Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1035/22.8 BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:10/12/2023
Relator:ANA CRISTINA LAMEIRA
Descritores:ILEGITIMIDADE ACTIVA
IMPUGNAÇÃO PEÇAS DO PROCEDIMENTO
ART. 103º DO CPTA
Sumário:I - Para efeitos do art. 103º, nºs 2 e 3 do CPTA, detém legitimidade activa, não apenas quem tenha participado no procedimento pré-contratual, como os potenciais interessados em participar no procedimento que possam ser afectados na sua situação jurídica. Pressupõe, pois, a existência de um prejuízo (lesividade) que in casu inexiste, pois, como assume a Recorrente, jamais poderia (pretendia) participar no procedimento sub iudice.
II - Mas tal pedido deve ser deduzido “durante a pendência” do procedimento, a que se pode designar de “legitimidade” temporária.
III - Na verdade, considerar admissível a impugnação, a todo o tempo, das disposições contidas nas peças do procedimento impediria que se estabilizasse a relação pré-contratual, contrariando a ratio da imposição de um prazo para impugnação directa de disposições contidas nas peças do procedimento, tal como para a impugnação do acto final do procedimento, em regra, de adjudicação.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de CONTRATOS PÚBLICOS
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

S..., LDA., intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a presente acção administrativa de contencioso pré-contratual contra a T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT, S.A. (Entidade Demandada) de declaração de ilegalidade dos artigos 4.º, n.º 3 e 15.º do Programa do Concurso e das cláusulas 1.ª, 3.ª, 4.ª e 35.ª do Caderno de Encargos do concurso público, designado por “Rede de Agentes de Venda de Títulos de Transporte Comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT, S.A”.
O TAF de Sintra, por decisão de 13.12.2022, julgou-se incompetente em razão da matéria e determinou a remessa ao Juízo de Contratos Públicos do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por ser o competente.
Por sentença de 24.03.2023, o TAC de Lisboa, decidiu julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa e, em consequência, absolveu a Entidade Demandada da instância.
Inconformada a Autora, ora Recorrente, veio interpor recurso jurisdicional terminando a sua Alegação com as seguintes (extensas) conclusões:
Quanto ao objeto dos presentes autos:
A) Os presentes autos podem ser sumariados num pequeno parágrafo: a Autora, juntamente com centenas de outras empresas, presta um serviço à Entidade Demandada; a Entidade Demandada decidiu promover um concurso público tendo em vista regular a prestação daquele serviço; o concurso público foi formulado de tal forma que a Autora, juntamente com centenas de outras empresas, deixam de poder prestar esse serviço; aliás, o Concurso apenas poderia concluir com a escolha de uma única entidade porque só essa reunia os requisitos para concorrer.
É esta absoluta e absurda eliminação da concorrência, com prejuízo de quem atualmente presta o serviço e deixará de o poder fazer, que está em causa nos presentes autos.
B) A ação de contencioso pré-contratual visa a declaração de ilegalidade do n.º 3 do mesmo artigo 4.º do Programa do Concurso, do artigo 15.º do Programa do Concurso, assim como do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos e das cláusulas 3ª, 4ª e 35ª do Caderno de Encargos do concurso público, designado por “Rede de Agentes de Venda de títulos de transporte comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT. S.A.”, criado pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT. S.A..

C) O referido concurso visa a celebração de um contrato de aquisição de serviços com vista a estabelecer e a operar uma Rede permanente, com um mínimo de 1500 (mil e quinhentos) de Agentes de Vendas que assegure a venda dos títulos de transporte comercializados pela T... - Transportes Metropolitanos de Lisboa, E.M.T., S.A., no valor de €730,000.00 (setecentos e trinta mil euros).

D) A Autora e ora Recorrente integra a vasta rede de agentes de vendas da P...i – entidade que prestava o mesmo serviço que se visa prestar com o contrato resultante do concurso público em causa.
Quanto ao mérito do recurso:
Síntese da decisão recorrida
E) A decisão recorrida julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa deduzida, tendo por isso absolvido a Entidade Demandada da instância, nos termos do disposto no artigo 87.º-B, n.º 1 e artigo 89.º, n.ºs 1, 2 e alínea e), do n.º 4, todos do CPTA.

F) O Saneador-Sentença considerou que “a Autora, para além de não se ter constituído como interessada no procedimento, não sendo, pois, concorrente, também não é prejudicada por qualquer das decisões concretas que, com base nas disposições que impugna do Programa do Procedimento e do Caderno de Encargos, venham a ser adotadas no seu decurso” (cfr. página 10 do Saneador-Sentença).

G) A Recorrente não pode deixar de discordar com o sentido da decisão recorrida, de procedência da exceção de ilegitimidade ativa, que parece fazer tábua rasa da doutrina de reconhecido mérito que o próprio Saneador-Sentença mobilizou.

Do erro na interpretação e aplicação do direito
Da necessidade que o Concurso Público visa satisfazer
H) Se atentarmos na requisição interna para efeitos de contratação (fls. 1 e 2 do processo administrativo), verificamos o seguinte quanto à fundamentação da necessidade de contratar:

“O lançamento da operação Carris Metropolitana, face às suas características e abrangência geográfica, obriga a que se alargue e estabeleça uma Rede de Vendas, tomando em consideração a heterogeneidade dos utilizadores da rede atual, assim como dos potenciais utilizadores, multiplicando os esforços para fazer com que os produtos comercializados pela T..., à imagem da rede operada pela mesma, cheguem a cada camada do público-alvo de forma eficiente”.
Ou seja, é absolutamente claro que a necessidade identificada pela Entidade Demandada era a de ter um número elevado de agentes de venda.
Ora, esse propósito justifica a existência da maior abrangência possível de pontos de venda dos produtos comercializados pela T....
O Concurso Público foi a forma encontrada pela T... para dar resposta a essa necessidade.
Ora, o que a Autora, ora Recorrente, contesta é que existem outras formas que poderiam ser utilizadas pela Entidade Demandada para satisfazer a sua necessidade e que a forma escolhida pela Entidade Demandada restringe de tal forma a concorrência que apenas pode ser satisfeita por uma entidade; entidade essa com a qual a Autora não tem qualquer relação e que implica a impossibilidade de a Autora continuar a prestar o serviço que atualmente presta.
Salvo o devido respeito pela sentença recorrida, não se compreende como se poderá concluir que a Autora não tem interesse em impugnar as peças do Concurso Público nem os atos praticados no seu âmbito.
Da legitimidade ativa da Recorrente
I) Dispõe o artigo 103.º, n.º 2, do CPTA que goza de legitimidade ativa “quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa”.

J) A doutrina é uníssona ao considerar que não é necessário que o interessado já seja participante no procedimento para que possa impugnar judicialmente os documentos confirmadores do procedimento (cfr. Almeida, Mário Aroso de, Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2021, 5ª edição, Coimbra, Almedina, p. 873).

