Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:767/05.0BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:10/19/2023
Relator:VITAL LOPES
Descritores:IVA
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
LIQUIDAÇÃO COM BASE NA DECLARAÇÃO CORRIGIDA DE INEXACTIDÕES E OMISSÕES
PRONÚNCIA INDEVIDA
RECLAMAÇÃO GRACIOSA
RELEVÂNCIA DOS FUNDAMENTOS NOVOS ADUZIDOS
REQUISITOS FORMAIS DAS FACTURAS
DIREITO À DEDUÇÃO
ÓNUS DE PROVA
PRINCÍPIO DA OFICIOSIDADE
Sumário:I - Liquidação oficiosa é aquela que é efectuada pela administração tributária quando falte a entrega da declaração (art.º 83.º e 83.º-A, do CIVA);
II - Não constitui liquidação oficiosa a que é efectuada com base na declaração do contribuinte, ainda que corrigida das inexactidões ou omissões nela praticadas e que tais correcções venham a originar uma liquidação adicional (art.º 82.º do CIVA e 59/7 do CPPT).
III - O contribuinte pode apresentar declarações de substituição até ao termo do prazo de reclamação graciosa ou impugnação judicial, para correcção de erros ou omissões das declarações primárias, a si imputáveis, de que resulte imposto de montante inferior ao liquidado com base na declaração a substituir (art.º 59.º, n.º 3, alínea b), subalínea II, do CPPT).
IV - Para se aferir da existência de erro nos pressupostos da liquidação, importa atender não apenas ao conteúdo da fundamentação vertida no procedimento de inspecção tributária que originou a liquidação, mas também à fundamentação acrescida aduzida pela AT no procedimento de reclamação graciosa apresentada pelo contribuinte com vista à anulação dessa liquidação.
V - É sobre o contribuinte que recai o ónus de prova dos factos constitutivos do direito à dedução que se arroga (art.º 74/1 da LGT e 19.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2; 20.º, n.º 1 alínea a) e 21.º, n.º 1, alíneas a) e d), todos do Cód. do IVA), quando a AT questione fundadamente esse direito.
VI - Em tal caso, propondo-se o contribuinte na impugnação da liquidação demonstrar que os requisitos formais do art.º 35/5 do CIVA em falta em determinadas facturas da sua contabilidade não prejudicam o controlo da legalidade e dos valores da base tributável; e/ou que determinadas facturas respeitam a bens adquiridos e efectivamente utilizados na realização de filmes publicitários, que constitui a sua principal actividade económica; e/ou que, não obstante a actividade hoteleira de alguns dos emitentes as despesas facturadas não são respeitantes a alojamento e alimentação, há que dar-lhe oportunidade de produzir prova sobre os factos que alega.
VII - Se a sentença prescindiu da produção da prova testemunhal requerida e não procedeu à análise exaustiva das centenas de documentos de despesa juntos pela impugnante, eventualmente com recurso à colaboração das partes prevista no art.º 7.º, n.º 2 do CPC, impõe-se anular a sentença e ordenar a baixa dos autos ao tribunal recorrido para diligências de prova omitidas e prolação de nova decisão que tenha em conta o resultado das mesmas.
Votação:DECLARAÇÃO DE VOTO
Indicações Eventuais:Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO

O Exmo. Representante da Fazenda Pública recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial apresentada por E… PRODUÇÃO DE FILMES E AUDIOVISUAIS, UNIPESSOAL, LDA., visando as liquidações de IVA referenciadas aos anos de 1999, 2000 e 2001 e respectivos juros compensatórios, alegando para tanto conclusivamente:
«























».

Contra-alegações, não foram apresentadas.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer concluindo que o recurso merece provimento na esteira do parecer do Ministério Público em 1.ª instância e aderindo às alegações de recurso da Administração Tributária.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, analisadas as conclusões da alegação, importará verificar: (i) se a sentença incorreu em nulidade por pronúncia indevida quanto à questão da validade formal das liquidações adicionais, nunca invocada pela impugnante e consequente violação do princípio do dispositivo plasmado no art.º 5.º do CPC; (ii) se a sentença incorreu nos apontados erros de facto, por incorrecta apreciação da prova, por omissão de factos relevantes ao probatório e por erro nas ilações extraídas dos factos vertidos nos pontos F), I) e Q) do probatório; (iii) se a fundamentação aduzida em procedimento de reclamação graciosa pode sanar a insuficiente fundamentação das liquidações dela objecto; (iv) se a declaração de substituição foi apresentada fora do prazo legal; (v) se ocorre preterição do princípio do inquisitório, devendo os autos baixar à 1.ª instância para apreciação e valoração da prova dos autos em vista dos fundamentos aduzidos pela Administração tributária na reclamação graciosa e indevidamente desconsiderados na sentença como fundamentos “a posteriori”.

