Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2246/12.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2021
Relator:SUSANA BARRETO
Descritores:DESERÇÃO
CONTRADITÓRIO
COOPERAÇÃO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
Sumário:I. Em resultado dos princípios da gestão e cooperação processual e dever de prevenção emergente daqueles, e bem assim em obediência ao princípio do contraditório, deve a parte ser advertida que a omissão da prática do ato devido para efeitos de impulso processual será, oportunamente, sancionada nos termos do artigo 281/1 do CPC.

II. A inexistência de tal advertência integra irregularidade processual com impacto e influência na decisão proferida [artigo 195/1, 2ª parte do CPC, aplicável ex vi artigo 2.e), do CPPT], cominada com a sua nulidade.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


I - Relatório

K..., habilitanda nos presentes autos, não se conformando com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou extinta a instância por deserção, dela veio recorrer para este Tribunal Central Administrativo Sul.

Nas alegações de recurso apresentadas, a Recorrente formula as seguintes conclusões:

1) A doutrina e jurisprudência são unânimes em considerar que a decisão que decrete a deserção da instância não pode fundar-se apenas no mero decurso do prazo de seis meses previsto no nº 1 do artigo 281º do CPC, carecendo, para se concluir pelo comportamento negligente das partes interessadas, de prévia advertência e audição destas últimas ou, mostrando-se já decorrido aquele prazo de seis meses, mediante a concessão de prazo adicional para sanação da falta de impulso processual.

2) Face aos factos dados por provados na douta decisão recorrida, torna-se evidente que esta não apreciou o grau de negligência imputável aos herdeiros do falecido oponente, não os advertiu previamente da iminência da deserção da instância, nem, depois do decurso do prazo de seis meses previsto no nº 1 do artigo 281º do CPC, lhes fixou prazo para a sanação da falta de impulso processual nos autos.

3) Por isso, a decisão recorrida é uma decisão-surpresa.

4) Ademais, o Tribunal “a quo” tinha conhecimento da identidade e paradeiro de todos os herdeiros do falecido oponente, em particular da recorrente (a quem nunca dirigiu qualquer notificação).

5) Pois que na cópia da certidão de óbito junta fls. 148 dos autos em suporte informático (e que deu lugar à suspensão da instância) consta que o oponente era casado com a ora recorrente, tendo última residência habitual (onde vivia com a ora recorrente) a Rua G..., 7º esquerdo, Almada.

6) E no processo 2557/12.5BELRS, de onde se extraiu cópia da mencionada certidão de óbito, tinha sido anteriormente (em 14/03/2019) deduzido incidente de habilitação de herdeiros, estando estes aí completamente identificados (doc. ora junto).

7) Para a expedição das notificações subsequentes à decretação da suspensão da instância, o Tribunal apenas atendeu à morada da herdeira N..., ignorando todas as demais e todos os demais herdeiros.

8) Não obstante isso, a decisão recorrida entendeu não haver lugar ao contraditório, não ouvindo os herdeiros interessados, por si conhecidos, em particular a ora recorrente cujas identidade e morada constavam da cópia da certidão de óbito que motivou a suspensão da instância, em frontal violação do disposto no nº 3 do artigo 3º do CPC.

9) A douta decisão recorrida violou, pelo menos, o nº 3 do artigo 3º e o nº 1 do artigo 281º, ambos do CPC, merecendo, por isso, ser revogada.

10) E estando já deduzida nos autos habilitação dos herdeiros do falecido oponente, arredada fica a possibilidade de deserção da instância.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência se revogando a douta decisão recorrida, prosseguindo os autos a sua normal tramitação até final, como tudo é de lei e elementar JUSTIÇA!


A Recorrida, devidamente notificada para o efeito, não apresentou contra-alegações.

O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Fundamentação


Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, que fixam o objeto do recurso, sendo as de saber se a decisão que decretou a extinção da instância por deserção padece de nulidade processual por violação do princípio da cooperação e do contraditório.


II.1- Dos Factos

O Tribunal recorrido considerou como provada a seguinte factualidade:

1. A 27 de Maio de 2019, foi proferido o seguinte despacho:
“Atento o óbito da oponente e a caducidade do mandato suspende-se a instância.” (cfr. fls 153 e seguintes dos autos em suporte informático).

2. Após, a prolação do mencionado despacho não ocorreu qualquer intervenção processual (cfr. autos em suporte informático).

Quanto a factos não provados, na sentença exarou-se o seguinte:

Inexistem factos alegados que com relevância para a decisão do pedido principal devam ser considerados não provados.

E quanto à Motivação da Decisão de Facto, consignou-se:

Para convicção do Tribunal, na delimitação da matéria de facto supra provada, foi decisivo o conjunto da prova produzida, analisada individualmente e no seu conjunto.
Designadamente nos documentos não impugnados juntos aos autos, referidos nos “factos provados”, com remissão para as folhas do processo onde se encontram, bem como à posição das partes sobre a matéria alegada.


Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada, ao abrigo do preceituado no artigo 662/1, do Código de Processo Civil (CPC) aplicável ex vi artigo 281º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), aditam-se ao probatório os seguintes factos:

3. O despacho supra identificado em 2. foi enviado a: Herdeiros/Familiares de: F... Avenida D...- 5ºDtº, 2800-178 Almada.
(cf. fls. 156 dos autos – doc. nº 004104664 registado em 29-05-2019 às 14:34:16);

4. No assento de óbito nº 722 do ano de 2014, consta como última residência habitual de F...: Rua G..., 7º Esq., Almada.
(cf. fls. 148 dos autos – doc. nº 004104657 registado em 20-05-2019 às 15:49:36);

5. Em 2020.11.02, foi proferida a decisão recorrida, que considerou deserta a instância, constante de fls. 168 e seguintes, doc. nº 004104676 registado em 02-11-2020 às 05:09:16, e que aqui se dá como integralmente reproduzida.

6. Em 2020.11.17, deu entrada requerimento da ora Recorrente de dedução de incidente de habilitação de herdeiros, constante de fls. 182 – doc. nº 004104682 registado em 17-11-2020 às 22:31:37, que aqui se dá por integralmente reproduzido.


II.2 Do Direito

A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que considerou deserta a instância, alegando não se ter verificado negligência das partes em promover o impulso processual, antes se terem verificado diversas irregularidades processuais, nomeadamente na notificação do despacho que ordenou a suspensão da instância.

Alega, pois, a Recorrente que o despacho que decretou a suspensão da instância foi enviado não para a última residência conhecida do “de cujus”, como tal indicada na certidão de óbito, mas para outra morada, concluindo que a decisão recorrida foi uma verdadeira decisão-surpresa, não tendo sido previamente advertida das consequências ou sequer da fixação de prazo para sanar a falta de impulso processual.

Defende, pois, a ora Recorrente que deveria ter sido esclarecida sobre o estado dos autos e notificada no sentido de a informar que o processo aguardava a dedução do incidente e que a inércia em o promover determinaria a extinção da instância.

Desde já diremos que, efetivamente, dos factos assentes resulta que, tal como alega, a notificação do despacho que determinou a suspensão da instância foi enviada para a morada indicada na petição inicial e não para a última residência conhecida do falecido e indicada no assento de óbito que foi junto aos autos.


Nos termos da alínea c) do artigo 277º do novo Código de Processo Civil (nCPC), que entrou em vigor em 1 de setembro de 2013, à semelhança do regime previsto na alínea c) do artigo 287º do anteriormente vigente Código de Processo Civil de 1961, a instância extingue-se com a deserção.

Diz o artigo 281/1 nCPC: considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

Constituem pressupostos cumulativos da deserção da instância: (i) a falta de impulso processual das partes, seja do Autor, Exequente ou Requerente, para o prosseguimento da instância – requisito de natureza objetiva e (ii) a inércia imputável a negligência das partes – requisito de natureza subjetiva.

No regime atualmente vigente a extinção da instância por deserção ocorre pela inércia negligente das partes em promover os seus termos pelo período de 6 meses e 1 dia.

O novo Código de Processo Civil, introduziu uma diferença no regime jurídico da deserção da instância declarativa: no anterior regime a deserção só ocorria passados que fossem três anos sobre a inércia das partes em promover o andamento do processo, enquanto no regime atual a deserção ocorre passados que sejam mais de 6 meses.

Assim, nos termos do artigo 281/1 nCPC, a instância considera-se deserta quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

Além do decurso do tempo exige agora a lei a inércia imputável a negligência das partes.

Esta expressão, negligência das partes não significa que seja necessário, para operar a deserção da instância, um juízo de culpa sobre a conduta da parte que omitiu a prática do ato e a quem cabia o ónus de impulso processual. Bastará, para integrar o conceito, a omissão não subtraída à vontade da parte, isto é, a omissão que não resulte de facto de terceiro ou de força maior impeditiva da prática do ato.

Será, portanto, negligente a conduta da parte que, estando em condições de praticar o ato, o não faz, sendo-lhe essa omissão diretamente imputável (1).

Esta questão, sobre se a deserção deve ser precedida de contraditório, é controvertida e tem dividido a jurisprudência.

Sobre ela pronunciou-se o recentemente acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul, de 2020.02.20, Proc. nº 982/14.5BELRA, em termos com os quais concordamos.

Assim, com as alterações introduzidas pelo novo Código de Processo Civil no regime jurídico da deserção, e tendo presente as gravosas consequências para as partes decorrentes da extinção da instância, entendemos também que, previamente à sua declaração, deve o juiz esclarecer os sujeitos processuais sobre o estado dos autos, despachando no sentido de os informar: (a) o processo aguarda o impulso do demandante; (b) a inércia deste determinará a extinção da instância (em data que indicar, ou decorridos seis meses sobre a data que indicar).

Como expende Teixeira de Sousa, no blog do IPPC Jurisprudência 2020 (79): Em suma, na construção de norma geral de aplicação quanto ao regime da deserção, entende-se que, no regime do CPC de 2013, a apreciação da negligência justificativa da deserção deve ser feita face aos concretos elementos constantes dos autos, não bastando o mero decurso do prazo, pelo que deve ser operado o contraditório prévio quanto aos requisitos da deserção se no despacho que decreta a suspensão não for feita advertência de que a inércia determinará a deserção, exceto quando outros elementos manifestem inequivocamente negligência tornando inútil aquela notificação.


