Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:182/22.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/23/2023
Relator:LINA COSTA
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
CÂNTICOS RACISTAS
Sumário:I - Para cumprimento do ónus previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 640º do CPC, não basta a referência aos meios de prova juntos aos autos, importando especificar a parte compreendida em cada um desses elementos probatórios que suporta a impugnação efectuada;
II - O disposto no artigo 113º do Regulamento Disciplinar da FPF visa a prevenção e repressão de condutas discriminatórias contra os agentes desportivos;
III - Não resultando da factualidade provada que a Recorrida promoveu, consentiu ou tolerou os cânticos racistas entoados pelos seus adeptos contra um jogador da equipa adversária, não há que manter as sanções em que foi condenada.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em sessão do Tribunal Central Administrativo Sul:

Federação Portuguesa de Futebol, devidamente identificada como Demandada na acção arbitral nº 53/2022, instaurada por B… Futebol Clube-Futebol Sad, veio interpor recurso jurisdicional do acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em 10.11.2022, que julgou procedente o pedido de revogação do Acórdão recorrido que condenou a Demandante pela prática das infracções disciplinares p.e.p pelo artigo 113º do RD da LFPF, na sanção de realização de 2 jogos à porta fechada e de multa de €38 250,00;.
Nas respectivas alegações, a Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem: «
1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 10 de novembro de 2022, que julgou procedente o recurso apresentado peio Clube ora Recorrido, que correu termos sob o n.º 53/2022.
2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitral em revogar o acórdão de 28 de junho de 2022, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, através do qual se confirmou a condenação da Recorrida com 2 (dois) jogos à porta fechada e multa de € 38250 (trinta e oito mil, duzentos e cinquenta euros) nos termos do artigo 113.º do RDLPFP21. Em suma, a Recorrida havia sido sancionada por ter tolerado ou consentido cânticos racistas.
3. A decisão que ora se impugna é passível de censura porquanto existe um erro na matéria de facto dada como provada e erro de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado, conforme se passa a demonstrar.
4. Entendeu o Tribunal a quo dar como não provado o seguinte facto: "5.2 Matéria de Facto dada como não provada: Com relevo para a apreciação e decisão destes autos, não ficou provado que a Demandante tenha tido conhecimento do ocorrido ao minuto 70 do jogo em circunstâncias que lhe permitissem adoptar os comportamentos que lhe seriam exigíveis nesse contexto."
5. Contudo, não existe qualquer sustentação nos autos - cuja prova documental recai sobre o processo disciplinar junto pela Recorrente - que permita concluir que a Recorrida não tenha tido conhecimento dos factos.
6. Em primeiro lugar, não foi contestado pelas partes que a situação ocorrida no minuto 70 foi reportada aos dirigentes da Recorrida na reunião de final de jogo. Tal é, aliás, alegado pela Recorrida na sua peça processual. Pelo que nunca poderia ser dado como provado que a Recorrida não teve conhecimento do ocorrido ao minuto 70 do jogo.
7. Em segundo lugar, nada consta nos autos acerca do repúdio posterior que tais acontecimentos possam ter sido alvo por parte da Recorrida. Ou seja, tendo conhecimento dos cânticos racistas, mesmo no final do jogo, a Recorrida logrou identificar os adeptos que perpetraram tal conduta? Elaborou um comunicado sobre o tema? Adotou medidas preventivas nos jogos seguintes?
8. Nada disto ficou sequer enunciado pela Recorrida, pelo que é inequívoco que a mesma tolerou estes acontecimentos, mesmo que se entenda - o que não se concede, como veremos - que deles não se apercebeu no exato momento em que ocorreram.
9. Por outro lado, cumpre referir que o TAD não fundamenta a inserção do ponto 5.2 na matéria de facto dada como não provada, pelo que não se vislumbra a motivação que levou o Tribunal a fazê-lo, em clara violação do disposto no artigo 607.º, n.º 4 do CPC, aplicável ex vi artigo 61.º da Lei do TAD.
10. O Tribunal não demonstra minimamente-nem, como é bom dever, clara e explicitamente - quais os elementos em que se baseou para dar aqueles factos como não provados.
11. Por fim, este facto terá necessariamente de ser dado como provado.
12. O elenco de factos provados pelo CD resultou quer dos Relatórios Oficiais de jogo que, como se sabe, gozam de presunção de veracidade do seu conteúdo, bem como do Relatório de Policiamento Desportivo, que goza da mesma força probatória, das imagens e sons captados pelo sistema de CCTV, pelo cadastro da Recorrida e, ainda, dos depoimentos obtidos em sede de audiência disciplinar, estando todos estes elementos juntos aos autos disciplinares.