***

III. FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS

Na sentença recorrida deixou-se factualmente consignado:
«








































Ao abrigo do disposto no art.º 662/1 do CPC, altera-se a decisão de facto, nos termos seguintes:
*

Passa a constar do ponto K), o seguinte:

K) Em 10/02/2003 foram enviadas as seguintes liquidações de IVA e juros compensatórios:


*

Adita-se um ponto H-1) ao probatório, com a seguinte redacção:

H-1) Consta ainda do relatório final de inspecção tributária, de 27/12/2002, o que se destaca:





- Cf. fls.38 a 51 do apenso de reclamação graciosa
*

Passa a constar do ponto Q) do probatório, o seguinte:

Q) A Impugnante apresentou, em reclamação graciosa, documentos de despesa que não foram aceites pela Autoridade Tributária porque “a designação de bens constante das facturas não cumpre o art. 35º do CIVA” ou “são duplicados de facturas”cf. docs.18 a 95, juntos com a p.i.

B.DE DIREITO

Estabilizado o probatório no sentido propugnado pelo ora Recorrente, avancemos na apreciação dos demais vícios imputados à sentença.

Pretende o Recorrente que a sentença se encontra inquinada de nulidade por excesso de pronúncia, vício expressamente previsto no art.º 615/1 alínea d) do CPC e 125/1 do CPPT, uma vez que entrou na apreciação do vício formal das liquidações por insuficiente fundamentação sem que tal tenha sido invocado pela impugnante.

Todavia, não fazemos a mesma leitura. O que se passa é que para saber se ocorriam nas liquidações impugnadas os apontados vícios substantivos de violação de lei por erro nos pressupostos, a sentença teve de definir primeiro onde radicava a fonte relevante da fundamentação dos actos, se apenas no relatório que culminou a acção inspectiva na origem das liquidações impugnadas, ou também no procedimento de reclamação graciosa visando a sua anulação.

E concluiu (bem ou mal, não interessa para este efeito), que a única fonte relevante da fundamentação dos actos impugnados radicava no relatório final de inspecção tributária, constituindo a acrescida fundamentação aduzida na decisão de reclamação graciosa fundamentação “a posteriori”, a desconsiderar no juízo sobre a validade substantiva das liquidações.

Ora, atente-se nesta passagem da sentença:
«A exigência contida na al. b) [do art.º 35º nº 5 do CIVA] estende-se não só à indicação dos serviços prestados, mas também à especificação concreta dos serviços, o local da prestação, a data, tempo de realização, etc. de modo a permitir um efectivo controlo pela Administração Tributária (…).
Não obstante, existe sempre um dever da Administração Tributária de conceder a dedução do IVA se os requisitos substantivos estiverem preenchidos, ainda que o contribuinte tenha negligenciado certos requisitos formais (…).
Ainda que em sede de reclamação graciosa, a Administração Tributária indicasse tais elementos, essa fundamentação já seria “extemporânea” às correcções efectuadas, pelo que, no contencioso de mera legalidade, como é o tributário, o tribunal só pode formular o seu juízo sobre a validade do acto à luz da fundamentação contextual integrante do próprio acto (…).
O que significa que os argumentos aduzidos pela Administração Tributária em sede de reclamação graciosa que não se integrem na fundamentação que conduziu à correcção, são de todo irrelevantes».

Não houve, pois, qualquer pronúncia sobre a validade formal das liquidações impugnadas, mas apenas e só uma delimitação da fonte da fundamentação a considerar para se ajuizar da validade substantiva das liquidações.

