Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02174/15.7BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/28/2022
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL NEGLIGÊNCIA MÉDICA, ASSISTÊNCIA HOSPITAL PÚBLICO, ÓNUS PROVA
Sumário:1 . Não se mostrando provado nenhum facto do qual se permita concluir pela culpa do Centro Hospitalar na omissão do devido tratamento ao A., sendo ainda que os funcionários deste actuaram de acordo com o que era suposto e lhe era exigido, prestando ao A. todos os cuidados inerentes ao seu estado e sem que dos factos provados se possa afirmar que actuaram de modo negligente, seja antes, durante ou após a cirurgia, não se verificam os requisitos da responsabilidade civil ou aquiliana – facto ilícito e culposo.

2 . Em situações de responsabilidade extracontratual, diversamente da responsabilidade contratual, por responsabilidade civil por alegada negligência médica em hospitais públicos - como é o caso dos autos - não se verifica a inversão do ónus da prova, pois que tal não resulta de nenhuma norma jurídica.

3 . Em relação aos hospitais públicos - como é o caso do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE - não se aplica a presunção de culpa prevista no art.º 799.º do Código Civil, antes compete ao A. - art.º 342.º, n.º1 do Cód. Civil - a prova dos factos constitutivos do seu direito.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:

I
RELATÓRIO

1 . A., casado e residente na Rua (…), inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Penafiel, de 18 de Maio de 2020, que, julgando improcedente a acção administrativa comum, absolveu do pedido o CENTRO HOSPITALAR (...), EPE, pedido esse que consistia na condenação deste por perdas e danos numa indemnização no valor de 100.000,00€, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.
*
2 . No final das suas alegações, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
" I- A decisão recorrida errou na apreciação da prova ao dar como provados os factos 12º e 13º que deviam ser julgados não provados, sendo que o facto 14, merece a alteração até 15 minutos depois da hora de saída (20h15), uma vez que todos foram unanimes em afirmar que a mulher e filha do autor ainda ficaram um quarto de hora depois da hora estipulada para a saída das visitas.
II- Errou do mesmo modo ao dar como não provados os factos A) a K) que merecem ser revistos no sentido de provados, em face dos depoimentos das testemunhas M. e E., do relatório de perícia medico legal junto aos autos em 11/06/20219 e do cômputo da prova documental produzida.
III- Por simplicidade e por simples cautela, pois entendemos que não faz muito sentido que se coloquem nas conclusões os extratos das transcrições dos depoimentos das testemunhas que se defende impor resposta diferente à matéria de facto, dá-se aqui por reproduzida a transcrição parcial dos depoimentos das referidas testemunhas feitas nos artigos 7º e 8º destas alegações.
IV- Deve-se acrescentar à matéria provada, em face da prova documental e relatórios periciais produzidos, que o autor foi objeto da primeira intervenção de cirurgia vascular do Hospital de São João do Porto pelas 11h0 (cfr – diário clinico de internamento n.º 14007335 do HSJP que regista a entrada no serviço às 10h16 do dia 25/2/2014 e resposta ao quesito 8º do réu da perícia medico legal junta em 11/06/2019 entre outros documentos).
V- Os depoimentos das testemunhas M. e E., são merecedores de crédito, não merecendo a desvalorização apontada na sentença.
VI- O lapso no relatório médico legal quanto à hora de entrada no Hospital de São João, não invalida o saber e a prova produzida pelo relatório em questão, nomeadamente a respeito da vigilância a que o autor devia ter sido sujeito e dos exames que lhe podiam ou deviam ter sido feitos e da causalidade entre o tempo decorrido desde a perda de irrigação sanguínea no membro inferior direito do autor e a intervenção cirúrgica de cirurgia vascular para restabelecimento da vascularização.
VII- De todo o modo, no caso dos autos em que um hospital transfere por sua iniciativa, para outro hospital por volta da 01h00 da manhã um doente que operou, na manha do mesmo dia, para o tratar de uma complicação decorrente do serviço que prestou, constitui um caso de comissão, sujeito ao regime do disposto no artigo 500º do Código Civil, pelo que não o iliba da culpa que possa resultar do atraso na intervenção de cirurgia vascular, comprometida pelo hiato temporal entre esta intervenção (cerca das 10h30 do dia 25/2/2014) e o inicio da complicação atraso, como decorre do relatório médico legal, quer a perda de irrigação tenha ocorrido às 21h30 do dia 24/02/2014 como diz o réu, quer tenha ocorrido a seguir à entrada na enfer , por volta das 15h00 do mesmo dia, como sentiu e diz o autor.
VIII- É ainda de aplicar aos cuidados de saúde e responsabilidade por atos médicos o regime de prova previsto no artigo 799º, incumbindo num caso como o dos autos em que o autor entrou no hospital réu para ser operado com vista à redução e consolidação de uma fratura na perna direita e acaba por ver essa perna amputada por outro hospital para onde o réu o mandou a meio da noite, onde apenas foi feita a intervenção cirúrgica, para o restabelecimento da circulação sanguínea, 13 a 19 horas depois da interrupção da circulação sanguínea.
IX- Cumpria ao réu provar que não foi por culpa sua ou do seu comissário Hospital de São João, que aquele resultado se produziu.
X- O presente recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente, nos termos do n.º 3 artigo 635º do CPCivil, não se restringindo nas conclusões o objeto do recurso, para efeitos do disposto no n.º 4 do mesmo artigo.
XI- Violou a sentença recorrida por erro de interpretação, desatenção e aplicação entre outros o disposto nos artigos 500º e 799º do Código Civil.
XII- Termos em que deve proceder o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por outra que altere a matéria de facto nos termos propostos e a decisão de direito e julgue a ação procedente”.
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3 . O R./Recorrido, CENTRO HOSPITALAR (...), EPE, apresentou contra alegações, concluindo do seguinte modo:
I- Conscientes do trilhar espinhoso do caminho, porém a quo animo, concluiremos nos pontos subsequentes o nosso entendimento fruto de uma representação ponderada da doutrina e jurisprudência, assente numa incursão expressiva destes institutos, com a certeza de que “Da mihi factum, dabo tibi jus”;
II- O ora Recorrido pugna pela manutenção da decisão proferida pelo juiz a quo, porquanto, interpretou e aplicou correctamente aos factos constantes dos autos às normas de direito que lhe eram aplicáveis, sendo certo que a prova testemunhal e documental em que assenta a sua convicção e fundamentação encontra-se, ipsis verbis, em absoluta consonância com o provado em sede de audiência de julgamento;
III- A decisão recorrida aplicou as regras subjacentes ao instituto do onus probandi, pois que, caberia ao Recorrente, não obstante aplicação dos princípios que regulam o nexo de causalidade no campo médico se revestirem de particular dificuldade, provar, pelo menos com grande probabilidade, que a ocorrência dos factos geradores do dano resultaram do incumprimento e /ou de cumprimento defeituoso;
IV- Na mesma senda, a decisão recorrida merece acolhimento em toda a sua linha de raciocínio, maxime quando considera como provados12.º e 13.º e não provados os factos A) a K), afastando do corpo clínico do Recorrido a responsabilidade pelo desenlace da cirurgia efectuada, atenta a prova produzida nos autos, testemunhal, pericial e documental.
V- Com efeito, do cômputo da prova testemunhal produzida, veja-se os depoimentos testemunhas, C., S., A., J., M. e A., que aqui se dá por reproduzida a transcrição parcial dos seus depoimentos, que afirmaram de forma clara, espontânea e isenta, merecedores de todo o crédito, que ao Recorrente foi oferecida toda a disponibilidade de meios, técnicas e cuidados, pese embora os problemas neurovasculares de que veio a padecer, que não eram àquele desconhecidos.
VI- Mais esclareceram o douto Tribunal que, a fim de prevenir a ocorrências intra e pós-operatórias, o Recorrente foi internado três dias antes da cirurgia de modo a ser efectuada profilaxia prévia, não obstante, ficou amplamente demostrado que apesar de todo o cuidado e uso de todos os meios e práticas médicas ao alcance não foi possível evitar a sua ocorrência, porque aqui também manda a mãe natureza, e as características próprias e individuais de cada um ditam o resultado final;
VII- A sentença recorrida não padece pois de qualquer erro ou vício quando dá como provado que ao Recorrente não se impunha lançar mão de qualquer outra técnica ou meio, ou de que os mesmos não foram usados com o devido rigor e diligência;
VIII- Demonstra-se claro que, in casu, nos encontramos perante uma situação subsumível ao regime responsabilidade civil extracontratual decorrente de um ato praticado no exercício da função administrativa;
IX- Não obstante da existência de um regime próprio, os pressupostos em que assenta a responsabilização ao abrigo da Lei n.º 67/2007 de 31/12, coincidem com os pressupostos comuns da responsabilidade civil prevista no artigo 483º do Código Civil;
X- Assim, para que seja imputada responsabilidade ao aqui Recorrido, é necessário que, tenha ocorrido facto voluntário, ilícito e culposo, de que resultaram danos para a Recorrente, e que do facto praticado e os danos verificados se possa estabelecer o indispensável nexo de causalidade;
XI- Ora, essencialmente o Recorrente imputa ao Recorrido negligência médica na (falta) prestação de cuidados no pós – operatório, os quais concorreram para o desenlace final, i. e., amputação do membro inferior direito, que de per si configuram um ato, o ato do qual nasceram todos os males e por via do qual a A. entende haver fundamento para o direito a que se arroga;
XII- Porém, o facto do resultado pretendido com o tratamento prescrito não ser obtido não significa que isso se ficou a dever a falta censurável ou ilícita. E isto porque a obrigação do médico consiste, apenas e tão só, em prestar ao doente os tratamentos exigidos pelo seu estado, com vista a restituir-lhe a saúde ou minorar-lhe os padecimentos, nela não estando incluída a obrigação de garantir o seu êxito;
XIII- A circunstância do resultado desejado não ter sido alcançado não significa que as opções tomadas não tenham sido as devidas ou as mais aconselháveis no momento em que ocorreram tanto mais quanto é certo que, sendo a natureza e a constituição física de cada doente diferente e única, não é possível garantir que a terapêutica que resultou nuns casos resulta em todos os demais. E, porque assim é, não se pode afirmar que o médico errou só porque o doente não reagiu ou reagiu mal ao tratamento ministrado (Vd. A. Henriques Gaspar “A Responsabilidade Civil do Médico”, in Coletânea de Jurisprudência, ano III, 1978, Tomo I, pg. 342.);
XIV- À luz dos princípios acabados de expor, a análise dos factos permite-nos ter por adquirido de que a aparente anormalidade da evolução do estado de saúde do Recorrente após cirurgia possa ter decorrido de violações das regras de ordem técnica e científica ou de experiência e prudência comum que deviam ser observadas e que tal determine a responsabilidade civil do Recorrido;
XVI- E isto porque, sendo a obrigação deste uma obrigação de meios e não de resultados, a ocorrência daquelas complicações não ter conduzido ao resultado pretendido não significa que o seu corpo clínico agiu de forma ilícita e culposa. Sendo certo que, só uma conduta com violação daquelas regras, isto é, com a prática de atos ilícitos e culposos é suscetível de fundamentar um pedido indemnizatório como o formulado nos autos, o que, desde já se adianta, não sucede in casu;
XVII- Decorre do probatório que o Recorrente, após o acto cirúrgico, que decorreu sem qualquer intercorrência, foi admitido na unidade de cuidados pós-anestésicos – recobro – em cumprimento do protocolo instituído, garantindo-se que o Recorrente recuperasse da anestesia, da consciência e reflexos, da normalidade dos sinais vitais, a que se seguiu a sua transferência para a unidade de internamento do serviço de ortopedia, onde deu entrada pelas 16 horas e, conforme se pode alcançar de toda a prova produzida nos autos, foi sujeito à avaliação do Status, e no que para os presentes autos interessa, da vigilância da sensação táctil, do movimento articular activo e da perfusão tecidular periférica, e onde permaneceu em monitorização contínua;
XVIII- Ora, está amplamente provado, resulta da saciedade da prova testemunhal e documental que os serviços do Recorrente deram ao Recorrente o tratamento que consideraram mais adequado não se tendo demonstrado que o mesmo não era o mais aconselhável nem o mais apropriado às circunstâncias do caso e, igualmente, não ficou demonstrado que o juízo feito pelos profissionais do Recorrente acerca dos procedimentos técnicos a adotar, foi errado e que este erro se ficou a dever a falta de cuidado, de ponderação ou dos conhecimentos técnicos e científicos que lhes eram exigíveis;
XIX- Não se provando este elemento fundamental da obrigação de indemnizar, despiciendo se torna toda e qualquer consideração aos demais elementos constitutivos da obrigação de indemnizar;
XXIn fine, importará referir e afastar qualquer tipo de relação entre o Recorrido e o CHSJ, a título ao abrigo do regime instituído entre comitente e comissário”.
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E termina:
Por todo o exposto, devem Vossas Excelências, em abono do princípio legal da liberdade de julgamento consagrado no artigo 607.° do CPC e do princípio constitucional do direito à justiça, apreciar a decisão proferida, à luz de todos os elementos de prova que estão carreados para os Autos, e concluir-se pela CONFIRMAÇÃO da decisão proferida".

