Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00421/16.7BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/19/2023
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:AÇÃO ADMINISTRATIVA; TESTAMENTO; DESPACHO SANEADOR;
PROVA; APERFEIÇOAMENTO DO ARTICULADO INICIAL;
PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder parcial provimento aos recursos.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO

«AA», «BB», «CC», «DD» e mulher «EE», residentes na Rua ..., ..., ... e «FF» e marido «GG», residentes em ..., ..., ..., instauraram ação administrativa contra «HH», residente na Travessa ..., ..., ... ..., ... e o ESTADO PORTUGUÊS, na qual peticionaram a condenação solidária dos Réus a pagarem-lhes:
a) A título de danos patrimoniais o valor de 8.965,00 €, acrescido do valor que se vier a apurar na avaliação dos imóveis, já requerida;
b) A título de danos não patrimoniais, valor nunca inferior a 100.000,00 € (x5), a cada um dos AA.;
c) Àqueles valores acrescem juros à taxa legal vencidos desde a data do trânsito em julgado da sentença proferida no âmbito do processo que correu termos no 1.º juízo cível do tribunal judicial da comarca de Paredes, sob o n.º 4649/08...., e vincendos desde a data da entrada da presente acção até efectivo e integral pagamento.”
Por sentença proferida pelo TAF de Penafiel foi julgada improcedente a ação e absolvida a Ré do pedido.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, os Autores formularam as seguintes conclusões:

a) Por despacho interlocutório decidiu a Mma. Juiz a quo, julgar desnecessária a produção de prova requerida, nos termos do artigo 90° n.° 3 do CPTA.

b) Não se conformando os recorrentes com tal decisão, vêm recorrer neste sede desse despacho, pois muita mal esteve o Tribunal a quo, na medida em que os Recorrentes não só requereram prova testemunhal e declarações de parte e depoimento de partes, como requereram na sua P. 1., a junção e transcrição do testemunho da aqui recorrida, no CD junto aos autos, do processo n.° 4649/08...., que correu termos no Tribunal de Paredes - cfr. P.I, artigos 40 a 45.

c) Ora o Tribunal a quo não se pronunciou quanto à apreciação e/ou transcrição da prova junta e requerida, e por isso violou o artigo 90°, n.° 3, artigo 87° n.° 1 c) ambos do CPTA, bem como o artigo 342° n.° 1 C.C. e ainda 421° do CPC.


d) Devendo em consequência ser o douto despacho revogado e substituído por um outro que admita a prova junta e requerida, seguindo-se os ulteriores termos legais.

e) Face ao despacho interlocutório, ora recorrido, veio a Mma. Juiz a quo, dar sentença, julgando totalmente improcedente a acção administrativa por não provada e em consequência absolver a R. do pedido.

f) Fundamentado em especial e em síntese, que os Autores não alegaram qualquer facto que permita subsumir a actuação da Ré à prática de qualquer facto ilícito doloso, para a responsabilizar pelo pagamento da indeminização peticionada. Concluindo assim pela inexistência de qualquer comportamento doloso susceptível de ser imputado à Ré, enquanto pressuposto de responsabilidade civil extracontratual, por falta de um dos seus prossupostos.

g) Salvo o devido respeito, carece de total razão a douta Sentença ora recorrida, senão vejamos:

h) Os Recorrentes na sua P.I. vieram alegar quanto ao facto ilícito/doloso/culposo, os facos alegados nos artigos 40° a 45° da P.I, que salvo opinião contrária são mais que óbvios para subsumir a actuação da Recorrida pelo facto doloso, matéria esta que foi aliás impugnada pela Recorrida na sua Contestação artigo 100° e por isso matéria controvertida.
i) Mas, mesmo que fosse este o entendimento do Tribunal a quo, o que não se concebe, que o alegado na P.I, sejam " escassos" quanto a esta matéria, poderia a Mma. Juiz, ter convidado os AA a proceder ao aperfeiçoamento da P.I., nos termos do artigo 87° n.° 2 e 3 do CPTA, o que não fez!


j) Sendo que ao decidir, como decidiu em douta sentença, mostra-se prejudicada a apreciação da prova, quanto ao pressuposto da culpa, e a sua decisão.

k) Isto porque, se a Mma. Juiz tivesse por despacho admitido o CD e ordenado a sua transcrição como requerido, facilmente teria detectado a culpa/dolo da actuação da Requerida, com a sua intenção ao redigir o testamento nos exactos termos em que o fez, sabendo que estava a violar a legislação aplicável, tudo nos termos do artigo 421° do C.P.C, por remissão do artigo 1° do CPTA.

l) Violando assim a douta sentença o artigo 421° do C.P.C, por remissão do artigo 1° do CPTA, neste sentido Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, in www.dgsi.pt, de 30 de Janeiro de 2020.

m) Pelo que, deve a douto despacho ser revogado e substituído por outro que ordene a transcrição do CD e que admita as provas requeridas, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais.

n) E ainda, caso o Venerando Tribunal assim entenda, devem ser os Recorrentes, notificados nos termos do artigo 87° n.° 2 e 3 do CPTA, para aperfeiçoamento do alegado quanto à ilicitude e culpa da Recorrida na P.I.

Termos em que deve ser julgado
Procedente do Recurso,
Fazendo-se
JUSTIÇA


A Ré juntou contra-alegações, concluindo:
Quanto ao despacho impugnado:

I --- O Tribunal a quo julgou desnecessária a produção de outras diligências de prova, considerando:
a) Os termos em que a ação se mostra configurada;
b) A posição assumida pelas partes nos articulados e os factos por elas alegados;
c) Os elementos documentais já existentes no processo;
d) O disposto nos artigos 342º., nº. 1º. do Código Civil e 90º., nº. 3º. do CPTA.