No caso em análise, a suspensão da instância foi motivada pelo falecimento do Opoente, o que significa que cabia aos sucessores o ónus de promover a habilitação dos herdeiros do de cujus, de acordo com o disposto no artigo 276/1.a) nCPC.

Em 2020.11.02, nada tendo sido requerido pelos herdeiros, entre os quais figura a ora Recorrente, a Mmª Juíza a quo, no primeiro ato que praticou após ter assumido a titularidade dos autos, proferiu o despacho recorrido em que julgou deserta a instância.

Todavia, no despacho que declarou a suspensão da instância, os herdeiros não tinham sido alertados para as consequências da sua inércia, ou seja, não foram advertidos que a falta de habilitação de herdeiros no prazo de seis meses acarretaria a deserção da instância ao abrigo 281º do nCPC.

Mais além, e como já referido supra, duvidas há que o despacho que ordenou a suspensão da instância tenha chegado ao efetivo conhecimento da ora Recorrente, porquanto a notificação não foi enviada para a última residência conhecida e indicada na certidão de óbito junta aos autos, mas para a morada indicada na petição inicial.

Assim se concluindo, como, aliás, no Ac. TCAS citado, que consideradas as circunstâncias concretas do caso, não tendo a parte sido, previamente, advertida da correspondente cominação legal o Julgador não podia, sem assegurar o contraditório garantido no artigo 3/3 do nCPC, dar como assente que houve negligência das partes e declarar deserta a instância.

Prossegue o citado acórdão: Acresce que, conforme elucida o Acórdão (…) do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo nº 340/12.8 TBGMG2: “[n]uma situação de suspensão da instância, concatenando-a com o princípio da cooperação (art. 7º do novo CPC), tendo aqui o juiz não uma função correctiva mas de cooperação com as partes, deve este alertá-los da instituição de um regime mais severo para a deserção da instância, antes de proferir o despacho a julgá-la extinta, por terem decorrido mais de seis meses sobre a suspensão da instância sem impulso dos autos imputável às partes. E a omissão de um tal despacho, na medida em que esta situação contendia com o princípio da gestão processual, gerou uma nulidade processual, dado que a natureza do dever de gestão processual implica a nulidade resultante da omissão do ato de gestão.” [Vide na mesma linha de entendimento, designadamente, Acórdão do STJ, proferido no processo nº 3368/06.1TVLSB.L1.S1, de 22.05.2018, Tribunal da Relação de Coimbra processo nº 1215/14.0 TBPBL-B.C.1, de 20.09.2016, Tribunal da Relação de Évora, processo nº170/17.9T85RP.E.1, de 30.05.2019, Tribunal da Relação do Porto, processo nº4178/12.2TBGDM.P.1 e TCA Sul, processo nº 566/13.5 BEALM, de 10.12.2019].

Assim, face a todo o exposto, em decorrência dos princípios da gestão e cooperação processual e dever de prevenção emergente daqueles, e bem assim em obediência ao princípio do contraditório, não tendo o Juiz do Tribunal a quo advertido que a omissão da prática do ato devido para efeitos de impulso processual será, oportunamente, sancionada nos termos do artigo 281º, nº1, do CPC, tal integra irregularidade processual com impacto e influência na decisão proferida [artigo 195.º, nº1, 2ª parte do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT], impondo-se, por conseguinte, que seja decretada a sua nulidade.

Face a todo o exposto, procede o recurso, julgando-se verificada a nulidade processual invocada, e, em consequência, anulam-se todos os atos subsequentes à notificação omitida, que dele dependam absolutamente e que não possam ser aproveitados, incluindo a decisão recorrida, aproveitando-se, porém, a já requerida habilitação de herdeiros.


Sumário/Conclusões:

I. Em resultado dos princípios da gestão e cooperação processual e dever de prevenção emergente daqueles, e bem assim em obediência ao princípio do contraditório, deve a parte ser advertida que a omissão da prática do ato devido para efeitos de impulso processual será, oportunamente, sancionada nos termos do artigo 281/1 do CPC.
II. A inexistência de tal advertência integra irregularidade processual com impacto e influência na decisão proferida [artigo 195/1, 2ª parte do CPC, aplicável ex vi artigo 2.e), do CPPT], cominada com a sua nulidade.


III - Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da 2ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, mais se ordenando a baixa dos autos para que os mesmos aí prossigam a sua tramitação, devendo ser apreciada primeiramente a habilitação de herdeiros requerida.

Sem custas.

[Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13 de março, o Relator atesta que os Juízes Adjuntos - Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores Vital Lopes e Luísa Soares - têm voto de conformidade.]

Lisboa, 30 de setembro de 2021

SUSANA BARRETO

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(1) in Ac STJ, 6ª Seção, de 2018.05.22, Proc nº 3368/06.1TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt