Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01571/21.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/28/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Alexandra Alendouro
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR - PERICULUM IN MORA
Sumário:I – A adopção de uma providência cautelar pressupõe a verificação de dois requisitos positivos (i) o periculum in mora (fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que a Requerente visa assegurar no processo principal e (ii) o fumus boni iuris (probabilidade de a pretensão formulada ou a formular no processo principal vir a ser julgada procedente) – art.º 120º, nº 1, do CPTA – e, um negativo, no sentido de demonstrados os anteriores, ponderados todos os interesses/danos envolvidos, não resulte da adoção da providência cautelar danos superiores àqueles que poderiam resultar da sua recusa. ) – art.º 120º, nº 2, do CPTA

II – Improcede a providência cautelar se não se verifica o periculum in mora, nas suas duas vertentes, atento o carácter cumulativo dos pressupostos de concessão de tutela cautelar.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:M., E OUTROS
Recorrido 1:MUNICIPIO (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
M. e mulher M., com os demais sinais nos autos, vêm interpor o presente recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto que julgou improcedente o processo cautelar, por inverificação do periculum in mora, proposto contra o MUNICÍPIO (...) identificando, na qualidade de Contra-interessados, S. e marido V., pedindo a suspensão de eficácia do despacho do Sr. Vereador e do Presidente da Câmara Municipal (...) que, em 18 de Maio de 2021, deferiu o projecto de arquitectura apresentado pelos Contra-interessados com alterações da licença de obras de construção de uma habitação unifamiliar a erigir no lote n.º 25, na Rua (…), bem como o embargo da obra.
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Os Recorrentes alegaram e formularam as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo não se pronunciou sobre a seguinte matéria de facto, que atendendo à prova produzida, nomeadamente as fotografias juntas, devia ter sido dada como provada:
a) O limite lateral do lote dos 2.ºs requeridos, para onde está projectado o anexo, confina directamente com o prédio dos requerentes, separando ambos um murete baixo (22.º do requerimento cautelar).
b) No dia 09/06/2021 o requerente marido constatou que no terreno dos 2.ºs requeridos estavam a realizar-se trabalhos de edificação (23.º).
c) No dia 16/06/2021 já estavam bem adiantados os alicerces, sendo imediatamente perceptível que estes se prolongavam até ao limite do lote (24.º).
d) No dia 17/06/2021 haviam sido erigidas cofragens para a construção de pilares e paredes, quatro delas encostadas ao limite do lote mesmo junto ao murete dos requerentes (25.º).
e) No dia 18/06/2021 era já visível a demarcação do futuro edifício, que ocupa uma parte muito considerável da linha divisória entre lotes (26.º).
f) No dia 21/06/2021 encontravam-se erigidas as estruturas para levantamento de paredes, mesmo junto à extrema (27.ºe 28.º).
g) Os trabalhos têm decorrido praticamente de sol a sol, incluindo fins-de-semana e feriados, e sem se interromperem nos dias recentes em que houve tempestade, chuva forte e trovoadas (29.º e 30.º).
h) A obra, quando concluída, privará os requerentes do afastamento previsto no loteamento, com o qual contavam, e que os próprios respeitaram quando construíram a sua moradia (33.º).

2. Os interesses que a demora do processo coloca em perigo dizem respeito à «manutenção do afastamento entre as edificações, para que não se furtem mutuamente luz, vistas e arejamento, minimizando a intensidade das relações de vizinhança e a densidade urbanística do conjunto edificado» - cfr. 18.º do requerimento cautelar, sendo manifesto que uma construção erigida até à linha divisória dos prédios, ainda por cima alongando-se de forma a ocupar a quase totalidade dessa linha divisória, não permite manter o afastamento desejável entre edificações, antes furta a iluminação natural, vistas e arejamento, torna as relações de vizinhança mais intensas e aumenta a densidade urbanística do conjunto edificado.
3. A «produção de prejuízos de difícil reparação» há-de se projectar «nos interesses que o requerente visa assegurar no processo principal». Isto é, o que releva é que os prejuízos se verifiquem no círculo de interesses a assegurar na acção, e que in casu são os já identificados, e não outros, que faltem identificar, como se afirma na sentença recorrida, ou muito menos que a ofensa se dê em direitos subjectivos dos requerentes.
4. A forma como a edificação que se pretende travar prejudica os referidos interesses, incluindo os factos que substanciam essa situação, encontra-se devidamente alegada, especificamente a 18.º, 23.º a 35.ºdo requerimento cautelar.
5. Por outro lado,
6. Não se pode aceitar o argumento, prosseguido pela sentença recorrida, de que o periculum in mora se vê afastado pela possibilidade abstracta de a construção ilegal vir a ser coercivamente demolida.
7. Uma absoluta irreversibilidade não é exigida pela lei, que já por isso fala de «prejuízos de difícil [e não impossível] reparação».
8. O retardamento da tutela é ele próprio produtor autónomo de prejuízos para os interesses protegidos.
9. A exigência formulada pelo tribunal a quo esvazia totalmente a utilidade de providências cautelares como o embargo de obra nova, sendo laborioso, senão impossível, imaginar obras de edificação que não possam absolutamente ser demolidas…
10. A produção continuada de prejuízos, ao longo de anos, cuja cessação implica a demolição total de um edifício, não deixará de se subsumir ao conceito legal de prejuízos de difícil reparação.