K) Foi exatamente isto que levou a Autora a pugnar pela ilegalidade do artigo 15.º do Programa do Concurso e do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos (vide artigos 59.º a 93.º da Petição Inicial) por se tratarem de previsões violadoras do princípio da concorrência, que impõem aos concorrentes que sejam suficientemente grandes para estabelecer e operar uma vasta Rede permanente de Agentes de Vendas – de pelo menos 1500 agentes que se dedicarão à venda exclusiva dos títulos da Ré – impedindo qualquer tipo de concorrência.
E não se entenda esta argumentação no sentido de que a Autora pretendia (individualmente) candidatar-se ao concurso público em causa – o que parece ter sido a conclusão da primeira instância.
L) É notório que a Autora, na qualidade de agente integrado da rede de agentes da P...i (cfr. facto provado n.º 4) – entidade que assegurava o serviço que a Entidade Demandada visa que seja prestado com a celebração do contrato do Concurso em causa – nunca poderia almejar ter arcabouço bastante para providenciar a Rede de Agentes que a Entidade Demandada procura.
M) Aliás, ninguém, além da adjudicatária, tem arcabouço bastante para providenciar a Rede de Agentes que a Entidade Demandada procura.
N) Não obstante, o preceito no CPTA não restringe a legitimidade ativa às entidades com capacidade para ser concorrentes – nem o poderia fazer (como a já referida doutrina alerta), sob pena de autorizar que qualquer entidade pública formasse um concurso público ilegalmente restritivo e, nessa medida, somente impugnável pelos concorrentes ilegalmente admissíveis.
O) Acresce que nada impedia a Autora de criar uma rede que permitisse ter um conjunto de agentes disponíveis para prestar o serviço. O que impede é a circunstância de a Entidade Demandada exigir um número de agentes de tal forma elevado que apenas uma entidade poderia corresponder ao pedido.
P) Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha ensinam que, em matéria de legitimidade ativa para impugnar documentos conformadores do procedimento, “[t]rata-se de uma regra de legitimidade que se circunscreve à relação jurídica intersubjetiva, pressupondo um interesse pessoal no resultado do procedimento, pelo que ela está associada a um requisito de lesividade” (sublinhado nosso) – cfr. Almeida, Mário Aroso de; Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2021, 5ª edição, Coimbra, Almedina, p. 873.
o que sucede então nos presentes autos.
Q) Conforme consta do elenco de factos provados, a Recorrente pertence à Rede de Agentes da entidade que prestava o serviço que a adjudicatária passará a prestar – a P...i (facto provado n.º 4).

R) Nessa medida, na qualidade de agente de vendas integrada numa outra Rede de Agentes, a Autora vê-se impedida (por força dos requisitos impostos pela Entidade Demandada) de continuar a prestar o serviço de venda de títulos que, até então, realizava – sendo esta a real e direta lesão que legitima a Autora a impugnar dos preceitos constantes dos documentos conformadores do procedimento.

S) Ainda sobre a regra da legitimidade ativa vertida no n.º 2, do artigo 103.º, do CPTA, Marco Caldeira chama à atenção para a necessidade de o mesmo corresponder ao disposto no Considerando (17) da Diretiva 2007/66/CE (cfr. Caldeira, Marco, “O “novo” contencioso pré-contratual (tópicos desenvolvidos para uma intervenção)”; in Coleção Formação Contínua – Contencioso pré-contratual – Jurisdição Administrativa e Fiscal do Centro de Estudos Judiciários, fevereiro 2017, p. 43.).

O Considerando (17) da Diretiva 2007/66/CE atribui legitimidade ativa a quem tenha “interesse em obter um contrato em particular e que tenha sido ou corra o risco de ser prejudicada por uma alegada violação” (sublinhado nosso).
Notoriamente, a Autora é prejudicada (nos termos já expostos), com a violação dos princípios da concorrência e da proporcionalidade, ínsitas no artigo 15.º do Programa do Concurso e do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos.
T) Assim sendo, urge que seja declarada a ilegalidade do artigo 15.º do Programa do Concurso e do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos, por forma a evitar que vigore um contrato público celebrado em consequência de um concurso polificcionado.

