de facto discutidos. Relativamente ao depoimento da autora, a primeira observação que se impõe é que não está em causa o seu valor como confissão - cuja obtenção constitui o seu fundamento final – dado, desde logo, por o facto discutido lhe ser favorável, nem sequer ser admissível o seu depoimento pessoal sobre ele (artºs 352 do Código Civil). Trata-se, portanto, muito simplesmente de valorar as declarações da depoente, por se referirem a um facto que é susceptível de a favorecer, à luz do princípio da livre mas prudente apreciação das provas, procedimento probatório que, uma jurisprudência e um doutrina dominantes, têm por perfeitamente admissível (artºs 358 nº 4 e 361 do Código Civil e 655 do CPC)[39]. E as declarações desta parte não confortam o ponto de vista da impugnante. Na verdade, depois de afirmar que era noite cerrada e não existia qualquer iluminação, que quando caí no chão tentei fugir, só que escorregava por todo o lado, eu olhei vi o camião, tentei fugir, queria sair dali e eu escorregava e não consegui sair do sítio, que estava neve, gelo, que quando entramos na ponte eu senti que caímos – rematou, foi uma fracção de segundo, vi as luzes do camião. O mesmo sucede, aliás, com os depoimentos de ... A primeira testemunha asseverou que, a minha esposa caiu na via, conforme a mota tombou; fico com mota em cima de mim, quando me levanto, está um camião a passar por cima, a tentar desviar-se da minha esposa; logo a seguir passam dois camiões por mim; assim que eu caio, passa um camião por mim pela direita, que esse apercebe-se da minha esposa na via e consegue desviar-se pelo lado direito e outro camião que vinha atrás, não se apercebe, não consegue evitar a minha esposa, estava na via, eu ia para a levantar; o primeiro conseguiu passar porque apercebeu-se do obstáculo na via com maior antecedência do que o outro que vinha atrás; ela vê o camião, e tentou mexer-se nem ela teve tempo de se mexer nem eu tempo de ir buscá-la; não teve tempo, ela não teve tempo. E mais adiante, assegurou, foi tudo muito rápido, eu disse 30 segundos, se calhar foi menos; desde o momento em que caio, até ao momento dele bater, eu disse 30 segundos, exagerei: foi muito rápido, não tive tempo se salvar a minha mulher. Por seu lado, a testemunha … garantiu que ia atrás de um camião, o mesmo desviou-se de algo que não vi na altura e eu desviei-me também quando me apercebi então do marido da senhora a tentar tirar a mota da estrada e a senhora estava estendida na estrada; tentei desviar-me dela, mas não consegui desviar o reboque, dadas as condições de gelo que se encontravam na altura; não o tinha visto, quando me apercebi, ele já estava no chão a tentar tirar a mota; a senhora estava deitada no chão. A mesma testemunha, depois de afiançar que não devia circular a mais de 50, 60 no máximo, afirmou: desviei-me para o lado direito; o primeiro desvio que fiz foi instintivo, o segundo desvio, fi-lo quando me apercebi de alguém deitado no chão; apercebi-me mesmo em cima dela; desviei o tractor; apercebi-me dela em cima do acontecimento; ia a 50/60 metros do camião que seguia à frente. O motorista da frente fez um desvio de um obstáculo, um desvio natural. E reiterou: apercebi-me da senhora no chão praticamente em cima dela. O conjunto destes depoimentos inculca, realmente, que o arco temporal entre a queda da autora no pavimento da faixa de rodagem foi realmente de poucos segundos. Neste contexto, convém recordar que, por exemplo, um objecto que se mova 80 km por hora percorre, por segundo, cerca de 22 metros. E os mesmos depoimentos convencem também, de um aspecto, que o condutor do veículo … avistou a autora no chão e o condutor do motociclo a tentar retirá-lo da via, e de outro, que a distância a que aquele condutor se apercebeu do vulto que se encontrava prostrado na estrada, não é superior a 10 m. Para o que estes depoimentos são insuficientes é para estabelecer a realidade deste facto: que ao aperceber-se do despiste do motociclo, o condutor do veículo … travou. Realmente, nem mesmo a pessoa melhor colocada para assegurar a sua veracidade – o condutor daquele