Improcede, pelas indicadas razões, a apontada nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
Questão diversa consiste em saber se, contrariamente ao decidido, a acrescida fundamentação aduzida pela AT em sede de reclamação graciosa aproveita à impugnante.

Sobre esta matéria, ainda recentemente se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo no seu ac. de 02/08/2023, tirado no proc.º 0373/17.6BEPNF, tendo concluído, sem bem o lemos, que aproveita ao impugnante a fundamentação aduzida no procedimento de reclamação graciosa da liquidação.

Como nesse douto aresto se deixou consignado, na parte transponível para os autos,
«
Estando assente que a fundamentação contemporânea do ato de liquidação não era suficiente para esclarecer a inclusão do referido valor a título de rendimento global, passemos à análise da segunda questão colocada.
Que, na essência, consiste em saber se o procedimento de segundo grau (no caso, a reclamação graciosa) pode servir para a convalidação do ato de liquidação aduzindo-lha a fundamentação em falta.
Sobre esta matéria se confrontaram, no passado, duas posições antagónicas: a posição segundo a qual o facto de o sujeito passivo lançar mão do procedimento gracioso de segundo grau, não pode servir para a degradação em não essenciais dos vícios procedimentais da liquidação, retirando-lhes a sua capacidade invalidante; e a posição segundo a qual os meios de impugnação administrativa da liquidação (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) podem servir para a convalidação do ato, expurgando-o do vício forma de que padeça antes de estar concluída a atividade administrativa.
Prevaleceu por último a segunda posição como decorre do acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 26 de setembro de 2018, tirado no processo n.º 01506/17.8BALSB. Embora estivesse aí em causa a preterição de outra formalidade do ato de liquidação (no caso, a falta da audiência prévia à liquidação), a argumentação aí desenvolvida é transponível para os casos em que tenha sido preterido o dever de fundamentação do ato.
Assim, a preterição do dever formal de fundamentação do ato de liquidação não tem efeitos invalidantes (cfr. o n.º 5 do artigo 163.º do atual Código de Procedimento Administrativo) se, na decisão da reclamação graciosa desse ato lhe for aduzida a fundamentação do ato que permita a sua convalidação e por ter sido então, atingida a finalidade última visada com a concessão daquele direito, que é a de assegurar o exercício de defesa contenciosa contra os seus fundamentos.
O que sucede porque a decisão administrativa final acaba por ser o ato de segundo grau, devendo ser em relação a este que passará a aferir-se se o ato se encontra ou não devidamente fundamentado(fim de cit.).

Concordando integralmente com os fundamentos e conclusões do douto acórdão, é manifesto que a sentença incorreu em erro de julgamento ao concluir que a acrescida fundamentação aduzida em procedimento de reclamação graciosa das liquidações de IVA impugnadas, não aproveitava à impugnante por não ser contemporânea dessas mesmas liquidações.

O acervo da fundamentação integra não só a que consta do acto primário, mas também a aduzida no acto de segundo grau.
E, neste modo de ver, importará ajuizar dos vícios substantivos das liquidações impugnadas com base na globalidade da fundamentação que transparece quer do anterior relatório final de inspecção tributária, quer da posterior decisão de reclamação graciosa.

Prosseguindo, a primeira questão que importa resolver consiste em indagar do prazo legal de apresentação da declaração de substituição.