II --- Desde que a prova já existente nos autos foi considerada bastante para a prolação da sentença, nenhuma razão, de facto ou de direito, obrigava o Tribunal a acolher e a apreciar qualquer outra prova, bastando que o tivesse justificado, como justificou, em despacho devidamente fundamentado.
(anteriores artigos 1º. a 5º.)

III --- O pedido de indemnização formulado nesta ação teve como fundamento um testamento outorgado em 20/05/2002 em benefício dos Recorrentes, mas que foi declarado nulo, por vício de forma, o que os teria prejudicado por ter ficado sem efeito a vocação testamentária.

IV --- Toda a petição inicial foi concebida e estruturada na perspetiva da Lei n°. 67/2007, de 31 de dezembro, hoje vigente, que, para a responsabilização do Estado e dos seus agentes pelas consequências de atos ilícitos por estes praticados se basta com a mera culpa na sua conduta.

V --- Porém, à data do referido testamento, vigorava o Decreto-Lei n°. 48.051, de 21 de novembro de 1967, que, para o indicado efeito, no seu artigo 3°., n°. 1°., exigia que os agentes administrativos tivessem excedido os limites das suas funções (hipótese aqui excluída) ou que, no desempenho destas e por sua causa, tivessem procedido dolosamente.

VI --- Na ação de anulação do testamento, foi dado como provado que a Recorrida não cumpriu certas normas técnicas da feitura dos testamentos, razão de ser da invalidade formal declarada --------- mas não se provou, nem sequer se alegou que ela tivesse querido agir e tivesse agido de forma deliberada para provocar aquela invalidade e o prejuízo dos aqui Recorrentes.

VII --- Também na presente ação nenhuns factos foram alegados pelos Recorrentes com vista a poder concluir-se pela existência de tal conduta dolosa, como bem se apontou na sentença impugnada,

VIII --- Falta essa que os Recorrentes ainda intentaram suprir, clamando pela aplicação do artigo 421°., do CPC, de modo a permitir-lhes a produção de uma prova extrajudicial, o depoimento prestado pela Recorrida na dita ação de anulação do testamento, o que foi julgado desnecessário.
(anteriores artigos 6º. a 16º.; e, ainda, 1º. a 5°.)

IX --- Além de ter sido julgado desnecessário, tal depoimento nem se afigurava juridicamente possível, pois o artigo 421°., n°. 1°. só o permitiria se tivesse sido prestado por quem fosse parte nos dois processos:
-- entre outros, o Ac. do TCAS, proferido em 30/01/2020 no P°. n°. 984/11.3.BEL.RA-S1, relatado pela Exma. Desembargadora Alda Nunes (in dgsi).

X --- Ora, a Recorrida é parte neste processo, mas não foi parte no de anulação, pelo que nunca poderia vir prestar aqui um depoimento com valor confessório.

XI --- Já o mesmo se não poderá dizer quanto aos próprios Recorrentes e quanto aos factos que ficaram a constar dos artigos 1º., 2º., 4º., 7º. a 10º., 12º, a 15º., 22º., 23º. e 26º. a 29º. da contestação que eles apresentaram na dita ação de anulação (P1 nº 4649/08...., a págs. 226 e ss destes autos): CPC., arts. 46º. e 465º., nº.s 21. e 11..
(anteriores artigos 17º. a 22º.)
Quanto à sentença impugnada

XII --- Apenas se controvertem factos, não conclusões.

XIV --- Os artigos 40º. a 45º. da Petição não encerram nenhuns “factos”; contêm apenas matéria de direito ou meras conclusões, pelo que o seu teor nunca poderia ser considerado “matéria [de facto] controvertida”,

XV --- Também não poderia ser ordenado o aperfeiçoamento da petição inicial, ao abrigo do artigo 87º., nº. 2º. e 3º. do CPTA, pela simples razão de que só pode aperfeiçoar-se o que já existe; e, no caso dos autos, a matéria de facto que induzisse uma conduta dolosa não é “escassa”, mas pura e simplesmente inexistente.
(anteriores artigos 24º. a 30º.)

XVI --- Devem ser mantidos nos seus precisos e exatos termos quer o despacho, quer a sentença que foram objeto deste recurso.

