Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00558/15.0BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/14/2022
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:PRÉ-SANEAMENTO- CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO- NULIDADE PROCESSUAL
Sumário:1- Finda a fase dos articulados, o impulso processual passa para o juiz da causa, na medida que nos termos do disposto no art.º 87º do CPTA, incumbe-lhe, em sede de pré-saneamento, providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, pelo aperfeiçoamento dos articulados, determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.

2-Estas funções que são cometidas pela lei ao juiz consubstanciam “um verdadeiro dever legal do juiz”, de tal forma que caso não cumpra com esse dever legal e ocorram deficiências de alegação fáctica pelas partes ou, como in casu, se verifique que não foram indicados os contrainteressados, e omita o despacho de convite ao aperfeiçoamento, incorre na nulidade processual a que alude o n.º 1 do art.º 195º do CPC, por omissão de um ato que a lei prescreve
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO
1.1. FREGUESIA (...) e FREGUESIA (2), moveram a presente ação administrativa especial contra o MUNICÍPIO (...), pedindo a anulação da deliberação da Assembleia Municipal, datada de 28.02.2015, que criou o Parque Natural Local Vouga Caramulo e aprovou o respetivo regulamento.
Alegam, para tanto, em síntese, que aquele ato está eivado de invalidades e inconstitucionalidades, designadamente, decorrentes da violação do princípio da participação dos interessados, dos documentos que integraram a proposta e que foram fornecidos aos eleitos locais não serem legíveis, da violação do Decreto-Lei n.º 142/2008, bem como da violação do direito da propriedade privada e do princípio da proporcionalidade inscritos na Constituição da República Portuguesa.
1.2. Citada, a Entidade Demandada contestou, defendendo-se por impugnação, sustentando que o ato impugnado não sofre dos vícios que lhe são imputados pelas Autoras, pelo que a ação deve ser julgada inteiramente improcedente.
1.3. Por despacho de 28/10/2015 ordenou-se a notificação das Autoras para no prazo de 15 dias indicarem o nome e a residência dos contrainteressados (“os proprietários dos terrenos, sejam privados, ou não, e que integram a área situada dentro dos limites do Parque Natural Local Vouga – Caramulo (Vouzela)”).
1.4. Por requerimento de 12/11/2015, as autoras procederam à indicação dos contrainteressados, nos termos que constam do mesmo, requerendo que os mesmos fossem chamados a intervir nos autos por citação a realizar mediante a publicação de anúncio, nos termos previstos no artigo 82.º, n.º1 do CPTA.
1.5.Notificado, veio o Réu por requerimento de 01/12/2015, invocar que as Autoras não cumpriram o ónus que sobre elas impendia de identificarem todos os contrainteressados, não tendo indicado um elevadíssimo número deles e em relação a um grande número dos que indicaram não procederam à obrigação legal de uma cabal identificação, incumprindo o disposto no artigo 78.º, n.º2, al. f) do CPTA, pelo que, não tendo suprido as irregularidades de que o articulado padecia tal facto determina a ilegitimidade passiva do réu e a sua consequente absolvição da instância.
1.6. Por despacho de 15/04/2016, o Tribunal convidou as Autoras a, no prazo de 10 dias «aperfeiçoarem o seu articulado de petição inicial, procedendo à correção das irregularidades de identificação de todos os contrainteressados, no qual devem elencar e identificar todos os contrainteressados devidamente, com nome e residência, sob pena de a Entidade Demandada ser absolvida da instância, ao abrigo do disposto no artigo 88º, nº 4, do CPTA e sem possibilidade de substituição da petição ao abrigo do disposto no artigo 89º do CPTA».
1.7. Por requerimento de 22/04/2015, as Autoras solicitaram ao Tribunal a notificação do Réu para vir aos autos indicar a totalidade ou o número de contrainteressados que não tenham sido referidos pelas próprias Autoras no seu requerimento de aperfeiçoamento da p.i.
1.8. O Réu respondeu, em requerimento de 05/05/2016, requerendo o indeferimento do requerido pelas autoras no que concerne à sua notificação para vir aos autos indicar contrainteressados.