11. Constitui facto consumado uma situação terminada e consolidada pelo tempo, o que não significa que se trate de uma situação absolutamente irreversível. Os edifícios acabados de construir possuem uma natureza duradoura. Finalizando a edificação da moradia dos contra-interessados, esta torna-se um facto consumado.
Assim:
12. O tribunal a quo não aplicou devidamente o art. 120.º, n.ºs 1e 2CPTA, ao não verificar preenchido o requisito do periculum in mora.
13. Estão integralmente preenchidos os requisitos para o decretamento das providências cautelares requeridas.
Termos em que deve ser dado integral provimento ao presente recurso, e em consequência revogar-se a sentença proferida, que deve ser substituída por outra que decrete as providências cautelares requeridas.
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Os Recorridos não contra-alegaram.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O Ministério Público, notificado nos termos do disposto no artigo 146.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) não emitiu Parecer.
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Com dispensa de vistos prévios, atenta a natureza urgente do presente processo, foram os autos submetidos a julgamento – artigo 36.º do CPTA.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES DECIDENDAS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 5.º, 608.º/2 635º/3/4 637º/2 639º/1/2 e 640º do Código do Processo Civil (CPC) ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir reconduzem-se a saber se a sentença recorrida, errou de facto, por insuficiência, e de direito, por, ao julgar improcedente a acção cautelar, por inverificação do periculum in mora, ter incorrido em errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 120.º, n.º 1, in fine, do CPTA e, a assim se entender, se se verificam os demais pressupostos legais para adopção da presente providência cautelar.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A/ DE FACTO
O Tribunal a quo com relevância para a decisão do presente processo cautelar fixou indiciariamente a matéria de facto e motivou-a, nos seguintes termos: “(…)
1. A propriedade do prédio urbano composto por casa de habitação de cave, rés-do-chão e andar, com quintal, sito na Rua (…), com o n.º 716/(...) da respectiva CRP e inscrito no artigo 2580-P da matriz, encontra-se registada a favor dos Requerentes [cf. certidão junta como documento n.º 1 do requerimento cautelar];
2. A referida habitação dos Requerentes situa-se no lote n.º 26, abrangido pela operação de loteamento titulada pelo alvará de loteamento n.º 9/95 de 14 de Março [cf. apresentação n.º 6 da certidão junta como documento n.º 1 do requerimento cautelar];
3. O artigo 4.º do regulamento do loteamento estabelece que “cada edificação implantar-se-á no lote de tal forma que o menor afastamento em relação a cada um dos seus limites do lote nunca seja inferior a 3,00 m” [cf. cópia em documento n.º 2 do requerimento cautelar];
4. O artigo 5.º do regulamento do loteamento estabelece que “os anexos para apoio à habitação poderão ser integrados no edifício principal ou construídos isoladamente, implantando-se neste caso no fundo do lote” [cf. cópia em documento n.º 2 do requerimento cautelar];
5. A propriedade do lote n.º 25 do mesmo loteamento localizado na Rua (...) e constituído por terreno para construção, descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) sob o n.º 715/(...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4380 da supra referida União de Freguesias, encontra-se registada a favor dos contra-interessados [cf. cópia da certidão matricial em documento n.º 3 do requerimento cautelar];
6. Em 20.10.2020, os contra-interessados apresentaram na Câmara Municipal (...) um pedido de licença para obras de construção de uma habitação unifamiliar a levar a cabo no lote 25 do loteamento supra referido, o qual foi autuado sob o n.º 713/20 [cf. fls. 1-56 do processo administrativo apenso];
7. Por despacho de 21.01.2021, o Sr. Vereador com competências delegadas do Presidente da Câmara Municipal (...), depois de concluir inexistirem desconformidades com as disposições do alvará de loteamento, aprovou o projecto de arquitectura [cf. cópia em documento n.º 6 do requerimento cautelar e fls. 57 do processo administrativo];
8. Em 25.03.2021, o Sr. Vereador com competências delegadas do Presidente da Câmara Municipal (...), depois de concluir que os contra-interessados apresentaram todos os projectos de especialidades e correctamente instruídos, deferiu o pedido de licenciamento de obras de construção [cf. fls. 317-318 do processo administrativo];
9. Em 20.04.2021, foi emitido o alvará de licença de obras de construção n.º 138/21 [cf. cópia em documento n.º 7 do requerimento cautelar e fls. 360 do processo administrativo];
10. Em 09.03.2021, os contra-interessados apresentaram junto da Câmara Municipal (...) um pedido de alteração ao projecto de arquitectura no qual se prevê uma área de anexo adossado ao edifício principal, encostado ao limite poente do lote, destinado a garagem e lavandaria [cf. fls. 277-316 do processo administrativo];
11. De acordo com o que fez constar o autor do projecto, “o n.º 4 do regulamento estabelece as condições a aplicar à “moradia” com 3m de afastamento ao limite de terreno e 30 % de implantação, e o n.º 5 se aplica aos anexos, podendo ser isolados ao fundo do lote ou adossados ao edifício principal” [cf. fls. 278 do processo administrativo];
12. Por despachos de 17 e 18.05.2021, o Sr. Vereador, Dr. M. e o Sr. Presidente da Câmara Municipal (...), Eng.º A., respectivamente, depois de concluírem que a alteração introduzida não apresenta desconformidades com o alvará de loteamento e com as demais normas legais e regulamentares aplicáveis, aprovaram o respectivo projecto de arquitectura [cf. fls. 321 do processo administrativo];
13. Em 19.07.2021, o Sr. Vereador com competências delegadas da Câmara Municipal (...), deferiu o pedido de alteração à licença de obras de construção apresentado pelos contra-interessados [cf. fls. 443 do processo administrativo];
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Factos não provados.