Só assim se fará inteira e sã
J U S T I Ç A!
A Senhora Procuradora Geral Adjunta, notificada nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
A) No dia 20/05/2002, foi outorgado um testamento no Cartório Notarial ..., à data a cargo da Ré, exarado a fls. 69 e 69 v. do Livro de Notas n.º 159-T, do qual consta que «II» instituiu como seus únicos e universais herdeiros, os seus sobrinhos, ora Autores, «BB», «CC», «DD», «AA» e «FF», filhos da sua irmã, «JJ» - cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial;
B) «II» faleceu no dia 18 de abri de 2008, no estado de solteiro, sem descendentes ou ascendentes – cfr. documento a fls. 349 a 358 dos autos;
C) «KK» e marido e «LL» intentaram uma ação declarativa de condenação, com processo comum ordinário, contra os Autores, a qual correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes, sob o n.º 4649/08...., e na qual formularam o pedido de declaração de nulidade do testamento referido na alínea antecedente – cfr. certidão que consta a fls. 244 a 272 dos autos;
D) A 22/03/2013 foi proferida sentença no processo n.º 4649/08...., pela qual foi julgada procedente a ação e declarado nulo, por vício de forma, o testamento referido na alínea A) e que transitou em julgado a 30/04/2013 – documento n.º ... junto com a petição inicial e certidão que consta a fls. 244 a 272 dos autos;
E) Na decisão referida na alínea antecedente foram julgados provados os seguintes factos:
“5) Na parte do testamento onde são instituídos os herdeiros percebe-se que o texto que se encontrava aí escrito era diferente daquele que vem a ser aposto, desde logo pela concordância gramatical entre a primeira parte do parágrafo, escrita no feminino, que não foi apagada e ainda permanece, e a parte alterada que vem a ser escrita posteriormente, já no masculino, resultando escrito o seguinte: “Institui suas únicas e universais herdeiras”, continuando depois com as palavras já emendadas “seus sobrinhos...”, sendo a palavra “seus” e a palavra “sobrinhos” apostas sobre a parte apagada ou rasurada (G) e H) dos factos assentes];
6) No testamento em apreço, na parte onde é feita a identificação dos herdeiros, ou seja, no parágrafo 4o, foram apagadas as palavras que inicialmente haviam sido escritas nas 2.ª, 3.a e 4.a linhas, sendo manuscritas sobre essa mesma parte, novas palavras, onde agora são identificados os herdeiros instituídos [resposta ao ponto 1.º da base instrutória];
7) Na parte do texto onde vêm identificados os herdeiros instituídos pelo testador, ocorreu a introdução de um maior número de caracteres num espaço previamente trancado entre outros caracteres anteriormente manuscritos [respostas ao ponto 7.º e ao ponto 22.º da base instrutória];
8) As palavras apostas sobre a parte rasurada foram escritas com uma esferográfica similar mas com maior pressão na sua escrita [resposta ao ponto 2.o da base instrutória);
9) Na parte final do testamento, ou seja imediatamente antes da linha ocupada pela assinatura do testador, encontra-se a menção da ressalva, feita em letra miudinha e com a palavra rasura abreviada, constando escrito “Ras” (E) dos factos assentes+;
10) Todo o texto correspondente à ressalva foi escrito na parte restante da referida linha, continuando, por falta de espaço, na parte superior, ou seja, no intervalo entre esta linha e a anterior, o que foi feito por, manifestamente, não existir espaço disponível na linha inferior, a qual, no momento em que foi efectuada a ressalva, já se encontrava ocupada com a assinatura do testador [resposta aos pontos 3o e 4o da base instrutória];
11) Sendo, pois, o texto da ressalva aí colocado depois da assinatura do testador, o que também se alcança pelo facto de a letra “L”do apelido “Silva”, da assinatura do testador ter ocupado espaço na linha superior [resposta aos pontos 5o e 30° da base instrutória);
12) Tendo a frase correspondente à ressalva deixado apenas o espaço da aludida letra, continuando do outro lado desta [resposta ao ponto 31° da base instrutória];
13) A ressalva não foi trancada no final da frase, nem foi colocado o respectivo ponto final [resposta ao ponto 6o da base instrutória];
14) O «II» assinou o testamento e fê-lo antes de ter sido efectuada a ressalva constante do mesmo, tendo sido colocado um ponto no início da linha onde a sua
assinatura se encontra aposta [respostas aos pontos 9o e 19° e ao ponto 20° da base instrutória);
(...).” – cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial;
F) Na fundamentação da decisão referida na alínea D) consta, nomeadamente, o seguinte:
“(...).
Há, assim, que apreciar das questões respeitantes à validade formal do testamento.
Nos termos do art.º 2204.° do Código Civil, as formas comuns do testamento são o testamento público e o testamento cerrado, sendo público, de acordo com o art.º 2205.º, o testamento escrito por notário no seu livro de notas.
E os actos realizados por notário regem-se pelas normas constantes do Código do Notariado, nos termos, nomeadamente, dos seus art.ºs 35.° e segs., aí se prevendo também a elaboração dos testamentos públicos nos livros de notas, no art. 36°, n° 1. Dispõe o art.9 41.9 do Código do Notariado, com a epígrafe “Ressalvas”:
1 - As palavras emendadas, escritas sobre rasura ou entrelinhadas devem ser expressamente ressalvadas.
2 - A eliminação de palavras escritas deve ser feita por meio de traços que as cortem e de forma que as palavras traçadas permaneçam legíveis, sendo aplicável à respectiva ressalva o disposto no número anterior.
3 - As ressalvas são feitas antes da assinatura dos actos de cujo texto constem e, tratando-se de actos lavrados em livros de notas, dos respectivos documentos complementares ou de instrumentos de procuração, devem ser manuscritas pelo funcionário que os assina.
4 - As palavras emendadas, escritas sobre rasuras ou entrelinhadas que não forem ressalvadas consideram-se não escritas, sem prejuízo do disposto no n.° 2 do art.º 371.º do Código Civil.
5 - As palavras traçadas, mas legíveis, que não forem ressalvadas consideram-se não eliminadas.
E percebe-se a razão de ser de tais formalidades, pois que se pretende salvaguardar que o texto do testamento traduza o mais fielmente possível a vontade do testador e que essa vontade possa ser apreendida, sem margem para dúvidas, por quem vai tomar conhecimento do testamento posteriormente, na medida em que, atendendo ao tipo de negócio jurídico que está em causa, se pretende cumprir com a efectiva vontade do testador e este já não estará vivo para poder explicar qual era a sua real vontade quando o elaborou.
(...).
No caso concreto, resulta da matéria de facto que o testamento referido no ponto 4 padece dos vícios descritos nos pontos 5 a 14, nomeadamente ocorrendo que a parte do texto que respeitava à instituição dos herdeiros foi alterada, dela passando a constar os seus sobrinhos «BB», «CC», «AA» e «FF», quando antes constava (como ainda é perceptível pela simples análise do texto do documento, aliás, como amplamente se analisou na motivação da decisão da matéria de facto de fls. 568 a 577) as suas irmãs, sendo ainda perfeitamente perceptível por baixo das palavras “«AA» e «FF», filhos” o nome da irmã do testador, ora A., “«KK»”, sendo que a ressalva da alteração foi aposta após a assinatura do testador (o que legitimamente permite que se questione se a própria alteração não poderá tê-lo sido também) e apenas contém o texto que foi escrito por cima, mas não faz qualquer referência ao que constava por baixo.
