Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:03067/18.1BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/24/2023
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:CONCURSO;
NÃO EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR IMPOSSIBILIDADE/INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
AA instaurou ação administrativa de condenação à prática de ato devido, impugnando o ato de homologação da graduação dos candidatos do concurso aberto pelo edital nº 388/17, do concurso documental para preenchimento de uma vaga para professor associado da Faculdade de Direito, contra a Universidade ..., ambos melhor identificados nos autos, pedindo:
Nestes termos,
Deve a presente acção ser julgada provada e procedente:
a) Anulando - se o acto de seriação dos candidatos e declarando - se nulos todos os actos subsequentes;
b) Condenando - se a Ré a repetir o procedimento concursal, nomeando um novo júri e expurgando do Edital o conteúdo restritivo e ilegal contido pontos 6, 6.2.1., 6.3.1. a), b), c) e 6.3.2.a)
Por saneador sentença proferido pelo TAF do Porto foi julgada extinta a instância ao abrigo do artigo 277° al. e) do CPC ex vi artº 1° do CPTA.
Deste vem interposto recurso.
Alegando o Autor formulou as seguintes conclusões:
1) A doutrina e a jurisprudência têm entendido que a inutilidade da lide, prevista no art. 277º, 3) do CPC, se verifica quando o objecto da acção já se realizou ou se tornou impossível;

2) Contrariamente ao entendimento sufragado pela sentença recorrida, nos presentes autos não se “se encontrar satisfeita a pretensão do Autor” e não se encontra realizado o objecto da acção com a contratação do Autor através do concurso aberto pelo Edital nº 1499/2019;

3) Isto porque, nos termos do disposto no art. 173º do CPTA, a execução da decisão anulatória peticionada importaria a reconstituição da situação actual hipotética que existiria sem o acto viciado;

4) Reconstituição esta que poderá implicar a contagem do tempo de serviço na categoria, implicaria o pagamento das diferenças salariais e implicaria a não contratação do contrainteressado através do referido concurso (o que poderá ter efeitos relevantes para o Autor em futuros concursos em que ambos sejam candidatos);

5) O interesse do Autor na acção resulta ainda do facto de, sendo este prejudicado pela prática de um acto ilegal, nos termos do disposto no art. 7º da Lei 67/2007, tinha sempre a possibilidade de vir a ser indemnizado pelos prejuízos causados pelo acto ilegal (intensão esta que resulta desde logo do disposto no art. 50º, nº 3 do CPTA);

6) Nomeadamente, sem se apreciar o mérito da presente ação não poderá o Autor obter o preenchimento do requisito do “facto ilícito” da responsabilidade civil extracontratual do Estado;

7) Das conclusões supra resulta que o objecto da acção não se encontra cumprido, porquanto a procedência da acção poderia ter outros efeitos que não foram alcançados com o facto de o Autor ter sido contratado través do concurso aberto pelo Edital nº 1499/2019;

8) Assim, ao verificar a inutilidade superveniente da lide o Tribunal a quo violou o disposto no art. 287º, e) do CPC, aplicável por força do disposto no art. 1º do CPTA.

Face ao supra alegado,
Deve o presente recurso ser julgado procedente, anulando-se a sentença recorrida e substituindo-se esta por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Não foram juntas contra-alegações.
A Senhora Procuradora Geral Adjunta, notificada ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
a) Por despacho do Diretor da Faculdade de Direito da Universidade ..., foi autorizada a celebração de contrato de trabalho em funções públicas para professor associado, entre o Autor e aquela faculdade, com efeitos a 01-02-2021 cfr. fls. 231 dos autos.
b) A presente ação foi intentada em 05-12-2018 - cfr. teor de fls. 1 dos autos.
DE DIREITO
Está posta em causa a decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim, vejamos,
Da impossibilidade/inutilidade superveniente da lide -
Sobre esta temática, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo entende que só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica e que, por ser assim, não se pode considerar actividade inútil o prosseguimento do processo quando ele se destine a expurgar da ordem jurídica um acto ilegal e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge. A utilidade da lide correlaciona-se, assim, com a possibilidade da obtenção de efeitos úteis pelo que a sua extinção só deve ser declarada quando se conclua, com a necessária segurança, que o provimento do recurso em nada pode beneficiar o recorrente - Acórdãos de 18/1/01, Proc. 46.727, de 30/9/97, Proc. 38.858, de 23/9/99, Proc. 42.048, de 19/12/00, Proc. 46.306 e de 29/05/2002, Proc. 47.745, entre outros.
Como decorre do artigo 2º/2 do CPTA, a utilidade de uma acção judicial afere-se pelo efeito jurídico que o autor pretende com ela obter.