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4 . O Digno Magistrado do M.º P.º neste TCA, notificado nos termos do art.º 146.º n.º 1 do CPTA, nada disse.
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5 . Sem vistos, mas com envio prévio do projecto aos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
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6 . Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 690.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts.1.º e 140.º, ambos do CPTA, bem como, a título subsidiário, da ampliação do âmbito do recurso, peticionada pela recorrida Infraestruturas de Portugal, SA., (???? deduzida nas contra alegações.

II
FUNDAMENTAÇÃO
1 . MATÉRIA de FACTO
1 . 1 - São os seguintes os factos fixados na decisão recorrida:
1. No dia 24.02.2014, no CENTRO HOSPITALAR (...), EPE, o autor foi submetido a intervenção cirúrgica de pseudoartrose do fémur direito + redução e fixação com placa e parafuso + colocação de excerto ósseo heterólogo – facto não controvertido, atento o art.º 1.º da contestação;
2. Essa intervenção cirúrgica foi precedida de avaliação pré-anestésica em 26.12.2013, na qual se concluiu poder ser agendada a cirurgia proposta se as análises e eletrocardiograma não apresentassem alterações relevantes, devendo ser agendada co-imunoterapia para substituição do Varfine por heparina de baixo peso molecular (HPMB) e fazer profilaxia de endocardite bacteriana – facto não controvertido, atendo o art.º 1.º da contestação;
3. Tendo o autor sido internado logo em 21.02.2014, tendo em vista a realização de profilaxia de enoxaparina, realização de análises clínicas, estudo de coagulação (avaliação de Imunohemoterapia) e profilaxia de endocardite;
4. Com efeito, o autor era considerado pelo CHTS doente de risco, devido aos seus antecedentes clínicos, nomeadamente cirurgia cardíaca (estenose mitral sem substituição valvular), HTA (hipertensão arterial), dislipidemia, epilepsia, e hiponatremia crónica, tratando-se de um doente hipocoagulado;
5. Após os devidos esclarecimentos no que concernia à realização da intervenção cirúrgica e os respetivos riscos que podia representar, em especial nas vertentes anestésica e neurovascular, o autor concordou com a realização da mesma;
6. Foi cirurgião na intervenção cirúrgica em questão o Dr. C., médico ortopedista do quadro clínico do CHTS – facto não controvertido, atento o art.º 1.º da contestação;
7. Durante a cirurgia o autor sofreu perdas sanguíneas elevadas com necessidade de suporte transfusional – facto não controvertido, atento o art.º 1.º da contestação;
8. Tendo a intervenção decorrido sem qualquer complicação intra-operatória ou efeito adverso, apenas com as referidas perdas hemáticas mencionadas no ponto anterior, para as quais foi assegurado o respetivo suporte transfusional;
9. Após a realização da cirurgia, o autor foi admitido na unidade de cuidados pós-anestésicos (recobro), local onde ficou ao cuidado da respetiva equipa médica e de enfermagem;
10. De seguida, após a alta dessa unidade de cuidados pós-anestésicos, o autor regressou ao internamento no serviço de ortopedia;
11. A enfermeira responsável pela enfer em que o autor foi internado após a cirurgia era a F.;
12. À avaliação efetuada apresentava-se calmo, colaborante, com discurso coerente, orientado no tempo e no espaço, dor em grau reduzido a nível do membro inferior direito, movimento articular ativo com perfusão dos tecidos, coloração da pele normal com temperatura da extremidade normal, e sensação táctil preservada;
13. Avaliação que foi sendo realizada ao longo da tarde, sem sinais de alarme;
14. Durante a tarde do dia 24.02.2014, o autor esteve acompanhado quer pela mulher, quer pela filha, até à hora de saída das visitas (20 horas);
15. Pelas 21:30 horas, no seguimento de avaliação feita ao autor, verificou-se alteração de temperatura e da coloração da pele, diminuição do tato e mobilidade reduzida do pé direito, mas com dorsiflexão do tornozelo conservada;
16. De imediato, foram tomadas medidas para reversão do quadro, designadamente a aplicação de aquecimento, e foi depois contactada a equipa do serviço de urgência na especialidade de ortopedia para avaliação do autor;
17. Do exame realizado ao autor no CENTRO HOSPITALAR (...), EPE, que antecedeu a alta na noite de 24.02.2014 para 25.02.2014, resultou que este apresentava franca diminuição de temperatura do pé, com hipotesia do pé e dedos e diminuição de mobilidade, sem pulso palpável e com ginástica capilar indefinida – facto não controvertido, atento o art.º 1.º da contestação;
18. Tendo sido contactado o Hospital de São João, no Porto, especialidade de cirurgia vascular de urgência, tendo ficado decidido transferir o autor para observação por aquela especialidade;
19. Unidade na qual o autor deu entrada por volta da 01:00 horas do dia 25.02.2014, e aí permaneceu;
20. Constatou-se que o autor padecia de trombose da artéria femoral, complicação associada à intervenção cirúrgica, descrita e prevista na literatura médica, e da qual o autor tinha conhecimento;
21. No referido Hospital de São João, no dia 25.02.2014, o autor foi submetido a duas intervenções cirúrgicas: construção de bypass femoro-poplíteo infra-articular com veia grande safena invertida contra-lateral; e fasciotomia fechada do compartimento anterior da perna;
22. Não obstante essas intervenções cirúrgicas, a situação evoluiu para gangrena, pelo que, em 10.03.2014 o autor foi submetido a amputação do membro inferior direito abaixo do joelho;
23. Pelo que o autor acabou por ficar sem a perna direita – facto não controvertido, atento o art.º 1.º da contestação;
24. O autor ficou com a sua mobilidade e autonomia irremediavelmente reduzidas – facto não controvertido, atento o art.º 1.º da contestação;
25. Tinha carro, que conduzia, e agora não o pode fazer, dado que a viatura não é adaptada;
26. Era uma pessoa que prezava a sua autonomia, e não dependia de quem quer que fosse;
27. Após perder a perna, ficou dependente dos familiares, incluindo para o auxílio para realizar a sua higiene pessoal;
28. Era uma pessoa alegre e de bom humor, e após perder a perna ficou triste, deprimido e desgostoso;
29. Chora com frequência, manifestando pouca vontade de viver;
30. A perna esquerda, fruto do maior esforço que o autor tem de fazer em virtude da amputação, apresenta-se inchada nas articulações, com dores ao final do dia;
31. Em consequência da perda da perna, o autor passou a ser portador de um défice funcional permanente na sua integridade física na ordem dos 30%.

1 . 2 - São os seguintes os Factos dados como NÃO provados:

A) No mencionado dia 24.02.2014, o autor desceu para o bloco operatório pelas 07:00 horas, tendo subido para a enfer pelas 15:00 horas;
B) Desde que saiu do recobro, o autor queixou-se por diversas vezes quer à enfermeira F. quer à esposa e à filha que não sentia a canela e que tinha os dedos do pé adormecidos;
C) A partir de determinada altura começou a sentir a perna fria, do que também se queixou;
D) A enfermeira F. não ligou minimamente às queixas do autor, da esposa e da filha, dizendo repetidamente que era assim, que era normal, que todos diziam o mesmo;
E) Mostrou-se até arreliada com a insistência da mulher do autor e da filha para que visse a perna do autor ou chamasse um médico, parecendo interpretar essa insistência e preocupação como um desrespeito pelo seu saber técnico;
F) Nunca olhou sequer para a perna do autor, nem lhe fez qualquer apalpação, pelo menos no período entre as 15:00 e as 20:15 horas;
G) Foram mais de dez vezes as chamadas de atenção do autor, esposa e filha para que a referida enfermeira ou alguém examinasse a perna do autor ou chamasse o médico, entre as 15:00 horas e as 20:15 horas;
H) Durante esse tempo, a dita enfermeira, tal como os demais auxiliares, limitou-se a verificar o nível do soro e administrar o soro e medicação através do soro, além da visualização nesses momentos do visor do ritmo cardíaco e tensão arterial;
I) E ainda durante o mesmo período o autor não foi examinado por qualquer outro médico e enfermeiro;
J) Aliás, o autor não foi examinado por ninguém até por volta da meia-noite, altura em que alguém médico ou enfermeiro se apercebeu que a perna direita do autor estava muito mal;
K) O ortopedista que observou o autor, conforme referido em 17 dos factos provados, decidiu reencaminhá-lo para o Hospital de São João porque não sabia o que fazer.
2 . MATÉRIA de DIREITO