1.9. Por requerimento de 10/05/2016, as Autoras invocando a falta de cooperação do réu e a sua recusa expressa em colaborar na identificação dos contrainteressados, e a impossibilidade de os identificarem a todos cabalmente, requereram, ao abrigo dos artigos 22.º, n.º1, 240.º a 242.º x vi art.º 243.º do CPC, a citação edital.
1.10. O Réu respondeu através do requerimento de 17/05/2016, contrapondo que as Autoras confundem o princípio da cooperação com a manifesta intenção de transferir para o Réu uma obrigação que lhes incumbe, sendo sobre as mesmas que impende o ónus de identificar cabalmente os contrainteressados, o qual não pode ser afastado sem a demonstração de fundadas razões, sendo que as autoras não alegaram quais os obstáculos que as impediram de proceder ao cumprimento desse ónus. Concluem, afirmando que o princípio do “pro actione” tem um limite e tal princípio falece quando as partes não substanciem as razões que as impedem de dar cumprimento aos ónus que sobre elas recaem, pelo que, não tendo as autoras pela segunda vez dado cumprimento à obrigação que lhe competia, deve ser julgada procedente a exceção da ilegitimidade passiva do Réu e o mesmo absolvido da instância.
1.11. Em 18/02/2017 foi suscitada oficiosamente a exceção dilatória de inimpugnabilidade, nos seguintes termos:
«As Autoras, FREGUESIA (...) E FREGUESIA (2), vieram instaurar acção administrativa especial contra o MUNICÍPIO (...), no qual pedem a anulação da deliberação da Assembleia Municipal, datada de 28.02.2015, de aprovação do Regulamento do Parque Natural Local Vouga-Caramulo.
Os autores sustentam, para tanto, que aquele acto está ferido de invalidades e inconstitucionalidades, nomeadamente: a violação do princípio da participação dos interessados, o facto dos documentos que integraram a proposta que foram fornecidos aos eleitos locais serem ilegíveis, a violação do Decreto-Lei n.º 142/2008, bem como a violação do direito da propriedade privada e princípio da proporcionalidade inscritos na Constituição da República Portuguesa.
Afigura-se ao tribunal que o acto de aprovação de um regulamento, como o que está aqui em causa nos autos, não constitui um acto administrativo, mas sim um acto de trâmite, sem autonomia funcional, dado que, quando o regulamento é emitido, absorve o acto de aprovação como um trâmite do procedimento (cfr. nesse sentido, Ana Raquel Moniz, “Procedimento Regulamentar” in Comentário ao novo Código de Procedimento Administrativo, volume II, 3ª Edição, AAFDL Editora, 2016).
Tal implica que o acto de aprovação não possa ser impugnado autonomamente por não constituir um acto impugnável na acepção acolhida do n.º 1 do artigo 51º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, na versão aqui aplicável.
Deste modo, a verificar-se qualquer vício que afecte o acto de aprovação tal implicará a invalidade do regulamento, por vício de procedimento, o que é substancialmente diferente do que admitir a impugnação desse acto de aprovação.
Na verdade, a admitir-se a sua impugnação autónoma só poderiam estar em causa vícios próprios do acto de aprovação, não sendo admissível como fundamento vícios que inquinam as normas do regulamento aprovado ou o procedimento da sua aprovação, como pretendem as Autoras.
A inimpugnabilidade do acto constitui uma excepção dilatória, que é de conhecimento oficioso e obsta ao conhecimento do pedido, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 89º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos.
No entanto, o juiz apenas pode conhecer de qualquer questão prévia que obste ao conhecimento do objecto do processo mediante prévia audição das partes, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 89º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos bem como do n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil.
Assim, deste modo, ao abrigo do princípio do contraditório, convido as partes, querendo, a pronunciar-se quanto à eventual inimpugnabilidade do acto, no prazo de dez dias»
1.12. Notificadas as partes para, querendo, se pronunciarem, só a Entidade Demandada se pronunciou, pugnando pela verificação da exceção dilatória.
1.13. Fixou-se o valor da ação em € 30.000,01.
1.14. Em 24 de abril de 2021, o TAF de Aveiro proferiu saneador- sentença cujo dispositivo é do seguinte teor:
«Pelo exposto, julgo procedente a excepção dilatória de inimpugnabilidade do acto e, em consequência, absolvo a Entidade Demandada da instância.
Custas pelas Autoras.