A utilidade da lide está, pois, correlacionada com a possibilidade de obtenção de efeitos úteis, pelo que a sua extinção, com base em inutilidade superveniente, só deverá ser declarada quando se possa concluir que o prosseguimento da acção não trará quaisquer consequências benéficas para o autor.
Tal declaração postula e pressupõe que o julgador possa efectuar um juízo apodítico acerca da total inutilidade superveniente da lide.
A inutilidade superveniente da lide tem, pois, a ver com a perda de interesse em agir, ou seja, com a perda da necessidade do processo para obter o pedido. O que equivale a dizer que tal inutilidade se dá, se e quando o efeito jurídico pretendido através do processo foi plenamente alcançado durante a instância.
A inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, ocorrerá sempre que, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objecto do respectivo processo, configurando-se como um modo anormal de extinção da instância, por cotejo com a causa dita normal, traduzida na prolação de uma sentença de mérito (cfr. Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, págs. 364 e seguintes e Lebre de Freitas, em Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 512). Isto é, existe impossibilidade/inutilidade superveniente da lide sempre que se verifica uma ocorrência factual que inviabiliza a produção de efeitos jurídicos que o requerente esperava alcançar com a procedência da providência; o mesmo é dizer que a impossibilidade/inutilidade superveniente da lide se verifica quando por facto ocorrido na pendência da instância a pretensão do autor/requerente não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo.
Voltando à situação vertente, temos que os autos atestam que, por despacho do Diretor da Faculdade de Direito da Universidade ..., foi autorizada a celebração de contrato de trabalho em funções públicas para professor associado, entre o Autor e aquela faculdade, com efeitos a 01-02-2021.
Decorre também do processo que o Autor/Recorrente interpôs a presente acção, na qual impugnou o acto de homologação da decisão final do concurso para uma vaga de Professor Associado para a área disciplinar de Direito da Faculdade de Direito de Universidade ..., aberto pelo Edital nº 388/17.
O Autor fundamentou tal pedido nos seguintes vícios do acto impugnado:
-Violação do disposto artº 32º, nº 2 do ECDU e art.º 2, nº 3 do Regulamento dos Concursos para Recrutamento de Professores Catedráticos, Associados e Auxiliares da Universidade ..., aprovado pelo despacho n.º ...10, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 154, de 10/08/2010;
-Violação do princípio da igualdade e da imparcialidade;
-Anulabilidade do acto decorrente do vício de falta de fundamentação.
Veio a entidade demandada alegar a inutilidade superveniente da lide fundamentando-a no facto de, posteriormente à instauração da acção, o Autor ter sido provido na categoria de Professor Associado através do concurso aberto pelo Edital n.º 1499/2019.
Tendo entendido que com o acesso à categoria de professor associado a pretensão do Autor se encontrava satisfeita, o TAF do Porto proferiu despacho saneador/sentença, no qual verificou a inutilidade superveniente da lide e julgou extinta a instância.
Cremos que a razão está do lado do Recorrente.
Entendeu, pois, o Tribunal a quo que, devido ao facto de “já se encontrar satisfeita a pretensão do Autor”, se verificava uma inutilidade da lide.
Ora, conforme resulta do disposto no artº 277º, 3) do CPC, não existe uma definição concreta da “inutilidade da lide”.
No entanto, reitera-se, de acordo com a doutrina e a jurisprudência entende-se que há inutilidade da lide quando o objecto da acção já se realizou ou se tornou impossível.
In casu, contrariamente ao entendimento sufragado pelo Tribunal recorrido, o objecto da acção não se realizou com a contratação do Autor através do referido concurso aberto pelo Edital nº 1499/2019.
Isto porque, nos termos do disposto no artº 173º do CPTA, a execução da decisão anulatória peticionada importaria a reconstituição da situação actual hipotética que existiria sem o acto viciado, ou seja, no refazer da situação que existiria se, na vez do acto judicialmente suprimido, tivesse sido praticado um acto depurado do vício invalidante.
Ora, esta situação hipotética seria um acto em que, possivelmente, o Autor poderia ser provido no concurso sub judice.
Mas esta reconstituição da situação hipotética não se bastava com a simples repetição do procedimento concursal e com a hipotética contratação do Autor para o lugar sujeito a concurso.
A reconstituição da situação hipotética implicaria a contagem do tempo de serviço na categoria, implicaria o pagamento das diferenças salariais e implicaria a não contratação do contrainteressado através do referido concurso (o que poderia ter efeitos relevantes para o Autor em futuros concursos em que ambos fossem candidatos). Ou seja, implicava reconstituir a carreira que o Autor teria se tivesse sido provido no concurso na data do acto impugnado.
Veja-se neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 09/12/2004, no processo 030373:
VI - Se o acto anulado afectou o normal desenvolvimento de uma carreira, impõe-se reconstruí-la, reassumindo-se tudo o que nela seguramente ocorreria na hipótese de a ordem jurídica nunca ter sido violada.
(...)