No caso dos autos, tendo em consideração, a sentença recorrida e as alegações apresentadas pelo recorrente, maxime, as suas conclusões, supra transcritas, importa saber se aquela fez correcta aplicação das normas legais aplicáveis atenta a factualidade provada, também supra descrita, ou melhor, no essencial, importa analisar os vários pontos da matéria de facto provada e não provada que se mostram questionados, na medida em que condicionam a subsunção jurídica subsequente.
O recorrente, sujeito a uma intervenção cirúrgica no CENTRO HOSPITALAR (...), EPE, ora Réu/Recorrido – doravante, por razões de simplicidade, também designado apenas por Hospital ou Centro Hospitalar -, na sequência da qual lhe foi amputada a perna direita, inconformado com a decisão absolutória do pedido efectivado nos autos, questiona neste recurso essencialmente a matéria de facto, sendo certo – convenhamos – que, em caso de adesão deste Tribunal de recurso à sua tese, importaria a eventual procedência do recurso, com a consequente procedência da acção, ou, pelo menos, parcial procedência.
Mas e antes de mais, focalizando o cerne do recurso em análise, importa dizer que a sentença recorrida, depois de fixados os factos provados (e os não provados) e exarada abundante fundamentação quanto a essa factualidade --- dignificante do tribunal, pois – aceite-se ou não, o que constitui matéria diversa – dá-se conta pormenorizada dos depoimentos prestados, demais elementos probatórios, com especial pormenor e cuidado, essencial na aplicação da Justiça ---, na abordagem jurídica, alinhados os pressupostos da responsabilidade civil ou aquiliana, de acordo com a melhor jurisprudência e doutrina – que não vamos aqui repetir, por manifesta desnecessidade -, concluiu pela inverificação de uma actuação ilícita e culposa por parte do Réu.
Por ter interesse, relembremos, desde já, nesta parte, o discurso fundamentador jurídico exarado pelo Sr. Juiz de direito do TAF de Penafiel.
Aí se exarou:
Vem proposta a presente ação administrativa comum pela qual o autor pretende responsabilizar o réu CHTS pela amputação sofrida na sua perna direita, em consequência de complicações surgidas em contexto pós-operatório a uma intervenção cirúrgica de natureza ortopédica, designadamente para tratamento de uma pseudoartrose.
Resumidamente, o autor alega que se queixou à sua esposa e filha, logo que regressou ao internamento, de não sentir o pé direito, o que foi transmitido à enfermeira de serviço, que terá respondido ser normal; e esta última não ligou às queixas, não obstante ter sido alertada mais de dez vezes, e nenhuma vigilância foi feita ao autor no sentido de verificar o estado da perna, pelo menos entre as 15:00 horas e as 20:00 horas. Acabou o autor por ser transferido para o CH de São João, tendo sido aí submetido a várias intervenções cirúrgicas, mas sem sucesso, evoluindo a situação para gangrena, obrigando à amputação da perna.
Por seu lado, o réu CHTS nega qualquer espécie de responsabilidade, afirmando que prestou ao autor todos os cuidados de saúde nos termos em que lhe eram exigíveis, e que a trombose era um dos riscos associados à cirurgia, conhecido pelo autor. Em relação a este, foi mantida a vigilância e, quando detetada a alteração no membro, foram desencadeados os mecanismos necessários para a reversão do quadro, tendo sido chamado o serviço de urgência de ortopedia, que optou por transferir o autor para o CH de São João, hospital de referência para a especialidade de cirurgia vascular de urgência, que não existe no CHTS em serviço noturno.
Pois bem, assim sendo, temos então que o autor funda o seu pedido no instituto da responsabilidade civil extracontratual.
Nessa medida, tem aplicação in casu o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, aprovado e publicado em anexo à Lei n.º 67/2007, de 31.12 [doravante, e de modo abreviado, apenas RRCEE].
Com efeito, este regime legal confere corpo e sentido à previsão do art.º 22.º da CRP, de acordo com o qual o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
Mais concretamente, in casu estamos perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual emergente do exercício da função administrativa.
Ora, não obstante este regime legal especial, com as especificidades que o mesmo encerra, é entendimento pacífico, e ao que se sabe até unânime, que os pressupostos da responsabilização coincidem com os que se encontram previstos no Código Civil para a responsabilidade civil extracontratual; ou seja, é necessário que estejamos na presença de um facto voluntário, ilícito e culposo, do qual tenham resultado danos, e ainda que entre estes e o facto se estabeleça o necessário nexo de causalidade.
Neste sentido, no acórdão do TCA Norte de 26.10.2018, proferido no processo n.º 00183/14.5BECBR, ficou escrito que “a responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública do Estado e demais pessoas coletivas por facto ilícito, coincide, no essencial, com a responsabilidade civil consagrada no art. 483º do Código Civil, dependendo a obrigação de indemnizar da verificação cumulativa dos pressupostos: facto, ilicitude, culpa, nexo de causalidade e dano.”
Esta ideia é também afirmada, por exemplo, nos acórdãos do STA de 26.11.2003, proferido no processo n.º 01019/03, e de 10.05.2006, proferido no processo n.º 0246/04; ou ainda no acórdão do TCA Sul de 04.04.2019, proferido no processo n.º 90/14.9BELSB, entre muitos outros"
E continua, depois de fazer alusão ao regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas e seus pressupostos cumulativos (facto voluntário, ilícito e culposo do qual tenham resultado danos e ainda entre estes e o facto se estabeleça o necessário nexo de causalidade):
"Importa, deste modo, saber se esses pressupostos se verificam no caso concreto, sendo certo que, além do já referido, existe ainda a especificidade de a questão colidir com responsabilidade civil decorrente da prestação de cuidados de saúde/ato médico.
Vejamos.
Começando então pelo facto voluntário.
Para que a alguém possa ser assacada a responsabilidade pelos danos causados a terceiro, terá de concluir-se pela existência da prática ou da omissão de certa conduta. Ao dizer-se que a atuação ou omissão tem de ser voluntária, isso significa que o facto tem de ser controlável pela vontade humana, sendo por isso de afastar a responsabilidade sempre que o facto decorra de causas alheias à vontade, como são os casos em que decorrem de eventos naturais catastróficos, ou em que decorre de forças irresistíveis.
Como se disse no acórdão do TRL de 11.02.2014, proferido no processo n.º 5826/05.6TJLSB.L1-1, “facto voluntário significa apenas facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade. Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas.”
Em sentido idêntico, Diogo Freitas do Amaral [“Curso de Direito Administrativo”, volume II, 3.ª Edição, Almedina, 2016, pág. 584] explica o seguinte: “(…). A voluntariedade de tais factos significa apenas que os mesmos têm de ser objetivamente controláveis ou domináveis pela vontade. Como ensina Antunes Varela, «para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o ato ou omissão; não é necessária uma conduta predeterminada, uma ação ou omissão orientada para certo fim (uma conduta finalista). Fora dos casos da responsabilidade civil ficam apenas os danos provocados por causas de força maior ou pela atuação irresistível de circunstâncias fortuitas (pessoa que é irresistivelmente impelida por força do vento…)»”.
Naturalmente que compete ao lesado fazer a alegação e a prova do facto, constitua ele uma atuação ativa ou omissa.
Pois bem, no caso concreto está provado que o autor foi sujeito a uma operação cirúrgica no CHTS – cf. pontos 7 a 9 dos factos provados. Resulta claro que esta intervenção constitui um facto voluntário, que, aliás, não é apenas controlável pela vontade, como ainda depende dessa vontade. Além disso, está também demonstrado que, após a cirurgia e respetivo recobro, o autor esteve internado na respetiva enfer, a fim de serem prestados os devidos cuidados pós-operatórios – cf. pontos 10 a 13 dos factos provados. Também aqui o internamento do autor constitui um facto voluntário, sujeito à decisão dos serviços do réu.
Neste sentido, encontra-se preenchido o primeiro pressuposto legal.
Não obstante o preenchimento desse pressuposto legal, que permita avançar na análise para o preenchimento dos demais, cumpre desde já avançar que dos factos provados não se pode retirar o preenchimento da ilicitude ou da culpa...”.
Depois, tendo concluído pela verificação do pressuposto - facto voluntário - continua:
"Não obstante o preenchimento deste pressuposto legal, que permita avançar na análise para o preenchimento dos demais, cumpre desde já avançar que dos factos provados não se pode retirar o preenchimento da ilicitude ou da culpa.
Quanto à ilicitude.
Acerca deste conceito, o art.º 9.º do RRCEE estabelece no seu n.º 1 que se consideram ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
Analisando este preceito, Carlos Alberto Fernandes Cadilha afirma que a última parte do mesmo “deixa claro que o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objectivamente antijurídico (…) exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (…)” – cf. Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2011, pág. 178.
Portanto, daqui decorre que o preenchimento da ilicitude não se pode reconduzir a uma mera violação do ordenamento jurídico (ou seja, de um preceito normativo, seja ele constitucional, legal ou regulamentar), implicando ainda que se possa concluir pela ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido.
Além disso, impõe-se constatar que o caso vertente diz respeito a responsabilidade decorrente de atos médicos. Especificamente, neste âmbito cumpre atentar no conceito de cumprimento das leges artis. Podem ser escritas (v.g., constar da literatura médica) ou não escritas.
Assim, sobre este conceito de leges artis no acórdão do STA de 13.03.2012, proferido no processo n.º 0477/11, condensou-se o seguinte entendimento: “As leges artis, quando não escritas, são métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazes.”
Esta noção foi acolhida, por exemplo, no acórdão do mesmo STA de 10.09.2014, proferido no processo n.º 0812/13, ou em acórdão do TCA Sul de 05.05.2016, proferido no processo n.º 08411/12.
Pois bem, e como já se adiantou, in casu não ficou provada qualquer violação das leges artis que seja suscetível de preencher o conceito de ilicitude.
Com efeito, o autor começa por alegar, quanto à intervenção cirúrgica, as perdas hemáticas. Basicamente, quer dizer que o autor sangrou durante o procedimento. Ora, não foi feita prova, nem sequer alegação, que essas perdas hemáticas não constituam um efeito típico deste tipo de cirurgia. Sendo certo que, em todo o caso, ficou nestes autos provado pelo réu que a intervenção em causa decorreu sem qualquer complicação intra-operatória, e que para as perdas sanguíneas foram assegurados os respetivos suportes transfusionais, como não podia deixar de ser – cf. ponto 8 dos factos provados. De resto, numa cirurgia como a que o autor foi submetido (como em muitas), dada a necessidade de corte de tecidos até chegar ao local da fratura, é normal o sangramento; note-se que a operação ao autor consistiu em intervencionar pseudoartrose do fémur direito, com redução e fixação com placa e parafuso e colocação de enxerto ósseo heterólogo, tratando-se por isso de uma intervenção com relevo. E, além da perda de sangue, nada vem alegado sobre um erro médico nessa intervenção, v.g., o corte de uma veia, a aplicação errada da técnica cirúrgica, etc…
Nem segundo ponto, a alegação de ilicitude diria respeito à omissão do dever de vigilância do autor no internamento, após a cirurgia. Ou seja, o autor alegava que se queixou várias vezes (à mulher e à filha, e estas à enfermeira) da perna direita, sem que a enfermeira responsável pelo serviço tivesse considerado minimamente essas queixas, o que teria permitido a evolução da situação, que se veio a constatar ser trombose, conduzindo à gangrena, e necessidade de amputação.
No entanto, como se colhe do respetivo elenco de factos não provados, não ficou demonstrada essa factualidade. Pelo contrário, ficou até provado que a avaliação foi feita logo que o autor regressou do recobro – facto provado do ponto 12 – e que essa avaliação foi sendo efetuada ao longo da tarde – cf. ponto 13 dos factos provados.
Como tal, não é possível concluir que o CHTS tenha incumprido as regras técnicas de vigilância do autor no pós-operatório, com a inerente violação das boas práticas médicas que assim o imporiam. Tanto quanto se apurou, o CHTS prestou ao autor os cuidados devidos, sem omissão do dever de vigilâncias dos sinais pós-operatórios.
E, assim sendo, não se pode concluir por qualquer facto ilícito.
Da mesma forma, impõe-se concluir que nenhuma culpa pode ser assacada ao réu.
Neste âmbito, cumpre essencialmente ter em atenção o disposto no n.º 1 do art.º 3.º do RRCEE, preceito que reza nos seguintes termos: “a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.”
Com efeito, e analisando esta disposição, a culpa corresponde a um nexo de imputação ético-jurídica do facto ao agente. Em resumo, pode ocorrer de acordo com duas modalidades essenciais: dolo ou negligência. Estas formas de culpa separam-se essencialmente pela intencionalidade do agente: no primeiro caso, o agente tem intenção de praticar o facto (a conduta ativa ou omissiva); no segundo caso, essa intenção não existe, mas a atuação do agente não correspondeu ao que lhe era exigível, pelo que a mesma é censurável e, por isso, deve ser-lhe imputada a prática ou a omissão danosa.
Do n.º 1 do art.º 3.º acima citado resulta um apelo à ideia do titular de órgão, funcionário ou agente médio, ou seja, tendo por base a diligência que normalmente seria de exigir a alguém zeloso e cumpridor colocado perante as mesmas circunstâncias. Não constitui um critério alheio ao que resulta do art.º 487.º, n.º 2, do Código Civil, aí se apelando igualmente à ideia do homem médio.
Mas note-se: a culpa deve ser apreciada em função das circunstâncias de cada caso, não podendo corresponder a um mero exercício de abstração. Noutros termos, a existência ou não de culpa apura-se em concreto, à luz do circunstancialismo em que o facto se verificou.
Também não é despiciendo, nesta sede, recordar a natureza da obrigação que é assumida pelo réu Centro Hospitalar e, por inerência, pelos médicos e enfermeiros que nele prestam serviço.
De facto, estamos perante uma obrigação de meios, e não de resultados, o que significa que o réu não estava obrigado a curar o autor do respetivo problema, mas sim a enveredar todos os esforços e aplicar todos os meios e conhecimentos necessários no sentido de procurar debelar a lesão, tanto quanto possível, aplicando todos os seus esforços nesse sentido, e tudo fazendo para obviar aos riscos conhecidos do tratamento. É sob este prisma que deve apreciar-se a eventual culpa do réu, ou seja, se atuou no sentido de proporcionar ao autor os cuidados exigíveis, à luz dos riscos próprios do tratamento a que foi sujeito.
À luz destes considerandos, está antes de mais provado que o autor era considerado, na perspetiva do CHTS, um paciente de risco, pelos seus antecedentes clínicos – cf. facto provado do ponto 4; bem como que o autor, conhecendo os riscos da operação (incluindo a trombose) concordou com a realização do procedimento – cf. factos provados dos pontos 5 e 20. Está ainda provado que o CHTS considerou essas circunstâncias e o autor foi internado logo em 21.02.2014, para realização da respetiva profilaxia – cf. ponto 3 dos factos provados. Pelo que, até este ponto, nenhuma conclusão se pode retirar quanto à existência de culpa do CHTS.
Depois, ficou provado que a operação decorreu sem qualquer complicação intra-operatória, ou efeito adverso, tendo o réu assegurado o necessário suporte transfusional para as perdas hemática associadas ao procedimento – cf. facto provado do ponto 8. Não está demonstrado qualquer facto que permita dizer que a operação violou as regras da literatura médica, atuando os médicos do réu com diligência inferior à devida. A verdade é que o autor apenas se refere às perdas hemáticas como sendo algo anormal, sem, no entanto, demonstrar essa anormalidade (a qual, como já exposto quanto à ilicitude, não existe), ou que tenham resultado de um erro dos médicos.
Em seguida, temos a questão da deteção da trombose e do internamento. E, neste caso, também nada se provou no sentido de se poder concluir que os serviços do CHTS não dispensaram ao autor a atenção devida, nomeadamente a vigilância pós-operatória neurovascular. Desde logo, a trombose era um dos riscos associado ao procedimento, como provado, estando descrito na literatura médica, e que era do conhecimento do autor – cf. ponto 20 dos factos provados.
Depois, ficou provado que os sinais de alarme foram detetados pelas 21:30 horas, na sequência de queixa apresentada pelo autor junto da enfermeira de serviço; e que, de imediato, os serviços do CHTS tomaram medidas para a reversão do quadro, nomeadamente a aplicação de aquecimento, e depois a solicitação ao serviço de urgência – cf. ponto 16 dos factos provados. Mais ficou decidido, após o resultado do exame realizado, transferir o autor para o CH de São João, no qual deu entrada por volta da uma da manhã já do dia 25.02.2014 – cf. factos provados dos pontos 17 a 19.
Ou seja, tanto quanto decorre dos factos provados, e uma vez que o risco de trombose era conhecido da literatura médica, não existe nenhum facto do qual se permita concluir pela culpa do CHTS na ocorrência da própria trombose (como dito, era um risco associado e, portanto, uma complicação que poderia ocorrer) ou na omissão do devido tratamento, sendo certo que a transferência para o CH de São João ficou decidida pelo contacto com o serviço de urgência de cirurgia vascular deste hospital (do que se pode concluir que, àquela hora pelo menos, o CHTS não dispunha desse serviço de urgência). Pelo contrário, entre o momento dos sinais de alarme e a entrada no CH de São João decorreram cerca de três horas e meia.
Assim sendo, o réu CHTS atuou de acordo com o que era suposto e lhe era exigido, prestando ao autor todos os cuidados inerentes ao seu estado e de modo a reverter o quadro registado, sem que dos factos provados se possa afirmar que atuou de modo negligente, seja antes, durante ou após a cirurgia.
Pelo exposto, constata-se então que existem dois pressupostos que não se encontram preenchidos. E, na medida em que o preenchimento dos requisitos subjacentes à responsabilidade civil extracontratual tem natureza cumulativa, tal é suficiente para, desde já, concluir pela improcedência da presente ação administrativa comum, com prejuízo para o conhecimento dos demais pressupostos.
O que, em conformidade, se decide".
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Centremo-nos, agora, no essencial deste recurso, sem prejuízo da pertinência do referido anteriormente para melhor se enquadrar o que, de importante, se decidiu na sentença e da sua ratio decidendi.
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Antes, porém, de entrarmos na análise específica e crítica das provas levadas em consideração para se obterem os factos provados, importa que clarifiquemos alguns conceitos inerentes a esta matéria, de molde a balizarmos, tanto quanto possível, a sindicância possível e adequada, no que concerne à modificação da matéria de facto, dada como provada, pela 1.ª instância, ainda que com base na jurisprudência dos Tribunais Superiores da jurisdição administrativa, quer do STA, quer deste TCA, os quais já lapidaram, com rigor, esta matéria e com os quais concordamos e já temos incluído noutras decisões por nós relatadas.
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Assim, refere, a este propósito o Ac. do STA, de 19/10/2005, in Rec. 0394/05 “O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto”.
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No mesmo sentido, vai o Ac. do mesmo Tribunal, de 14/3/2006, in Rec. 01015/06, que refere que “A garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto (art. 712º C.P.Civil) deve harmonizar-se com o princípio da livre apreciação da prova (art. 655º/1 do C.P.Civil).
Assim, tendo em conta que o tribunal superior é chamado a pronunciar-se privado da oralidade e da imediação que foram determinantes da decisão em 1ª instância e que a gravação/transcrição da prova, por sua natureza, não pode transmitir todo o conjunto de factores de persuasão que foram directamente percepcionados por quem primeiro julgou, deve aquele tribunal, sob pena de aniquilar a capacidade de livre apreciação do tribunal a quo, ser particularmente cuidadoso no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto e reservar a modificação para os casos em que a mesma se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que for seguro, segundo as regras da ciência, da lógica e/ou da experiência comum que a decisão não é razoável.
Tudo a aconselhar um especial cuidado por parte do tribunal superior no uso dos seus poderes de reapreciação dos pontos controvertidos da matéria de facto (cfr., neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 2003.06.18 – rec- nº 1188/02 e de 2004.06.22 – rec. nº 1624/03).
Sob pena de pôr em causa os princípios da oralidade e da livre convicção que informam a nossa lei processual civil, o tribunal de recurso deve reservar a modificação da decisão de facto para os casos em que a mesma seja arbitrária por não se mostrar racionalmente fundada ou em que for evidente, segundo as regras da ciência, da lógica e /ou da experiência que não é razoável a solução da 1ª instância”.
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Salientamos, ainda, (face às normas do CPTA) acerca desta matéria, o que se escreveu no Ac. deste TCA Norte, de 8/3/2007, in Proc. 00110/06, a saber :
Decorre do regime legal vertido nos arts. 140.º e 149.º do CPTA que este Tribunal conhece de facto e de direito sendo que na apreciação do objecto de recurso jurisdicional que se prende com a impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal “a quo” se aplica ou deve reger-se, na ausência de regime legal especial, pelo regime que se mostra fixado em sede da legislação processual civil nesta sede.