Inexistem quaisquer outros factos com interesse para a decisão a proferir.
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Motivação.
A decisão da matéria de facto efectuou-se, mediante o recorte dos factos pertinentes para o julgamento da presente causa em função da sua relevância jurídica, atentas as várias soluções plausíveis de direito, com base no exame da prova documental oferecida pelas partes [não impugnada; artigos 374.º e 376.º do Código Civil] e integrada no processo administrativo incorporado no SITAF [cuja veracidade não fora colocada em crise; artigos 369.º a 372.º do Código Civil], bem como na posição assumida pelos Requerentes e contra-interessados nos seus articulados [na parte em que foi possível obter a expressa admissão por acordo, sem olvidar que apenas a falta de apresentação de oposição levaria à aplicação do artigo 118.º, n.º 2, do CPTA], tal como, de resto, se encontra devidamente especificado nos vários pontos da matéria de facto provada. (…)”.
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B/ DO DIREITO:
1. Decisão apelada:
No presente processo cautelar, os Requerentes aqui Recorrentes peticionaram a (i) decretação de providência cautelar de suspensão de eficácia do despacho do Sr. Vereador e do Presidente da Câmara Municipal (...) que, em 18 de Maio de 2021, deferiu o projecto de arquitectura apresentado pelos Contra-interessados com alterações da licença de obras de construção de uma habitação unifamiliar a erigir no lote n.º 25, na Rua (...), na (...), bem como o embargo da obra.
A sentença impugnada, tendo por base a matéria de facto indiciariamente provada, a posição das partes e a interpretação do artigo 120.º do CPTA, efectuada com apoio na doutrina e na jurisprudência, indeferiu o decretamento das providências cautelares requeridas por não se mostrar demonstrado o requisito do periculum in mora previsto no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.
E fê-lo com a seguinte fundamentação que se transcreve, em parte:
Da [in] existência de fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação
Como já se viu, neste campo, os Requerentes alegam, num primeiro plano, que a obra se encontra a prosseguir a um ritmo veloz, encontrando-se em vias de ser concluída, privando-os do afastamento (de 3 metros) previsto no regulamento do loteamento, com o qual contavam, e que os próprios respeitaram quando construíram a sua moradia.
Depois, num segundo plano, os Requerentes sustentam que, depois de terminada a edificação, será mais difícil que esta venha a ser demolida, sendo que se esta vier a ser decretada e voluntária ou coercivamente executada, entretanto decorrerá um período de tempo considerável em que terão de conviver com uma construção ilegal, para além do dispêndio desnecessário de meios que isso significará para os contra-interessados.
Os contra-interessados, por seu turno, consideram não se encontrar verificado o requisito normativo em questão, na medida em que, por um lado, a alegação dos Requerentes é genérica não sendo susceptível de consubstanciar um prejuízo sério e efectivo que possa ser qualificado como irreparável ou de difícil reparação e, por outro, a operação urbanística será sempre susceptível de ser demolida, o que, na sua perspectiva, significa que, caso a acção principal venha a ser julgada procedente, será possível efectuar a reconstituição da situação anterior à prática do acto administrativo ora suspendendo.
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E desde já se adianta que se não divisa qualquer periculum in mora.
Partindo-se, sem mais, para a tarefa de subsunção fáctico-jurídica.
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Dispõe o n.º 1 do artigo 120.º do CPTA que as providências cautelares são adoptadas quando haja periculum in mora, ou seja, quando “haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado” ou “da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”.
Nessa medida, o requisito em questão encontrar-se-á preenchido sempre que exista fundado receio de que, quando o processo principal termine e sobre ele venha a ser proferida uma decisão definitiva, essa decisão já não venha a tempo de dar resposta adequada às situações jurídicas e pretensão objecto de litígio, seja porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão totalmente inútil, seja porque tal evolução gerou ou conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis.
Não é, todavia, um qualquer perigo de dano que justifica ou poderá fundar a decretação duma providência cautelar, porquanto se terá de exigir um perigo qualificado de dano, isto é, um perigo de dano que derive ou decorra da demora processual.
Nas palavras de AROSO DE ALMEIDA do “ponto de vista do periculum in mora, a providência também deve ser, entretanto, concedida quando, mesmo que não seja de prever que a reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade se tornará impossível pela mora do processo, os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio da produção de «prejuízos de difícil reparação» no caso de a providência ser recusada, seja porque a reintegração no plano dos factos se perspetiva difícil, seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso, se produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar ou, pelo menos, de reparar integralmente. Ainda neste último caso, justifica-se a adopção da providência para evitar o risco do retardamento da tutela que deverá ser assegurada pela sentença a proferir no processo principal (…)” [in Manual de Processo Administrativo, 2010, págs. 475 e 476].