VIII - Cabe nos efeitos do julgado anulatório a retroacção da antiguidade na carreira de um funcionário ao momento a partir do qual se contaria, não fora o acto anulado, na medida em que da apontada eficácia, retroactiva depende a reconstituição da situação que existiria se a ilegalidade não tivesse sido cometida.
A isto acresce que, sendo o Autor prejudicado pela prática de um acto ilegal, nos termos do disposto no art. 7º da Lei 67/2007, tinha sempre a possibilidade de vir a ser indemnizado pelos prejuízos causados pelo acto ilegal (intenção esta que resulta desde logo do disposto no art. 50º, nº 3 do CPTA).
Ora, o preenchimento dos requisitos da obrigação de indemnizar prevista no art. 7º da Lei 67/2007 dependerá sempre da declaração da anulabilidade do acto peticionada nos presentes autos, sob pena de não ser possível verificar os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, nomeadamente o “facto ilícito”.
Do exposto resulta que o objecto da acção não se encontra cumprido, porquanto a procedência da acção poderia ter outros efeitos que não foram alcançados com o facto de o Autor ter sido contratado através do concurso aberto pelo Edital nº 1499/2019.
Desta forma, não se verifica a decretada inutilidade da lide, porquanto face à factualidade constante dos autos não ficou demonstrado que o prosseguimento da acção seria absolutamente inútil.
Veja-se em sentido semelhante a seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo: Acórdão de 09/01/2002, no processo 046557:
I - O julgamento da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide pressupõe a formulação de um juízo sobre o prosseguimento daquela e que dele resulte o convencimento de que esse prosseguimento é absolutamente inútil, por não trazer benefícios a nenhuma das partes.
II - Deste modo, não se verifica a inutilidade superveniente da lide e, portanto, não se justifica aquele julgamento se, em recurso contencioso visando a anulação de um acto de adjudicação já integralmente cumprido, se concluir que dessa anulação podem resultar benefícios para o Autor, nomeadamente uma mais célere e eficaz satisfação do seu direito indemnizatório.
III - Será, pois, de todo, injustificável que, nestas circunstâncias, se proceda àquele julgamento e se remeta o Autor para a propositura de uma acção de indemnização.
E o Acórdão de 20/08/2003, no processo 01371/03:
I - O julgamento da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide pressupõe a formulação de um juízo sobre o prosseguimento daquela e que dele resulte o convencimento de que esse prosseguimento é absolutamente inútil por não trazer benefícios a nenhuma das partes.
II - Deste modo, não se verifica a inutilidade superveniente da lide e, portanto, não se justifica aquele julgamento se, em recurso contencioso visando a anulação de uma deliberação que adjudicou a um dos concorrentes as empreitadas postas a concurso, se concluir que dessa anulação podem resultar benefícios para a Recorrente, nomeadamente a declaração de ilegalidade daquela deliberação e que esta poderá contribuir para uma mais célere e mais eficaz satisfação do seu direito indemnizatório.
III - O acto de adjudicação, a celebração do contrato e o início da execução deste não, é, pois, impeditivo do prosseguimento da lide.
IV - Será, pois, de todo, injustificável que, nestas circunstâncias, não se proceda ao julgamento do recurso e se remeta o Autor para a propositura de uma acção de indemnização.
Veja-se também o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 06/06/2019, no processo 318/06.9BEBJA:
- Só se verifica a inutilidade superveniente da lide quando essa inutilidade for uma inutilidade jurídica, ou seja, quando se conclua que o seu prosseguimento não poderá trazer quaisquer consequências vantajosas para o autor/recorrente.
- A situação de aposentação da autora no curso da ação gera impossibilidade de reconstituição da situação caso obtenha ganho de causa do pedido de impugnação de ato, mas sempre a recorrente pode lançar mão da tutela indemnizatória, por eventual responsabilidade civil. E esta utilidade justifica o prosseguimento da lide.
Tal equivale a dizer que não se mostra verificada a inutilidade superveniente da lide, determinante da extinção da instância, conforme emana do preceituado na alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.
Em suma,
-A extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou por encontrar satisfação fora do esquema da providência/pretensão requerida, sendo que num e noutro caso a solução do litígio deixa de interessar;
-Este modo de terminar com a lide consubstancia-se naquilo a que a doutrina designa por “modo anormal de extinção da instância”, visto que a causa de extinção natural/normal é a decisão de mérito;
-O tribunal só pode julgar extinta a instância por essa causa (inutilidade/impossibilidade da lide) se estiver em condições de emitir um juízo apodítico acerca da ocorrência superveniente da inutilidade, já que esta modalidade de extinção da instância exige a certeza absoluta da inutilidade a declarar, o que ora não sucede;
-Repete-se, conforme decorre do artigo 2º/2 do CPTA, a utilidade de uma acção judicial afere-se pelo efeito jurídico que o autor pretende com ela obter;
-No caso concreto, não tendo perdido pertinência e utilidade a acção, nos termos do artigo 277º/e) do CPC, ex vi artigo 1° do CPTA, não pode ser declarada a extinção da lide.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos, caso a tal nada mais obste.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.

Porto, 24/02/2023

Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Alexandra Alendouro