Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
57/14.7GAANS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA;
AUDIÇÃO PRESENCIAL DO CONDENADO;
AUDIÇÃO DO CONDENADO POR VÍDEO-CONFERÊNCIA;
DIREITO DE AUDIÊNCIA;
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO;
DECURSO DO PERÍODO DE SUSPENSÃO
Data do Acordão: 09/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA/C.R.P.
ARTIGOS 56.º E 57.º, N.º 1 E 2, DO CÓDIGO PENAL/C.P.
ARTIGOS 61.º, N.º 1, ALÍNEA B), 119.º, ALÍNEA C), E 495.º, N.º 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – A interpretação da norma do artigo 495.º, n.º 1 e 2, do C.P.P., no sentido de que previamente à decisão de revogação da suspensão da execução da pena tem que se proceder à audição presencial do condenado, sob pena de ocorrer a nulidade prevista no seu artigo 119.º, alínea c), decorre do disposto no artigo 61.º, n.º 1, alínea b), que prevê o direito de audiência, e do princípio do contraditório, consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da C.R.P., interpretado no sentido de que nenhuma decisão deve ser tomada pelo tribunal sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao arguido de a contestar.
II – As exigências de um “due process of law” implicam que o arguido tenha efectiva possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o Ministério Público.
III – Podendo da diligência que precede a decisão de revogação da suspensão da pena resultar o cumprimento de uma pena privativa de liberdade, impõe-se a interpretação do referido n.º 2 do artigo 495.º do C.P.P. no sentido de exigir a participação directa do arguido, ou seja, a sua “audição presencial”, de forma a poder intervir e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos que serão considerados na mesma decisão.
IV – Quando a lei fala em audição presencial pretende distingui-la da “audição” por escrito, que não permite ao arguido o confronto completo nem a fácil compreensão das razões de facto e direito que precedem determinada decisão jurisdicional, não permitindo ainda que ele se pronuncie de forma oral e imediata.
V – A audição do arguido por videoconferência integra-se no conceito de “audição presencial”, pois não ocorre diferença relevante com a audição do arguido em tribunal, desde que se entenda, como normalmente se entende, que esta implica a sua realização em directo e com recurso a equipamento tecnológico que permita comunicação visual e sonora em simultâneo, permitindo que o arguido veja e ouça o tribunal e vice-versa, em boas condições técnicas de transmissão.
Decisão Texto Integral:
Acórdão da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I - Relatório
1.1. AA interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo Central Criminal de Leiria (J...) que julgou não verificada a nulidade suscitada pelo recorrente, e revogou ainda a suspensão da execução da pena de prisão.