Nesta sede, para se aferir da produção de “prejuízos de difícil reparação” o critério a atender passou a ser o da maior ou menor dificuldade que envolve o restabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar, já que o juiz deverá ponderar as circunstâncias concretas do caso em função da utilidade da sentença e não decidir com base em critérios abstractos [cf. VIEIRA DE ANDRADE in A Justiça Administrativa (Lições), 11.ª edição, pp. 300, 306; AROSO DE ALMEIDA in ob. cit., pp. 474 e 475; AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2007, pp. 805; ANA GOUVEIA MARTINS in A tutela cautelar no Contencioso Administrativo - Em especial, nos procedimentos de formação de contratos, pp. 501/503; e os Acórdãos do STA de 09.06.2005, processo n.º 0412/05, de 10.11.2005, processo n.º 0862/05, de 01.02.2007, processo n.º 027/07 in «www.dgsi.pt/jsta»].
Com efeito, “o juízo sobre o risco dessa ocorrência deve ser sustentado numa apreciação das circunstâncias específicas de cada caso, baseada na análise de factos concretos, que permitam a um terceiro imparcial concluir que a situação de risco é efectiva, e não uma mera conjectura, de verificação apenas eventual [cf. AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, ob. cit, 2017, pp. 970], pois que o fundado receio a que a lei se refere trata-se de um receio “apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo”, ou seja, “Não bastam, pois, simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade, embora, de acordo com as circunstâncias, nada obste a que a providência seja decretada quando se esteja ainda face a simples ameaças advindas do requerido, ainda não materializadas, mas que permitam razoavelmente supor a sua evolução para efectivas lesões” [cf. ABRANTES GERALDES in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3.ª ed., pág. 103].
Daí que também a legislação processual administrativa haja vincado que é sobre o Requerente que recai o ónus de alegação de tornar credível a sua posição através do encadeamento lógico e verosímil de razões convincentes e objectivas nas quais sustenta a verificação dos requisitos da providência cautelar requerida, até porque, da conjugação dos artigos 112.º, n.º 2, al. a), 114.º, n.º 3, alíneas f) e g), 118.º e 120.º todos do CPTA, não se mostra consagrada uma qualquer presunção “iuris tantum” da existência dos aludidos requisitos como simples consequência da existência em termos de execução do acto.
Assim sendo, o Requerente da providência cautelar não só não está desobrigado ou desonerado de fazer a prova e demonstração dos factos integradores dos pressupostos ou requisitos de que depende a sua concessão, como deverá efectivamente alegar e provar esses mesmos factos integrados, de modo especificado e concreto, encontrando-se, pois, afastada de qualquer virtualidade a alegação meramente conclusiva ou de direito [cf. entre outros, os Acórdãos do TCA-Norte, de 28 de Outubro de 2010, proferido no processo n.º 01441/10.0BEPRT e de 14 de Março de 2014, proferido no processo n.º 01334/12.7BEPRT-A, ambos acessíveis em www.dgsi.pt].
É que se, por um lado, quanto ao juízo de probabilidade da existência do direito invocado, se admite que o mesmo possa ser de mera verosimilhança, já quanto aos critérios a atender na apreciação do periculum in mora os mesmos devem obedecer a um maior rigor na apreciação dos factos integradores de tal requisito, visto que a qualificação legal do receio como “fundado” visa restringir as medidas cautelares, evitando a concessão indiscriminada de protecção meramente cautelar com o risco de obtenção de efeitos que só podem ser obtidos com a segurança e ponderação garantidas pelas acções principais.
Tendo presente estes breves considerandos e, regressando, sem mais, ao caso dos autos, temos, desde logo, que assinalar a natureza eminentemente genérica e vaga em que se mostra alegada a matéria atinente ao requisito do periculum in mora e que, enfim, na ausência de qualquer outra substanciação por parte dos Requerentes, se encontra confinada ao que consta dos artigos 33.º a 36.º do requerimento cautelar.
E, como já se teve oportunidade de adiantar, de tal alegação não é, de todo, possível extrair ou antever fundadamente que, em caso de recusa de tutela cautelar e da inerente continuação da execução do acto ora suspendendo, se criará uma (i) situação de facto consumado ou (ii) se produzirão prejuízos de difícil reparação nos interesses que os Requerentes pretendem acautelar na acção administrativa que se propõem a instaurar.
No que toca ao primeiro, dir-se-á que inexiste qualquer possibilidade de criação de uma situação de facto consumado, pois que, em boa verdade, se, após o prosseguimento da execução do acto ora suspendendo e consequente edificação do referido anexo endossado ao edifício principal e encostado ao limite do lote, este Tribunal vier a declarar nulo (na acção principal) o despacho que aprovou o respectivo projecto de arquitectura, a almejada reintegração, no plano dos factos, da situação em conformidade com a legalidade (o Regulamento do Loteamento), difícil ou não, será sempre possível através da adopção da medida de tutela da legalidade urbanística de ultima ratio: a demolição da construção ilegal.
De resto, nenhum dos elementos que foram aportados para os autos aponta, aliás, sob qualquer forma, no sentido de que a construção do anexo em questão não possa ser revertida, tal como, de resto, se asseverou no âmbito dos Acórdãos do TCA-Norte, de 22/10/2015, proferido no processo n.º 02123/14.0BEBRG-A e de 22/01/2021, proferido no processo n.º 01028/20.8BEBRG, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
No que toca ao segundo, o Tribunal não olvida que a consequência prática da execução do acto ora suspendendo passa pelos Requerentes passarem a conviver com uma construção (anexo) concluída que, na sua perspectiva, deveria cumprir o afastamento de 3 metros previsto no art. 4.º do Regulamento do Loteamento em relação à sua habitação.