É certo que uma rasura - que corresponde ao acto de rasurar, o qual significa “raspar ou riscar letras num documento, para alterar-lhe o texto (cfr. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, ed. Círculo de Leitores, tomo II, pág. 861) - também contempla as situações em que existe eliminação de palavras para escrever por cima outras de sentido diferente. Não é, todavia, apenas isso, pois que qualquer alteração do texto, seja uma substituição de palavras ou caracteres (por exemplo de uma palavra com um erro por outra a corrigi-la, de uma palavra por outra de significado semelhante, de uma palavra por outra de sentido completamente diferente), seja uma simples eliminação de palavras (por exemplo para eliminar uma palavra ou um sinal gráfico cuja inclusão constitui um erro gramatical ou que estava a mais) constitui uma rasura.
Pelo que, manifesto é que o nº 1 do art. 41º respeita à regra geral, respeitando o n.º 2 a uma situação especial de rasura, aquela que inclui a eliminação de palavras escritas.
Ou seja, quando a alteração do texto incluir a eliminação de palavras que estavam nele escritas, mesmo que para escrever outras em sua substituição, a rasura deve ser feita com traços que cortem as palavras e que as deixem legíveis e tal situação deve também ser expressamente ressalvada.
Quer dizer, e ao contrário do que defendem os RR., quando a rasura contiver a específica situação de eliminação de palavras, deve aplicar-se o disposto no n.º 2 do art.º 41.º, o qual, aliás, não contraria o disposto no n° 1, apenas determina a forma como nessa situação concreta se deve proceder à rasura e como tal também deve ser contemplado na ressalva.
As situações de incumprimento das referidas regras formais não têm as mesmas consequências legais, prevendo-se a consequência mais grave da nulidade apenas nas situações referidas no art. 70° do Código do Notariado, uma delas precisamente a de inobservância do disposto na primeira parte do art. 41°, n° 2 [art. 70°, n° 1, al. b)], ou seja, quando a eliminação das palavras escritas não se fizer por meio de traço que as deixe legíveis.
E esta situação, ao contrário das restantes aí previstas, nem sequer é susceptível de sanação, nos termos do n° 2 do referido art. 70°.
Aliás, tal situação apenas é susceptível de revalidação judicial nos termos do art. 73.º do Código do Notariado, mas apenas quando se mostre que as palavras eliminadas, quaisquer que elas fossem, não podiam alterar os elementos essenciais ou o conteúdo substancial do acto [al. d)].
Não é manifestamente o caso concreto, em que (para além de no processo não estar pedida a revalidação) as palavras eliminadas alteravam efectivamente o conteúdo essencial do testamento, na medida em que alteravam as próprias pessoas dos herdeiros instituídos.
Portanto, ocorrendo no caso que foram eliminadas as palavras inicialmente escritas no testamento, onde eram instituídas herdeiras do testador as suas irmãs, para serem substituídas por outras palavras onde se instituem herdeiros os seus sobrinhos, e que aquela eliminação de palavras não foi feita de acordo com o previsto na primeira parte do n° 2 do art. 41.º do Código do Notariado, não resta senão concluir pela nulidade, por vício de forma insanável (e não revalidável judicialmente, atento o disposto no art. 73°, al. c), a contrario, do Código do Notariado), do testamento aludido no ponto 4 da matéria de facto, nos termos previstos no art. 70°, n° 1, al. c), e n° 2, a contrario, do Código do Notariado.
Nos termos do disposto no art. 289°, n° 1, do Código Civil, a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Procede, assim, o primeiro pedido formulado pelos AA..
***
IV - Por tudo o exposto, decide-se julgar procedente a acção e, em consequência: - declara-se nulo, por vício de forma, o testamento exarado em 20 de Maio de 2002, no Cartório Notarial ..., a fls. 69 e 69-v. do Livro de notas n° 159-T, em que interveio como testador «II», aludido no ponto 4 da matéria de facto.”
G) A petição inicial foi apresentada em juízo a 19/02/2016 – cfr. fls. 1 dos autos.
O Tribunal consignou: Motivação da decisão de facto:
A convicção do Tribunal assentou na análise crítica dos documentos juntos aos autos pelas Partes, os quais mereceram a credibilidade do Tribunal e que estão elencados em cada um dos factos provados, conjugados com a posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados e na consulta dos autos quanto ao facto elencado na alínea G) dos factos provados.
DE DIREITO
Atente-se no discurso fundamentador da sentença:
Fixados os factos assentes vejamos, então, se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual da Ré e se os Autores têm direito a receber o montante peticionado nos autos, ou seja, a quantia de € 508.965,00, acrescida da quantia correspondente aos juros de mora legais, contados desde a data do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 4649/08.....
Dispõe o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa que “o Estado e as demais entidades públicas, são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias.”
Deste preceito constitucional resulta que o Estado e as demais entidades públicas, os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, deverão ser responsabilizados sempre que se verifique, no âmbito do desenvolvimento das suas atribuições, uma violação, por ação ou omissão, de normas jurídicas ou regras técnicas da qual resultem danos para os particulares.
No plano legal, a responsabilidade civil extracontratual do Estado está consagrada na Lei 67/2007, de 31/12, o qual veio revogar o regime jurídico contido no Decreto-Lei n.º 48051, de 21/11/1967. No entanto, a Lei n.º 67/2007, de 31/12 apenas se aplica a factos geradores de responsabilidade civil ocorridos após a data da entrada em vigor do referido diploma legal, ou seja, após 30/01/2008, e o facto que integra a causa de pedir dos Autores e sustenta o pedido formulado nos presentes autos ocorreu a 10/05/2002, pelo que, o regime jurídico aplicável é o que decorre do Decreto-Lei n.º 48051, de 21/11/1967 e nas disposições do Código Civil que lhe sejam subsidiariamente aplicáveis.
É jurisprudência pacífica que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, com as especificidades resultantes das normas próprias relativas à responsabilidade dos entes públicos.
Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos são, assim, idênticos aos previstos no artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil. São eles: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Vejamos então se, in casu, estão reunidos os referidos pressupostos.
O facto tem sido descrito pela Doutrina como toda a situação dominável ou controlável pela vontade, o qual consiste, em regra, num ato, numa ação, ou seja, num facto positivo, que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera do titular do direito, mas que também se pode traduzir num facto negativo, numa abstenção ou numa omissão, mas, neste caso, quando haja o dever jurídico de praticar um ato que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano.
Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48051, o “Estado e as demais pessoas coletivas de direito público respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.”
E o artigo 6.º preceitua que “para efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os atos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os atos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.”