Com se alcança do probatório e dos autos, no âmbito de um procedimento de análise interna, a AT relatou (cf. relatório de conclusões, a fls.40 do apenso de reclamação), nomeadamente, o seguinte:
«
12. O sujeito passivo não efectuou a liquidação das aquisições de serviços mencionadas no anexo I, contrariando o disposto na alínea b) do n.º 8 do artigo 6.º do CIVA, pelo que é necessário proceder à correspondente correcção.
13. De referir que alguns dos documentos de suporte emitidos por prestadores de serviços não domiciliados em território nacional, mencionam um valor global correspondente a diversos serviços prestados (p.e., equipa técnica, pós-produção, viagens – kms, alimentação), sendo que o imposto relativo a alguns daqueles serviços (viagens, alimentação), não conferem direito à dedução nos termos do artigo 21.º do CIVA.
14. Assim, nem todo o imposto que deveria ter sido autoliquidado pelo sujeito passivo de imposto (alínea a) do n.º 1 do artigo2.º do CIVA) e mencionado nos campos 3 e 4 das correspondentes DP’s, é passível de dedução, por se encontrar abrangido pelo disposto no n.º 1 do artigo 21.º do CIVA.
15. Mencionamos ainda que o s.p. procedeu à liquidação do imposto relacionado com a aquisição de alguns serviços, mencionados na al. b) do n.º 8 do artigo 6.º do CIVA e à correspondente dedução. Para além de também se aplicar o indicado nos pontos 13. e 14., o s.p. incluiu estas aquisições de serviços nos campos 10 e 11 das DP’s, em lugar de ter incluído nos campos 3 e 4, dado que aqueles campos apenas se utilizam para a aquisição intracomunitária de bens e nunca serviços.
16. Assim, solicita-se ao s.p. o envio de declarações de substituição, para os serviços competentes, para os períodos em causa, inscrevendo os valores correspondentes às prestações de serviços nos campos 3 e 4 e enviando-nos, aquando do exercício do direito de audição, cópia das referidas declarações (…)».

Da decisão de reclamação graciosa, consta nomeadamente e, entre o mais, o seguinte (consta de fls.712 dos autos):
«
6.2.6. – Solicitado ao s.p., por aqueles serviços [de inspecção tributária], a remessa das respectivas declarações de substituição (…), a ora Reclamante apenas regularizou em 25/07/2003, posteriormente, quer à conclusão do Relatório em causa, quer à emissão das liquidações ora reclamadas.
(…)
6.2.8. – De acordo com o estipulado no n.º 7 do art.º 59.º do CPPT, sempre que é detectada pela administração tributária uma situação em que o s.p. não declarou, parcial ou totalmente, factos tributários, é instaurado oficiosamente um procedimento para a liquidação do tributo que se mostrar devido, e,
6.2.9. – neste caso, a declaração de substituição só impede a liquidação com base na declaração inicial se for apresentada antes da liquidação, pois caso contrário, o contribuinte só poderá utilizar o mecanismo do pedido de restituição a mais liquidado por erro a si imputável;
6.2.10. – Assim, é de indeferir a pretensão do contribuinte, no sentido da anulação da liquidação no montante de € 21.768,85 e respeitante a correcções constantes do citado anexo I, uma vez que as declarações de substituição mod. C foram remetidas após o prazo legal da sua apresentação.».

Na redacção da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, dispunha o art.º 59.º do CPPT:

«Artigo 59.º
Início do procedimento
1 - O procedimento de liquidação instaura-se com as declarações dos contribuintes, ou, na falta ou vício destas, com base em todos os elementos de que disponha ou venha a obter a entidade competente.
2 - O apuramento da matéria tributável far-se-á com base nas declarações dos contribuintes, desde que estes as apresentem nos termos previstos na lei e forneçam à administração tributária os elementos indispensáveis à verificação da sua situação tributária.
3 - Em caso de erro de facto ou de direito nas declarações dos contribuintes, estas podem ser substituídas:
a) Seja qual for a situação da declaração a substituir, se ainda decorrer o prazo legal da respectiva entrega;
b) Sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional que ao caso couber, quando desta declaração resultar imposto superior ou reembolso inferior ao anteriormente apurado, nos seguintes prazos:
I) Nos 30 dias seguintes ao termo do prazo legal, seja qual for a situação da declaração a substituir;
II) Até ao termo do prazo legal de reclamação graciosa ou impugnação judicial do acto de liquidação, para a correcção de erros ou omissões imputáveis aos sujeitos passivos de que resulte imposto de montante inferior ao liquidado com base na declaração apresentada;
III) Até 60 dias antes do termo do prazo de caducidade, para a correcção de erros imputáveis aos sujeitos passivos de que resulte imposto superior ao anteriormente liquidado.
4 - Para efeitos de aplicação do disposto na subalínea II) da alínea b) do número anterior, a declaração de substituição deve ser apresentada no serviço local da área do domicílio fiscal do sujeito passivo.
5 - Nos casos em que os erros ou omissões a corrigir decorram de divergência entre o contribuinte e o serviço na qualificação de actos, factos ou documentos invocados em declaração de substituição apresentada no prazo legal para reclamação graciosa, com relevância para a liquidação do imposto ou de fundada dúvida sobre a existência dos referidos actos, factos ou documentos, o chefe de finanças deve convolar a declaração de substituição em reclamação graciosa da liquidação, notificando da decisão o sujeito passivo.
6 - Da apresentação das declarações de substituição não pode resultar a ampliação dos prazos de reclamação graciosa, impugnação judicial ou revisão do acto tributário, que seriam aplicáveis caso não tivessem sido apresentadas.
7 - Sempre que a entidade competente tome conhecimento de factos tributários não declarados pelo sujeito passivo e do suporte probatório necessário, o procedimento de liquidação é instaurado oficiosamente pelos competentes serviços.».