No entanto, a verdade é que os Requerentes não substanciaram de que forma e em que moldes é que essa futura convivência com uma construção que (alegadamente) violará tal normativo poderia afectar a sua esfera jurídica individual.
Enfim, não explanaram e muito menos provaram (i) quais os específicos danos ou prejuízos (de difícil reparação) que para si advirão em virtude da execução, no plano dos factos, do despacho ora suspendendo (ii) e cuja reintegração da legalidade (v.g. através da demolição) não seria capaz de reparar ou, pelo menos, de reparar integralmente.
E, repare-se, esses danos, que não foram alegados, têm que ser próprios, isto é, dizer respeito aos Requerentes e não a terceiros (como os contra-interessados), dado que caso a demolição venha a ser determinada, são naturalmente estes (e não os Requerentes) que terão que suportar os respectivos encargos com a sua realização [cf. neste sentido, em situação semelhante, o Acórdão do TCA-Norte, de 19/04/2018, processo n.º 01481/17.9BEBRG, in www.dgsi.pt].
Daí que seja destituído de qualquer relevância, para efeitos da análise do periculum in mora, a alegação de que a continuação da construção levará a um “dispêndio desnecessário de meios” para os contra-interessados “que também importa evitar”.
Aqui chegados, logo se antevê, pois, que a matéria que vem alegada no requerimento cautelar é inidónea a criar no Tribunal um fundado receio de que, na pendência da acção principal, se venha a constituir uma situação de facto consumado ou a produzirem prejuízos de difícil reparação para os interesses dos Requerentes.
Claudica, sem mais, por aqui, o requisito do periculum in mora.
E, atenta a natureza cumulativa dos requisitos normativos da concessão de tutelar cautelar previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º do CPTA, fica logicamente prejudicado o conhecimento dos demais requisitos do fumus boni iuris e da ponderação de interesses em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC.
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Mercê de todo o exposto, improcederá integralmente a presente tutela cautelar. (…)”.

2. Posição dos Recorrentes e mérito do recurso
Os Recorrente discordam da sentença recorrida, imputando-lhe erro de julgamento de facto por insuficiência e de direito por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 120.º, n.º 1, in fine, do CPTA.
2.1. Do erro de julgamento de facto por insuficiência
Para o efeito sustentam que, quantos aos factos, o TAF não se pronunciou sobre a seguinte matéria de facto, que atendendo à prova produzida, nomeadamente às fotografias juntas, devia ter sido dada como provada, de acordo com o artigo 607.º n.º 4 do CPC:
i) O limite lateral do lote dos 2.ºs requeridos, para onde está projectado o anexo, confina directamente com o prédio dos requerentes, separando ambos um murete baixo (22.º do requerimento cautelar).
j) No dia 09/06/2021 o requerente marido constatou que no terreno dos 2.ºs requeridos estavam a realizar-se trabalhos de edificação (23.º).
k) No dia 16/06/2021 já estavam bem adiantados os alicerces, sendo imediatamente perceptível que estes se prolongavam até ao limite do lote (24.º).
l) No dia 17/06/2021 haviam sido erigidas cofragens para a construção de pilares e paredes, quatro delas encostadas ao limite do lote mesmo junto ao murete dos requerentes (25.º).
m) No dia 18/06/2021 era já visível a demarcação do futuro edifício, que ocupa uma parte muito considerável da linha divisória entre lotes (26.º).
n) No dia 21/06/2021 encontravam-se erigidas as estruturas para levantamento de paredes, mesmo junto à extrema (27.ºe 28.º).
o) Os trabalhos têm decorrido praticamente de sol a sol, incluindo fins-de-semana e feriados, e sem se interromperem nos dias recentes em que houve tempestade, chuva forte e trovoadas (29.º e 30.º).
p) A obra, quando concluída, privará os requerentes do afastamento previsto no loteamento, com o qual contavam, e que os próprios respeitaram quando construíram a sua moradia (33.º).

Vejamos.
Como resulta da motivação de facto, a mesma baseou-se no exame da prova documental oferecida pelas partes, bem como na posição assumida pelos Requerentes e contra-interessados nos seus articulados [na parte em que foi possível obter a expressa admissão por acordo, sem olvidar que apenas a falta de apresentação de oposição levaria à aplicação do artigo 118.º, n.º 2, do CPTA], tal como, de resto, se encontra devidamente especificado nos vários pontos da matéria de facto provada. (…)”.
Ora, atentando aos artigos 16.º e 17.º da Contestação, todos os artigos cujo aditamento à matéria de facto vem requerida pelos Recorrentes foram impugnados (o artigo 23.º (ponto j) por desconhecimento, nos termos para os efeitos do disposto no artigo 574.º, n.º 3 do CPC). Para além de que o Ponto p), primeira parte, se mostra conclusivo.
Termos em que, considerando o TAF que os autos se encontram dotados de todos os elementos probatórios necessários à decisão do presente processo cautelar, julgando desnecessária a produção de prova testemunhal –o que não vem impugnado pelos Recorrentes – naturalmente que, quanto aos factos controvertidos, não os podia incluir na matéria indiciariamente assente.
Restando-lhe, como o fez, incluí-los, implicitamente, no ponto “Factos não provados.”.