Registe e notifique. »
1.15. Notificadas do saneador-sentença por notificação eletrónica operada em 26/04/2021 ( SITAF), as Autoras vieram arguir, em requerimento de 12/05/2021, a falta de citação dos contrainteressados, pugnando e requerendo a nulidade de todo o processado, de acordo com o disposto na alínea a) do artigo 190º do Código de Processo Civil.
1.16. A Entidade Demandada respondeu, defendendo não se verificar a invocada nulidade, conquanto o Tribunal nunca admitiu a referida citação. Mais alega que proferido o saneador-sentença esgotou-se o poder jurisdicional do Tribunal.
1.17. Em 02.09.2021, o Tribunal a quo proferiu despacho do seguinte teor:
«Após ter sido proferida saneador-sentença vieram as Autoras arguir a falta de citação dos contra-interessados, o que determina a nulidade de todo o processado, de acordo com o disposto na alínea a) do artigo 190º do Código de Processo Civil.
A Entidade Demandada, em resposta, defende que não se verifica a invocada nulidade, atento que o Tribunal nunca admitiu a referida citação. Para além do mais, proferido o saneador-sentença esgotou-se o poder jurisdicional do Tribunal.
Cumpre decidir:
Decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 189º do Código de Processo Civil que há falta de citação “quando o acto tenha sido completamente omitido”.
No caso, conforme bem refere a Entidade Demandada, não se verifica a invocada nulidade atento que, em verdade, o Tribunal nunca ordenou a citação dos proprietários dos prédios inseridos no perímetro do Parque Natural como contra-interessados.
Não tendo sido ordenada, não se verifica a nulidade da citação.
Acresce que, proferida a sentença, esgota-se o poder jurisdicional do juiz, pelo que a decisão proferida só pode ser modificada por via do recurso, quando este seja admissível, ou mediante o incidente de reforma ou arguição de nulidade de sentença, de acordo com o disposto no artigo 613º, n.º 4 do artigo 615º e 616º do Código de Processo Civil.
Assim, vai indeferida a invocada nulidade.
1.18. Inconformadas com o assim decidido no sobredito despacho, as Autoras interpuseram recurso de apelação em que formularam as seguintes Conclusões:
«A- A falta ou omissão de citação dos contrainteressados, como foi oportunamente requerida, gera a nulidade/anulabilidade de todos os actos subsequentes.
B- Não ocorreu caso julgado.
C- Na acção movida contra incertos não há caso julgado relativamente àqueles que não foram citados.
D- Eventual omissão de citação é apenas imputada ao Tribunal pelo que não podem as partes, in casu as AA., ser prejudicadas.
Termos em que,
E nos melhores de direito que V.Exa. doutamente suprirá – arts. 140º, 141º, 144º e 145º CPAT e arts. 188º 240º, 242º e 243º CPC - no provimento do recurso, P. e R. a V.Exa. se digne igualmente provê-lo com a revogação do d. despacho recorrido e ordenar a sua subida como é de lei e de Justiça, seguindo-se os ulteriores termos!
E.D.
1.19. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.20. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no n. º1 do artigo 146.º do CPTA, o Ministério Público pronunciou-se pela improcedência do recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1 Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas enunciadas premissas, a questão que se encontra submetida pela Apelante à apreciação deste TCAN resume-se a saber se, face à sobrevinda sentença, deve proceder este recurso do despacho de 02/09/2021 que indefere a arguição de nulidade por omissão de citação dos contrainteressados.
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III- FUNDAMENTAÇÃO
A- DE FACTO
3.1. Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório acima elaborado.
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III.B.DE DIREITO
3.2. As Autoras, FREGUESIA (...) e FREGUESIA (2), moveram a presente ação administrativa especial contra o MUNICÍPIO (...), pedindo a anulação da deliberação da Assembleia Municipal, datada de 28.02.2015, que criou o Parque Natural Local Vouga Caramulo e aprovou o respetivo regulamento, tendo o Tribunal a quo julgado a ação improcedente com fundamento na inimpugnabilidade da referida decisão administrativa, o que fez com base na seguinte fundamentação, que consideramos útil transcrever:
«(i) da Inimpugnabilidade do acto
Através da presente acção administrativa especial, as Autoras impugnam a deliberação da Assembleia Municipal datada de 28.02.2015, através do qual foi criada o Parque Natural Local Vouga – Caramulo (Vouzela) e aprovou o respectivo Regulamento e planta do Parque Natural (cfr. doc. 23 e 24 junto com o PA).