U) Na verdade, sendo julgada improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa e analisando o clausulado do Concurso Público em causa, será notório que, tendo em conta a amplitude da Rede de Agentes definida no concurso em causa, não estamos perante um verdadeiro concurso público, tratando-se o mesmo de concurso polificcionado, por existir somente uma entidade que poderia almejar a cumprir com os requisitos impugnados: Payshop.
Esta convicção da Autora veio a ser confirmada com o facto de ter sido, efetivamente, a Payshop a única concorrente que apresentou proposta e a quem foi adjudicada a mesma, por ser a única operadora no mercado com uma tão vasta rede de agentes de venda disponíveis.
V) Por isto, a Autora e Recorrente tem legitimidade ativa para impugnar o artigo 15.º do Programa do Concurso e do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos na medida em que é diretamente lesada (na qualidade de subcontratante da anterior prestadora do serviço que, com a execução do contrato, passa a ser prestado pela adjudicatária) pelo facto de ser impossível a outros operadores, com redes de agendes de vendas, serem concorrentes no referido concurso.
W) Também Marco Caldeira explica que, em questão de legitimidade ativa, “como resulta do Direito da União Europeia, está em causa o interesse na disputa do contrato, e não apenas o interesse na participação num determinado procedimento” (destaques nossos)– cfr. Caldeira, Marco, “O “novo” contencioso pré-contratual (tópicos desenvolvidos para uma intervenção)”; in Coleção Formação Contínua – Contencioso pré-contratual – Jurisdição Administrativa e Fiscal do Centro de Estudos Judiciários, fevereiro 2017, p. 43.
X) E, de facto, nos presentes autos a Autora tem interesse na criação de um concurso público, pela Entidade Demandada, que de facto cumpra os mais elementares princípios conformadores da contratação pública, por forma a que seja garantida essa real disputa do contrato (ou, por outras palavras, que haja uma hipótese de concorrência), beneficiando, a Autora, diretamente dessa disputa (enquanto subcontratante de um dos operadores que, neste cenário de legal concorrência, estaria em condições de reunir os requisitos para apresentar proposta).
Y) Contudo, como amplamente se discorreu na Petição Inicial, este cenário é impossível no concurso impugnado, que foi ilegalmente desenhado pela Entidade Demandada para permitir somente à Payshop apresentar proposta.
Z) A decisão recorrida, ao entender que a ora Recorrente não é parte legítima nos presentes autos, interpreta e aplica incorretamente o teor do n.º 2, do artigo 103.º, do CPTA, que deve ser interpretado e aplicado no presente caso no sentido de se concluir que a Recorrente, por se ver privada da possibilidade de prestar um serviço que atualmente presta em virtude dos requisitos verdadeiramente eliminatórios de qualquer concorrência, tem legitimidade para impugnar os preceitos constantes do Programa do Concurso e do Caderno de Encargos do concurso público, designado por “Rede de Agentes de Venda de títulos de transporte comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, EMT. S.A.”, criado pela Entidade Demandada.
Em caso de procedência do recurso e na eventualidade do Tribunal decidir conhecer de todas as questões, a Autora, ora Recorrente, deixa aqui reproduzido tudo quando invocou em primeira instância.
Da ilegalidade das peças do procedimento (n.º 3, do artigo 4.º do Programa de Concurso)
AA) Dos n.os 1 a 3, do artigo 4.º, do Programa do Concurso, resulta que, para ter acesso aos documentos do procedimento, os interessados além de terem de se registar na plataforma (o que é um procedimento comum), têm igualmente de manifestar interesse em participar no procedimento, o que apenas pode suceder até à data de apresentação de propostas.
BB) Assim sendo – e porque os documentos do procedimento não são disponibilizados na respetiva plataforma eletrónica de contratação pública, de forma livre, completa e gratuita – o número 3, do artigo 4.º, do Programa do Concurso, viola o artigo 133.º, n.º 1 do CCP em três vertentes que passaremos a identificar.
CC) Em primeiro lugar, e conforme já foi constatado supra, o artigo 4.º, n.º 3 do Programa do Concurso veda essa divulgação universal, tendo condicionado o acesso, pelos interessados, às peças procedimentais não só ao prévio registo destes na plataforma eletrónica da entidade adjudicante, mas também a uma manifestação de interesse no mesmo.
DD) Em segundo lugar, a Entidade Adjudicante não cura fazer qualquer referência, no seu site, aos concursos públicos a correr termos e, como tal, não existe também menção ao Concurso Público.
EE) Por fim, seria de esperar que, pelo menos na plataforma eletrónica utilizada pela entidade adjudicante fosse possível consultar o referido Concurso Público; Tal não sucede, não constando o Concurso em causa da listagem disponível na SaphetyGov, apesar de a mesma permitir a consulta de concursos públicos que remontam a 2017 (cfr. Erro! A origem da referência não foi encontrada. junto com a Petição Inicial).
FF) Também a respeito deste tema, ensinam Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, o princípio da transparência – que tem como uma das suas manifestações a possibilidade de acesso aos documentos do processo pré-contratual – legalmente consagrado no artigo 1.º-A do CCP tem um “importantíssimo papel no seio dos procedimentos pré-contratuais públicos, residindo aí a garantia de que os eventuais atentados às determinações da lei e às exigências dos princípios da concorrência e da igualdade (etc.), a ocorrerem, virão à luz do dia, serão conhecidos dos interessados, não ficarão ocultos sob o manto do secretismo (…)” – cfr. OLIVEIRA, Mário Esteves de; OLIVEIRA, Rodrigo Esteves de – Concursos e outros procedimentos de contratação pública. Coimbra: Almedina, 2011, página 222 e 223.
GG) Além disso, o artigo 4.º, n. º 3, do Programa do Concurso traduz-se numa violação do princípio da publicidade.
Uma das consagrações do princípio da publicidade é o artigo 33.º da Lei n.º 96/2015 sendo certo que o condicionalismo previsto no artigo 4.º, n. º 2, do Programa do Concurso está em clara violação do artigo 33.º da Lei n.º 96/2015, não existindo, na plataforma da SaphetyGov, um canal de acesso livre ao Caderno de Encargos ou ao Programa do Concurso à disposição de qualquer potencial interessado, encontrando-se o acesso vedado somente àqueles que se inscrevam previamente na plataforma e que manifestem expressamente pretender constituir-se como interessados sem que – pasme-se – possam oportunamente analisar as peças do procedimento antes de materializarem eletronicamente o seu interesse no Concurso.
HH) Em face do exposto, resta concluir que o artigo 4.º, n. º 3, do Programa do Concurso, ao vedar o acesso livre e universal ao Caderno de Encargos e ao Programa do Concurso viola o n.º 6 do artigo 133.º do CCP, sendo por isso anulável e consubstancia uma violação ao princípio da transparência e ao princípio da publicidade (consagrados no artigo 1.º-A do CCP) assim como uma violação do artigo 33.º da Lei n.º 96/2015, sendo por isso anulável.
II) No mais, considerando-se que a referida disposição padece de anulabilidade – como julgamos terá de ser o caso –, devem ser anulados todos os atos praticados após a publicação do anúncio, o que se requer.
Da ilegalidade das peças do procedimento (artigo 15.º do Programa de Concurso, assim como do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos)

i) Da violação do princípio da concorrência

JJ) Nos termos do artigo 15.º, do Programa do Concurso, o critério de adjudicação é a proposta economicamente mais vantajosa para a Entidade Adjudicante na modalidade multifator, densificada pelos fatores preço e rede.
O critério de adjudicação “Rede” está relacionado com o “número de agentes adicionais que prestarão o serviço” e pesa 10% na ponderação das propostas a apresentar, conforme dispõe o referido artigo.
Por sua vez, a cláusula 1ª, no seu número 2, do Caderno de Encargos vem densificar o objeto do Contrato a celebrar, informando que a “T... pretende, com a celebração do contrato, ter uma Rede de vendas abrangente, com um mínimo de 1500 (mil e quinhentos) Agentes de Vendas na área metropolitana de Lisboa, distribuídos geograficamente em conformidade com o [Erro! A origem da referência não foi encontrada] de forma a mitigar eventuais anomalias ou constrangimentos na venda dos títulos de transporte que comercializa” (destaques nossos).
KK) Isto significa que todos os concorrentes terão, inevitavelmente, de apresentar uma estrutura suficientemente grande para estabelecer e operar uma vasta Rede permanente de Agentes de Vendas, de pelo menos 1500 agentes, que se dedicarão à venda exclusiva dos títulos de transporte da Entidade Adjudicante.
Esta restrição da concorrência livre dos operadores económicos é uma exigência injustificada em face ao objeto do contrato, conforme lograremos demonstrar.
LL) Como referem Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, são exigências que surgem como reflexos do princípio da concorrência aquelas “que contribuem para assegurar o acesso do maior número de interessados em candidatar-se ou concorrer, os que servem para assegurar uma oposição sã entre concorrentes e estimular a liça entre eles, bem como os que lhes permitem defender a sua posição perante os respectivos opositores, e, inversamente, pôr em causa a destes” (sublinhado nosso) – cfr. Oliveira, Mário Esteves de; Oliveira, Rodrigo Esteves de - Concursos e outros procedimentos de contratação pública. Coimbra: Almedina, 2011, página 193.
MM) Uma das exigências do princípio da concorrência é a de que a apresentação de especificações do caderno de encargos seja permissiva à concorrência.
NN) Como dispõe o artigo 49.º, n.º 4 do CCP, as especificações técnicas têm de permitir “a igualdade de acesso dos operadores económicos ao procedimento de contratação e não devem criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência” (sublinhado nosso).
OO) Sucede que, no caso em apreço, a especificação da cláusula 1ª, no seu número 2, do Caderno de Encargos vem obstar a que exista (sequer) qualquer tipo de concorrência, partindo-se da ilusão de que estamos perante um concurso público quando afinal se trata – por força da exigida amplitude da rede de agente – de um concurso polificcionado.
PP) Isto porque, tendo presente que a área metropolitana de Lisboa engloba 18 municípios, cumpre referir que a Payshop é a entidade que tem a maior rede de agentes, com 962 agentes na Área Metropolitana de Lisboa (listagem que se junta como Erro! A origem da referência não foi encontrada. junto com a Petição Inicial).
QQ) Logo de seguida, surge a P..., entidade que tem a segunda maior de agentes, muito longe está de alcançar o número de agentes da Payshop, quanto mais satisfazer a exigência do Concurso Público em causa.
Assim, no limite, e em face dos números apresentados, existirá uma única entidade que poderia almejar a cumprir com os requisitos, no caso a Payshop (o que, como já se disse, se veio a confirmar).
RR) Tudo isto porque que o Concurso Público dificultou desproporcionalmente a possibilidade de concorrer, com o requisito de um mínimo de uma rede de 1500 agentes de vendas, o que faz com que, no limite, só haja lugar a uma proposta porque, na prática, somente um operador económico no mercado conta com uma rede de agentes suficientemente grande: a Payshop.