Pretende a impugnante e na mesma linha decidiu a sentença, que a situação descrita, de entrega da declaração de substituição apenas no seguimento da liquidação, mas dentro do prazo de reclamação graciosa, encontra subsunção no n.º 3 alínea b), subalínea II), do citado art.º 59.º do CPPT.

E, a nosso ver, a sentença não merece reparo ao ter acolhido a posição da impugnante.

Com efeito, quando naquela subalínea II) se menciona “…imposto de montante inferior ao liquidado com base na declaração apresentada”, ficam excluídas da sua previsão, numa interpretação meramente declarativa, as situações de imposto resultante de liquidação oficiosa.

Mas a liquidação oficiosa não se confunde com a liquidação com base na declaração corrigida oficiosamente das inexactidões ou omissões nela praticadas, a que se reconduz a situação relatada de se ter incluído na declaração primária aquisições de serviços nos campos 10 e 11 da declaração periódica (destinado à aquisição intracomunitária de bens) em lugar de as ter incluído nos campos 3 e 4, de não se ter efectuado na declaração autoliquidação de imposto relativamente a aquisições intracomunitárias subsumíveis no art.º 6.º, n.º 8 alínea b), do CIVA, ou de incorrecções nas deduções.

As situações de liquidação oficiosa de IVA, estão, ou estavam à data, previstas nos artigos 83.º e 83.º-A do respectivo Código e supõem o incumprimento da obrigação declarativa (quando falte a declaração), a que se não reconduz a situação relatada, de apresentação da declaração periódica com inexactidões ou omissões, a que se referia o art.º 82.º do CIVA, cuja redacção corresponde ao actual art.º 87.º:
«Artigo 82.º
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 84.º, o chefe da repartição de finanças procederá à rectificação das declarações dos sujeitos passivos quando fundamentalmente considere que nelas figura um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando-se adicionalmente a diferença.

2 - As inexactidões ou omissões praticadas nas declarações podem resultar directamente do seu conteúdo, do confronto com declarações de substituição apresentadas para o mesmo período ou respeitantes a períodos de imposto anteriores, ou ainda com outros elementos de que se disponha, designadamente os relativos a IRS, IRC ou informações recebidas no âmbito da cooperação administrativa comunitária e da assistência mútua.

3 - As inexactidões ou omissões podem igualmente ser constatadas em visita de fiscalização efectuada nas instalações do sujeito passivo, através de exame dos seus elementos de escrita, bem como da verificação das existências físicas do estabelecimento.

4 - Se for demonstrado, sem margem para dúvidas, que foram praticadas omissões ou inexactidões no registo e na declaração a que se referem, respectivamente, as alíneas a) do n.º 2 do artigo 65.º e c) do n.º 1 do artigo 67.º, procede-se à tributação do ano em causa com base nas operações que o sujeito passivo presumivelmente efectuou, sem ter em conta o disposto no n.º 1 do artigo 60.º.
5 - Quando as liquidações adicionais respeitem a aquisições intracomunitárias de bens não mencionadas pelo sujeito passivo nas suas declarações periódicas de imposto ou a transmissões de bens que os sujeitos passivos considerem indevidamente como transmissões intracomunitárias isentas ao abrigo do artigo 14.º do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias, considera-se, na falta de elementos que permitam determinar a taxa aplicável, que as operações são sujeitas à taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º, sem prejuízo de a liquidação ficar sem efeito se o sujeito passivo proceder à regularização da sua situação tributária, ilidir a presunção ou demonstrar que a falta não lhe é imputável.