1.2. No recurso em apreciação o recorrente apresentou as seguintes conclusões:

2. Por ser impossível à Mandatária do arguido estar presente presencialmente na Audição do mesmo agendada pelo Tribunal, veio esta por requerimento datado de 13 de dezembro de 2022, requerer a admissão da sua participação através da plataforma Cisco Webex, por forma a estar presente em ambas as diligências.
3. A resposta ao requerimento apresentado pela Mandatária do arguido, surgiu apenas após o início da Audição do condenado, indeferindo o peticionado por considerar qua a presença da mandatária por videoconferência não era legalmente admissível, nomeando afinal defensor oficioso ao arguido.
4. Inconformada com o Despacho, veio a mandatária do arguido no dia 22 de dezembro de 2022 remeter aos autos requerimento, a invocar a nulidade prevista no art. 119º, al. c do Código de Processo Penal, porquanto o arguido foi ouvido por videoconferência a partir do Estabelecimento Prisional onde se encontra em cumprimentos de pena, o que viola o disposto no n.º 2 do artigo 495.º do CPP.
5. … o douto Tribunal veio decretar a inexistência de nulidade, invocando para o efeito que o arguido foi ouvido – da forma como requereu- estando assistido por defensor.
6. …, importa aferir da legalidade de o arguido ser ouvido por videoconferência, - o que no nosso modesto entender, não necessita de grandes estudos- porquanto, a lei não prevê sequer essa possibilidade.
7. Para além disso, estando em causa a liberdade do arguido, por força de eventual revogação da suspensão de uma pena de 5 anos, impunha-se a presença física do condenado na diligência, a fim de explicar as razões do seu comportamento e quiçá afastar o aparente desinteresse e alheamento quanto às obrigações impostas. Não esquecer que o despacho de revogação da suspensão da pena é complementar da sentença, traduzindo uma modificação do conteúdo decisório da sentença de condenação, tendo como efeito directo a privação da liberdade do condenado.
8. … o entendimento deste Tribunal, quanto ao exercício do contraditório se encontrar assegurado com a audição do arguido por meios de comunicação à distância não tem consagração no nº 2, do art. 495º, do C. Processo Penal, nem resulta justificada por qualquer norma legal.
9. É que, se fosse propósito do legislador, apenas e só, assegurar o contraditório em termos formais, bastaria tê-lo dito [bastaria a notificação de convocação para a diligência]. Porém, a norma exige mais, exige que a audição do presencial do condenado e que esta seja feita na presença do técnico de reinserção social, o que implica, necessariamente, que quer aquele, quer este, se encontrem, fisicamente, perante o tribunal.
10. Em conformidade com o exposto, e porque a realização da diligência com a presença do condenado perante aquele Tribunal era objectivamente possível, a determinação da realização da sua audição por videoconferência carece de fundamento legal e é violador do nº2, do art. 495º,do C. Processo Penal, dando, consequentemente, causa à nulidade insanável prevista na alínea c), do art. 119º, do C. Processo Penal – o que se arguiu para todos os efeitos legais.
11. Mas, o Tribunal vem fundamentar a inexistência de nulidade – requerida pela Ilustre Mandatária do arguido- com o facto de o arguido ter sido ouvido como requereu.
12. … o arguido não requereu coisa nenhuma!
13. O que se passou sim, foi que o próprio Tribunal na notificação que fez …, dirigida ao arguido informou que “se encontra designado o próximo dia 09-11-2022, às 14:00 horas, para se proceder à sua audição por incumprimento dos deveres, regras de conduta ou obrigações, que lhe foram impostas na sentença/acórdão que decretou a suspensão da execução da pena - art.º 495º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Penal, podendo esta realizar-se por videoconferência para o Estabelecimento Prisional, se a isso não se opuser o condenado.”(sublinhado nosso)
14. Ora, como é percetível, o arguido em momento algum solicitou para ser ouvido a partir do EP ..., …
15. … em Direito Penal não vale a velha máxima de que “quem cala consente”, ainda mais, quando a possibilidade de o arguido ser ouvido por videoconferência não se encontra prevista na lei.
16. … o Despacho que declarou a inexistência da nulidade arguida pelo arguido, deverá ser substituído por outro que admita a nulidade prevista no art. 119º, al. c) do C.P.P., por violação do art. 495º, nº 2 do C.P.P.

18. Nos presentes autos o arguido foi condenado na pena de cinco anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, sujeito a Regime de Prova.
19. O termo da pena aplicada nos presentes autos foi a 15/06/2021. Ou seja, quase há um ano e oito meses!
20. É certo que o Arguido foi condenado por factos praticados durante o período da suspensão. …
21. Contudo, entende o recorrente e que já se tendo verificado o término da pena suspensão há um ano e oito meses, deve a mesma ser declarada extinta.