Assim sendo, o acto impugnado configura um acto de aprovação de regulamento. S. Ora, o acto de aprovação de regulamento, como o que está aqui em causa nos autos, não constitui um acto administrativo, mas sim um acto de trâmite, sem autonomia funcional, dado que, quando o regulamento é emitido, absorve o acto de aprovação como um trâmite do procedimento (cfr. nesse sentido, Ana Raquel Moniz, “Procedimento Regulamentar” in Comentário ao novo Código de Procedimento Administrativo, volume II, 3ª Edição, AAFDL Editora, 2016).
Isto é, não há qualquer fundamente para destacar o acto de aprovação de um regulamento como acto administrativo, sendo que está em causa um mero acto de aprovação do regulamento, pelo que qualquer invalidade do acto de aprovação contagia as normas do regulamento.
Esta leitura é confirmada pelo n.º 1 do artigo 72º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, o qual estabelece que “a impugnação de normas no contencioso administrativo tem por objecto a declaração de ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo, por vícios próprios ou derivados da invalidade de actos praticados no âmbito do respectivo procedimento de aprovação”.
Isto é, a ilegalidade dos regulamentos pode resultar “invalidade própria”, designadamente por contrariar directamente a lei ou outra norma de hierarquia superior ou traduzir-se em “invalidade derivada”, isto é, da invalidade dos actos praticados no âmbito do respectivo procedimento de aprovação.
A deliberação da Assembleia Municipal que aprova um Regulamento, é o acto final do procedimento de aprovação e, deste modo, está inserido no âmbito do procedimento de aprovação do regulamento.
Tal implica que o acto de aprovação não possa ser impugnado autonomamente por não constituir um acto impugnável na acepção acolhida do n.º 1 do artigo 51º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, na versão aqui aplicável.
Deste modo, a verificar-se qualquer vício que afecte o acto de aprovação tal implicará a invalidade do regulamento, por vício de procedimento, o que é substancialmente diferente do que admitir a impugnação desse acto de aprovação.
Na verdade, a admitir-se a sua impugnação autónoma só poderiam estar em causa vícios próprios do acto de aprovação, não sendo admissível como fundamento vícios que inquinam as normas do regulamento aprovado ou o procedimento da sua aprovação, como pretendem as Autoras.
A inimpugnabilidade do acto constitui uma excepção dilatória, que é de conhecimento oficioso e obsta ao conhecimento do pedido, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 87º e alínea c) do n.º 1 do artigo 89º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, a qual dá lugar à absolvição da instância, o que determinará a final.»

Acontece que o presente recurso não vem interposto da sentença transcrita mas do despacho de 02/09/2021 por meio do qual o Tribunal a quo indeferiu a arguição de nulidade por omissão de citação dos contrainteressados que foi invocada pelas Autoras na presente ação, em momento posterior à prolação da sentença, da qual não interpuseram recurso jurisdicional.
Conforme resulta do teor do despacho sob escrutínio, a Senhora Juiz a quo indeferiu a requerida arguição da nulidade invocando duas ordens de razões: (i) primeiro, que não há falta de citação, nos termos previstos na al. a) do n.º1 do art.º 189.º do CPC, uma vez que o Tribunal nunca ordenou a citação dos proprietários dos prédios inseridos no perímetro do Parque Natural como contrainteressados; (ii) segundo, que proferida a sentença, esgota-se o poder jurisdicional do juiz, pelo que a decisão proferida só pode ser modificada por via do recurso, quando este seja admissível, ou mediante o incidente de reforma ou arguição de nulidade de sentença, de acordo com o disposto no artigo 613º, n.º 4 do artigo 615º e 616º do Código de Processo Civil.
Nas conclusões de recurso, as Apelantes sustentam que a falta ou omissão de citação dos contrainteressados, como foi oportunamente requerida, gera a nulidade/anulabilidade de todos os atos subsequentes, pelo que não se formou caso julgado, sendo que, na ação movida contra incertos não há caso julgado relativamente àqueles que não foram citados. Mais aduzem que a eventual omissão de citação é apenas imputada ao Tribunal pelo que não podem as autoras (apelantes) ser prejudicadas.