6 - A adopção por parte do sujeito passivo, no prazo de 30 dias a contar da data da notificação a que se refere o artigo 27.º, de um dos procedimentos previstos na parte final do número anterior tem efeitos suspensivos.».

De acordo com o art.º 83/1 do CIVA, «Se a declaração periódica prevista no artigo 40.º não for apresentada, a Direcção de Serviços de Cobrança do IVA procederá à liquidação oficiosa do imposto, com base nos elementos de que disponha».

No mesmo sentido, dispõe o art.º 83.º-A/1, que «Sem prejuízo do disposto no artigo 83.º, o chefe da repartição de finanças competente poderá proceder também à liquidação oficiosa do imposto que se mostrar devido, quando o sujeito passivo não tiver apresentado a declaração periódica a que estava obrigado nos termos deste Código».

Restringidos os casos de liquidação oficiosa às situações em que falte a declaração, nada obsta à entrega da declaração de substituição, dentro do prazo de reclamação graciosa, para correcção de erros e omissões (praticados na declaração a substituir e constatados no procedimento de análise interna), imputáveis ao sujeito passivo de que resulte imposto inferior ao liquidado, ainda que tenha havido lugar a liquidação adicional em procedimento instaurado oficiosamente por factos tributários omitidos à declaração (art.º 59/7 do CPPT).

Assim, a decisão da AT de não aceitar a declaração de substituição entregue pelo sujeito passivo, no prazo de reclamação graciosa, para correcção das inexactidões praticadas na declaração primária enferma do vício de violação de lei por erro nos pressupostos, sendo de anular as liquidações impugnadas na parte relativa a “imposto não autoliquidado pelo sujeito passivo”, no montante de 21.768,85€ (cf. correcções do anexo I ao RIT, fls.44 do apenso de reclamação).

Improcede este segmento do recurso, não tendo a sentença recorrida, que no mesmo sentido decidiu, incorrido no apontado erro de julgamento.

Passando à apreciação da legalidade das deduções não aceites, constantes do anexo II ao RIT, vejamos.

Consta do n.º 17 do RIT (cf. vol. I, fls.40, do apenso de reclamação) o que está transcrito no ponto H) do probatório, ou seja, a motivação em sede inspectiva das correcções das deduções, que deve ser lida e apreendida em conjugação com o anexo II ao RIT, como de resto, resulta literalmente do referido n.º 17.

Ali se refere:
a) documentos de suporte das deduções que “não se encontram em forma legal, de acordo com o preconizado no n.º 5 do art.º 35.º do CIVA, pelo que contrariam o estipulado no n.º 2 do art.º 19.º do CIVA”;
b) “o imposto mencionado não confere direito à dedução por contrariar a alínea a) do n.º 1 do art.º 20.º do CIVA”;
c) a dedução efectuada “refere-se a despesas com viaturas de turismo, pelo que o imposto mencionado nos documentos de suporte se encontra excluído do direito à dedução nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 21.º do CIVA”;
d) a dedução efectuada “refere-se a despesas de alojamento e alimentação e bebidas, pelo que o imposto mencionado nos documentos de suporte se encontra excluído do direito à dedução nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º21.º do CIVA”;
e) o s.p. “deduziu indevidamente imposto, mencionado em facturas ou documentos equivalentes emitidos por fornecedores inexistentes, inválidos ou cessados, por se aplicar a parte final do n.º 11 do art.º 22.º do CIVA”.

No anexo II estão identificados os documentos de despesa questionados e a irregularidade constatada.

No procedimento de reclamação graciosa, foi aceite a dedutibilidade do IVA mencionado em sete das facturas antes desconsideradas pela inspecção tributária por falta de requisitos determinados no art.º 35/5 do CIVA por, entretanto, o sujeito passivo ter comprovado “encontrar-se na posse dos originais destes documentos de suporte” e no caso factura correspondente ao doc.74, “constar do mesmo a taxa aplicável” (cf. fls.713 e 721 do vol. II de reclamação graciosa).

Quanto às restantes facturas não aceites com o mesmo fundamento (falta de requisitos do art.º 35/5 do CIVA) foi mantida a posição da inspecção tributária. E relativamente a três das facturas (identificadas como docs.44, 47 e 72, duas das quais a sentença analisa), é indicado o concreto requisito formal em falta.