SS) Em caso semelhante, atente-se no sentido de decisão do Tribunal Central Administrativo Norte, em acórdão datado de 25/01/20213, proferido no âmbito do processo nº 01312/11BEBR, que era ilegal a exigência de “(…) incluir no rol dos elementos a integrar a proposta, o documento comprovativo de que o alojamento da solução proposta se encontra certificado de acordo com a norma de segurança ISO27001, põe em causa o princípio da concorrência. Ora, sendo a contrainteressada a única concorrente que possui tal certificação, pode permitir saber antecipadamente a quem vai ser adjudicado o serviço (independentemente de tal exigência não constar dos documentos de habilitação). Esta exigência mais do que restringir a concorrência, elimina-a, ainda que o Réu refira não excluiu a Autora do procedimento por tal causa. O procedimento tem de ser suficientemente aberto para permitir que todos os interessados manifestem o interesse em candidatar-se ao concurso e apresentar a proposta. Ora, a obrigação de apresentação da certificação ISO27001 elimina à partida objetivamente a concorrência” (sublinhado nosso).
Foi exatamente isto que sucedeu no Concurso Público em causa, com a exigência de apresentação de uma rede de 1500 agentes vertida no artigo 15.º do Programa do Concurso, assim como do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos.
TT) E, não se diga que, a respeito deste tema, a inexistência de outro player suficientemente grande na área se encontra colmatada pela possibilidade de ser concorrente os agrupamentos de empresa, conforme permite o artigo 8.º do Programa do Concurso.
Isto porque a verdade é que é técnica e financeiramente impossível para as empresas do ramo definir uma estratégia de agrupamento que cumpra os requisitos do Concurso impugnando dentro do prazo de trinta dias contratualmente fixado para a apresentação de propostas.
UU) Acresce que esta exigência é particularmente gravosa para a ora Recorrente, porque além de ser absolutamente claro que não poderá concorrer ao referido concurso, esta terá – para manter o serviço que presta – de se subordinar às condições que o adjudicatário venha a exigir-lhe, ficando à mercê do mesmo.

VV) É, por tudo o quanto se expôs, que se considera que o presente concurso, em específico no que respeita à alínea b) do n.º 1 do artigo 15.º do Programa do Concurso e ao n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos se traduzem numa restrição ilegal ao princípio da concorrência e consubstanciam uma limitação ilícita do mercado das plataformas de prestadoras de serviços de pagamento.

ii) Da violação do princípio da proporcionalidade

WW) O princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa, tendo concretização normativa no artigo 7.º do CPA resulta que, ainda que a fixação de especificações nas peças do procedimento (v.g. o requisito de um número mínimo de Agentes de Venda) se encontre na margem discricionária da Entidade Adjudicante, tais especificações terão de ser coerentes com o objeto do concurso, de outra forma só significarão uma restrição, sem fundamento legal e desproporcional, às candidaturas dos potenciais interessados.
Sabendo que o objeto principal do Concurso Impugnando é a celebração de um contrato de prestação de serviços, com vista a estabelecer e operar uma rede permanente de agentes de vendas que assegure a venda dos títulos de transporte comercializados pela Entidade Demandada, não se encontra justificada a exigência de uma rede de 1500 agentes de vendas só na área metropolitana de Lisboa, não sendo essa grandeza de vendedores a única forma de garantir a venda dos títulos de transportes coletivos.
XX) Não se verifica, por isso, ultrapassado o crivo da necessidade de tão ampla rede de agentes, porque uma rede com um menor número de agentes de venda consegue, da mesma forma, assegurar venda dos títulos de transporte comercializados pela Entidade Adjudicante.
YY) Nesse sentido, é desproporcional a aludida exigência face ao objeto do contrato em apreço e às tarefas que o mesmo importa, razão pela qual se conclui que a mesma viola o princípio da proporcionalidade, tendo havido, por parte da Entidade Adjudicante, qualquer justificação para a restrição operada no n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos.