Improcede o erro de julgamento de facto, por insuficiência, imputado à sentença recorrida.
2.2. Erro de julgamento de direito
Sustentam os Recorrentes que “Não é correcta a afirmação de que a matéria relativa ao periculum in mora, conforme foi alegada, é de natureza «eminentemente genérica e vaga», não sendo possível daí extrair que a demora do processo criará uma situação de facto consumado, ou se produzirão prejuízos de difícil reparação nos interesses que os Requerentes pretendem acautelar na acção administrativa que se propõem a instaurar.
Na verdade, os interesses a proteger dizem respeito à «manutenção do afastamento entre as edificações, para que não se furtem mutuamente luz, vistas e arejamento, minimizando a intensidade das relações de vizinhança e a densidade urbanística do conjunto edificado» - cfr. 18.º do requerimento cautelar.
Sendo manifesto que uma construção erigida até à linha divisória dos prédios, ainda por cima alongando-se de forma a ocupar a quase totalidade dessa linha divisória (cfr. factos supra descritos, 1.º), não permite manter o afastamento desejável entre edificações, antes furta a iluminação natural, vistas e arejamento, torna as relações de vizinhança mais intensas e aumenta a densidade urbanística do conjunto edificado.”
2.2.1. Como é sabido, a razão de ser dos processos cautelares é a de permitir, em concretização do direito a uma tutela judicial efectiva consagrado no artigo 268.º n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a decretação judicial de medidas cautelares adequadas a precaver ou salvaguardar provisoriamente a situação ou litígio que opõe as partes até este seja definitivamente decidido na acção principal, impedindo que, na pendência da referida acção, se produzam danos irreversíveis ou de difícil reparação que ponham em causa a utilidade da decisão definitiva e, consequentemente, a tutela jurisdicional.
Assim, a tutela cautelar tem como função própria, a de “prevenção contra a demora” na realização da justiça, daí decorrendo como características típicas deste tipo de tutela as da instrumentalidade estrutural e funcional de uma acção principal, a da provisoriedade da decisão e sumariedade que se manifesta numa cognição sumária da situação de facto e de direito, própria de um processo urgente cfr. José Carlos Vieira de Andrade in A Justiça Administrativa, Lições 11.ª Edição, p. 301 e ss.
Relativamente aos critérios de adopção de providências cautelares, dispõe o artigo 120.º do CPTA, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, aqui aplicável, atenta a data em que foi instaurado o processo cautelar) o seguinte:
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.
2 - Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.
3 - As providências cautelares a adotar devem limitar-se ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente, devendo o tribunal, ouvidas as partes, adotar outra ou outras providências, em cumulação ou em substituição daquela ou daquelas que tenham sido concretamente requeridas, quando tal se revele adequado a evitar a lesão desses interesses e seja menos gravoso para os demais interesses públicos ou privados, em presença. (…)”.
Neste contexto, a adopção de uma providência cautelar pressupõe o preenchimento de dois requisitos positivos, o da perigosidade na demora ou do periculum in mora (existência de um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente pretende acautelar no processo principal), e o da juridicidade material ou do fumus boni iuris (probabilidade de a pretensão formulada ou a formular no processo principal vir a ser julgada procedente) e, um negativo, no sentido de demonstrados os anteriores pressupostos, da ponderação de todos os interesses/danos envolvidos, não resulte da adoção da providência cautelar requerida danos superiores àqueles que poderiam resultar da sua recusa.
Sendo que, incumbe ao requerente cautelar o ónus de alegação, no requerimento inicial, dos factos constitutivos ou integradores dos referidos requisitos de que depende a procedência do pedido cautelar, ou seja, a enunciação de factos concretos e razões de direito que constituem a causa de pedir da concreta pretensão cautelar que demonstrem o preenchimento dos requisitos formulado, não podendo o Tribunal substituir-se ao requerente nesse encargo, mormente mediante convite para aperfeiçoamento do articulado.
O que resulta, desde logo, do princípio do dispositivo inserto no artigo 5º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1º do CPTA, de acordo com o qual cabe à parte interessada a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, explicitado, no que respeita aos processos cautelares, no artigo 114º, nº 3, alínea g), do CPTA, nos termos do qual deve o requerente cautelar, especificar no respectivo requerimento inicial, de forma articulada, os fundamentos do pedido, oferecendo prova sumária da respectiva existência.
Sendo que embora os referidos elementos, enunciados no artigo 114º, nº 3, alínea g), do CPTA, constem do disposto no nº 4 do referido preceito, no sentido de, na falta da indicação dos mesmos dever o juiz convidar o requerente a suprir a falta, tal não significa a abrangência de convite do juiz à alegação de factos concretos eventualmente omitidos que possam constituir requisitos para a decretação da providência requeridaneste sentido, vide, entre outros, os Acórdãos do TCA Sul de 19/01/2012, Proc. 08328/11, de 18/12/2014, Rec. nº 11481/14, e de 06/10/2016, Proc. nº 53/16.0BEBJA, de 13-09-2019 Proc. 00235/19.2BEPNF in www.dgsi.pt/jtcas.
É que, dessa forma, o juiz entraria já na apreciação do mérito da pretensão cautelar deduzida, ou seja, das condições da sua procedibilidade, juízo reservado ao momento de apreciação do fundo da pretensão e distinto do de mera aferição da regularidade do requerimento inicial da providência cautelar, a exercer em sede liminar, nos termos do artigo 119º do CPTA, através de despacho liminar – neste sentido, vide, entre outros, os Acórdãos supra identificados.