veículo – o afirmou. O que tal testemunha foi peremptória em declarar, de resto, repetidamente, foi que desviou o tractor. Mas em lado nenhum das suas declarações, esta testemunha – ou qualquer outra – asseverou a realização da manobra de travagem. Manobra cuja omissão se explica, aliás, pelo estado do piso e pela curta distância a que aquele condutor se apercebeu da presença da lesada na faixa de rodagem. Quanto a este ponto, a impugnante tem realmente razão. E também a tem quanto à adjectivação do desvio realizado pelo camião que circulava à frente do veículo …, contida na resposta ao quesito 28º - no qual se perguntava se A determinada altura, quando circulava atrás do outro pesado de mercadorias, o condutor do veículo … verificou que este fez um desvio brusco na trajectória que levava, desconhecendo a razão de tal manobra, e que mereceu do decisor de facto, esta resposta: provado. Abstraindo da irrelevância deste facto para a boa decisão da causa, segundo o único enquadramento jurídico possível do seu objecto e do exacto significado da expressão desvio natural, se tomarmos o adjectivo brusco como sinónimo de inesperado, súbito, então não se pode dar por certa, em face da prova produzida, a brusquidão ou a qualidade de brusco do desvio de trajectória apontado. Realmente, a testemunha mais bem colocada para convencer da realidade desse facto, não o afirmou – tendo-se limitado a declarar que o condutor daquele outro veículo fez um desvio de um obstáculo, um desvio natural e a asseverar que não percebeu, de imediato, o motivo da realização da manobra, não tendo, em lado nenhum do seu depoimento, afiançado o carácter inesperado ou subido da execução daquele movimento. Todas as contas feitas, a conclusão a tirar é, portanto, que, excepto quando aos dois mencionados pontos de facto – a travagem e o carácter brusco do desvio, referidos nos quesitos 2º e 28º, que respectivamente, que devem, realmente, julgar-se não provados – não há razão para admitir, que o tribunal da audiência tenha incorrido num error in iudicando e, correspondentemente, para modificar o seu julgamento, no sentido propugnado pela apelante. A matéria de facto sobre a qual deve ser construída a decisão de direito é, portanto, a que o tribunal de que provém o recurso julgou provada, com as modificações supra referidas. 3.5. Concretização. O primeiro ponto que se impõe à nossa atenção é este: que a matéria de facto disponível não permite recortar, por qualquer dos condutores dos veículos envolvidos no acidente, um comportamento discrepante daquele que era objectivamente devido no caso concreto para se evitar aquele facto e o dano dele decorrente, e, portanto, para concluir por uma culpa negligente provada de qualquer deles. É certo que o condutor do veículo …, por virtude da sua qualidade de comissário, se encontra vulnerado por um presunção de culpa e, portanto, pelo ónus de provar a sua não culpa (artºs 350 nº 2, 500 nº1 e 503 nºs 1 e 3 do Código Civil) Todavia, a análise dos factos fornecidos pelo processo – com consideração do princípio da aquisição processual – e do cumprimento do ónus da prova, mostra que uma tal presunção se deve ter por ilidida. Nos seus traços mais marcantes, o processo que culminou na produção do dano, pode resumir-se assim: numa noite cerrada e num local sem iluminação, em virtude da acumulação de gelo no pavimento da faixa de rodagem, o condutor do motociclo …, P…, perdeu o seu controlo e despistou-se, provocando, designadamente, a queda da autora na faixa de rodagem; o condutor do veículo …, por circular atrás de um veículo pesado de mercadorias, só se apercebeu da presença da autora prostrada na faixa de rodagem, a uma distância não superior a 10 metros e apesar de ter desviado o veículo que conduziu, não conseguiu, todavia, evitar que a galera passasse por cima das pernas da lesada. A conduta desenvolvida pelo condutor do veículo … mostra-se, por isso, conforme com dever de cuidado que, no caso lhe era exigível, e de cuja observância, nesse mesmo contexto, era capaz. Na ausência de uma culpa negligente, comprovada ou simplesmente presumida, de