Da ilegalidade das cláusulas 3.ª, 4.ª e 35.ª, do Caderno de Encargos

ZZ) O Concurso Público não poderá prosseguir nos termos e com as peças do procedimento apresentadas, por não contemplar as circunstâncias da realidade fática atual em matéria de transportes públicos metropolitanos existente na área metropolitana de Lisboa.
AAA) Atendendo ao disposto nas cláusulas 3ª e 5ª do Caderno de Encargos, concluiu-se que o preço do futuro contrato a celebrar com a Cocontratante contempla a remuneração do serviço prestado pela Rede de Agentes de Venda, que corresponde a uma percentagem de comissão por cada venda de títulos de transporte da T....
BBB) Além disso, analisados os n.os 2 a 4, da cláusula 4ª, do Caderno de Encargos concluímos que o montante total das vendas (do qual se retirará a comissão que paga os serviços de venda dos títulos) só inclui os títulos efetivamente vendidos pelo Cocontratante através da sua Rede de Agentes, o que não engloba as anulações ou devoluções que possam existir.
Feito este enquadramento, seguiremos então para o problema que aqui nos traz.
CCC) No dia 21/04/2022 foi apresentada, pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, a Proposta n.º 164/2022 de implementação da gratuitidade do transporte coletivo de passageiros (no qual se incluiu o Metropolitano de Lisboa) dirigida aos jovens até aos 18 anos, aos estudantes universitários até aos 23 anos de idade e cidadãos com maios de 65 anos, desde que possuam domicílio fiscal na cidade de Lisboa (cfr. Proposta que se junta como Erro! A origem da referência não foi encontrada. junto com Petição Inicial), da qual se pode ler que o “Município assegurará o financiamento do impacto da medida no sistema de transportes coletivos da Área Metropolitana de Lisboa, mediante a entrega à T..., do montante das compensações financeiras devidas aos operadores de transportes sobre os quais impende a obrigação de disponibilização gratuita dos títulos Navegante Municipal”.
DDD) De referir que na Proposta aprovada (cfr. Ata da Reunião que se juntou como Erro! A origem da referência não foi encontrada. com a Petição Inicial) consta que a adesão à gratuitidade do título do transporte de metro, nas modalidades aplicáveis aos jovens até aos 18 anos e aos estudantes universitários até aos 23 anos, pode ser realizada entre os dias 01/09/2022 e 15/11/2022, sendo válida pelo período máximo de um ano findo o qual carece de renovação.
EEE) Por sua vez, da mesma Proposta consta que a adesão à gratuitidade do título do transporte de metro, na modalidade «3ª Idade», pode ser realizada a qualquer momento e é válida pelo período máximo de um ano, findo o qual deve ser renovada. Assim sendo, é atualmente possível aderir e usufruir da gratuitidade destes títulos comercializados pela T... para os beneficiários da Proposta, que apresentem as condições já identificadas na mesma.
FFF) Sucede que o modelo que permite a disponibilização dos títulos de transporte a custo zero não foi incluído no Programa do Concurso nem no Caderno de Encargos do Concurso impugnando.
Desta omissão resultam vários problemas que inviabilizam a adjudicação, que passaremos a identificar.
GGG) O n.º 2 da 3ª cláusula do Caderno de Encargos é omisso em relação às situações nas quais os Agentes de Vendas disponibilizam o título de transporte ao qual não foi aplicado qualquer preço, ficando por saber se essa prestação de serviços (de disponibilização do título ao cliente final) será considerado no montante global de vendas. Também a cláusula 4ª do Caderno de Encargos não prevê a existência de remuneração da Cocontratante que venda o título de transporte a custo zero.
HHH) A falta de previsão da remuneração para estes casos consubstancia a omissão de um dos pressupostos fundamentais da decisão de contratar pública: o preço.
III) E não deverá proceder a eventual argumentação no sentido de que este não seria um problema de maior, tendo em consideração o avultado volume de títulos sem preço que previsivelmente já estão a ser emitidos.
JJJ) Isto porque, como facilmente de depreenderá, é atrativo para qualquer jovem residente em Lisboa usufruir gratuitamente do passe mensal para se deslocar de metro em Lisboa, ainda que outrora não lhe compensasse aderir ao mesmo passe.
KKK) Somos levamos a concluir que a gratuitidade dos títulos dos transportes coletivos resultará (já terá resultado) num exponencial aumento do número de passes mensais a custo zero, que sempre compensarão em relação ao valor unitário de cada viagem pontual de metro.
LLL) Tal aumento do número de títulos de metro emitidos traduz-se num maior volume de trabalho para cada Agente de Vendas, trabalho esse cuja remuneração não vem consagrado no Programa do Concurso ou no Caderno de Encargos do Concurso impugnando.
MMM) Por outro lado, se a remuneração associada for ficcionada em função do custo que esse título em princípio teria (e que teria até à data em que foi adotada a referida deliberação), também aí estaríamos perante uma alteração substancial das peças com impacto no interesse de potenciais interessados.
NNN) De facto, trata-se de um aumento significativo de potenciais transações (resultantes da decisão de que, sendo gratuito, muitos que antes não tinham passes acabarão por obter um) e de uma transação com um custo inferior (na medida em que não tem associado os custos financeiros do pagamento), o que leva a um aumento de interesse das entidades neste serviço.
OOO) Sucede que, como corolário do princípio da concorrência vigora, no seio da contratação pública, o princípio da estabilidade das regras do procedimento.
PPP) Como ensinam Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, este princípio impõe que “as regras e dados constantes das peças do procedimento, como o seu programa ou o caderno de encargo, devem manter-se inalteradas durante a pendência dos respectivos procedimentos, sendo proibida a sua alteração (eliminação, aditamento, modificação) ou desconsideração” – cfr. Oliveira, Mário Esteves de; Oliveira, Rodrigo Esteves de – Concursos e outros procedimentos de contratação pública. Coimbra: Almedina, 2011, página 210.
QQQ) Refira-se também que, no caso em apreço, estaria já impossibilitada qualquer alteração ou retificação de erros ou omissões das peças do procedimento, volvido que está o prazo previsto no artigo 50.º, n.º 5 e 7 do CCP.
RRR) E a 3ª cláusula do Caderno de Encargos não prevê se a disponibilização de títulos de transporte que não careçam de pagamento estão, ou não, incluídas no montante global de vendas.
SSS) Nestes termos, a 4ª cláusula do Caderno de Encargos é omissa no que concerne à existência de remuneração do Cocontratante e consequentemente ao pagamento do trabalho dos Agentes de Vendas para os títulos gratuitos.
TTT) No fundo, estamos perante um conjunto de circunstâncias supervenientes relativas aos pressupostos da decisão de contratar que justificam uma decisão de não adjudicação, conforme prevê o artigo 79.º, n.º 1, alínea d) do CCP.
UUU) Assim sendo, as 3ª e 4ª cláusulas do Caderno de Encargos são ilegais, violando o princípio da estabilidade das regras do procedimento.
Da ilegalidade do ato de adjudicação
VVV) O ato de adjudicação, e o contrato celebrado na sua sequência, por terem sido adotados e celebrados ao abrigo das peças do procedimento impugnadas, padecem das mesmas invalidades.
Por isso mesmo, a impugnação do ato de adjudicação e do contrato têm como fundamentos os mesmos que fundamentam o pedido de declaração de ilegalidade do artigo 15.º do Programa do Concurso, assim como do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos: a violação do princípio da concorrência e do princípio da proporcionalidade.
Assim, considera-se aqui reproduzido tudo quanto expusemos na secção anterior acerca da ilegalidade dos preceitos incluídos nas peças procedimentais, que inteiramente valem também para a impugnação do ato de adjudicação, na medida em que a ilegalidade dos primeiros gera, consequencialmente, a ilegalidade do segundo”.

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Nas suas Contra-alegações a Recorrida / Entidade Demandada concluiu assim:

“a) É evidente a improcedência do recurso, face à falta de fundamentos apresentados relativamente decisão da sua ilegitimidade.
b) A recorrente, numa tentativa de aproveitamento de meios processuais vem apenas repetir “ipsis verbis” os supostos vícios com que tentou atacar o procedimento 3/2022,
c) Relativamente aos quais, por respeito ao tribunal e por entender que estão fora do âmbito deste recurso, a recorrida apenas dá por reproduzidos os argumentos da sua contestação e requerimentos de resposta apresentados em primeira instância.
d) A ilegitimidade da recorrente, conforme bem identificada no douto Saneador-Sentença recorrido, é evidente, quer pela inexistência de interesse da recorrente no procedimento 3/2022, quer pela sua inercia relativamente àquele, quer pela inexistência de qualquer reflexo na sua posição comercial corrente.
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O DMMP notificado nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 146.º do CPTA, não emitiu pronúncia.

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Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente dos autos, vem o processo submetido à conferência para decisão.
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I.1. DA DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO/DAS QUESTÕES A DECIDIR

Na fase de recurso o que importa é apreciar se a decisão (sentença) proferida deve ser mantida, alterada ou revogada, circunscrevendo-se as questões a apreciar em sede de recurso, à luz das disposições conjugadas dos artigos 144º nº 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do Código de Processo Civil (CPC) ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA, às que integram o objecto do recurso tal como o mesmo foi delimitado pelo recorrente nas suas alegações, mais concretamente nas suas respetivas conclusões (sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso) e simultaneamente balizadas pelas questões que haviam já sido submetidas ao Tribunal a quo.

Em face dos termos em que foram formuladas as respetivas conclusões de recurso, as questões essenciais a decidir residem em saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa. Em função da resposta conhecer, ou não, em substituição, nos termos do art. 149º, nº 3 do CPTA.