Vide ainda, entre muitos outros, sobre o ónus de alegação e prova do requerente cautelar dos elementos integradores dos pressupostos de adopção das providências cautelares, os Acórdãos do STA de 30-11-2017, Proc. 0857/17 e do TCAN de 14.03.2014, Proc. 1334/12.7BEPRT, de 03/05/2019, Proc. 453/18.0BEMDL, de 15/02/2019, Proc. 593/18.6BECBR, de 12/07/2019, Proc. 14/19.7BEMDL, e 13-09-2019, Proc. nº 235/19.2BEPNF, disponíveis in www.dgsi.pt/jtcn.
Retomando, a verificação do periculum in mora depende de um juízo de prognose e de grande probabilidade de, a ser provida a pretensão do requerente cautelar formulada na acção principal, a recusa da providência conduzir, entretanto, à impossibilidade ou dificuldade de restabelecimento da sua esfera jurídica, no plano dos factos, que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse ocorrido – vide Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017 pp. 970.
Na jurisprudência, sobre o periculum in mora, nas suas duas vertentes, vide o Acórdão do STA de 30-11-2017, Proc. 0857/17, cujo sumário se transcreve em parte:
I - O requisito do periculum in mora encontrar-se-á preenchido sempre que exista fundado receio de que quando venha a ser proferida uma decisão no processo principal a mesma já não venha a tempo de dar resposta adequada ou cabal à situação jurídica e pretensão objeto de litígio, seja porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão totalmente inútil mercê da constituição de uma situação de facto consumado, seja porque tal evolução gerou ou conduziu à produção de prejuízos ou danos dificilmente reparáveis.”.
E no que concerne ao periculum in mora, na vertente de facto consumado, veja-se o Acordão do TCAN de 17.05.2013, Proc n.º 01724/12.5BEPRT, que se transcreve em parte: “(…) se estará em presença duma situação de facto consumado quando se revele de todo em todo impossível a reintegração específica da esfera jurídica daquele mesmo requerente, tendo por referência a situação jurídica e de facto para ele existente no momento da respetiva lesão.
XXI. Centrando nossa atenção da concretização do conceito de “facto consumado” temos que o STA sustentou no seu acórdão de 25.08.2010 [Proc. n.º 0637/10 in: «www.dgsi.pt/jsta»] que “… só se poderia falar na constituição de uma situação de facto consumado se a realidade a que tende o ato … irreversivelmente se consolidasse com o início da sua execução …”, e nos seus acórdãos de 05.12.2007 e de 28.10.2009 [respetivamente, Procs. n.ºs 0723/07 e 0826/09 in: «www.dgsi.pt/jsta»] que “… ocorre uma situação de facto consumado previsto no art. 120.º, n.º 1 … do CPTA quando, a não ser deferida a providência, o estado de coisas que a ação quer influenciar fique inutilizada ex ante …”, posicionamento esse reiterado no acórdão de 31.10.2007 [Proc. n.º 0471/07 in: «www.dgsi.pt/jsta»] quando se afirmou que numa “… aceção lata, todo o facto acontecido consuma-se «qua tale», dada a irreversibilidade do tempo; mas não é obviamente esse o sentido da expressão da lei. Na economia do preceito, o «facto» será havido como «consumado» por referência ao fim a que se inclina a lide principal, de que o meio cautelar depende; e isto significa que só ocorre uma «situação de facto consumado» quando, a não se deferir a providência, o estado de coisas que a ação quer influenciar ganhará entretanto a irreversível estabilidade inerente ao que já está terminado ou acabado - ficando tal ação inutilizada «ex ante» …” (…)”.
Não é, pois, um qualquer perigo que justifica ou pode fundar a decretação de uma providência cautelar, exigindo-se um perigo qualificado de dano, isto é, um perigo de dano que derive ou decorra da demora processual – cfr., os Acórdãos do STA de 30.11.2017, Proc. 0857/17 e do TCA do Norte, de 08.06.2012, Proc. n.º 02019/10.4BEPRT-B.
A alegação de que tal perigo de dano, uma vez provado, é fundado e não meramente provável, constituindo, como já se sabe, um ónus do requerente cautelar, não podendo o Tribunal substituir-se nesse encargo.
Pelo que, para o efeito, deve o requerente enunciar e densificar factos concretos donde se infira, em termos de causalidade adequada, e uma vez provados, a verificação na sua esfera jurídica de danos difíceis de reparar ou irreparáveis (danos reais, directos e imediatos, e não abstractos, eventuais ou hipotéticos).
Só assim podendo o julgador ponderar e valorar todas as circunstâncias do caso em função da utilidade da sentença que relevem em sede do receio (fundado e objectivo) de lesão iminente, médio tempore, dos interesses do requerente a assegurar com o processo principal, convencendo-se que existe um fundado e actual periculum in mora se não decretar a providência. E, assim, considerando “justificada” a cautela que é solicitada – cfr. Vieira de Andrade, in Justiça Administrativa (Lições), 5.º ed, p. 298.