Resulta deste normativo que a ilicitude se reconduz à reprovação da conduta do agente por confronto com o plano geral e abstrato da lei e abrange todas as violações do bloco de legalidade, que podem compreender, normas legais, regulamentares e/técnicas, desde que, da conduta do agente, resulte uma ofensa a direitos ou interesses legalmente protegidos.
Neste sentido, tem-se entendido que “(...) conceito de ilicitude consagrado neste preceito é, pois, mais amplo que o consagrado na lei civil (vd. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 10º ed., vol. II, p. 1125; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10.05.1987, in Ac. Dout. 310, p. 1243 e segs.).
A propósito do requisito da ilicitude refere aquele Professor na citada obra: “É necessário, em primeiro lugar, que tenha sido praticado um facto ilícito. Este facto tanto pode ter consistido num acto jurídico, nomeadamente um acto administrativo, como num facto material, simples conduta despida do carácter de acto jurídico. O acto jurídico provém por via de regra de um órgão que exprime a vontade imputável à pessoa colectiva de que é elemento essencial. O facto material é normalmente obra dos agentes que executam ordens ou fazem trabalhos ao serviço da Administração. O artigo 69 do Decreto-lei n.9 48 051 contém, para os efeitos de que trata o diploma, uma noção de ilicitude. Quanto aos actos jurídicos, incluindo portanto os actos administrativos, consideram-se ilícitos “os que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis”: quer dizer, a ilicitude coincide com a ilegalidade do acto e apura-se nos termos gerais em que se analisam os respectivos vícios. Quanto aos factos materiais, por isso mesmo que correspondem tantas vezes ao desempenho de funções técnicas, que escapam às malhas da ilegalidade estrita e se exercem de acordo com as regras de certa ciência ou arte, dispõe a lei que serão ilícitos, não apenas quando infrinjam as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis, mas ainda quando violem as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”. – cfr. Acórdão do TCAN, de 19/02/2016, proc. n.º 00473/07.0BECBR, disponível em www.dgsi.pt.
Nos presentes autos, e atenta a relação material controvertida tal como foi configurada pelos Autores, está em causa apurar da ilicitude da atuação da Ré na elaboração do testamento de «II».
Resulta da factualidade provada que, no dia 20/05/2002, foi outorgado um testamento no Cartório Notarial ..., à data, a cargo da Ré, exarado a fls. 69 e 69 v. do Livro de Notas n.º 159-T, do qual consta que «II» instituiu como seus únicos e universais herdeiros, os seus sobrinhos, ora Autores, «BB», «CC», «DD», «AA» e «FF», filhos da sua irmã, «JJ»; mais resultou provado que, após a morte do referido «II», «KK» (irmã do falecido) e marido e «LL» intentaram uma ação declarativa de condenação, com processo comum ordinário, contra os Autores, a qual correu termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes, sob o n.º 4649/08...., e na qual formularam o pedido de declaração de nulidade do referido testamento, tendo sido proferida decisão, transitada em julgado, que julgando procedente a ação, declarou nulo, por vício de forma, o referido testamento.
Para fundamentar a decisão, o Tribunal referiu, nomeadamente, que “(...), ocorrendo no caso que foram eliminadas as palavras inicialmente escritas no testamento, onde eram instituídas herdeiras do testador as suas irmãs, para serem substituídas por outras palavras onde se instituem herdeiros os seus sobrinhos, e que aquela eliminação de palavras não foi feita de acordo com o previsto na primeira parte do n° 2 do art. 41.º do Código do Notariado, não resta senão concluir pela nulidade, por vício de forma insanável (e não revalidável judicialmente, atento o disposto no art. 73°, al. c), a contrario, do Código do Notariado), do testamento aludido no ponto 4 da matéria de facto, nos termos previstos no art. 70º, nº 1, al. c), e nº 2, a contrario, do Código do Notariado.
Assim, como resulta da sentença proferida no processo n.º 4649/08...., a Ré, na elaboração do testamento de «II», violou as normas legais aplicáveis, mais concretamente o disposto no artigo 41.º, n.º 2 do Código do Notariado, o que teve como consequência a declaração judicial de nulidade do referido testamento.
Tal violação da lei por parte da Ré permite concluir pela verificação de uma atuação ilícita desta para efeitos de responsabilidade civil, estando, assim, preenchido este requisito.
*
Culpa
A culpa consiste no nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto ilícito à vontade do agente, exprimindo uma ligação reprovável ou censurável da pessoa com esse facto, podendo assumir a forma de dolo ou de negligência, sendo aferida nos termos do disposto no artigo 487.º do Código Civil, ex vi do artigo 4.º do D.L. 48051.
Dispõe o artigo 4.º, n.º 1 do D.L. 48051 que a “culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 487.º do Código Civil”, no qual vem expressamente consagrada a tese da culpa em abstrato, uma vez que é “... apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso” – cfr. n.º 2.
Nos presentes autos, apenas subsiste a apreciação da responsabilidade civil da Ré no exercício das funções de notária, enquanto funcionária pública, pelo que, importa, antes de mais, ter presente o disposto no artigo 3.º, n.º 1 do D.L. n.º 48051, o qual preceitua que “os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de atos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente” (sublinhado nosso).
Assim, no que respeita à responsabilidade civil dos titulares dos órgãos e dos agentes administrativos, este artigo 3.º, n.º 1 introduziu uma nota restritiva exigindo, para a sua responsabilização pessoal, que, na prática do ato ilícito, tenham sido excedidos «os limites das suas funções» ou que, «no desempenho destas e por sua causa», tenham «procedido dolosamente».
Na falta de qualquer outra especificação da lei, deve entender-se que a atuação dolosa abarca as circunstâncias em que o agente age para atingir o resultado ilícito (dolo direto) e aquelas outras em que o agente encara o resultado ilícito como uma consequência possível da sua conduta (dolo eventual) – cfr. Carlos Aberto Fernandes Cadilha, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 167 e 168.
Assim, para que a atuação da Ré pudesse configurar o dolo teria que ser alegado e provado que teve a intenção de redigir o testamento nos exatos termos em que o fez, sabendo que estava a violar a legislação aplicável ou então que a Ré exarou o testamento nos exatos termos em que o fez e configurou tal atuação como ilícita.
Ora, compulsada a petição inicial constata-se que inexiste alegado qualquer facto que permita subsumir a atuação da Ré à prática de qualquer facto ilícito doloso, alegação indispensável à sua responsabilização pelo pagamento da indemnização peticionada.
A única alegação dos Autores é a de que a Ré violou o Código do Notariado, “infringindo regras de ordem técnica e deveres objetivos do cargo que desempenhava, que lhe foram impostas”, concluindo que essa atuação da Ré é claramente dolosa. Só que tal conclusão não é correta, já que a infração de regras de ordem técnica que são impostas pelo exercício da função de notária, por si só, não integra o conceito de dolo em qualquer uma das suas modalidades.
Assim, inexistindo qualquer comportamento doloso suscetível de ser imputado à Ré, enquanto pressuposto de responsabilidade civil extracontratual, falece, desde logo, por falta de um dos seus pressupostos, a presente ação e o consequente dever de indemnizar os Autores pelos danos peticionados.
X