Porém, como já se assinalou, e como bem nota o Senhor Procurador Geral Adjunto no parecer que emitiu ao abrigo do n.º1 do artigo 146.º do CPTA, a questão da omissão de citação dos contrainteressados coloca-se a montante da sentença proferida, pelo que « sobrevinda a sentença, com o julgamento da absolvição da instância por inimpugnabilidade do acto, mister é concluir que queda sem sentido estar a recorrer isoladamente do indeferimento da arguição de nulidade por despacho de 02/09/2021. Só faria sentido trazer à colação recursiva tal indeferimento se se tivesse também recorrido da sentença pondo em causa o decidido, por si ou por prematuramente decidido.

Porque não impugnando o decidido na sentença forçosamente é impertinente para a economia da acção e inútil para o iter processual a pretendida citação dos contrainteressados.
Mas, na altura de interposição do presente recurso, já a sentença não podia ser tempestivamente impugnada.
Assim, ultrapassada que está a questão, não merece censura o despacho.»

Dir-se-á que, como é consabido, proferida a sentença, despacho (n.º 3 do art. 613º do CPC, a que se referem todas as restantes disposições legais infra indicadas, sem menção em contrário), ou acórdão (n.º 1 do art. 666º), de acordo com o princípio do imediato esgotamento do poder jurisdicional, fica automaticamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (n.º 1 do art. 613º), o que significa que a decisão judicial proferida apenas, em regra, poderá ser modificada por via de recurso, quando este seja admissível, a ser interposto no prazo geral de 30 dias, a contar da notificação da decisão ao recorrente, ou quando o processo não comporte recurso ordinário, mediante incidente de reforma ou arguição de nulidade (arts. 615º, n.º 4 e 616º), a ser apresentado junto do próprio tribunal que proferiu a decisão de que se reclama, no prazo de dez dias, a contar da notificação da decisão reclamada.
Note-se que do princípio da extinção do poder jurisdicional decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; e outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão, tomar a iniciativa de a modificar ou revogar Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 760, nota 2..
Acontece que o próprio art.º 613º do CPC, após estatuir no seu n.º 1 o mencionado princípio do esgotamento do poder jurisdicional, prevê que esse princípio comporta várias exceções, ao estabelecer no n.º 2, que é “lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”, isto é, nas situações limitadas previstas nos arts. 614º a 617º do CPC.

No caso em análise, em face das citadas normas do CPC, impunha-se às Autoras que tivessem interposto recurso jurisdicional do saneador-sentença e que no mesmo tivessem invocado a nulidade com fundamento na falta de prolação do despacho de regularização da instância, por via do qual o Tribunal a quo se devia ter pronunciado sobre aa indicação dos contrainteressados e a sua citação para a presente ação.
Decorre do disposto no artigo 57.º do CPTA que “para além da entidade autora do ato impugnado, são obrigatoriamente demandados os contrainteressados a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”.
A exigência de citação dos contrainteressados justifica-se pela necessidade de assegurar a realização do contraditório, podendo a falta de citação dos contrainteressados dar origem, ao abrigo da previsão do artigo 155.º, n.º2, à utilização, por parte destes, do recurso de revisão contra a sentença que venha a ser proferida no processo em que não tiveram oportunidade de participar ( cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto F. Cadilha, in Comentário ao Código de Processo Nos Tribunais Administrativos, 5.ª Edição, Almedina, pág.417/418).
Para a maioria da doutrina, a obrigação de demanda dos contrainteressados configura uma situação de litisconsórcio necessário passivo, cuja preterição limita o âmbito do caso julgado da eventual decisão que seja proferida e, ao não ser suprida, determina a absolvição da instância (cfr. artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4, al. e) do CPTA).
Deste modo, a falta de citação dos contrainteressados que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo implica, portanto, a procedência de uma exceção dilatória de ilegitimidade passiva plural que determina a absolvição da instância.