Assim, pese embora tal regime e situações diversas temos, todavia, que referir que os poderes conferidos no art. 149.º, n.º 2 do CPTA não afastam os poderes de modificação da decisão de facto por parte deste Tribunal ao abrigo do art. 712.º do CPC por força da remissão operada pelos arts. 01.º e 140.º do CPTA porquanto o TCA mantém os poderes que assistem ao tribunal de apelação no âmbito da fixação da matéria de facto quando esta constitui objecto ou fundamento de recurso jurisdicional.

É que a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador que se mostra vertido no art. 655.º do CPC, sendo certo que, na formação da convicção daquele quanto ao julgamento fáctico da causa, não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, visto que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação e/ou na respectiva transcrição.
Na verdade, constitui dado adquirido o de que existem inúmeros aspectos comportamentais dos depoentes que não são passíveis de ser registados numa simples gravação áudio. Tal como já era apontado pelo Juiz Cons. Eurico Lopes Cardoso os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe e como tal apreendidos ou percepcionados por outro Tribunal que pretenda fazer a reapreciação da prova testemunhal, sindicando os termos em que a mesma contribuiu para a formação da convicção do julgador, perante o qual foi produzida (cfr. BMJ n.º 80, págs. 220 e 221).
Como tal, o juiz, perante o qual foram prestados os depoimentos, sempre estará numa posição privilegiada em termos de recolha dos elementos e sua posterior ponderação, nomeadamente com a devida articulação de toda a prova oferecida, de que decorre a convicção plasmada na decisão proferida sobre a matéria de facto.
Em conformidade, a convicção resultante de tal articulação global, evidencia-se como sendo de difícil destruição, principalmente quando se pretende pô-la em causa através de indicações parcelares, ou referências meramente genéricas que o impugnante possa fazer, como contrárias ao entendimento expresso.
Com efeito e como tem vindo a ser entendimento jurisprudencial consensual o depoimento de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
Segundo a lição que se extrai dos ensinamentos do Prof. Enrico Altavilla "(…) o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" (in: "Psicologia Judiciária", vol. II, Coimbra, 3ª ed., pág. 12).
Como já defendia o Prof. J. Alberto dos Reis “… É já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o que o depoente diz vale o modo por que o diz, é que se as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim a atitude e a conduta do declarante no acto do depoimento ...” (in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, pág. 137).
Daí que a convicção do tribunal se forma de um modo dialéctico, pois, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas nos autos, importa atender também à análise conjugada das declarações produzidas e dos depoimentos das testemunhas, em função das razões de ciência, da imparcialidade ou falta dela, das certezas e ainda das lacunas, das contradições, das hesitações, das inflexões de voz, da serenidade, dos “olhares de súplica” para alguns dos presentes, da "linguagem silenciosa e do comportamento", da própria coerência de raciocínio e de atitude demonstrados, da seriedade e do sentido de responsabilidade evidenciados, das coincidências e inverosimilhanças que transpareçam no decurso da audiência de julgamento entre depoimentos e demais elementos probatórios.
Ao invés do que acontece nos sistemas da prova legal em que a conclusão probatória está prefixada legalmente, nos sistemas da livre apreciação da prova, como o nosso, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto da discussão em sede de julgamento, com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
Note-se, contudo, que este sistema não significa puro arbítrio por parte do julgador.
É que este, pese embora, livre, no seu exercício de formação da sua convicção, não está isento ou eximido de indicar os fundamentos onde aquela assentou por forma a que, com recurso às regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquele processo de formação da convicção sobre a prova ou não prova daquele facto, permitindo, desta feita, sindicar-se o processo racional da própria decisão.
Aliás, a nossa lei processual determina e faz impender sobre o julgador um ónus de objectivação da sua convicção, através da exigência da fundamentação da matéria de facto (da factualidade provada e da não provada), devendo aquele analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (cfr. art. 653.º, n.º 2 do CPC).
É que não se trata de um mero juízo arbitrário ou de simples intuição sobre veracidade ou não de uma certa realidade de facto, mas antes duma convicção adquirida por intermédio dum processo racional, objectivado, alicerçado na análise critica comparativa dos diversos dados recolhidos nos autos na e com a produção das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações, sendo que aquela convicção carece de ser enunciada ou explicitada por expressa imposição legal como garante da transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por parte do julgador na administração da justiça.
À luz desta perspectiva temos que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Aliás e segundo os ensinamentos do Prof. M. Teixeira de Sousa ”(…) o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente (…)” (in: “Estudos sobre o novo Processo Civil”, pág. 348).
…Mercê do que vimos expondo ao tribunal de recurso apenas e só é dado alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa mesma decisão”.
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Feitas estas considerações dogmáticas acerca da matéria, revertamos ao caso concreto dos autos.
Analisados os autos, em especial a p.i., nos seus elementos estruturantes, seja a causa de pedir e pedido, verificamos que o A./Recorrente fundamenta o seu pedido de indemnização apenas por alegada falta de correctos e adequados cuidados médicos, no Centro Hospitalar, após a cirurgia a que foi sujeito no dia 24/2/2014, nas pessoas dos Dr. C. - um dos médicos cirurgiões que o operou - e Enfermeira Chefe F. - concretamente, falta de vigilância no pós operatório, ignorância de queixas e recusa ostensiva de vigilância/tratamento, entre as 15 horas e as 24 horas desse dia, sem que, em ponto algum, questione o serviço clínico assistencial que lhe foi presado no Centro Hospital S. João, Porto.
Contudo, antes de entrarmos na análise concreta dos pontos fácticos directamente questionados em sede recursiva, importa referir que o A. era um doente de alto risco, com muitas morbilidades associadas, hipocoagulado o que potencia, desde logo, risco tromboembólico, sendo que, também por essas razões, quando fracturou o fémur direito, numa queda, em 2/12/2012 --- mais de dois anos antes da intervenção realizada no Centro Hospitalar --- foi entendido fazer um tratamento conservador, com gesso, por alegada falta de condições anestésicas.
E foi por esse tratamento conservador não ter surtido o efeito pretendido, consolidação da fractura do fémur - objectivando-se antes uma situação de pseudoartrose --- ou seja, uma falsa articulação (tradução literal do grego), onde o osso não se regenera, não permitindo assim a consolidação da fractura, a maioria das vezes originada por má circulação, por doenças vasculares - cuja consequência, deformidade, importa, a maior parte das vezes, a incapacidade do osso suportar o peso do corpo --- que o A. foi sujeito a intervenção cirúrgica para colocação de material de fotossíntese e enxerto ósseo - uma das mais usuais terapêuticas para a correcção da pseudoartrose.
Mas, porque o A. era doente de alto risco com várias doenças associadas, a preparação cirúrgica ocorreu desde o dia 21/2/2014.
Mas ainda antes de entrarmos na análise/decisão casuística das conclusões que criticam os diversos pontos da factualidade dada como provada (e não provada) – supra transcritas -, importa, neste sede, relembrar a exaustiva fundamentação da matéria dada como provada --- já supra qualificada como muito relevante para apreensão da convicção do julgador e que muito serve para prestigiar a justiça e o cidadão - concorde-se ou não com ela --- e assim se ficar ciente das razões da decisão judicial, sendo que esta transcrição nos permite avaliar da justeza (ou não) na fixação da factualidade dada como provada.
Consta dessa longa, mas pertinente, fundamentação:
"Para obter a conclusão quanto aos factos pertinentes à decisão a proferir, considerando-os provados ou não, o tribunal considerou e analisou, de modo crítico e conjugado, à luz das regras da experiência comum, os meios de prova colocados ao seu dispor, nomeadamente os documentos, o depoimento das testemunhas e os relatórios periciais. Além disso, não deixou ainda o tribunal de considerar a posição expressa pelas partes nos respetivos articulados.
Iniciando com os factos provados.
Desde logo, constata-se que os factos provados dos pontos 1, 2, 6, 17, 23 e 24 foram assim considerados por se encontrarem admitidos por acordo, conforme expressamente resulta do art.º 1.º da contestação do réu.
Depois, a prova documental também assumiu interessante relevo. Assim, em relação aos antecedentes clínicos do autor, conforme resulta do ponto 4 dos factos provados, foram analisados desde logo os registos clínicos do Centro Hospitalar (CH) de São João, juntos aos autos a fls. 64 a 132 do respetivo suporte físico, dos quais consta que o autor era seguido em neurologia, por epilepsia, e que padecia de problema cardíaco ao qual foi operado (cf. fls. 132 do suporte físico). Da análise dos elementos documentais remetidos pelo CHTS, de fls. 436 e ss. do suporte físico dos autos, resultam igualmente demonstrados todos esses antecedentes, bem como que, por essa razão, no entender do réu o autor era considerado doente de risco. Sem prejuízo, esta conclusão também encontra sustento na prova testemunhal produzida, como abaixo se referirá.
Além disso, no que diz respeito aos tratamentos/intervenções a que o autor foi sujeito no referido CH de São João, na sequência da transferência do CHTS, conforme resulta dos pontos 18 a 22 dos factos provados, foram igualmente considerados os registos clínicos remetidos aos autos por aquela entidade, neste caso de fls. 133 e ss. e 181 e ss. do suporte físico dos autos. Sem prejuízo, deve dizer-se que dessa documentação (que constitui todo o volume II dos autos) resultam igualmente demonstrados todos os antecedentes clínicos do autor, referidos no facto provado 4.
Com efeito, feita a análise crítica desta documentação, não existe, no entender do tribunal, qualquer espécie de dúvida quanto à sua genuinidade ou à fidedignidade do seu conteúdo, traduzindo a realidade dos tratamentos a que o autor foi submetido na respetiva unidade, bem como os respetivos antecedentes clínicos, pelo que foi o bastante para firmar a convicção em relação aos factos indicados.
Ainda em matéria de prova documental, sobre o facto provado do ponto 3, ou seja, o prévio internamento do autor em 21.02.2014, foram considerados os registos clínicos juntos aos autos pelo CHTS, nomeadamente a fls. 520 do suporte físico dos autos.
Além disso, e em relação ao facto provado do ponto 5, foi considerado o documento de fls. 437 do suporte físico dos autos, do qual consta a assinatura do autor, sendo certo que o documento em questão, ou a respetiva assinatura, não foram objeto de impugnação por parte do mesmo. Trata-se do documento relativo ao consentimento informado prévio ao ato médico, neste caso a cirurgia ao fémur direito. Da mesma forma, a situação de perda sanguínea elevada durante a cirurgia, com necessidade de suporte transfusional, vem relatada no documento de fls. 445 do suporte físico dos autos, também ele não impugnado, com o que se provou o que resulta do ponto 7 dos factos provados.
Nenhum destes documentos, que foram remetidos pelo CHTS, foi impugnado, e, no que a estes factos respeita, também não existe, no entender do tribunal, qualquer dúvida de que espelham a realidade em causa.
Em relação à intervenção cirúrgica propriamente dita, ou seja, os factos provados dos pontos 6 a 9, o tribunal considerou, para além dos respetivos registos clínicos, que incluem o relato cirúrgico, os depoimentos prestados pelas testemunhas C. e S..
Quanto ao primeiro, trata-se do cirurgião principal, facto que, como se colhe do ponto 6, não está sequer controvertido. Tratou-se de um depoimento calmo, sereno, coerente e assente em conhecimento direto dos factos, já que, como dito, liderou a intervenção cirúrgica. Explicou de modo detalhado as razões pelas quais decorreu tanto tempo entre a fratura e a intervenção cirúrgica, o que se ficou a dever aos riscos representados pelo autor devido aos seus antecedentes clínicos (não tendo merecido o aval da anestesiologia), razão pela qual optaram em primeiro lugar pelo tratamento conservador (não cirúrgico) que não surtiu efeitos. Daí que tenha acabado por propor ao autor a cirurgia (ou, como o próprio disse, esta solução “impôs-se”, dada a falha da abordagem conservadora), quando a situação evoluiu para pseudoartrose, o que este aceitou, tendo sido explicado o procedimento e riscos inerentes, o que se articulou com o documento acima referido para dar por provado o facto do ponto 5. A operação decorreu normalmente, segundo a testemunha, e as perdas de sangue referidas e verificadas são normais, por se tratar de uma cirurgia major.
Ainda segundo a testemunha, a trombose constitui um dos riscos previsíveis, e por isso mesmo é que foi feita profilaxia ao autor – caso contrário, acrescentou, o anestesista nem aceitaria realizar a intervenção. Mais acrescentou que terminou a cirurgia pelas 12:30/13:00 horas, e, daí em diante, entregou o autor aos cuidados do recobro, pelo que nada mais sabe sobre o assunto (só no dia seguinte, quando regressou ao hospital, tomou conhecimento de que o autor havia sido transferido para o CH de São João). Nesta medida, além dos factos acima mencionados, contribuiu ainda para os factos provados nos pontos 9 (remessa do autor para o recobro, após cirurgia) e 20, na parte em que se concluiu que a trombose representa uma complicação associada à intervenção cirúrgica, descrita e prevista na literatura médica, e da qual o autor tinha conhecimento.