Vejamos,
Do Despacho interlocutório -
Através de despacho interlocutório o Tribunal a quo julgou desnecessária a produção de prova requerida pelos AA aqui Recorrentes, nos termos do artigo 90.°, n.° 3 do CPTA.
É este o teor do Despacho:
"Atentos os termos em que a ação se mostra configurada e a posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados, verifica-se que os elementos documentais carreados para o processo são suficientes à prolação da decisão."
"Se é certo que a questão a decidir nos autos não é apenas de direito, o certo é que, sendo também uma questão de facto, atendendo à factualidade alegada pelas Partes e à posição expressa nos respetivos articulados, conjugado com o disposto no artigo 342.°, n.° 1 do Código Civil, não se antevê necessidade de ordenar quaisquer outras diligências de prova, por desnecessidade destas para a decisão a proferir."

"Assim, nos termos e com os fundamentos expostos, julgo desnecessária a produção da prova requerida - cfr. artigo 90.°, n.° 3 do CPTA."

Os Recorrentes discordam deste entendimento.
Cremos que têm razão.
É que, ao contrário do alegado pelo Tribunal a quo, os Recorrentes não requereram apenas a produção de prova testemunhal e por declarações de parte e depoimento de parte.
Alegaram e requereram a transcrição do CD junto aos autos com a P.I, referente ao testemunho da aqui Recorrida, no processo n.° 4649/08...., que correu termos no Tribunal Judicial de Paredes. - cfr P.I.. Transcrição essa, que, na sua óptica, iria fazer a
prova quanto ao pressuposto da culpa da Recorrida, nos termos peticionados - cfr. artigos 40° a 45º da P.I.

"40. O comportamento adoptado pela 1ª Ré, na elaboração e redacção do testamento, que veio a ser considerado nulo por vício de forma, denota DOLO GROSSEIRO, nas obrigações que lhe estavam afectas em razão do cargo que desempenhava.
41. Sendo por isso, responsáveis solidariamente a /a Ré e o ESTADO, nos termos do artigo 8 n.° 1 e 2 da Lei 67/2007.
42. Estando assim os pressupostos da responsabilidade civil, aplicáveis ao caso concreto preenchidos, na sua plenitude, e sem grande esforço de prova, face à já existente e ora junta.
43. Dúvidas não existem, que a Ré, violou o artigo 41° n.° 2 do Código de Notariado, infringindo regras de ordem técnica e deveres objectivos do cargo que desempenhava, que lhe foram impostas.
44. Devendo-se tais infracções a culpa exclusiva da 1ª Ré, na prática dos vários factos ilícitos, que levaram à NULIDADE do testamento.
45. Neste caso, a culpa, traduz-se, salvo melhor opinião, em DOLO DIRECTO, na sua forma mais GROSSEIRA - cfr. CD das declarações da 1ª Ré, prestadas no processo n.° 4649/08.....".
Os Recorrentes pretendiam, assim, fazer prova susceptível de demonstrar a culpa da Recorrida, nos termos do artigo 487.° do CC e artigo 4.° do DL n.° 48051, pelo que ao decidir, como decidiu - julgando desncessária a produção de prova, e não se ter pronunciado relativamente à apreciação e/ou transcrição da prova junta e requerida -, violou o Despacho ora recorrido o artigo 90.° n.º 3 do e artigo 87° n.° 1 alínea c) ambos do CPTA bem como o artigo 342.°, n.º 1 do CC e ainda o artigo 421° do CPC.
Da Sentença -
Na sequência do Despacho interlocutório ora recorrido, veio o Tribunal a quo, em sede de Sentença, julgar totalmente improcedente a ação administrativa por não provada e em consequência absolver a Ré do pedido, fundamentando a sua decisão com:
"Para fundamentarem a respetiva pretensão, alegaram, em síntese, que a .../.../2008 faleceu «II» o qual, no dia .../.../2002, havia outorgado um testamento no Cartório Notarial ..., a cargo da 1. a Ré, do qual consta que o falecido instituía como seus únicos e universais herdeiros, os seus sobrinhos, ora Autores; sucede que, tal testamento foi declarado nulo por sentença já transitada em julgado, proferida em processo judicial que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Paredes, com fundamento em incumprimento de regras formais pela 1. a Ré, a qual, com dolo grosseiro, não cumpriu as obrigações que lhe estavam afetas em razão do cargo de notária que desempenhava; tal atuação da 1. a Ré causou-lhes danos patrimoniais e não patrimoniais que deverão ser ressarcidos pelos Réus, solidariamente."
"É jurisprudência pacífica que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, com as especificidades resultantes das normas próprias relativas à responsabilidade dos entes públicos."
"Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos são, assim, idênticos aos previstos no artigo 483.°, n.° 1 do Código Civil. São eles: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano."
Tendo decidido quanto ao prossuposto da culpa, o seguinte:
"Culpa
A culpa consiste no nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto ilícito à vontade do agente, exprimindo uma ligação reprovável ou censurável da pessoa com esse facto, podendo assumir a forma de dolo ou de negligência, sendo aferida nos termos do disposto no artigo 487.° do Código Civil, ex vi do artigo 4.° do D.L. 48051."
"Dispõe o artigo 4.°, n.° 1 do D.L. 48051 que a "culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 487.° do Código Civil", no qual vem expressamente consagrada a tese da culpa em abstrato, uma vez que é "... apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso" - cfr. n,° 2.
"Nos presentes autos, apenas subsiste a apreciação da responsabilidade civil da Ré no exercício das funções de notária, enquanto funcionária pública, pelo que, importa, antes de mais, ter presente o disposto no artigo 3.°, n.° 1 do D.L. n.° 48051, o qual preceitua que "os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de atos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente".