Como se sabe, finda a fase dos articulados, o impulso processual passa para o juiz da causa, na medida que nos termos do disposto no art.º 87º do CPTA, incumbe-lhe, em sede de pré-saneamento, providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, pelo aperfeiçoamento dos articulados, determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
Estas funções que são cometidas pela lei ao juiz consubstanciam “um verdadeiro dever legal do juiz”, de tal forma que caso não cumpra com esse dever legal e ocorram deficiências de alegação fáctica pelas partes ou, como in casu, se verifique que não foram indicados os contrainteressados, e omita o despacho de convite ao aperfeiçoamento, incorre na nulidade processual a que alude o n.º 1 do art.º 195º do CPC, por omissão de um ato que a lei prescreve Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, ob. cit., págs.703 a 708. e, tal como pondera Teixeira de Sousa, a omissão de despacho de aperfeiçoamento em qualquer das suas variantes, com extração de efeitos diversos daqueles que ocorreriam se acaso fosse determinada a correção do vício detetado ou fosse dada à parte a possibilidade de suprir a falha processual, se converte, afinal, numa nulidade da própria decisão que venha a ser proferida, especificando, contudo, que “a nulidade resultante da omissão do despacho de aperfeiçoamento só se verifica se, na apreciação do pedido da parte, for dada relevância à deficiência do articulado, ou seja, se o pedido formulado pela parte for julgado improcedente precisamente com fundamento naquela deficiência” Teixeira de Sousa, em https://blogipcc-blogspot.com
Em igual sentido. Acs. RP de 10/09/2019, Proc. 11226/16, de 08/01/2018, Proc. 08/01/2018, Proc. 1676/16, in base de dados da DGSI..
No caso vertente, conforme decorre do relatório que supra elaboramos, as Autoras foram notificadas pelo Tribunal a quo para regularizarem a petição inicial através da indicação dos contrainteressados, de modo a evitar a procedência da exceção dilatória da ilegitimidade passiva do réu.
Anuindo a esse convite de regularização da p.i., as autoras procederam à indicação de um conjunto de contrainteressados, embora sem indicarem em relação a todos a respetiva residência, o que deu aso a um dissenso entre as mesmas e o réu quanto à impossibilidade/possibilidade de as autoras cumprirem integralmente o ónus de identificação dos contrainteressados, tendo as mesmas terminado por requerer ao Tribunal a quo que procedesse à citação edital dos contrainteressados.
É insofismável, em face do exposto, que se impunha ao Tribunal a quo que previamente à prolação do saneador-sentença se tivesse pronunciado sobre as questões suscitadas pelas partes no seguimento do convite que dirigiu às autoras, em sede de pré-saneador, para que procedessem à identificação dos contrainteressados na ação, decidindo sobre o cumprimento ou incumprimento por parte das Autoras do ónus a que estavam adstritas de indicarem os contrainteressados, e caso considerasse a p.i. regularizada, ordenando a citação dos contrainteressados, ou decidindo a absolvição do réu da instância no caso de entender que as autoras não cumpriram com o despacho proferido em sede de pré-saneador.
Como se sabe, as nulidades de processo, importando a anulação do processado, são desvios do formalismo processual que se traduzem na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou na realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido (Manuel de Andrade, Noções Elem. Proc. Civil, 1979, p. 176, e A. Varela, Manual Proc. Civil, 1984, p. 373).
As nulidades processuais (error in procedendo) traduzem-se em vícios ocorridos ao longo do processo antes ou após a prolação da sentença (acórdão ou despacho) e, portanto, excluindo-se estes de tais vícios.
Os vícios determinativos de nulidade processual podem traduzir-se na circunstância do tribunal ter praticado, ao longo do iter processual, um ato que a lei não admite ou ter omitido um ato ou uma formalidade que a lei prescreve. As nulidades processuais podem ser nominadas, quando se encontrem expressamente previstas e reguladas na lei, como é o caso das nulidades a que se reportam os artigos 186º a 194º do CPC, ou ser inominadas, atípicas ou secundárias, a que alude o artigo 195º do CPC, onde expressamente se estabelece que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Dito por outras palavras, as nulidades processuais identificam-se com quaisquer desvios ao formalismo processual prescrito na lei decorrente de terem sido praticados ao longo do
iter processual, antes ou após a prolação da sentença (acórdão ou despacho), ato ou atos ilegais, por não serem admitidos pela lei, ou por terem sido omitidos atos ou formalidades prescritos na lei que afetam a cadeia teleológica que liga os atos do processo, independentemente da bondade ou regularidade de cada um se desinserido do “iter processual”.