No mesmo sentido depôs a testemunha S., que também interveio como cirurgiã na operação realizada. Partilhou o mesmo registo sereno, seguro e coerente, sem hesitações e com objetividade, pelo que credível. Descreveu uma intervenção que decorreu “com normalidade”, tratando-se de uma cirurgia major, e que tem como riscos associados e conhecidos a morte, infeções, complicações neurovasculares.
Interessante neste depoimento, e que aliás já constava do relatório da consulta técnico-científica realizada nos autos (como se verá), é a afirmação de que o risco de trombose pode manter-se por mais tempo, depois do pós-operatório.
Portanto, e como dito, o depoimento em questão, credível pelas razões expostas, constituiu então auxiliar relevante para a matéria referente à própria intervenção, mas foi igualmente compaginada com a prova pericial e a possibilidade de ocorrência da trombose já depois do pós-operatório.
Acerca do depoimento da testemunha A., este incidiu essencialmente na matéria provada dos pontos 16 (na parte em que foi chamado o serviço de urgência de ortopedia) a 18. Trata-se de do médico ortopedista que se encontrava de urgência e que se deslocou ao internamento na sequência do pedido feito pela testemunha A., e, com efeito, o respetivo depoimento revelou-se (em relação aos sobreditos factos) livre e esclarecido, sem sinais de comprometimento, tendo falado de modo sereno e objetivo. Quanto à restante matéria, apenas sabe o que consta dos registos clínicos, mas de nada sabia diretamente, pelo que nesse sentido o depoimento não assumiu relevância. Todavia, e antecipando desde já a análise a factos não provados, foi ainda um depoimento relevante para a conclusão encontrada quanto à alínea K) dos factos não provados, porquanto (além de não existir qualquer prova produzida pelo autor nesse sentido, o que já de si imporia a mesma conclusão) decorreu do depoimento que a transferência para o CH de São João se deveu ao protocolo, ou seja, por ser o hospital de referência para urgência vascular, e não porque não sabia o que fazer (aliás, a testemunha contactou o CH de São João porque era precisamente o que havia a fazer).
Acerca do depoimento prestado pela testemunha J., há apenas a salientar o seu total desconhecimento do caso concreto. Trata-se do atual diretor do serviço de ortopedia do CHTS, mas sobre o caso concreto demonstrou nada saber, não tendo participado na operação ou estado com o autor no internamento. De todo o modo, sempre se diga que se tratou de um depoimento tecnicamente sustentado, dado que a testemunha é ortopedista, e que explicou de modo esclarecedor que a trombose era um risco associado à cirurgia, tratando-se de uma complicação como tal prevista, pelo que sempre auxiliou na conclusão quanto ao facto provado do ponto 20, na parte relativa à trombose da artéria femural ser uma complicação associada à intervenção, descrita e prevista na literatura médica.
Contudo, e sem prejuízo da prova até agora analisada, o ponto fulcral da matéria de facto dizia respeito ao sucedido entre o momento em que o autor regressou ao internamento, após a cirurgia e o recobro, e a deteção do possível problema (que veio a constatar-se ser uma trombose). Esta análise depende de também começar a apreciar os factos não provados, porque as teses são conflituantes.
De um lado, o autor vinha alegar que a enfermeira responsável não atendeu a nenhuma das queixas apresentadas pela filha e pela mulher; do outro, o CHTS vinha alegar que ao autor foram dispensados todos os cuidados e a inerente vigilância, impugnando tais factos.
Ora, importa nesta sede dizer que, como resulta dos pontos 10 a 13 dos factos provados, prevaleceu a tese do CHTS que, mais do que contraprova, julga-se que demonstrou ter atuado como alegava que fez. E esta conclusão deve-se, no essencial, à falta de credibilidade das testemunhas arroladas pelo autor, ao contrário do que sucede com a testemunha arrolada pelo CHTS.
Mas antes de avançar, diga-se desde já o seguinte: é inquestionável que, da prova produzida, resultou que a enfermeira e testemunha M. era a responsável pela enfer naquela tarde, como a própria confirmou; o que também fez quanto à presença da esposa e da filha do autor no quarto, durante a tarde – e daí que só podia ficar provada a factualidade dos respetivos pontos 11 e 14.
Sobre a restante factualidade, ou seja, o que terá sucedido no internamento (pelo menos até pelas 20 horas, quando cessou o horário das visitas, bem como o turno da testemunha F.) importa então comparar os depoimentos das testemunhas do autor e do réu. Vejamos.
Para demonstração desses factos, o autor arrolou duas testemunhas: a mulher, M.; e a filha, E.. Por seu lado, e quanto às testemunhas arroladas pelo CHTS, em concreto sobre a matéria em apreço, depôs M., a enfermeira que estava de serviço e responsável pela vigilância e monitorização do autor na enfer em que foi internado após o recobro.
Objetivamente, e como se constata, existem circunstâncias suscetíveis de afetar a credibilidade de qualquer destas testemunhas. Assim, no caso das testemunhas arroladas pelo autor, temos a sublinhar a respetiva relação familiar, de elevadíssima proximidade; quanto à mencionada testemunha arrolada pelo CHTS, há a assinalar que está pessoalmente envolvida na situação e é a ela em específico que vem assacada a omissão dos cuidados devidos. Por isso, qualquer das pessoas em questão apresenta relevantes motivos para fazer perigar a sua isenção e imparcialidade.
Não obstante a constatação dessas circunstâncias que podiam colidir com a credibilidade das testemunhas, e mediante essa realidade, impunha-se então especial cuidado na análise subjetiva dos depoimentos (ou seja, da valoração da prova propriamente dita), de modo a procurar obter como resultado um sentido claro sobre qual das versões seria a verdadeira. E, nesta sede, a solidez da prova acabou por cair para o lado do réu, existindo fatores que, no entender do tribunal, retiram sustento aos depoimentos das testemunhas do autor.
Com efeito, estes depoimentos prestados pelas testemunhas do autor, na parte relativa ao sucedido no internamento pós-operatório, apresentaram-se parciais, comprometidos e concertados, deixando antever o propósito de responsabilizar a todo o custo o réu pelo sucedido, quando bem sabiam que o autor era portador de diversas patologias prévias à intervenção cirúrgica, e que inclusivamente os médicos se recusaram a proceder à intervenção no momento inicial da fratura da perna (no final de 2012), apenas tendo aceitado essa opção quando o tratamento conservador (não cirúrgico) se veio a revelar insuficiente para debelar a fratura. Com efeito, se algo ficou patente da prova produzida é que o autor era um paciente com relevantes antecedentes clínicos, em particular por ser hipocoagulado, o que implicava especiais cuidados em virtude do Varfine.
Aliás, refira-se nesta sede que o depoimento prestado pela testemunha E. apenas não foi mais acentuadamente parcial porque foi imediatamente advertida pelo tribunal no início do seu depoimento para a sua postura, que se revelou logo ab initio bélica e de ataque ao réu, dizendo que estava no tribunal porque ninguém devia entrar no Hospital e sair de lá sem a perna, em tom particularmente agressivo. Além disso, o depoimento desta testemunha foi ainda marcado por diversos ataques pessoais à testemunha M., no sentido não apenas de colocar em causa a sua atuação profissional, mas a própria consideração que teria pela testemunha a título pessoal. Essas circunstâncias não podem deixar de ser atendidas pelo tribunal, e são reveladoras de uma visão parcial e não isenta do sucedido, marcada pela tentativa de, a qualquer preço, responsabilizar o CHTS pelo problema de saúde do autor, seu pai, e de afetar a honorabilidade profissional e pessoal da enfermeira responsável, sua conhecida, de resto.
Associado ao depoimento da filha do autor, prestado nestes termos, o depoimento da esposa do autor foi diferente, mas neste caso pautado por atribuir à filha, e também testemunha, o papel de quem comunicou à enfermeira F. as queixas apresentadas pelo autor (pelo menos na maioria das ocasiões). Na verdade, e sempre no que diz respeito aos factos em análise, não foi um depoimento totalmente seguro, além de ter sido pautado amiúde pela transferência de responsabilidade do alerta quanto à suposta situação do autor para a filha.
Na realidade, não pudemos deixar de constatar a diferença do registo do depoimento no que a esta matéria respeita, quando comparado com as restantes declarações, nomeadamente em relação aos antecedentes clínicos do marido e ao estado em que ficou depois de perder a perna. Nestes pontos, o depoimento revelou-se nitidamente mais livre, emotivo, espontâneo, ao passo que na descrição do sucedido no internamento se afigurou quase mecânico, muito pouco seguro e, como se disse, várias vezes marcado por transmitir o papel principal à filha.
Acresce a isto dizer que a própria versão apresentada é altamente inconsistente. Desde logo, porque a enfermeira em questão era, como adiantado, conhecida da filha do autor, tendo sido até, segundo se apurou, catequista do filho da testemunha E.; neste cenário, diz-nos o senso comum que alguém colocado na posição da enfermeira teria cuidado acrescido, por conhecer os envolvidos, e nunca o contrário. Outra circunstância estranha residiu na afirmação de que existiam outros enfermeiros no serviço, mas que, a bem dizer, a testemunha M. os impediu de aceder ao quarto do autor, versão sem qualquer sustento em outras provas, e que constitui cenário muito pouco plausível, e em relação ao qual também não deixa de salientar-se que, não obstante a presença de outras pessoas, não foram arroladas quaisquer testemunhas ou sequer pedida a respetiva identificação (quando foi até referido que estavam outras pessoas no quarto do autor, que se deslocaram lá auxiliares, etc…), quando poderiam oferecer uma versão distanciada do sucedido.
Ainda outro aspeto que retira sustento à versão das testemunhas resulta da atuação do CH de São João. Com efeito, de acordo com as testemunhas o autor ter-se-á queixado logo que chegou ao quarto, vindo do recobro (o que também se afigura estranhíssimo, porque esteve no recobro e com a enfermeira imediatamente antes, sem, pelos vistos, se ter queixado aos profissionais de saúde). No entanto, e como adiante se verá, o problema na perna do autor foi detetado no CHTS pelas 21:30 horas, tendo sido depois transferido para aquele outro CH, sendo aí admitido às 00:56 horas do dia 25.02.2014. Porém, neste CH não foi de imediato assistido, porque, segundo os registos, aguardou ainda toda a noite até realizar angiografia apenas na manhã desse dia 25.02.2014; ora, se a situação levasse já horas de evolução, não é concebível que no hospital de referência não fosse dispensado ao autor tratamento imediato, de modo a reverter os efeitos da trombose. De facto, segundo os registos do CH de São João existentes nos autos, apenas às 09:22 horas o autor é enviado para realizar angiografia, e apenas às 11:02 horas é enviado para o bloco operatório, a fim de realizar operação cirúrgica. O que significa que no CH de São João o autor esperou cerca de oito horas (das 00:56 horas às 09:22 horas) apenas para realizar a angiografia, ou seja, praticamente o mesmo tempo que esteve no internamento do CHTS após a operação. Gera alguma curiosidade que o autor e as suas testemunhas tanto questionem o CHTS (e em particular a sobredita enfermeira) mas não tenham reparado neste pormenor de no CH de São João a assistência ter demorado imenso, já com notícia dos sinais que podiam indiciar trombose.
Adiante, outro aspeto que colocou em séria questão a credibilidade das testemunhas arroladas pelo autor teve que ver com o modo como a notícia da transferência do autor para o CH de São João foi comunicada; de facto, a testemunha E. relatou um episódio que, segundo estamos em crer, não sucedeu do modo que relatou. Assim, a testemunha afirmou que a enfermeira que havia substituído a enfermeira F. ligou de manhã cedo, quase clandestinamente, a dar notícia da transferência e que o pai ia bastante mal, mas para “fazer de conta que ninguém tinha ligado”.
Sucede que a testemunha A. (ou seja, a enfermeira que sucedeu à testemunha F.) confirmou que foi ela quem fez a ligação, logo pela manhã, de acordo com o protocolo, mas negou de modo categórico, assertivo, espontâneo e, em nosso entender, inquestionável, a versão apresentada pela testemunha E., refutando qualquer espécie de tentativa de esconder o que quer que fosse. A versão em causa foi, por isso, construída pela própria testemunha E., e insere-se nitidamente na constante tentativa de imputar a todo o custo a responsabilidade pelo sucedido ao CHTS – partindo de uma premissa real (a chamada foi feita de manhã cedo) construiu tudo o resto de modo a dar a entender que o CHTS nem queria comunicar a transferência do pai e o seu concreto estado aquando da mesma. Se já pouca credibilidade a testemunha vinha apresentando, pela parcialidade demonstrada, acabou por perde-la por completo neste ponto específico.
Além disso, a versão das testemunhas arroladas pelo autor nem sequer coincidiu no que diz respeito à comunicação da transferência do autor; como, aliás, não coincidiu na descrição da hora a que chegaram ao hospital e a que horas subiram para o quarto no dia da operação. Claro está que essa não coincidência foi desvalorizada em alegações, mas nesta sede não podemos deixar de lhe atender porque, se conjugada com os aspetos até agora referidos, constitui ainda um fator adicional que de modo claro reforça a ideia de concertação no discurso das testemunhas, com alguns esquecimentos em relação a pormenores.