23.Além do mais, em sede de audição de arguido este veio a demonstrar arrependimento, acrescentando que agiu sem pensar, pelo que não se vislumbra como é que o recorrente “não interiorizou o desvalor da sua conduta”.
24.O arguido foi presente a primeiro interrogatório de arguido detido no Proc. nº 435/18...., no dia 16/01/2019 tendo nessa altura sido decretada a medida de coação de prisão preventiva, que se manteve até 31 de maio de 2019, altura em que a medida de coação foi substituída pela obrigação de permanecia na habitação com equipamento de vigilância, pelo que, desde 16/01/2019 que o recorrente se encontra ligado a esse processo, sem qualquer interrupção.
25.Em 31 de agosto de 2022 o arguido e ora recorrente já tinha cumprido metade da pena de prisão de 7 anos e 3 meses, tendo cumprido atualmente mais de 4 anos de pena de prisão.
26.Ora, conforme foi percetível em sede de audição de arguido, o mesmo já teve tempo e espaço para se consciencializar da ilicitude do seu comportamento e para se arrepender do mesmo, tendo intenção de mudar o rumo da sua vida quando em liberdade.
27.A consciência critica manifestada pelo arguido quanto aos factos praticadas e pelos quais foi condenado, demonstram claros sinais de ressocialização.
28.Pelo que, o cumprimento da pena de prisão no Proc. nº 435/18.... já está a ter o efeito ressocializado pretendido com o cumprimento da pena, pelo que, não se vislumbra motivos para revogar a suspensão da pena de prisão aplicada ao recorrente nos presentes autos, quando o efeito pretendido já se logrou.
29.Além do mais, a redação do art. 56º, nº 2 do CP introduzida na revisão de 1995 pôs termo à revogação automática da pena de prisão suspensa.
30.Não podemos esquecer que, o arguido foi condenado numa pena de cinco anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, sujeita a Regime de prova e quanto a este regime, não houve qualquer violação por parte do recorrente.
31. A coordenadora da D.G.R.S.P. deu conhecimento aos autos que o arguido estaria sujeito à medida de coação de prisão preventiva no âmbito de outro processo, requerendo ordens do Tribunal que aplicou a pena suspensa ao arguido, quanto à continuidade do plano e eventual revisão do mesmo.
32.Mas só em 6/10/2022 houve Promoção no sentido da audição do arguido e despacho no mesmo sentido no dia 12/10/2022, sendo que apenas nessa altura o Ministério Público promoveu no sentido de informar a DGRSP do agendamento da audição.
33.Ou seja, desde pelo menos 15 de maio de 2019 o Ministério Público não entendeu existirem motivos sequer para alterar o plano de reinserção social do arguido, o que foi acolhido e determinado pelo Tribunal.

39.Assim, a condenação por crime cometido no período da suspensão da execução da pena de prisão não ditará, por si só, a imediata revogação da pena de substituição, sendo antes o juízo sobre a possibilidade de ainda se alcançarem, em liberdade, as finalidades da punição que ditará a opção entre o regime do art. 56º ou do art. 57º do Código Penal.
40.No caso presente, as concretas circunstâncias apuradas não abalam seriamente o juízo de prognose favorável que esteve subjacente à suspensão da prisão com regime de prova, decretada na sentença, ainda mais, quando o cumprimento em pena de prisão efetiva na segunda condenação, já está a surtir efeitos no arguido.


1.3 O Ministério Público, junto ao tribunal a quo, respondeu ao recurso concluindo da seguinte forma:
1. O Recorrente, consentiu, tendo mesmo referido pretender, que a sua audição para os efeitos do artigo 495.º do Código de Processo Penal, tivesse lugar através de videoconferência (cf. certidão de 14-10-2022).
2. Ora, a sua audição, tendo ocorrido através de tal sistema, não implicou qualquer limitação dos seus direitos de defesa, …
4. Não é nem pode ser - atento, desde logo, o previsto no referenciado artigo 56.º/1, al. b) do CP - por se ter verificado o término da suspensão da execução da pena de prisão há um ano e oito meses, que a mesma deve ser declarada extinta, como pretende o Recorrente.

6. Assim, resulta que após ter terminado o prazo da suspensão se se encontrar pendente processo por crime que possa determinar a sua revogação, a pena só é declarada extinta quando o processo ou o incidente findarem e não houver lugar à revogação ou à prorrogação do período da suspensão, logo, é manifesto que a revogação da pena pode ter lugar depois de decorrido o prazo de suspensão da pena.


1.3. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exm.º Procurador Geral Adjunto junto a este Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido de acompanhar a resposta apresentada pelo Ministério Publico.