No que concerne ao fumus boni iuris, ou seja à probabilidade de êxito da pretensão deduzida no processo principal, o juiz pode e deve, ainda que em termos sumários, e de acordo com o alegado pelo requerente, em concretização do ónus que lhe cabe, avaliar a probabilidade da procedência da acção principal, isto é, em regra, avaliar a existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que ele diz existir, ainda que esteja em causa um «verdadeiro» acto administrativo” – cfr. Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, 2015, 14ª edição, pág. 294.
Demonstrados o periculum in mora e o fumus boni iuris e pressupondo que não fracasse o requisito da ponderabilidade dos danos aos interesses envolvidos, deve a providência ser concedida.
2.2. Presente o enquadramento jurídico das providências cautelares e retomando o erro de julgamento imputado à sentença recorrida, o seu conhecimento será aferido de acordo com as conclusões das alegações do recurso extraídas da respectiva motivação, no contexto da matéria de facto indiciariamente assente.
Relembrando, referem os Recorrentes que as alegações que verteram no artigo 18.º do Requerimento inicial das requeridas providências «manutenção do afastamento entre as edificações, para que não se furtem mutuamente luz, vistas e arejamento, minimizando a intensidade das relações de vizinhança e a densidade urbanística do conjunto edificado». consubstanciam factos concretos e suficientes para comprovação da verificação do periculum in mora na vertente de fundado receio da produção de danos de difícil reparação e irreparáveis.
E isto porque é notório que sendo o anexo em causa (lavandaria e garagem) erigido até à linha divisória do prédio dos Recorrentes (como licenciado), não permitirá manter o afastamento desejável entre edificações, antes furta a iluminação natural, vistas e arejamento, torna as relações de vizinhança mais intensas e aumenta a densidade urbanística do conjunto edificado.
Situação que configura uma situação de facto consumado com a execução da obra e de prejuízos difícil reparação porque na hipótese de a acção principal ser julgada procedente ocorrerá impossibilidade ou dificuldade de restabelecimento da sua esfera jurídica, no plano dos factos, que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse ocorrido.
Vejamos, notando que o TAF não se pronunciou sobre o agora alegado porquanto, a alegação supra transcrita em itálico foi utilizada pelos Recorrentes para fundamentar o fumus boni iuris, vindo agora reforçada e adaptada ao periculum in mora.
Não se nega, de acordo com as regras de experiência comum, que a manutenção do afastamento entre as edificações, vise, no caso, proteger mutuamente a luz, vistas e arejamento, relações de vizinhança e a densidade urbanística do conjunto edificado.
No entanto, os Recorrentes não concretizam factos suficientes para esclarecer o Tribunal da real projecção do anexo em causa naqueles valores (v.g. a altura do anexo), nem a medida ou dimensão de comprometimento daqueles interesses (v.g. significativa ausência de luz, de vistas, de arejamento, relações de vizinhança comprometidas, aumento significativo da densidade urbanística do conjunto edificado) bem como as suas reais consequências na edificação dos Recorrentes e na sua vida privada (v.g. edificação em parte sombria, privada de luz natural e desvalorizada; previsível aparecimento de humidades e fungos na parte no prédio dos Recorrentes mais próxima do anexo; violação do direito ao descanso, etc.) e, consequentemente não os provaram, impedindo o Tribunal de formar convicção segura sobre a provável existência de prejuízos sérios e relevantes merecedores da tutela do direito e, consequentemente, de tutela cautelar.
Não obstante, sempre se dirá que a ficcionar-se a existência dos alegados prejuízos, conforme descritos pelos Recorrentes, que advenham para a sua esfera jurídica fruto da execução do acto suspendendo, não se encontra preenchido, tal como o julgou a sentença, o requisito do periculum in mora.
Com efeito, no caso vertente, não se verifica o receio de constituição de uma situação de facto consumado, porquanto se na acção principal o Tribunal vier a anular ou declarar nulo o acto suspendendo que aprovou o projecto de arquitectura de edificação do anexo em causa apoiado no edifício principal e encostado ao limite do lote dos Recorrentes, com consequente ordem de demolição da construção ilegal, obter-se-á a reintegração, no plano dos factos, da situação em conformidade com a legalidade – cfr. neste sentido os Acórdãos do TCA-Norte, de 22/10/2015, proferido no processo n.º 02123/14.0BEBRG-A e de 22/01/2021, proferido no processo n.º 01028/20.8BEBRG, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Do mesmo modo, não se verificam prejuízos de difícil reparação para os interesses do requerente cautelar porquanto, na hipótese de a acção principal ser julgada procedente, não se revelar, entretanto, difícil no plano dos factos a reconstituição da situação que existiria se não fosse a prática de acto impugnado, com as ilegalidades que lhe são imputadas, a qual pode passar inclusive pelo ressarcimento de alegados e provados prejuízos, eventualmente verificados medio tempore, de acordo com os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Pelo exposto, não demonstrando os Recorrentes o exigível periculum in mora improcedem os fundamentos de impugnação da sentença recorrida.
*
E, em face da natureza cumulativa dos requisitos de adopção das providências cautelares, inverificado o periculum in mora, tem de improceder a presente providência cautelar, considerando-se inútil a análise dos demais, tal como decidido pelo TAF a quo – cfr. artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA.
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IV – DECISÃO
Termos em que, os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo das Recorrentes.
Notifique.
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Porto, 28 de Janeiro de 2022

Alexandra Alendouro
Celestina Caeiro Castanheira (em substituição)]
Antero Salvador