Sem prejuízo do exposto até agora, impõe-se também analisar a respetiva prova do réu, ou seja, o depoimento prestado pela testemunha M.. Com efeito, e não obstante o seu comportamento ser diretamente visado pelo autor e pelas respetivas testemunhas, o discurso apresentado surpreendeu pela segurança, coerência e assertividade pelas quais se pautou. De modo presente, reportou que foi ela quem se encarregou de trazer o autor do recobro para o internamento, prestando os cuidados inerentes ao pós-operatório, nomeadamente a vigilância da circulação neurovascular do membro operado; acrescentou que o autor estava sob vigilância muito apertada, por ser considerado doente de risco, e que, inclusive, estava colocado logo em frente ao balcão de enfermagem, tendo repetido o procedimento, sem registar qualquer alteração. Afirmou mesmo que “o Sr. E. não pode dizer que não fui à beira dele” (na presença do autor na sala de audiências), tendo ainda confirmado que foi abordada pela filha e pela esposa, mas para colocar outro tipo de questões.
Mas não foi apenas pelo modo como o discurso foi prestado que mereceu crédito; foi também porque existem outros meios de prova que lhe conferem segurança. Nomeadamente, e uma vez mais, o depoimento da testemunha A., a enfermeira que detetou o estado da perna do autor, e que sucedeu no turno à testemunha F.. De facto, e conforme já avançado, foi um depoimento relevante não apenas porque se mostrou em si mesmo imparcial e isento, mas também porque se mostrou esclarecedor, sem denotar qualquer afetação por ser trabalhadora do CHTS. Assim, sempre de modo espontâneo e sincero, a testemunha Margarida referiu que o autor era monitorizado de 15 em 15 minutos, precisamente devido às questões hemodinâmicas. E apenas pelas 21:30 horas (ou seja, mais de uma hora e meia depois de a anterior enfermeira ter cessado o turno) é que, na sequência de uma queixa do autor, é detetada a alteração ao nível da profusão dos tecidos, bem como da temperatura; segundo a testemunha, ainda aplicou aquecimento, mas sem sucesso, tendo então decidido por chamar o serviço de urgência de ortopedia.
Ou seja, mesmo que indiretamente, o relato da testemunha A. confirma o que foi dito pela testemunha M., no sentido de que, quando saiu do serviço, não existia qualquer alteração, a qual só veio a ser detetada pelas 21:30 horas, logo que o autor assim se queixou.
Pelo que, e perante o exposto, resultava considerar como não provados os factos que como tal constam nas alíneas A) [quanto à hora de regresso à enfer], a H). Sendo certo que, em relação à primeira parte da alínea A) dos factos não provados, não se produziu prova sobre a hora a que o autor desceu para o bloco operatório (embora tal facto se deva considerar, em bom rigor, inútil para a decisão). Por outro lado, e em face do exposto, resultaram ainda provados a partir do depoimento da testemunha M. os factos que constam dos pontos 10 a 13; e do depoimento da testemunha A. resultaram provados os factos dos pontos 15, 16 e 19 (quanto à hora de chegada ao CH de São João, dado que a testemunha foi quem acompanhou o autor no respetivo transporte).
Mesmo que assim não fosse, ou seja, mesmo que o tribunal não tivesse valorizado suficientemente a prova do réu CHTS no sentido de dar por provado o que estava alegado em contestação, sempre se imporia dar como não provados os factos em causa alegados na petição inicial, em virtude da contraprova produzida e a que se fez referência (naturalmente que, se assim fosse, e porque se geraria dúvida, apenas competiria dar como não provados os factos alegados pelo autor, sem considerar assentes os factos alegados pelo réu).
Com efeito, recorde-se que, nos presentes autos, o autor não beneficia de qualquer presunção, pelo que lhe competia fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado, conforme resulta da regra geral sobre o ónus da prova, constante do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Ora, quanto a esses factos, sempre o tribunal teria necessidade de se socorrer das regras inerentes ao ónus da prova, e em concreto do disposto no art.º 346.º do Código Civil, nos termos do qual “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torna-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”
Tal como explica Fernando Pereira Rodrigues [“Os Meios de Prova em Processo Civil”, 3.ª Edição, Almedina, 2017, pág. 48] “decorre dos normativos em apreço que a contraprova apenas é admissível quando seja oposta a uma prova livre ou a uma prova legal não plena, pois que caso exista prova legal plena, esta só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto.” É o que, in casu, acontece, na medida em que o autor apenas produziu quanto a esses factos prova testemunhal, i. e., prova sujeita a livre apreciação pelo tribunal, pelo que era admissível que quanto a eles o CHTS fizesse contraprova. Como fez, aliás com recurso ao mesmo meio de prova (testemunhal).
E, por todos os motivos expostos, que nesta sede não repetiremos, mas consideramos reproduzidos, sempre se imporia a conclusão no sentido de que, pelo menos, o CHTS produziu prova suficiente para suscitar uma seríssima dúvida sobre os factos não provados das alíneas A) a H), razão pela qual, apelando às regras do ónus da prova, a conclusão teria forçosamente de ser a mesma.
Por seu lado, a prova pericial produzida nos autos também não altera a conclusão havida em relação a esses factos – nem podia, porque sendo destinada a demonstrar factos que têm subjacente juízo técnico, os peritos não presenciaram absolutamente nada do que se passou ou não no CHTS.
Assim, existem nos autos três relatórios: o relatório preliminar, elaborado pela delegação do Norte do INMLCF, I.P. [fls. 425 a 432 do suporte físico dos autos]; o relatório final elaborado pela mesma entidade, que consta a fls. 473 e ss. do suporte físico dos autos; e o relatório elaborado na sequência do pedido de consulta técnico-científica, de fls. 485 e ss. do suporte físico dos autos. Importa desde já recordar que, não obstante a respetiva valia técnica e importância, a prova pericial também fica sujeita à livre apreciação do julgador.
Pois bem, relativamente ao relatório preliminar, naturalmente nada há a concluir, dado que o mesmo encerra apenas pela constatação da necessidade de obtenção de mais elementos, no sentido de permitir obter conclusões quanto aos quesitos formulados.
Em relação ao relatório final elaborado pela delegação do Norte do INMLCF, I.P., constata-se desde logo que a história do evento é a fornecida pelo autor e pela esposa, vindo ali mencionado que esta terá dito que no CH de São João foi informada de que “foi perfurada a safena, que se tivesse sido detetada mais cedo no Hospital de (…) não tinha tido gangrena no pé e não teria sido necessário amputar”; este relato, além de não coincidir sequer com a petição inicial, é falso, já que resulta abundantemente dos documentos clínicos remetidos pelo CH de São João que o diagnóstico foi trombose, não se falando de qualquer perfuração da veia safena – aliás, um dos procedimentos cirúrgicos a que o autor foi submetido no CH de São João foi precisamente bypass na veia safena grande/magna; os próprios relatos cirúrgicos que constam do relatório (págs. 6 a 8 do mesmo) dão conta dessa situação, jamais referindo qualquer diagnóstico de perfuração da veia safena. Este factor também não deixou de constituir para o tribunal um sinal nítido da falta de isenção da testemunha em causa quanto à atuação dos serviços do CHTS, desconhecendo-se até que ponto possa ter influenciado o relatório pericial.
Em todo o caso, sempre se diga que o resultado deste relatório pericial é inconclusivo. Assim, afirma-se que os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, mas sem que se explique ao certo a que traumatismo se refere; assume-se que a Sra. Perita se refira aqui à trombose decorrente da cirurgia (essa é a lesão mencionada na petição inicial), e, se assim for, é certo que se demonstrou que o autor sofreu uma trombose no fémur direito após a cirurgia, e que a partir daí se chegou à necessidade de amputar a perna abaixo do joelho. Essa conclusão já resultava da leitura da informação clínica remetida pelo CH de São João, conforme aliás atrás se deixou referido (não deixando de notar nesta sede que o próprio relatório é, em grande parte, uma descrição dos elementos clínicos, sendo as conclusões muito pouco fundamentadas em juízo técnico, pelo menos no que a este aspeto diz respeito). Ainda assim, as conclusões deste relatório foram relevantes para a questão da fixação de incapacidade – portanto, ponto 31 dos factos provados – e ainda quanto à necessidade de auxílio de terceira pessoa e de adaptação da viatura – pontos 25 a 27 dos factos provados.
Depois, temos então o relatório da consulta técnico-científica, de fls. 486 e ss. do suporte físico dos autos. É também um relatório com alguns lapsos na história factual, já que afirma, por exemplo, que o autor foi transferido para o Hospital de S. João no Porto pelas 07:00 horas do dia 25.02.2014, quando se constata que essa transferência ocorreu muitas horas antes. Este erro – claro, crasso e muito pouco admissível – influenciou, por exemplo, a resposta ao ponto 8 dos quesitos formulados pelo CHTS, porque se parte do princípio que o doente foi transferido às 07:00 horas, quando tal não sucedeu. E o mesmo sucedeu na resposta ao quesito 16 colocado pelo autor, em que uma vez mais se tem por referência que o “doente chegou ao Hospital de São João pelas 07h00”, quando tal realidade não tem sustento, na medida em que existe prova de que o autor chegou ao CH de São João pela uma da manhã do dia 25.02.2014, ou seja, seis horas antes do momento erradamente considerado pelo Sr. Perito. Desconhece-se que outra influência este erro palmar possa ter tido nas respostas a outros quesitos (em nota, refira-se que por razões de saúde, não foi possível ao Sr. Perito prestar esclarecimentos em sede de audiência final).
É preciso também dizer que, naturalmente (e como já avançado), o Sr. Perito desconhece o que se passou no internamento após a cirurgia, falando em termos de normalidade, ou então com base nos elementos documentais (e, em alguns casos, erradamente interpretados, conforme exposto). Por isso, não sabe se a vigilância foi feita ou não, o que foi feito, como foi feito, em que estado se encontrava a perna do autor, etc…
De todo o modo, sempre se diga que neste relatório é confirmado que o tratamento de uma pseudoartrose, nomeadamente do fémur, tem sempre riscos acrescidos, em particular vasculares e nervosos, e que é sempre possível o desenvolvimento de um vasoespasmo que pode conduzir a uma isquemia, podendo esta ser reversível consoante seja ou não transitória (o risco de trombose já havia sido referido pelos ortopedistas que realizaram a operação, pelo que este ponto parece pacífico, e auxilia sempre quanto ao facto provado 20, na parte em que o risco de trombose está associado à intervenção, e é conhecido da literatura médica). Por outro lado, é entendimento do Sr. Perito que a isquemia pode não ser imediatamente detetável no pós-operatório. Este raciocínio é depois confirmado na resposta dada ao ponto 9 dos quesitos do autor. Com efeito, à questão de saber se os sinais da trombose podiam ser detetados mais cedo (questão do ponto 5 dos quesitos do autor) o Sr. Perito responde apenas que “sim”, mas depois, na resposta que dá no ponto 9, vem dizer que “as consequências imediatas podem não ser logo identificadas mas ao fim de algum tempo, a ausência ou diminuição dos pulsos periféricos, as extremidades frias, as alterações e cianose do membro e as alterações sensitivas e motoras vão-se manifestando e estabelecendo”. Ora, o que não se esclarece é qual o período que respeita a “algum tempo”, mas pelo menos pode daqui retirar-se que é perfeitamente possível que os sinais da trombose se comecem a verificar algumas horas depois de ocorrer, e não imediatamente, o que confere segurança à versão do réu, no sentido de a situação só ter sido detetada pelas 21:30 horas. De resto, já na resposta ao quesito 6 colocado pelo CHTS o mesmo perito confirmou que a instalação da isquemia pode ocorrer após os destacamentos de placas ateromatosas e não ser imediatamente detetável, podendo instalar-se posteriormente no pós-operatório (mas constatando-se, mais uma vez, que se responde com um lacónico “sim”, sem adicionar qualquer sustentação).
Um aspeto interessante neste relatório é ainda a resposta dada ao quesito 11 formulado pelo autor; é que, neste caso, admite o Sr. Perito que menos horas até à cirurgia (de revascularização) tornam mais viável a possibilidade de reversão das lesões. Esta asserção gera-nos grandes dúvidas sobre se a amputação não se terá ficado a dever ao atraso na realização desta cirurgia no CH de São João, no qual, como se disse, o autor esperou oito horas pela angiografia, podendo assim interromper qualquer nexo de causalidade entre a atuação do réu (mesmo que ela existisse nos termos alegados) e a amputação, porque, seguindo a conclusão da perícia, o tempo que o autor aguardou no CH de São João (e foi transferido já com notícia dos sinais detetados, competindo a este hospital confirmar o diagnóstico) pode ter sido o fator determinante para a amputação (recorde-se que, nesta sede, o relatório está em absoluto erro, porque considera que o autor só chegou ao CH de São João pelas 07:00 horas do dia 25.02.2014, quando na realidade deu entrada nesses serviços pelas 00:56 horas desse mesmo dia), já que a angiografia (para confirmar a lesão trombótica) só ocorreu depois das 09:00 horas da manhã.
Assim sendo, não obstante existirem alguns apontamentos relevantes decorrentes deste relatório da consulta ao conselho técnico-científico do INMLCF, I.P., como assinalado, não assumiu qualquer relevância em particular, seja porque o perito se baseia nas conclusões encerradas nos quesitos, mas desconhecendo o que realmente se passou no CHTS (nomeadamente se a vigilância foi feita), porque contém erros grosseiros pouco aceitáveis (quanto à hora de entrada no CH de São João, e que aliás parece ter viciado o raciocínio em muitas respostas), ou ainda porque algumas respostas são lacónicas (apenas um “sim”) sem qualquer espécie de explicação adicional que permita aferir a solidez da opinião apresentada.