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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 DE FACTO
Na sentença foi fixada a seguinte factualidade, não impugnada, que se reproduz:
1. Em 23/05/2022, foi publicado em Diário da República, n.º 99/2022, II Série, o anúncio de procedimento n.º 6473/2022, constando, entre o mais, o seguinte:
“(…)
Designação da entidade adjudicante: T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, E.M.T., S.A
(…)
2 – OBJETO DO CONTRATO
Designação do contrato: Rede de Agentes de Venda de títulos de transporte comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, E.M.T., S.A
Descrição sucinta do objeto do contrato: Aquisição de serviços com vista a estabelecer e operar uma Rede permanente de Agentes de Vendas que assegure a venda dos títulos de transportes comercializados pela T...
(…)
10 – PRAZO PARA APRESENTAÇÃO DAS PROPOSTAS
Até às 23:59 do 30º dia a contar da data de envio do presente anúncio
(…)
15 – DATA DE ENVIO DO ANÚNCIO PARA PUBLICAÇÃO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA 2022/05/20
(…)”
(cf. documento n.º 1 junto com a petição inicial)

2. Do programa do procedimento consta, entre o mais, o seguinte:
“(…)
Artigo 1.º
Identificação do Procedimento – Objeto do Contrato
O presente procedimento de concurso público com publicidade internacional (“Concurso”) tem por objeto principal a celebração de um contrato de prestação de serviços, com vista a estabelecer e operar uma rede permanente de agentes de vendas que assegure a venda dos títulos de transporte comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, E.M.T., S.A (“T...”), compreendendo os fornecimentos e as prestações conforme definido no Caderno de Encargos e respetivos Anexos.
(…)
Artigo 9.º
Documentos que constituem a proposta
1. A Proposta deve ser constituída pelos seguintes documentos:
(…)
d) Documento do qual conste a indicação do número de Agentes de Venda adicionais que o concorrente propõe integrar na sua Rede de Agentes (…)”
(cf. documento n.º 2 junto com a petição inicial)
3. Do Caderno de Encargos resulta, entre o mais, o seguinte:
“Cláusula 1.ª
Objeto
1. O presente Caderno de Encargos compreende as cláusulas jurídicas e técnicas a incluir no Contrato a celebrar com o Adjudicatário selecionado no âmbito do concurso público com publicidade internacional acima identificado, cujo objeto consiste na aquisição de serviços com vista a estabelecer e a operar uma Rede permanente de Agente de Vendas que assegure a venda dos títulos de transporte comercializados pela T..., compreendendo os fornecimentos e as prestações conforme definido no presente Caderno de Encargos e respetivo Anexos.
2. A T... pretende com a celebração do contrato ter uma Rede de vendas abrangente com um mínimo de 1500 (mil e quinhentos) Agentes de Vendas na área Metropolitana de Lisboa, distribuídos geograficamente em conformidade (…) de forma a mitigar eventuais anomalias ou constrangimentos na venda dos títulos de transporte que comercializa (…)” (cf. caderno de encargos – a fls. 44 do PA a fls. 391-440 do SITAF)
4. A Autora é agente da entidade “Pagagui” (cf. declaração emitida pela “P...i” a fls. 912 do SITAF).

(adita-se nos termos do art. 662º, nº 1 do CPC ex vi art. 140º do CPTA, a seguinte factualidade)

5. Apresentaram-se 9 interessados ao Concurso tendo somente 1 apresentado propostavide PA;

6. No dia 28/11/2022, o Conselho de Administração da Ré deliberou, por unanimidade, a adjudicação da única proposta apresentada –cfr. PA;

7. No dia 14/12/2022, o contrato foi assinado entre a Ré e a Payshop – contestação e PA;

8. A petição inicial da presente acção foi apresentada em 12.12.2022 – consulta SITAF.

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II.2 DE DIREITO

Conforme delimitado em I.1, cumpre em primeiro lugar aferir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa.

Debruçando-nos sobre a acção administrativa urgente de contencioso pré-contratual, por ser a que detém relevo para os presentes autos, a mesma compreende, conforme resulta da conjugação dos artigos 97.º, n.º 1 alínea c), 36.º, n.º 1 alínea c) e 100.º a 103.º, todos do CPTA, a impugnação de actos administrativos e a condenação à prática do acto devido, ambas nos termos do artigo 100.º, n.º 1 do CPTA, e a impugnação de normas regulamentares, nos termos do artigo 103.º do mesmo Código.

É que se antes o contencioso de impugnação do programa concurso e demais documentos conformadores do procedimento pré-contratual não era objecto de regulação própria, padecendo de um regime particularmente insuficiente, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, tal contencioso passa a constar de forma satisfatória no artigo 103.º do CPTA, sob a epígrafe “impugnação dos documentos conformadores do procedimento” - cf. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015).
Defende a Recorrente/Autora que detém legitimidade para impugnar directamente as peças procedimentais, requerendo a apreciação da ilegalidade das normas (artigos 4.º, n.º 3 e 15.º do Programa do Concurso e das cláusulas 1.ª, 3.ª, 4.ª e 35.ª do Caderno de Encargos do concurso público) sem que lhe fosse sequer exigível a participação no procedimento concursal inquinado.
Como alude Marco Caldeira, in “Da legitimidade activa no contencioso pré-contratual – em especial, os pedidos impugnatórios baseados na ilegalidade das peças procedimentais”, in Revista do Ministério Público, ano 34, a impugnação directa das normas procedimentais não constitui a situação mais frequente surgindo antes aquando da impugnação de um acto administrativo (de exclusão da proposta ou de adjudicação a outro concorrente), praticado pela entidade adjudicante e que o interessado entende ser lesivo” (….) p. 287.
Contudo, esse é exactamente o caso ora em apreço, em que a Recorrente/ Autora veio somente impugnar as normas do procedimento indicado no ponto 1 do probatório.
Prevê o artigo 101.º do CPTA, que “[o]s processos do contencioso pré-contratual devem ser intentados no prazo de um mês, por qualquer pessoa ou entidade com legitimidade nos termos gerais, sendo aplicável à contagem do prazo o disposto no n.º 3 do artigo 58.º e nos artigos 59.º e 60.º”.
Já o artigo 103.º, sob a epígrafe “impugnação dos documentos conformadores do procedimento”’, prevê o seguinte:
“1 - Regem-se pelo disposto no presente artigo e no artigo anterior, os processos dirigidos à declaração de ilegalidade de disposições contidas no programa do concurso, no caderno de encargos ou em qualquer outro documento conformador do procedimento de formação de contrato, designadamente com fundamento na ilegalidade das especificações técnicas, económicas ou financeiras que constem desses documentos.
2 - O pedido de declaração de ilegalidade pode ser deduzido por quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa, podendo ser cumulado com o pedido de impugnação de ato administrativo de aplicação das determinações contidas nos referidos documentos.
3 - O pedido de declaração de ilegalidade pode ser deduzido durante a pendência do procedimento a que os documentos em causa se referem, sem prejuízo do ónus da impugnação autónoma dos respetivos atos de aplicação.
4 - O disposto no presente artigo não prejudica a possibilidade da impugnação, nos termos gerais, dos regulamentos que tenham por objeto conformar mais do que um procedimento de formação de contratos.” (d/n).
Assim, para efeitos de aferição do pressuposto processual de legitimidade, enquanto pressuposto específico do interesse em agir neste tipo de acção, ter-se-á de ter em conta a causa de pedir tal como configurada pela autora – a que deve ser tida em conta para este efeito – vide autor Marco Caldeira e obra citados p. 281 e jurisprudência aí mencionada.
Contesta a Recorrente o decidido pelo Tribunal a quo, porquanto, ao contrário do que alude a sentença recorrida, esta não “pretendia (individualmente) candidatar-se ao concurso público em causa”, pois, “É notório que a Autora, na qualidade de agente integrado na rede de agentes da P...i (cfr. facto provado n.º 4) nunca poderia almejar ter arcabouço bastante para providenciar a Rede de Agentes que a Entidade Demandada procura(conclusão 9ª).
Prossegue a Recorrente:
Nessa medida, na qualidade de agente de vendas integrada numa outra Rede de Agentes (a Rede de Agentes da P...i), a Autora vê-se impedida de continuar a prestar o serviço de venda de títulos que, até então, realizava.
Por isto, a Autora e Recorrente tem legitimidade ativa para impugnar o artigo 15.º do Programa do Concurso e do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos na medida em que é diretamente lesada pelo facto de ser impossível a outros operadores, com ou sem redes de agendes de vendas, serem concorrentes no referido concurso. O impedimento, resultante dos requisitos impostos pela Entidade Demandada, da participação de qualquer entidade como concorrente no Concurso Público – por força de preceitos ilegais como o artigo 15.º do Programa do Concurso e do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos – afeta direta e imediatamente a ora Recorrente. É este o interesse que a Autora tem no concurso público em causa – Conclusão 11ª.
Do que se antevê que o interesse invocado pela Recorrente é um interesse indirecto, uma vez que o Operador com a qual detém o contrato, a P...i, não conseguirá atingir o nº de agentes exigidos pelas aludidas normas do concurso. Deixando, assim, a Recorrente de poder continuar a ser um agente (através do seu Operador) da entidade adjudicante.
Ora, o interesse em agir é o pressuposto processual que traduz a necessidade efectiva, em função das concretas circunstâncias, de recorrer à intervenção dos tribunais.
Dito de outro modo, “o interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela” (Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 97).
O interesse em agir, sendo diferente da legitimidade tem, todavia, em comum com este conceito o dever ser aferido objectivamente pela posição alegada pelo autor, que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito. “O autor tem interesse processual se, dos factos apresentados, resulta que necessita da tutela judicial (...)” (autor e obra citada, pág. 99).
De acordo com a previsão genérica do artigo 9.º, n.º 1, do CPTA (de formulação semelhante à do artigo 30.º, n.º 3, do CPC), o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida.
No âmbito da impugnação de actos administrativos confere a lei legitimidade activa a quem é titular de um interesse direto e pessoal, nos termos previstos no artigo 55.º, n.º 1, al. a), do CPTA.
Expande-se, pois, o conceito de legitimidade activa a quem possa não ser titular da relação material controvertida, desde que alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, lesado pelo acto (cf. o acórdão do STA de 25/11/2015, proc. n.º 01131/15, disponível em www.dgsi.pt).
Porém, estamos perante uma acção que visa a declaração de ilegalidade de disposições contidas no programa do concurso, pelo que o respetivo pedido pode ser deduzido por quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa, podendo ser cumulado com o pedido de impugnação de acto administrativo de aplicação das determinações contidas nos referidos documentos, cf. artigo 103.º, n.º 2, do CPTA.
Por aqui se vê que têm legitimidade activa, não apenas quem tenha participado no procedimento pré-contratual, como os potenciais interessados em participar no procedimento que possam ser afectados na sua situação jurídica.
Por conseguinte, o citado art. 103º (n.ºs 2 e 3) do CPTA pressupõe a existência de um prejuízo (lesividade) que in casu inexiste. Pois, como assume a Recorrente, jamais poderia (pretendia) participar no procedimento sub iudice.
Como nos explicitam os Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5ª edição, págs. 872 a 874, em anotação ao art. 103º n.º 2:
“Nos termos do n.º 2, “o pedido de declaração de ilegalidade pode ser deduzido por quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa". Estabelece-se assim, neste domínio, um regime específico de legitimidade ativa, que é mais restritivo que o previsto para a impugnação de atos pré-contratuais, em que funcionam, por remissão do artigo 101. °, os critérios gerais do artigo 55.º (…).
À fa[c]e do regime anterior à revisão de 2015, na ausência de qualquer regra específica de legitimidade ativa, e face à relação de complementaridade existente entre a impugnação de atos pré-contratuais e a impugnação de documentos conformadores do procedimento, parecia dever entender-se que teria legitimidade para impugnar os atos normativos quem pudesse também impugnar os atos administrativos que viessem dar-lhes aplicação. Pelo contrário, o Código torna hoje claro que só têm legitimidade ativa os participantes no procedimento pré-contratual, que possam ser afetados na sua situação jurídica, ao longo do procedimento, pelas disposições em causa, ou os potenciais interessados em participar no procedimento. Para impugnar um documento conformador não é, pois, necessário que o interessado já seja participante no procedimento, por ter apresentado uma proposta - podendo, aliás, dar-se o caso de a ilegalidade de que enferma o documento em causa se concretizar, precisamente, na previsão ilegal da exclusão de concorrentes na posição do interessado.
Trata-se de uma regra de legitimidade que se circunscreve à relação jurídica intersubjetiva, pressupondo um interesse pessoal no resultado do procedimento, pelo que ela está associada a um requisito de lesividade. Está, por conseguinte, excluída a possibilidade de a ação ser proposta com base na mera invocação do interesse geral da legalidade ou de interesses coletivos, ou num interesse em agir que releve apenas no âmbito de uma relação interorgânica”.
O que não ocorre, como se extrai da própria alegação recursiva da Recorrente, ao concluir que, detém legitimidade activa por ser diretamente lesada na qualidade de subcontratante com a existência de previsões como as do artigo 15.º do Programa do Concurso e do n.º 2, da cláusula 1ª, do Caderno de Encargos, que impedem a livre concorrência de quaisquer outros operadores, de entre os quais a P...i, rede na qual a Recorrente se integra na qualidade de agente de vendas – conclusão 13ª.
O que afasta exactamente a sua legitimidade para impugnar as “controversas” normas de procedimento, como nos elucidam os citados Autores Mário Aroso e Carlos Cadilha:
“A restrição compreende-se na medida em que a possibilidade da impugnação direta dos documentos conformadores do procedimento representa um acréscimo de tutela, introduzido por imposição das diretivas comunitárias, dirigido a permitir que o interessado possa atuar por antecipação, reagindo, desde logo, contra as ilegalidades que, à partida, possam constar dos documentos conformadores do procedimento, sem ter de aguardar pela prática de atos concretos de aplicação. Na lógica do sistema, não parece ter, por isso, cabimento permitir a impugnação de disposições contidas nos documentos conformadores do procedimento se estas não forem passíveis de se repercutir diretamente na esfera jurídica do interessado. Dito de outro modo, não parece fazer sentido permitir a antecipação da tutela judiciária através de reação contra tais disposições quando o interessado não participe nem pretenda participar no procedimento e não possa ser prejudicado por qualquer das decisões concretas que, com base nessas disposições, venham a ser adotadas no decurso do mesmo.
Atentemos no discurso fundamentador da sentença recorrida, na parte ora relevante:
“(…) ora, para que a Autora seja considerada parte legítima numa ação de impugnação de documentos conformadores do procedimento, não necessita de ter apresentado, de facto, uma proposta ao procedimento a que os documentos respeitem, bastando, portanto, que tenha interesse em participar no procedimento em causa.
De acordo com Marco Caldeira, in “Revista do Ministério Público”, n.º 134, abril/junho 2013, p. 284. “(…) o que habilita o acesso de um interessado à justiça administrativa para impugnar normas procedimentais não é o facto de aquele ter apresentado candidatura ou proposta no procedimento pré contratual, mas sim o facto de ter sido de algum modo lesado pela aprovação e aplicação dessas normas, mesmo sem participar naquele procedimento” (destacados próprios).
Ora, no caso dos autos, está-se perante um procedimento de concurso público com publicidade internacional que tem por objeto principal a celebração de um contrato de prestação de serviços, com vista a estabelecer e operar uma rede permanente de agentes de vendas que assegure a venda dos títulos de transporte comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, E.M.T., S.A (“T...”).
Conforme decorre do anúncio do procedimento, o objeto do concurso consiste no seguinte: “Designação do contrato: Rede de Agentes de Venda de títulos de transporte comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, E.M.T., S.A Descrição sucinta do objeto do contrato: Aquisição de serviços com vista a estabelecer e operar uma Rede permanente de Agentes de Vendas que assegure a venda dos títulos de transportes comercializados pela T...” (cf. facto provado 1). Ou seja, com o procedimento, em causa, a Entidade Demandada, ora entidade adjudicante pretende contratar uma entidade que possua uma rede de agentes de venda de títulos de transportes, não pretendendo, apenas, e como naturalmente se entende, celebrar um contrato com apenas uma entidade que seja agente de uma entidade que possua essa rede de agentes.
Nesta senda, veja-se que o Programa do Procedimento consagra expressamente como elemento que deve ser junto com a proposta “documento do qual conste a indicação do número de Agentes de Venda adicionais que o concorrente propõe integrar na sua Rede de Agentes” (destacados próprios).
Por sua vez, a cláusula 1.ª, n.º 2 do Caderno de Encargos estabelece que: “A T... pretende com a celebração do contrato ter uma Rede de vendas abrangente com um mínimo de 1500 (mil e quinhentos) Agentes de Vendas na área Metropolitana de Lisboa, distribuídos geograficamente em conformidade (…) de forma a mitigar eventuais anomalias ou constrangimentos na venda dos títulos de transporte que comercializa” (destacados próprios) Desta feita, conjugados estes elementos, constata-se que a Autora, ao integrar a rede de agentes da “P...i”, conforme alega e demonstra com a declaração junta aos autos, não conseguiria dar cumprimento ao objeto do presente concurso.
No fundo, a Autora, não constituindo uma Rede Agentes de Venda de títulos de transporte comercializados pela T... – Transportes Metropolitanos de Lisboa, E.M.T., S.A, não é atingida por qualquer ilegalidade constante dos documentos conformadores do procedimento. Aliás, conforme referido por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha já supracitado, a legitimidade para impugnar documentos conformadores do procedimento requer um interesse pessoal no resultado do procedimento, estando associado a um requisito de lesividade. Desta feita, e na senda da mesma doutrina, com a qual se concorda na íntegra, não tem sentido permitir a impugnação de disposições contidas nos documentos conformadores do procedimento, quando estas, na verdade, não se repercutem na esfera do jurídica do interessado, como configura o caso dos autos.
Na verdade, a Autora, para além de não se ter constituído como interessada no procedimento, não sendo, pois, concorrente, também não é prejudicada por qualquer das decisões concretas que, com base nas disposições que impugna do Programa do Procedimento e do Caderno de Encargos, venham a ser adotadas no seu decurso.
Aqui chegados, não se vislumbra, qual o interesse pessoal (pressuposto da regra da legitimidade prevista no n.º 2 do artigo 103.º do CPTA), que a Autora pode retirar no resultado do procedimento, pelo que a exceção de ilegitimidade ativa deduzida pela Entidade Demandada terá de proceder. Atento o exposto, procede a exceção de ilegitimidade ativa deduzida”.