*
II - Fundamentação de Facto
(transcrição parcial do despacho recorrido)

O arguido AA, veio arguir a nulidade insanável da sua audição, ocorrida no dia 14 de Dezembro de 2022, alegando para tal o disposto no art. 119.º, al. c) e o art. 495.º, n.º 2, ambos do CPP.
Antes de mais, importa referir que audição deste condenado foi inicialmente marcada para 9 de Novembro e adiada para 7 de Dezembro, data essa sugerida pela defensora do arguido em virtude de impedimento seu para a primeira data. Nesta data (sugerida pela própria), houve mais uma vez impedimento da defensora e adiada a diligência para o dia 14 de Dezembro. Veio a defensora, mais uma vez, manifestar a sua indisponibilidade, tendo sido proferido despacho (fls. 1210) indeferindo a sua pretensão. Na véspera da data em causa veio a mesma defensora requerer a sua intervenção por Webex- requerimento sobre o qual se pronunciou o tribunal, na audiência, consultável pela Il. defensora via Citius e para a qual remeto.
Quanto à inadmissibilidade de o arguido prestar declarações por vídeo- conferencia, foi o próprio quem o requereu (cf. fls. 1187)- o que o Tribunal deferiu. Ou seja, foi o arguido quem prescindiu do direito a estar fisicamente presente na diligência em causa. Não obstante, o Tribunal ouviu tudo o que ele entendeu dizer relativamente à matéria em causa, estando ele representado pela Il. defensora nomeada para o acto. Logo, foi dado integral cumprimento ao disposto no art. 60.º, nº 1, al. a) e b) e 64.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP.
Consequentemente, entendo não existir qualquer nulidade, pois o arguido foi ouvido- da forma como requereu- estando assistido por defensor.
***
O arguido AA, por acórdão transitado em julgado a 15-06-2016, foi condenado, pela prática de 6 crimes de furto qualificado e um crime de furto qualificado, na forma tentada, na pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, sujeita a Regime de Prova.
… decorrido o período de suspensão da pena de prisão determinada, AA veio a ser condenado, no âmbito do processo n.º 435/18...., além do mais, pelo cometimento de diversos crimes de furto qualificado, remontando tal facticidade aos anos de 2018/2019, na pena única de 7 anos e 3 meses de prisão.
Determinada a realização de interrogatório de arguido, este, no essencial, disse ter agido sem pensar, protestando algum arrependimento.
Ora, “Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao réu (como lhe chama JESCHECK), ou seja, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá nenhum futuro crime.” Prognose essa que foi feita, aquando da suspensão da execução da pena de prisão.
Porém, face ao quadro acima descrito, é manifesto, que o arguido não encarou a suspensão da execução como uma advertência, antes encarando-a com indiferença, malbaratando a oportunidade que lhe foi concedida, reagindo com indiferença à oportunidade que lhe foi dada, de demonstrar que se afastou da senda do crime. No entanto, a simples circunstância de a arguida ter praticado novos crimes durante o período da suspensão da execução da pena de prisão decretada nos presentes autos não implica a sua revogação automática (cf. artigo 56.º, n.º 1 alínea b) do Código Penal), pois necessário se torna que revele que as finalidades da suspensão não puderam por meio dela, ser alcançadas.
Ora, perante estes crimes cometidos pelo arguido, constata-se que estes são “mais do mesmo” (21 crimes de furto qualificado) - o que é por demais demonstrativo da indiferença com que encara o cumprimento dos mais elementares deveres de cidadão e facilmente se conclui que não se lograram cumprir os objectivos desta pena de substituição, demonstrando que o arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta.

Assim, determino a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA e consequentemente, determino o cumprimento pelo arguido da pena de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo mesmo período- cf. artigo 56.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal.
….
(…)
III - Fundamentação de Direito
Apreciando e decidindo

b) As questões a apreciar são:
i) saber se o despacho recorrido padece de nulidade, nos termos do artigo 119.º, c) do C.P.P., por falta de audição física presencial do recorrente atento o artigo 495 nº 2 do C.P.P. (tendo o arguido sido ouvido através de vídeo-conferência);
ii) saber se tendo o termo da pena aplicada nos presentes autos ocorrido a 15/06/2021, deveria a mesma já ter sido anteriormente declarada extinta;
iii) saber se o tribunal a quo errou ao revogar a suspensão da execução da pena, entendendo o recorrente que não há fundamento para tal.