Resta referir os factos provados dos pontos 25 a 30, bem como os factos não provados das alíneas I) e J).
Assim, em relação aos factos provados dos pontos 25 a 30, está em causa essencialmente a alteração sofrida no quotidiano do autor, na sequência da perda da perna, e o respetivo estado psicológico. Quanto a estes, foi tido em conta, no essencial, o depoimento da testemunha M., a esposa do autor. De facto, conforme referido, nesta parte o depoimento da testemunha pautou-se por um registo totalmente diferente, espontâneo e objetivo, muito mais livre quando comparado com o alegadamente sucedido no internamento, pelo que foi suficiente para firmar a convicção do tribunal. Além disso, é preciso dizer que a grande maioria destes factos decorre do próprio senso comum, dado que a essa luz ser amputado será sempre uma experiência traumática e com consequências nefastas para o visado. Sendo certo que também a estes factos se referiu a testemunha E., o depoimento da testemunha G. foi suficiente e mais credível neste aspeto, dado que, como mencionado, aquela falou sempre de modo parcial e subjetivo.
Quanto aos factos não provados das alíneas I) e J), o problema é o mesmo que se coloca quanto aos factos não provados das alíneas A) a H), nos termos antes expostos. Mas quanto a estes há ainda a acrescentar que, no caso da alínea J), de acordo com o depoimento da testemunha A., os sinais de alarme foram detetados pelas 21:30 horas, valendo aqui tudo quanto se disse acerca da credibilidade da testemunha. Além disso, sempre se dirá que o autor não produziu prova nesse sentido, porque, mesmo postergando a análise subjetiva dos depoimentos, ambas as testemunhas disseram ter abandonado o hospital às 20:00 horas, ou pouco depois, pelo que nada sabem sobre o que ocorreu após esse momento.
Por fim, no que concerne ao facto não provado da alínea I), também quanto a ele vale a falta de credibilidade das testemunhas do autor (sendo certo que, um pouco relutantemente, sobretudo quanto à testemunha E., lá foram admitindo que a enfermeira F. se deslocava junto do autor, mas apenas para olhar para os monitores, pelo que sempre terá sido observado; aliás, esta asserção também é estranha porque se a enfermeira se deslocava junto da cama do autor é de todo inverosímil que ignorasse as queixas de um paciente com recomendação de vigilância apertada); mas, além disso, vistos os registos juntos pelo CHTS em audiência, não impugnados, deles consta que o autor foi visto por medicina interna, tendo esta sido chamada por hiponametria (cf. fls. 521 do suporte físico); pelo que sempre o autor foi visto por um médico no período da tarde de 24.02.2014 (pelo registo, terá sido o Dr. V.) – também muito se estranhando aqui que, aquando desta observação, não tenha sido referida qualquer queixa" – sublinhados nossos.
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Atentemos agora na análise dos concretos pontos questionados pelo A./Recorrente, nesta sede recursiva.
Assim, na conclusão 1.ª, questiona o facto dos pontos 12 e 13 terem sido dados como provados.
Vejamos!
Estes factos factualizam o seguinte:
O Ponto 12 que surge na sequência dos factos 9, 10 e 11 --- referentes (9) ao pós cirurgia, sendo que foi admitido na unidade de cuidados pós-anestésicos (recobro), local onde ficou ao cuidado da respectiva equipa médica e de enfermagem, e seguidamente, (10) após a alta dessa unidade de cuidados pós-anestésicos, regressou ao internamento no serviço de ortopedia ---, sendo que (11) a enfermeira responsável por este serviço era a F., onde consta:
"12. À avaliação efectuada apresentava-se calmo, colaborante, com discurso coerente, orientado no tempo e no espaço, dor em grau reduzido a nível do membro inferior direito, movimento articular activo com perfusão dos tecidos, coloração da pele normal com temperatura da extremidade normal, e sensação táctil preservada".
Continuando o Ponto 13 a referir que a "Avaliação que foi sendo realizada ao longo da tarde, sem sinais de alarme".
O recorrente discorda destes pontos - o que bem se compreende - na medida em que aqui se esvazia a argumentação, causa de pedir dos autos.
Efectivamente, na óptica do recorrente, foi a indevida, incorrecta, inexistente avaliação contínua ao longo da tarde - entre as 16 horas e as 20 00 horas (20 15 horas, como refere, em crítica ao ponto 14) - que levou a que não fosse detectada a falta de circulação e sensibilidade no membro operado - perna direita - e que, in extremis, importou a sua amputação parcial.
E esta conduta "negligente" é apontada essencialmente, podemos mesmo dizer, exclusivamente, à actuação/omissão da referida Enfermeira F. que chefiava o serviço de ortopedia e assumiu directamente, no seu turno, a vigilância, assistência do recorrente.
Pese embora houvesse outros profissionais de saúde de serviço naquela unidade de internamento ortopédico - sejam enfermeiros, sejam auxiliares de acção médica - sejam outros doentes --- mas que, curiosamente, não foram indicados pelo A./recorrente como testemunhas - limitando-se a apresentar a mulher e filha que estiveram no serviço naquela tarde ---- e que assim poderiam confirmar a sua tese ou, pelo menos, colocar dúvidas acerca do depoimento da testemunha Enfermeira F., o certo é que o Tribunal criou a sua convicção no confronto, essencialmente, dos depoimentos das testemunhas arroladas/apresentadas pelo A. - a sua mulher e filha - D.ª G. e D.ª E. , respectivamente - com a da Sr.ª Enfermeira.
Ora a justificação apresentada com todo o pormenor pelo julgador em 1.ª instância e acima transcrita parece-nos correcta e desprovida de qualquer erro de percepção que nos permita alterar estes factos, depois de analisados os depoimentos questionados e transcritos no corpo das alegações e contra alegações.
Não deixa de ser curioso que o Sr. Juiz de direito do TAF de Penafiel nessa fundamentação fáctica faça alusão à proximidade da Sr.ª Enfermeira com a família do A. o que, na circunstância, importaria até um maior cuidado na assistência -- o que bem se percebe -- e, agora, apenas em sede recursiva, o A., através da pena do seu ilustre mandatário, venha "sugerir" que, nestas circunstâncias, a actuação das pessoas, no caso da Enfermeira F., fosse motivado por "excesso de autoridade", mostrando a sua importância perante os seus conhecidos, não por actos de voluntarismo", adoptando uma postura, pela aquisição da licenciatura, do esforço académico uma "posição de soberba - cfr. arts. 20.º a 22.º das alegações.
Ora, embora não seja apresentada qualquer justificação para esta postura da Sr.ª Enfermeira - o que se impunha, atentas as insinuações veiculadas - também se existiam diferendos, quaisquer atritos entre essas famílias, deveria, desde logo, essa abordagem ser efectivada na audiência, na presença da testemunha e assim se possibilitar que o tribunal pudesse, porventura, criar convicção diversa.
Sem mais ... nada se nos afigura que possa importar a eliminação destes pontos da factualidade provada, merecendo-nos total credibilidade e confiança a alongada e minuciosa conjugação de elementos probatórios chamados à colação, nesta parte, pelo Sr. Juiz que presidiu ao julgamento - Dr. Nuno Ribeiro - e elaborou a sentença agora questionada, o que tudo se coaduna com o depoimento preciso e coerente da Sr.ª Enfermeira, parcialmente transcrito nas contra alegações - ponto 11 - e não contraditado.
Acresce que, com a mudança de turno na enfermagem - cerca das 20 horas - passando a vigilância ser efectivada pela Sr.ª Enf.ª A., esta manteve a vigilância e assistência ao A., apenas dando conta de dados negativos pelas 21 30h, como se evidencia da prova produzida, documentalmente e do seu depoimento, também parcialmente transcrito nas contra alegações.
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Quanto ao ponto 14 - onde se questiona a hora de saída da mulher e filha do A. da enfermaria - não às 20 horas, antes às 20 15 h - ainda que assim tivesse acontecido, nada de especial é apontado quanto a este hiato temporal - 15 minutos - que importe a alteração, pois que não tem qualquer significado, consequência para a alteração do que quer que seja, em especial, no que se refere à imputação aos serviços do Hospital de uma conduta ilícita e culposa, como, no fundo, pretende o A. e é isto que verdadeiramente releva.
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Quanto aos factos não provados A) a K) --- supra transcritos - cfr. conclusão II das alegações --- cremos que também, nesta parte, não assiste razão ao A./Recorrente, sendo que a ratio decidendi, mais uma vez se evidencia do facto do julgador, nos termos sobejamente justificados e acima já referidos e que por isso nos dispensamos de aqui repetir, no facto de não ter sido dada credibilidade aos depoimentos das testemunhas D.ª G. e D.ª E. , mulher e filha do A., respectivamente, em contraponto com o cotejo efectivado da demais prova, seja ela testemunhal (v.g., Enfermeiras F. e A.), seja a documental - relatórios clínicos - e mesmo a pericial.
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Quanto ao aditamento do facto do A. ter sido objecto da primeira intervenção de cirurgia vascular no Hospital de S. João, no Porto, pelas 11 horas do dia 25/2/2014 - conclusão IV das alegações recursivas - depois de ter sido sujeito a angiografia pelas 09 22 horas - ainda que tal facto seja incontrovertido, pois evidenciado dos documentos juntos aos autos, podendo, assim, este pormenor ser aditado no ponto 21 dos factos provados (11 02 horas do dia 25/2/2014) - porém, nada releva para a decisão dos autos, no sentido de ser invertido o seu sentido decisório.
Na verdade, nos presentes autos, o A. demandou apenas e só o CENTRO HOSPITALAR (...), EPE, pelo que só este teve a oportunidade de se defender, contraditando a tese do A./recorrente, que não o Hospital de S. João, hospital central, de referência, para onde o A. foi enviado, pelos serviços do Hospital Réu/Recorrido, em concerto entre os serviços médicos de cada um deles, onde chegou pelas 00 56 h do dia 25/2/2014.
O pretendido aditamento insere-se na "estratégia jurídica" do A., apenas suscitada em sede recursiva, de imputar actuação ilícita e culposa aos serviços do Hospital de S. João, na medida em que da sentença recorrida Cfr. fundamentação fáctica acima transcrita - concretamente, ao ter-se escrito, a fls. da sentença 17, que "Um aspeto interessante neste relatório é ainda a resposta dada ao quesito 11 formulado pelo autor; é que, neste caso, admite o Sr. Perito que menos horas até à cirurgia (de revascularização) tornam mais viável a possibilidade de reversão das lesões. Esta asserção gera-nos grandes dúvidas sobre se a amputação não se terá ficado a dever ao atraso na realização desta cirurgia no CH de São João, no qual, como se disse, o autor esperou oito horas pela angiografia, podendo assim interromper qualquer nexo de causalidade entre a atuação do réu (mesmo que ela existisse nos termos alegados) e a amputação, porque, seguindo a conclusão da perícia, o tempo que o autor aguardou no CH de São João (e foi transferido já com notícia dos sinais detetados, competindo a este hospital confirmar o diagnóstico) pode ter sido o fator determinante para a amputação (recorde-se que, nesta sede, o relatório está em absoluto erro, porque considera que o autor só chegou ao CH de São João pelas 07:00 horas do dia 25.02.2014, quando na realidade deu entrada nesses serviços pelas 00:56 horas desse mesmo dia), já que a angiografia (para confirmar a lesão trombótica) só ocorreu depois das 09:00 horas da manhã". - sublinhado nosso.
se pode, de algum modo, aventar a hipótese do atraso - cerca de oito horas para a realização da angiografia e 10 para a cirurgia vascular - poder ter sido a causa da objectiva e incontestada impossibilidade de recuperação da perna do A. que veio a ser imputada, por irreversibilidade da circulação e sensibilização.
Ora, carece de qualquer sentido, relevo fáctico e jurídico, imputar, apenas agora ao Centro Hospitalar de S. João, do Porto, uma actuação negligente - ainda que, porventura com alguma consistência, tendo por base a factualidade constante dos autos, em termos de entrada do A., em situação considerada grave, pelas 00 56 e apenas ter sido sujeito a angiografia e cirurgia vascular pelas 09 22 e 1102, respectivamente do dia 25/2/2014 - quando este Centro Hospitalar não foi demandado, directa ou indirectamente nos autos, não podendo, assim, defender-se de qualquer imputação, actuação, ilícita e culposa, mesmo a nível de operatividade da responsabilidade comitente/comissário - art.º 500.º do Código Civil, por inverificados os pertinentes requisitos, além de que esta questão apenas e só agora foi suscitada nos autos - questão nova - que, assim, não cumpre conhecer.
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A final, importa apenas referir que, em relação aos hospitais públicos - como é o caso do CENTRO HOSPITALAR (...), EPE - não se aplica a presunção de culpa prevista no art.º 799.º do Código Civil, antes, como se evidencia na sentença, nestes casos, compete ao A. - art.º 342.º, n.º1 do Cód. Civil - a prova dos factos constitutivos do seu direito.
Assim, não tendo o A- demonstrado a actuação (ainda que por omissão) do Réu, será que no caso se verifica a inversão do ónus da prova - art.º 487.º n.º 1, última parte do CCivil?
Efectivamente, é nosso entendimento que, em situações de responsabilidade extracontratual, diversamente se se versasse responsabilidade contratual, por alegada responsabilidade civil por alegada negligência médica em hospitais públicos - como é o caso dos autos - não se verifica a inversão do ónus da prova, pois que tal não resulta de nenhuma norma jurídica, nem esta tese foi defendida em qualquer decisão dos tribunais superiores, v.g, STA.
Embora esta questão seja objecto de estudo académico/doutrinário, sendo cada vez mais as vozes que defendem a aplicação a situações como a dos autos do princípio da inversão do ónus da prova, atenta a dificuldade em os lesados provarem a actuação ilícita em caso de negligência médica em hospitais do SNS, o certo é que nenhuma norma ou diploma legal possibilita este entendimento.