"Assim, no que respeita à responsabilidade civil dos titulares dos órgãos e dos agentes administrativos, este artigo 3.°, n.° 1 introduziu uma nota restritiva exigindo, para a sua responsabilização pessoal, que, na prática do ato ilícito, tenham sido excedidos «os limites das suas funções» ou que, «no desempenho destas e por sua causa», tenham «procedido dolosamente».
"Na falta de qualquer outra especificação da lei, deve entender-se que a atuação dolosa abarca as circunstâncias em que o agente age para atingir o resultado ilícito (dolo direto) e aquelas outras em que o agente encara o resultado ilícito como uma consequência possível da sua conduta (dolo eventual) - cfr. Carlos Aberto Fernandes Cadilha, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, 2. a edição, Coimbra Editora, págs. 167 e 168."
"Assim, para que a atuação da Ré pudesse configurar o dolo teria que ser alegado e provado que teve a intenção de redigir o testamento nos exatos termos em que o fez, sabendo que estava a violar a legislação aplicável ou então que a Ré exarou o testamento nos exatos termos em que o fez e configurou tal atuação como ilícita."
"Ora, compulsada a petição inicial constata-se que inexiste alegado qualquer facto que permita subsumir a atuação da Ré à prática de qualquer facto ilícito doloso, alegação indispensável à sua responsabilização pelo pagamento da indemnização peticionada."
“A única alegação dos Autores é a de que a Ré violou o Código do Notariado, "infringindo regras de ordem técnica e deveres objetivos do cargo que desempenhava, que lhe foram impostas", concluindo que essa atuação da Ré é claramente dolosa. Só que tal conclusão não é correta, já que a infração de regras de ordem técnica que são impostas pelo exercício da função de notária, por si só, não integra o conceito de dolo em qualquer uma das suas modalidades."

"Assim, inexistindo qualquer comportamento doloso suscetível de ser imputado à Ré, enquanto pressuposto de responsabilidade civil extracontratual, falece, desde logo, por falta de um dos seus pressupostos, a presente ação e o consequente dever de indemnizar os Autores pelos danos peticionados."

"Pelas razões e fundamentos expostos, julgo totalmente improcedente a presente ação administrativa, por não provada e, em consequência, absolvo a Ré do pedido."
Como invocado, os Autores/Recorrentes, na sua petição inicial, alegaram, quanto ao facto ilícito/doloso/culpa, a matéria contida nos artigos 40° a 45° do P.I. - cfr. P.I.
E a Ré/Recorrida, em sede da sua contestação, no seu artigo 100.°, referiu:
"100. --- Muito menos, houve por parte da ré o sonhado "dolo grosseiro" dolo directo", a que abusivamente se aludiu nos artigos 40°. e 45°. da PI."
Tratando-se por isso, de matéria controvertida.
Mas, mesmo que assim se não entendesse, certo é que sempre poderia o Tribunal ter convidado os AA a proceder ao aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos dos artigos 87°, n.°s 2 e 3 do CPTA.

SECÇÃO III
Saneamento, instrução e alegações
Artigo 87.°

Despacho pré-saneador
(…)
2 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
3 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
Ora, se os factos alegados, no entendimento do Tribunal a quo, são "escassos", para alegação da culpa da Recorrida, incumbia-lhe (ao Tribunal a quo), ter convidado os aqui Recorrentes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, o que não fez.
Seja em sede de despacho saneador, aliás não se pronunciando no despacho saneador, quanto à admissão de qualquer elemento de prova- cfr. despacho saneador - seja mesmo no despacho que antecede a sentença ora recorrida, e também ele aqui recorrido.
Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo acabou prejudicando a apreciação da prova, quanto ao pressuposto da culpa, e sua decisão. Pelo que, a prova apresentada como CD da gravação do depoimento da Recorrida como testemunha no processo n.° 4649/08...., que correu termos no Tribunal Judicial de Paredes, deveria ter sido admitida e valorada, sob o princípio da eficácia extra-processual das provas consagrado no artigo 421° do C.P.C, por remissão do artigo 1° do CPTA.