qualquer dos condutores intervenientes, o único título jurídico susceptível de fundar a sua constituição no dever de indemnizar é, pois, seguramente, a responsabilidade objectiva pelo risco (artº 503 nº 1 do Código Civil). Porém, a apelante, para excluir o dever de indemnizar, pelo condutor do motociclo …, logo levanta, na sua alegação, esta objecção ponderosa: não existe um nexo de causalidade adequada entre o despiste daquele veículo e a lesão corporal sofrida pela lesada, dado que essa lesão não foi provocada por aquele facto – mas pela passagem da galera rebocada pelo veículo … por cima das pernas da autora. Este facto é exacto: do despiste e da queda do motociclo não resultou qualquer dano para a autora; o dano suportado por esta na sua integridade física foi causado pela passagem do reboque do veículo … por cima das pernas daquela. Mas dele não deriva a consequência jurídica sustentada pela recorrente: o dano suportado pela autora deve ainda – e também – ser objectivamente imputado à conduta do condutor do motociclo ... Realmente – mesmo perspectivada a partir do critério da adequação – aquela conduta, segundo as máximas de experiência e da normalidade do acontecer – e, portanto, sobre o que é em geral previsível – é idónea para produzir o resultado danoso. Na verdade, o despiste de um motociclo de que resulta a queda do passageiro na faixa de rodagem de uma auto-estrada, de harmonia com regras gerais de experiência e o normal acontecer dos factos - o id plerumque accidit – é adequada a produzir este resultado: o seu atropelamento por outro veículo que circule na via. Dito doutro modo: aquele resultado não é uma consequência imprevisível anómala ou de verificação rara. A ideia-mestra que preside à teoria da adequação é a de limitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado: o resultado só deve ser imputado à conduta quando este tenha criado – ou aumentado ou incrementado – um risco proibido para o bem jurídico e esse risco se tenha materializado no dano. Verificadas estas duas condições, a imputação deve ter lugar. Mas é justamente isso que sucede no caso que constitui o universo das nossas preocupações: a queda da autora na estrada, criou um risco exponencial, não permitido, de ser atingida no seu corpo pelos veículos que circulem nessa via e esse risco conduziu à produção do dano: a autora, por virtude da sua presença na faixa de rodagem, resultante do despiste do motociclo, foi atropelada por um veículo que circulava na mesma via, acabando por sofrer uma lesão grave na sua integridade física. Portanto, aplicando-se a doutrina da adequação, o dano não pode deixar de imputar-se à conduta do condutor do motociclo …, por ser normal e previsível que o resultado danoso se produziria. O mesmo sucede à luz de um puro critério de potenciação do risco, na medida em que aquela conduta serviu para criar o perigo para os bens jurídicos de personalidade da autora. A conduta do condutor do veículo … ocorreu, portanto, numa situação em que já estava criado, antes da sua actuação, um risco para aqueles bens jurídicos – não obstante aquele resultado também lhe deva também ser imputado dado que com o seu comportamento, aumentou ou potenciou o risco já existente, piorando, em consequência, a situação do bem jurídico ameaçado. Todavia, como se fez notar, ocorrendo o facto danoso no contexto de uma responsabilidade pelo risco relativa a acidente causado por veículo de circulação terrestre, o critério reitor da imputação objectiva não deve ser a adequação – mas os riscos próprios desse veículo (artºs 503 nº 1 e 506 nº 1 do Código Civil). E face a esse critério, só uma conclusão se impõe: a de que o facto danoso é objectivamente imputável ao risco próprio dos veículos intervenientes no acidente. O que nos conduz ao último problema que a recorrente coloca no seu recurso: o da determinação da proporção em que o risco próprio dos veículos contribui para o dano e, correspondentemente, da repartição da respectiva responsabilidade. A sentença impugnada – por constatar que no caso submetido à sua atenção não se tratava de colisão de veículo – repartiu, em partes iguais, a responsabilidade por ambos os responsáveis, por aplicação da regra reguladora do regresso entre dos devedores solidários da indemnização (artº 507 nº 2 do Código Civil). Neste ponto – pelas razões já expostas, não podemos acompanhar o seu pensamento: o que se discute na acção é a responsabilidade solidária dos devedores da indemnização – e não a repartição, nas relações internas entre os dois responsáveis, da obrigação de indemnização e, correspondentemente, a medida do seu direito de regresso. De resto, a norma escolhida pela sentença apelada só resolve o problema da repartição da indemnização, nos casos em que a responsabilidade plural se refere a um único veículo, caso em que manda atender, para aquela repartição, ao interesse de cada um dos responsáveis na utilização dele – o que seguramente não é o nosso caso (artº 507 nº 1 do Código Civil). A norma aplicável, ainda que por interpretação extensiva, é a reguladora da colisão de veículos, da qual decorre que a responsabilidade deve ser repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos, considerando-se igual, em caso de dúvida, a medida dessa contribuição (artº 506 nºs 1 e 2 do Código Civil). A apelante sustenta, por estarmos perante um motociclo e um veículo pesado, que a obrigação de indemnizar deve ser repartida na proporção de 25% para o primeiro e de 75% para o segundo. Decerto que a repartição deve atender à especificidade dos riscos de cada um dos veículos – mas essas especificidades não devem ser aferidas em abstracto, mas em concreto, tendo em conta as condições que, no caso, se produziram os danos. Assim, se se deve ponderar as maiores dimensões e o maior peso do veículo …, há que entrar em linha de conta com a maior instabilidade do motociclo, resultante do facto apenas dispor de duas rodas, e a subida desprotecção dos seus tripulantes – condutor e passageiro. E foi justamente aquela maior instabilidade – agravada pela falta de aderência dos pneumáticos, causada pela acumulação de gelo no piso da faixa de rodagem – e esta maior desprotecção, que desencadeou todo o processo que culminou no atropelamento, pela galera rebocada pelo veículo …, da pessoa da autora. Nestas condições, julga-se exacto considera igual a contribuição do risco de ambos os veículos para aquele dano e, portanto, igual a responsabilidade das pessoas adstritas ao correspondente dever de indemnizar. E sendo isto exacto, chega-se, por caminho diverso, à mesma conclusão em que assentou a decisão apelada e, por essa razão, é meramente consequencial a improcedência do recurso. Da exposição de todos estes argumentos, podem retirar-se estas proposições conclusivas: - Na responsabilidade civil objectiva por danos causados por veículos de circulação terrestre, a imputação objectiva – a causalidade – não obedece ao princípio da adequação, antes é dada pelos riscos próprios do veículo; - Todavia, mesmo à luz da teoria da adequação, a imputação objectiva do resultado à conduta deve ocorrer quando esta tenha criado – ou aumentado ou incrementado – um risco proibido para o bem jurídico e esse risco se tenha materializado no dano; - O critério de repartição da responsabilidade, assente nos riscos próprios dos veículos, disposto na lei para o caso de colisão de veículos é aplicável, por interpretação extensiva, aos danos causados a terceiros pelos veículos que, não tendo embora resultado da sua colisão, tenham por etiologia concorrente aqueles riscos. - Os riscos próprios de cada um dos veículos devem ser mensurados, não em abstracto, mas em concreto, tendo em conta as condições que, no caso, se produziram os danos.
A recorrente sucumbe no recurso. Deverá, por isso, satisfazer as custas dele (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC). Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).
4. Decisão. Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.
Henrique Antunes (Relator)
Regina Rosa
Artur Dias
[18] Jorge de Figueiredo Dias, Velhos e Novos Problemas da Doutrina da Negligência em Direito Penal, Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, UCP, 2002, pág. 674. |