c) Iniciando a apreciação da 1ª questão, recorde-se que tendo o arguido sido condenado nestes autos na pena de 5 anos de prisão com execução suspensa por igual período, constatou-se que no referido período de suspensão praticou crimes pelos quais veio a ser condenado num novo processo numa nova pena de prisão.
Foi então determinada a audição do arguido, a qual decorreu por vídeo-conferência, considerando o recorrente que tal constitui uma nulidade insanável, uma vez que a audição por aquela forma não equivale a audição presencial a que alude o n.º 2 do art 495º do C.P.P.
d) Estatui o n.º 1 e n.º 2 do art.º 495.º do Código de Processo Penal:
«…
Esta norma tem sido interpretada no sentido de ser necessária a audição presencial do arguido sob pena de se ocorrer na nulidade prevista no art 119º c) do C.P.P., e constituirá actualmente posição, senão pacífica, ao menos claramente maioritária na nossa jurisprudência. Para tal terá contribuído o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 491/2021, o qual julgou inconstitucional a norma interpretativamente extraída do artigo 495.º, n.º 2, e do artigo 119.º, ambos do Código de Processo Penal, (…) no sentido de ser permitida a revogação da suspensão da pena de prisão não sujeita a condições ou acompanhada de regime de prova, com dispensa de audição presencial do arguido/condenado, e sem que lhe tenha sido previamente dada a oportunidade de sobre a mesma se pronunciar, por esta preterição redundar em mera irregularidade”.
Esta exigência relativa à audição presencial do arguido decorre do disposto no artigo 61º, nº 1, alínea b) do C.P.P., que prevê o direito do arguido, em especial e em qualquer fase do processo, de “ser ouvido sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete” (princípio ou direito de audiência).
E resulta ainda do princípio do contraditório, constitucionalmente consagrado no art 32º n.º 5 da CRP, interpretado no sentido de que nenhuma decisão deve ser tomada pelo tribunal sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao arguido de a contestar; as exigências de um “due process of law” implicam que o arguido tenha efectiva possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o Ministério Público – cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP anotada, vol. I. p. 532, Ed. UCP, e Acs. do Trib. Constitucional n.ºs 434/87 e 372/00.
No caso, a diligência que precede a decisão de revogação da suspensão da pena, assume especial relevância para a definição da situação do arguido, uma vez que da mesma pode resultar o cumprimento de uma pena privativa de liberdade, pelo que se impõe a interpretação do referido n.º 2 do art 495º do C.P.P. no sentido de exigir a participação directa do arguido (ou seja, a sua “audição presencial”), de forma a poder intervir e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos que serão considerados na mesma decisão.
e) Dito isto, resta então saber se a audição do arguido por videoconferência permite integrar o referido conceito de “audição presencial”, não ocorrendo a referida nulidade da mesma diligência caso se processe daquele modo.
Entendemos que a resposta deve ser positiva.
Senão, vejamos:
Antes de mais, e no caso, refira-se que tendo o tribunal notificado o arguido no sentido de que “se encontra designado o próximo dia 09-11-2022, às 14:00 horas, para se proceder à sua audição por incumprimento dos deveres, regras de conduta ou obrigações, que lhe foram impostas na sentença/acórdão que decretou a suspensão da execução da pena - art.º 495º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Penal, podendo esta realizar-se por videoconferência para o Estabelecimento Prisional, se a isso não se opuser o condenado”, o arguido nada disse, não se opondo a que a sua audição de processasse dessa forma, como efectivamente ocorreu. E nada disse nem no momento anterior à diligência, nem no próprio momento em que a mesma se realizou, uma vez que não resulta da acta relativa à diligência do dia 14-12-2022 (ref. Citius 102281490 do processo principal) que se tenha oposto à sua realização, aparentemente concordando que a audição se processasse por videoconferência.
Depois se nenhuma norma prevê expressamente a sua audição à distância, igualmente nenhuma norma o impede.
Mais; não se vislumbra qualquer diferença relevante entre a audição do arguido em tribunal ou (à distância) por vídeo conferência, desde que se entenda (como normalmente se entende) que esta implica a sua realização em direto (isto em simultâneo com a realização da diligência no tribunal), e com recurso a equipamento tecnológico que permita a simultânea comunicação visual e sonora (ou seja, permitindo que o arguido veja e ouça o tribunal e vice-versa), em boas condições técnicas de transmissão.
Note-se que quando a lei fala em audição presencial, o que se prende essencialmente é distinguir da “audição” por escrito, resultante de uma notificação, uma vez que esta não permite ao arguido o confronto completo nem a fácil compreensão das razões de facto e direito que precedem determinada decisão jurisdicional, não permitindo ainda que se pronuncie de forma oral e imediata; como se escreve no Ac. da Rel. de Évora de 8-11-2022 (processo n.º 478/15.8TXEVR-L.E1), “a audição presencial não se opõe a audição por vídeo-conferência, que não deixa de ser uma audição presencial, embora com presença à distância, em “directo”.
f) Acrescente-se, decisivamente, que a audição por videoconferência não coloca em causa nem o princípio ou direito de audiência previsto no art 61º, nº 1, alínea b) do C.P.P., nem o princípio do contraditório a que alude o art 32º n.º 5 da CRP, mesmo na sua dimensão mais exigente, sendo o respeito por estes princípios que impõe – como vimos – a interpretação mais exigente do n.º 2 do art 495º do C.P.P. ; o arguido, ainda que não estivesse fisicamente no tribunal, esteve “presente” à distância (a partir do E.P. onde cumpre pena), tendo podido exercer, diretamente e em tempo real, os seus direitos de defesa.
O arguido na sua conclusão 5ª afirma que “impunha-se a presença física do condenado na diligência, a fim de explicar as razões do seu comportamento e quiçá afastar o aparente desinteresse e alheamento quanto às obrigações impostas”, mas não explica porque razão só a sua presença física – e já não a sua presença “virtual” por vídeo-conferência - permitiria apresentar as referidas explicações, assim como em lugar algum explica que direitos de defesa, em concreto, teriam sido violados com a sua audição à distância.