Do antes exposto, o assim decidido será de confirmar, na medida em que a Recorrente jamais poderia ser a adjudicatária, independentemente do nº de agentes que a Recorrida entendesse, de acordo com a sua margem de livre decisão, como necessário para abranger o maior número de utentes dos seus serviços. Uma vez que não é uma Operadora, mas agente, como consta do ponto 4 do probatório. Diferente seria se a impugnante fosse a P...i.
Acresce que, de acordo com o disposto no art. 103º, nº 3, do CPTA, o pedido de declaração de ilegalidade de disposições contidas - nomeadamente - no caderno de encargos, pode ser deduzido por quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa, e pode ser cumulado com o pedido de impugnação de acto administrativo de aplicação dessas disposições, podendo esse pedido ser “deduzido durante a pendência” do procedimento a que - no caso - se refere.
É claro, assim, que esta “legitimidade” é concedida mesmo àqueles que tenham mero interesse em participar no procedimento e que, por conseguinte, nele ainda não participaram, mas trata-se, tal como decorre da norma, de uma legitimidade temporária. Isto é, trata-se de uma legitimidade que pode ser exercida durante a pendência do procedimento.

A Recorrente sempre deveria ter vindo impugnar o Programa do Procedimento ou o caderno de encargos, durante a pendência desse mesmo procedimento – tanto mais que na p.i. indica os períodos e prorrogações para apresentação de propostas. Sendo certo que, o procedimento não termina com a assinatura do contrato, sendo este um acto consequente do fim do procedimento (adjudicação / escolha do contratante).
Ora, no caso sub judice a presente acção foi intentada quando já tinha sido praticado o acto de adjudicação (cfr. pontos 6 e 8 do probatório), pelo que nunca seria aplicável o art. 103º, do CPTA, que consagra um conceito de interesse em agir excepcional e temporário.
Na verdade, considerar admissível a impugnação a todo o tempo das disposições contidas nas peças do procedimento impediria que se estabilizasse a relação pré-contratual, contrariando a ratio da imposição de um prazo para impugnação directa de disposições contidas nas peças do procedimento.
Ora, atento o estatuído no n.º 3 do artigo 103.º do CPTA e à própria natureza antecipatória da impugnação que regula, não podem tais peças procedimentais ser impugnadas após a prática do concreto acto que assenta nos mesmos, dando-lhes execução.
Como confirmam os já citados Professor Aroso de Almeida e o Conselheiro Carlos Cadilha, “não tem qualquer consequência prática a apresentação de um pedido de impugnação dessas disposições quando ... já tenham sido praticados os atos procedimentais que poderiam afetar a posição jurídica do interessado” (cf. obra citada, p. 875).
Mantendo-se a decisão de absolvição da instância, por procedência da excepção dilatória de ilegitimidade activa da Recorrente, fica prejudicado o conhecimento das demais questões sobretudo relativas ao mérito.
De todo o exposto, a sentença recorrida tem de ser confirmada, negando-se provimento ao presente recurso.


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III. Decisão

Em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes desta Subsecção, em negar provimento ao Recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da Recorrente (Autora) - cf. arts. 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2, do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA.

R.N.
Lisboa, 12 de Outubro de 2023


Ana Cristina Lameira (relatora)

Paula de Ferreirinha Loureiro

Catarina Gonçalves Jarmela