No mais e com relevância para o tema de que agora conhecemos, é referido na decisão final de reclamação graciosa: «no que concerne aos documentos n.ºs 16 a 89, 90 a 302 e 303 a 305, a Reclamante (…) veio juntar aos autos elementos (…) pretendendo com os mesmos, provar que as aquisições mencionadas nos referidos documentos concorrem efectivamente para a realização de operações tributáveis; porém (…) analisados os elementos em causa, não se vislumbra (…) qualquer conexão destes com os bens mencionados nas facturas em causa e que os mesmos tenham sido utilizados para a realização de operações a que se refere o art.º 21.º do CIVA; também relativamente aos documentos n.ºs 306 e 307, a Reclamante não prova que o imposto suportado e referente àquelas despesas, esteja fora do âmbito de exclusão do direito de dedução consagrado no art.º 21.º, nomeadamente, no n.º 1, alínea d); pelo que, é de se manter as correcções respeitantes a estes documentos» (cf. fls.721, vol. II, do apenso de reclamação).

Impondo-se entrar no conhecimento da questão referente à repartição do ónus probatório em matéria de deduções de imposto (art.º 19.º, n.º 1 alínea a) do CIVA), dispõe com interesse o artigo 74.º, n.º 1, da LGT que “o ónus de prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

Na medida em que se arroga o direito à dedução do IVA suportado em facturas da sua contabilidade, é sobre o contribuinte que, nos termos gerais de direito, recai o ónus de demonstrar os factos constitutivos do direito à dedução que invoca.

Nos termos do n.º2 do art.º 19.º do CIVA, «Só confere direito à dedução o imposto mencionado em facturas e documentos equivalentes passados em forma legal…», ou seja, com os requisitos formais enunciados no, então, art.º 35/5 do mesmo Código.

Por outro lado, dispunha o art.º 20.º, n.º 1 alínea a), do CIVA outro dos fundamentos invocados pela AT para a não aceitação da dedutibilidade do imposto:
«1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:
a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;
b) (…)»

E, com interesse, dispunha o art.º 21.º, n.º 1 alíneas a) e d), do CIVA:
«
1 - Exclui-se, todavia, do direito à dedução o imposto contido nas seguintes despesas:
a) Despesas relativas à aquisição, fabrico ou importação, à locação, à utilização, à transformação e reparação de viaturas de turismo, de barcos de recreio, helicópteros, aviões, motos e motociclos. É considerado viatura de turismo qualquer veículo automóvel, com inclusão do reboque, que, pelo seu tipo de construção e equipamento, não seja destinado unicamente ao transporte de mercadorias ou a uma utilização com carácter agrícola, comercial ou industrial ou que, sendo misto ou de transporte de passageiros, não tenha mais de nove lugares, com inclusão do condutor;
b) (…)
c) (…)
d) Despesas respeitantes a alojamento, alimentação, bebidas e tabacos e despesas de recepção, incluindo as relativas ao acolhimento de pessoas estranhas à empresa e as despesas relativas a imóveis ou parte de imóveis e seu equipamento, destinados principalmente a tais recepções;
e) (…)».

Ora, em todos esses casos relatados de dedução irregular do imposto mencionado em facturas da sua contabilidade, mantidos em reclamação graciosa, a impugnante propôs-se fazer prova nos autos do seu direito à dedução, alegando ou que os documentos questionados contêm os requisitos formais que permitem à AT controlar o montante e a legalidade do exercício do direito à dedução; e/ou respeitam a bens adquiridos utilizados em operações tributáveis, não tendo actuado como consumidor final desses bens; e/ou que determinados documentos de despesa questionados, não se referiam a “despesas de alojamento e alimentação e bebidas”, excluídas do direito à dedução.

Juntou, para o efeito, 307 documentos, 1 cassete vídeo, e arrolou uma testemunha, que não foi ouvida por a Mmª. Juiz a quo ter entendido ser de dispensar a produção da prova testemunhal requerida (cf. despacho de 22/09/2017, a fls.502 dos autos).