g) Passando à apreciação da 2ª questão (constante das conclusões 18ª a 22ª), defende o recorrente que tendo o termo da pena aplicada nos presentes autos ocorrido a 15/06/2021, deveria a mesma já ter sido declarada extinta, sob pena de arguido terá de cumprir nova pena de prisão efetiva de cinco anos, tendo decorrido, desde o transito em julgado da sentença, mais de seis anos.
Não tem manifestamente razão o recorrente.
É certo que o n.º 1 do art 57º do Cód. Penal estabelece que “A pena é declarada extinta se, decorrido o período da sua suspensão, não houver motivos que possam conduzir à sua revogação”.
Todavia, logo o n.º 2 do mesmo art 57º do Cód. Penal estatui “ Se, findo o período da suspensão, se encontrar pendente processo por crime que possa determinar a sua revogação ou incidente por falta de cumprimento dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção, a pena só é declarada extinta quando o processo ou o incidente findarem e não houver lugar à revogação ou à prorrogação do período da suspensão”.
No caso, sendo certo que o termo da suspensão da pena aplicada nestes autos ocorreu em 15/06/2021, os autos ficaram a aguardar o trânsito em julgado da decisão proferida por este tribunal da Relação de Coimbra no processo n.º 435/18.... (que tinha por objecto a prática de crimes pelo arguido no período da suspensão); a informação quanto ao trânsito da mesma decisão foi obtida nestes estes autos a 03-10-2022 (cfr. processo principal ref citius 9069595), tendo poucos dias depois (a 12-10-2022), sido determinada a audição do arguido, a qual só se realizou um pouco mais tarde (a 14-12-2022) porque a advogada do arguido não tinha disponibilidade de agenda para comparecer nas duas primeiras datas indicadas pelo tribunal.
Em suma, a apreciação por parte do tribunal relativamente à extinção pena com execução suspensa ou à sua revogação ocorreu no momento adequado, atento o disposto no citado n.º 2 do art 57º do Cód. Penal.

h) Por último, e quanto à 3ª questão, recorde-se que está em causa saber se há ou não fundamento para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao recorrente.
Estabelece o art 56º n.º 1 do Cód. Penal que:
A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) (…)