O valor extraprocessual das provas, nos termos do artº 421°, n° 1, do NCPC, só pode realmente ter eficácia, perante o juiz do segundo processo, se tal depoimento tiver sido reduzido a escrito ou tiver sido gravado no primeiro processo e for apresentado no segundo processo tal redução a escrito ou a gravação.

Ora, os Recorrentes, além de terem apresentado o CD da gravação, requereram ainda a transcrição do depoimento, pelo que, tais factos alegados na P.I e os alegados na gravação do CD, deveriam ter sido sujeitos à livre apreciação do Tribunal ao quo, o que não aconteceu.
Tratando-se de registo do depoimento, por meio de gravação, e com a redução a escrito, requerida pelo Recorrentes, deveria ter sido valorada, de acordo com as regras probatórias.
Violou, assim a Sentença ora recorrida, o artigo 421° do CPC, por remissão do artigo 1° do CPTA -neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 30/01/2020, no proc. 984/11.3BELRA-S1.
Tem, assim o despacho de ser revogado.

E, além do mais, devem ser os Autores/Recorrentes notificados nos termos do artigo 87° n.°s 2 e 3 do CPTA, para aperfeiçoamento do alegado quanto à ilicitude e culpa da Ré/Recorrida na P.I.
Em suma,
-Da conjugação do disposto na al. b) do n.° 1 do artigo 87.° do CPTA com os números 2 e 3 do mesmo preceito, decorre que, uma vez findos os articulados, e conclusos os autos ao juiz, tem este o dever de proferir despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, quando nestes se verifiquem irregularidades - designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa -, ou quanto ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
O disposto no antedito normativo segue de perto a solução preconizada no artigo 590.°, nºs 2, al. b), e 4, do CPC (aplicável ex vi artigos 1.° e 35.° do CPTA).
A este respeito, vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/04/2020, proferido no processo n.° 639/18.8T8PRD.P1:
I - Diversamente do que acontecia na vigência do Código de Processo Civil de 1961, agora, face ao que se dispõe no artigo 590.º, nºs 2, al. b), e 4, do CPC, não há razão para controvérsia: o poder do juiz de convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada não é um poder discricionário, mas antes um poder-dever, um poder vinculado.
II - O convite ao aperfeiçoamento (como o próprio termo inculca) supõe que os articulados revelem um conteúdo fáctico mínimo, ainda que deficientemente expresso: a petição inicial, que individualize a causa de pedir; a contestação, que identifique a(s) excepção(ões) deduzida(s) densificando-a(s) com os pertinentes elementos de facto.
III - No caso sub juditio, embora esteja, minimamente, identificada a causa de pedir, a petição inicial é, manifestamente, deficiente, já porque (…), pelo que se impunha que o tribunal proferisse despacho de convite ao aperfeiçoamento daquele articulado.
IV - A falta desse despacho configura omissão de um acto que a lei prescreve e a situação é especialmente ostensiva porquanto a Sra. Juiz, além de omitir a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, extraiu da deficiência da p.i. efeitos que se projectaram na improcedência da acção.
V - A omissão desse despacho, sendo uma nulidade processual, influiu no exame e decisão da causa, posto que esta julgou improcedente o pedido formulado pelo autor por insuficiência de factos que poderiam ter sido invocados em cumprimento do convite ao aperfeiçoamento, acabando por afectar com o vício da nulidade a própria sentença.»;
-Acresce que, o disposto no artigo 87.°, n.° 1, al. b) enquadra-se no princípio pro actione previsto no artº 7.° do mesmo diploma, nos termos do qual [p]ara efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.
A respeito deste princípio, ensinam Mário Aroso e Carlos Cadilha, que «(...)] o princípio pro actione, que decorre do disposto no art. 7.º (...) impõe que, em situações duvidosas, a interpretação das normas seja efectuada no sentido de promover a emissão de uma decisão de mérito» (em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, pp. 63-64.);
-A par disso, o disposto no artº 87.°, n.° 1, al. b) do CPTA sempre deverá ser interpretado como uma decorrência do dever de gestão processual consagrado no artº 7.°-A do CPTA, o qual, entre o demais, determina que o Tribunal “providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando-as a praticá-lo”;
-Em face do expendido, finda a fase dos articulados e conclusos os autos ao Juiz, verificando-se articulados facticamente insuficientes ou facticamente imprecisos, impende sobre o Tribunal o dever de proferir despacho no sentido de convidar a parte ou partes ao aperfeiçoamento do articulado ou articulados em questão, sob pena de se verificar uma nulidade processual ao abrigo do artº 195.°, n.° 1 do CPC, ex vi, artigos 1º e 35.° do CPTA);
-Assim, não tendo sido, desde logo, considerada inepta a petição inicial, sempre deveria ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando-se a parte a suprir as deficiências de alegação ou exposição dos factos, designadamente completando a causa de pedir através de alegação de factos que complementem ou concretizem os factos antes alegados - o que, repete-se, nunca ocorreu, tendo-se depois julgado improcedente a acção com a argumentação de que, compulsada a petição inicial constata-se que inexiste alegado qualquer facto que permita subsumir a atuação da Ré à prática de qualquer facto ilícito doloso, alegação indispensável à sua responsabilização pelo pagamento da indemnização peticionada, o que não se pode conceder.
Procedem as conclusões dos Apelantes.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento aos recursos, e, em consequência, anula-se o aresto recorrido e determina-se que, baixando o processo ao TAF a quo, aí se dê cumprimento ao poder-dever de convidar os Autores a aperfeiçoar o articulado inicial, como manda o artigo 590.º, nºs 2, al. b), e 4, do Código de Processo Civil, e, depois, apreciar os meios de prova na globalidade, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais.
Custas pela Recorrida.

Notifique e DN.
Porto, 19/5/2023

Fernanda Brandão
Conceição Silvestre (em substituição)
Isabel Jovita (em substituição)