Tal como alega o Recorrente, a sentença apenas se pronunciou concretamente sobre a legalidade/ ilegalidade de um número muito reduzido de facturas (correspondentes aos docs. 67, 99, 212 e 416), e isso, se bem interpretamos a sentença, no entendimento de que a AT não cumprira, em sede inspectiva, o ónus de demonstrar os factos concretos que a levaram a não aceitar a dedutibilidade das questionadas facturas, nomeadamente, indicando o requisito formal do n.º 5 do art.º 35.º do CIVA concretamente em falta em cada documento, e/ou o porquê de determinadas facturas, pela natureza dos bens adquiridos/ importados, não concorrerem para a realização de operações sujeitas a imposto e não isentas e/ou por que foram excluídas do direito à dedução.

No entanto, e relembrando o que acima dissemos, a fundamentação das correcções deve merecer leitura integrada do que se contém no relatório de inspecção tributária que originou as liquidações impugnadas e na posterior decisão de reclamação graciosa apresentada pelo contribuinte visando a anulação desses actos tributários.
E assim vistas as coisas, se na decisão de reclamação graciosa se especifica quais os bens adquiridos (fotografia e material fotográfico, televisões, vídeos…) e que os mesmos, atendendo à actividade da reclamante de produção e realização de filmes publicitários, são afinal susceptíveis de concorrer para a realização de operações tributáveis e como tal dedutíveis, mas que os documentos 16 a 89 e 90 a 302 juntos pela reclamante não permitem aferir que os bens adquiridos foram efectivamente utilizados na realização de filmes publicitários; e/ ou que a reclamante não fez prova de que as despesas contidas nos documentos 306 (“Roda de leme”) e 307 (“Hotel Tivoli”) juntos à reclamação, não estão relacionadas com despesas de alojamento, alimentação e bebidas, há que dar à impugnante, como ela pretende, oportunidade de demonstrar factualmente o desacerto das correcções assentes naqueles pressupostos relativamente a todos e cada um dos documentos de despesas não aceites pela AT para efeitos de dedutibilidade do imposto neles mencionado.

Impõe-se, por conseguinte, como de resto é propugnado pelo Recorrente, que os autos baixem à 1.ª instância para que se produza a prova testemunhal requerida em audiência contraditória, sem prejuízo de outra actividade inquisitória julgada útil para o apuramento da verdade relativamente aos factos alegados (art.º 13/1 do CPPT), eventualmente com recurso à colaboração das partes em particular na análise dos documentos de despesa juntos, nos termos do disposto no art.º 7.º, n.º 2, do CPC.

Tudo visto, é de confirmar a sentença recorrida e negar provimento ao recurso na parte relativa a correcções que constam do anexo I ao RIT, respeitantes a “imposto não autoliquidado pelo sujeito passivo”, no montante de 21.768,85€; e conceder provimento ao recurso e anular a sentença recorrida no segmento decisório relativo às correcções constantes do anexo II ao RIT, relativas a “imposto não dedutível”.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
Ø Negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida na parte em que decidiu sobre as correcções do anexo I ao RIT, relativas a imposto não autoliquidado pelo sujeito passivo na declaração;
Ø Conceder provimento ao recurso e anular a sentença recorrida na parte restante, ordenado a baixa dos autos ao tribunal recorrido para que, cumpridas as diligências de prova acima preconizadas e ulteriores trâmites processuais, se profira nova decisão concordante com o resultado dessas mesmas diligências.

Custas devidas pelo Recorrente na medida do decaimento, corresponde à parte do recurso julgado improcedente.

Lisboa, 19 de Outubro de 2023


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Vital Lopes


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Susana Barreto



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Tânia Meireles da Cunha
(com declaração de voto junta)


DECLARAÇÃO DE VOTO:

Voto a decisão, mas não acompanho a fundamentação, quando se afirma, sem reservas, que importará ajuizar dos vícios substantivos das liquidações impugnadas com base na globalidade da fundamentação que transparece quer do relatório final de inspeção tributária, quer da decisão de reclamação graciosa.
No entanto, considero que, no caso em concreto, a fundamentação da reclamação graciosa é de considerar, porquanto a mesma parte da análise de documentos nunca apresentados pela Impugnante se não naquela sede.
Lisboa, 19.10.2023
(Tânia Meireles da Cunha)