Precise-se que as nulidades do processo podem determinar a nulidade da própria sentença (acórdão ou despacho), não porque esta padeça de um dos vícios intrínsecos a que alude o artigo 615º, n.º 1 do CPC, mas porque quando essas nulidades processuais ocorram antes da prolação da sentença (acórdão ou despacho), por decorrência do n.º 2 do artigo 195º do CPC, a procedência de uma nulidade processual poderá levar à nulidade dos atos subsequentes, incluindo da própria sentença (acórdão ou despacho) apesar desta não padecer de nenhum dos vícios a que alude o n.º 1 do artigo 615º do CPC.
É inegável que a não citação dos contrainteressados implica a nulidade do processado posterior (artº 187º, do CPC) desde que a falta não se encontre sanada. Como se sabe, existem duas modalidades de nulidade da citação: a falta de citação propriamente dita, prevista no artº 188º do CPC, e a nulidade da citação, em sentido estrito, regulada no artº 191º do mesmo diploma legal.
Há falta de citação nas situações descritas nas diversas alíneas do nº 1 do artº 188º do CPC (actualmente artº 188º), designadamente “Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável” (artº 195º, nº 1, al. e), do CPC).
A nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artºs 189º e 198º do CPC).
Como refere o Prof. A. dos Reis (Comentário, vol. 2º, pág. 446/447 e CPC Anot., I, 3ª ed., pág. 313), para a arguição da falta de citação não há prazo; enquanto o réu se mantiver em situação de revelia, ou melhor, enquanto se mantiver alheio ao processo, está sempre a tempo de arguir a falta da sua citação, só perdendo o direito de o fazer se intervier no processo e não reagir imediatamente contra ela. J. Rodrigues Bastos (Notas ao Cód. Proc. Civil, 2ª ed., vol. I, pág. 397/398), depois de referir que o réu deve arguir a falta de citação logo que intervenha no processo, isto é, no ato que constitua a sua primeira intervenção, observa que ainda que o réu tenha conhecimento do processo, desde que não intervenha nele, pode arguir em qualquer altura a falta da sua citação.
Por outro lado, a nulidade da citação existe quando não hajam sido observadas, na sua realização, as formalidades prescritas na lei (artº 191º do CPC), preceituando o n.º 2 do preceito “O prazo para a arguição da nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação; sendo, porém, a citação edital, ou não tendo sido indicado prazo para a defesa, a nulidade pode ser arguida quando da primeira intervenção do citado no processo.”.

Na situação vertente, não estamos perante uma situação de nulidade decorrente da falta de citação dos contrainteressados, mas de uma nulidade secundária decorrente da falta de prolação de despacho sobre a regularidade ou irregularidade da p.i. perante a indicação dos contrainteressados efetuada pelas autoras e sobre o pedido de citação edital dos mesmos.
No caso, não estamos perante uma nulidade do processado decorrente da nulidade da citação dos contrainteressados, mas perante uma nulidade decorrente da preterição do apontado despacho, o que constitui a omissão de um ato prescrito na lei, suscetível de influir na decisão a proferir, que determina a nulidade de todo o processado.
Porém, perante este quadro, impunha-se ás apelantes que tivessem interposto recurso jurisdicional do saneador-sentença, o que não fizeram, quedando-se antes pela arguição, em requerimento autónomo que dirigiram ao Tribunal a quo, da nulidade do processado. É que, como vimos, a nulidade decorrente da omissão do referido despacho, tendo sido proferida sentença, da qual é admissível recurso, carecia de ser arguida no requerimento de interposição do competente recurso jurisdicional.
Acontece que, no caso, foi interposto recurso do despacho que indeferiu a invocada nulidade processual, sem que se tivesse interposto recurso da sentença, razão pela qual não pode conhecer-se da alegada nulidade. Além do mais, conforme refere o Senhor Procurador Geral Adjuto no parecer que emitiu o objeto do presente recurso revela-se «impertinente para a economia da acção e inútil para o iter processual a pretendida citação dos contrainteressados».
Termos em que se impõe julgar improcedente o presente recurso.
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IV-DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte, em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência, mantêm o despacho recorrido.
Custas da apelação pelas apelantes (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 14 de janeiro de 2022


Helena Ribeiro)
Nuno Coutinho)
Paulo Ferreira de Magalhães, em substituição