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Da redacção desta norma resulta que que a prática de um crime durante o período de suspensão de execução da pena não implica necessariamente a sua revogação pois que, para que tal aconteça é necessário que tal comportamento criminoso evidencie que aquele não é merecedor do juízo de prognose positiva em que alicerçou a aplicação daquela pena de substituição. Como escreve Figueiredo Dias (Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 356), a suspensão só deve ser revogada se se revelar que as finalidades que estiveram na base da suspensão já não poderão, por meio desta, ser alcançadas ou, “dito de outra forma, se nascesse ali a convicção de que um tal incumprimento infirmou definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da suspensão, é dizer, a esperança de, por meio desta, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade”.
Ora, sendo certo que não basta a condenação pela prática de um crime para que seja revogada a suspensão da execução da pena, deve considerar-se que a aplicação de pena de prisão efectiva na decisão que julgou os crimes cometidos no período da suspensão, tendencialmente revela que as finalidades que presidiram à suspensão da pena não puderam ser alcançadas (ao contrário do que sucederia se fosse aplicada, na nova decisão, uma pena de substituição da pena de prisão) – cfr. Ac. Rel. de Évora de 9-1-2018, processo n.º 101/15.0GELOSB.E1; no caso, o arguido foi condenado em pena efectiva de prisão no processo n.º 435/18...., onde se apreciava a prática de crimes cometidos pelo arguido no período da suspensão da execução da pena.
Depois, importa assinalar a similitude entre os crimes; os crimes praticados durante a suspensão da execução da pena são exactamente os mesmos pelos quais tinha anteriormente sido condenado (6 crimes de furto qualificado e um crime de furto qualificado, na forma tentada), merecendo então um juízo de prognose de que a suspensão da execução da pena seria suficiente para afastar o arguido da prática de novos crimes (especialmente de furtos), o que manifestamente não ocorreu.
Mais, constata-se que os crimes praticados pelo arguido, ainda que de natureza estritamente patrimonial, assumem a sua forma mais grave; estamos em qualquer uma das situações perante a prática de crimes de furto qualificado (tanto na 1ª ocasião - que mereceu ainda o juízo de prognose favorável de que a suspensão afastaria o arguido da reiteração da prática de crimes, como no segundo, no âmbito do referido processo n.º 435/18....).
Relevo ainda para a constatação que não estamos perante a prática mais ou menos isolada de um ou outro crime no período da suspensão; bem pelo contrário; no período da suspensão da execução da pena, o arguido cometeu 21 (vinte e um!) crimes de furto qualificado (e ainda um outro crime de detenção de arma proibida), num período temporal dilatado (ao longo dos anos de 2018 e 2019) o que revela uma reiterada inclinação pela prática deste tipo de crimes, e especialmente que fracassou a aposta que fora anteriormente feita no sentido nestes autos de que a conduta do arguido se modificaria mediante a aplicação de uma pena de prisão suspensa .
g) Em suma: Falharam totalmente e clamorosamente as razões de prevenção especial negativa subjacentes à suspensão da execução da pena de prisão; por culpa exclusiva do recorrente, não foram atingidas as finalidades previstas aquando da aplicação da pena com execução suspensa, não se tendo o mesmo esforçado suficientemente para manter uma conduta adequada, não logrando manter um modo de vida afastado da prática de ilícitos criminais graves; o arguido praticou de forma reiterada, em número muito elevado, mais de duas dezenas de crimes (pelos quais foi condenado em pena efectiva), frustrando, pois, as expectativas e confiança que nela haviam sido depositadas.
As expectativas do tribunal que aplicou a pena suspensa nestes autos, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição saíram completamente frustradas, já que face à reiteração dos comportamentos criminosos, a suspensão da execução da pena não permitiu nem a proteção de bens jurídicos (designadamente dos que são protegidos pela incriminação do crime de furto qualificado, que foram novamente postos em causa), nem a reintegração do agente na sociedade, uma vez que o recorrente manteve a prática de ilícitos criminais - cfr. o artigo 40.º do Código Penal.
IV - Dispositivo
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar totalmente improcedente o recurso interposto por AA, confirmando na íntegra o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa pelo mínimo.
Coimbra, 13 de Setembro de 2023
João Novais
Rui Pedro Lima

Jorge Jacob