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Concluímos, deste modo, pela total improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.


III
DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Notifique-se.

DN.

Porto, 28 de Janeiro de 2022

Antero Salvador
Helena Ribeiro
Nuno Coutinho
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i) Cfr. fundamentação fáctica acima transcrita - concretamente, ao ter-se escrito, a fls. da sentença 17, que "Um aspeto interessante neste relatório é ainda a resposta dada ao quesito 11 formulado pelo autor; é que, neste caso, admite o Sr. Perito que menos horas até à cirurgia (de revascularização) tornam mais viável a possibilidade de reversão das lesões. Esta asserção gera-nos grandes dúvidas sobre se a amputação não se terá ficado a dever ao atraso na realização desta cirurgia no CH de São João, no qual, como se disse, o autor esperou oito horas pela angiografia, podendo assim interromper qualquer nexo de causalidade entre a atuação do réu (mesmo que ela existisse nos termos alegados) e a amputação, porque, seguindo a conclusão da perícia, o tempo que o autor aguardou no CH de São João (e foi transferido já com notícia dos sinais detetados, competindo a este hospital confirmar o diagnóstico) pode ter sido o fator determinante para a amputação (recorde-se que, nesta sede, o relatório está em absoluto erro, porque considera que o autor só chegou ao CH de São João pelas 07:00 horas do dia 25.02.2014, quando na realidade deu entrada nesses serviços pelas 00:56 horas desse mesmo dia), já que a angiografia (para confirmar a lesão trombótica) só ocorreu depois das 09:00 horas da manhã". - sublinhado nosso.