13. Ademais, note-se, a Recorrida não colocou - nunca - verdadeiramente em causa que os cânticos do minuto 70 ocorreram; contesta, isso sim, que tenha tido deles conhecimento atempado. Aliás, isso mesmo vem referir o Tribunal a quo no facto dado como provado no ponto 2: "2. Ao minuto 70 do referido jogo, os adeptos da Demandante, localizados na bancada topo sul, inferior, local exclusivamente reservado a adeptos afetos à sociedade desportiva visitada, identificados com sinais distintivos afetos à Demandante, nomeadamente elementos afetos ao GOA «Panteras Negras», entoaram, durante cerca de 10 segundos, na direção do atleta C…, n.º …, da E… - Futebol, SAD, o som a imitar os macacos (uhuhuhu)"
14. Aliás, o Colégio Arbitral refere mesmo que "Com efeito, comecemos por destacar que não se encontra aqui em discussão se o jogador foi, ou não, alvo de atitudes racistas. Na verdade, tal encontra-se plasmado de forma clara em sede de matéria provada na presente decisão. Com efeito, o jogador C… foi efetivamente alvo de cânticos proferidos pelos adeptos afetos à Demandante a imitar os sons que são produzidos pelos símios, em particular "uh, uh, uh". E não pode estar - nem está - em causa a real censurabilidade, ética e jurídica, destes factos."
15. Ora, tendo dado este facto como provado, não compreendemos por que razão entende o TAD, tendo em conta a demais prova dos autos, dar como não provado o facto elencado em 5.2.
16. No âmbito disciplinar desportivo os relatórios das forças policiais, por serem exarados por "autoridade pública" ou "oficial público", no exercício público das "respetivas funções" (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (cf. artigo 363.º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e seguintes do mesmo Código.
17. Nesse particular, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora» (cf. artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil).
18. Tal valor probatório apenas pode ser afastado com base na sua falsidade (cf. artigo 372.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que, no contexto processual penal e nos termos do artigo 169.º do Código de Processo Penal, se consideram «provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa».
19. Deste modo, também o julgador disciplinar desportivo se encontra, na apreciação da prova, vinculado à especial força probatória que, nos termos apresentados, legalmente é reconhecido ao documento autêntico - em cujo conceito se integra o Relatório de Policiamento Desportivo, elaborado, no caso concreto, pela PSP e respetivos esclarecimentos.
20. Ora, o depoimento prestado pelas testemunhas na audiência disciplinar, bem como os prestados em sede de instrução e, muito em particular, em sede de processo arbitral não põem fundadamente em causa a presunção de veracidade de que beneficiam os factos descritos naquele Relatório e esclarecimentos complementares.
21. Os esclarecimentos adicionais prestados pelo Policiamento do Jogo elucidam que o som a imitar os símios foi entoado por um grupo significativo dos cerca de 200 adeptos que se encontravam na bancada afeta ao GOA da Arguida "Panteras Negras", som este "perfeitamente audível em toda a bancada mas, segundo informação dos dirigentes e delegados de ambas as equipas, não foi percetível junto aos bancos e túnel".
22. Também em audiência, o Sr. Subintendente que elaborou o referido relatório afirmou que os cânticos ocorreram, que foi inclusivamente elaborado auto (NPP 420181/2021} por estes factos e que o Gestor de Segurança da Recorrida tinha sido informado de tais ocorrências.
23. Apesar da alegação, por parte da Recorrida, de que tais sons não foram audíveis por ninguém a si vinculado, é inequívoco que os agentes de forças de segurança não podem, de acordo com as regras do senso comum, ter sido os únicos, em todo o estádio, a percecionar tais cânticos, ademais num Estádio com elevada capacidade que se encontrava com apenas cerca de 2000 adeptos presentes.
24. Os sons que se sucederam durante cerca de 10 segundos não se traduziram nos cânticos habituais de claques, pois é de clara evidência que o responsável pelo policiamento não teria sentido necessidade de os registar no relatório caso não os tivesse percecionado como percecionou: "som a imitar macaco."
25. A passividade da Recorrida relativamente aos acontecimentos verificados ao minuto 70', não pode ser entendida senão como um ato de tolerância perante os graves factos que no momento se verificavam e ao não atuar nesse instante permitiu que o segundo se sucedesse.
26. Por outro lado, a passividade da Recorrida mesmo em momento posterior, é igualmente relevante pois que se teve conhecimento dos factos (graves, como bem assinala o Colégio Arbitral) e face aos mesmos nada fez, de nenhum modo reagiu, está a tolerá-los de forma inequívoca.
27. Face ao exposto, requer-se que seja expurgado do elenco dos factos dados como não provados o ponto 5.2 e inserido no elenco dos factos dados como provados, um ponto 8 com o seguinte teor: "8. A Demandante teve conhecimento do ocorrido ao minuto 70 do jogo não tendo adotado os comportamentos que lhe seriam exigíveis nesse contexto."
28. [sic]
29. A Recorrida foi sancionada pela prática de infração disciplinar p. e p. no artigo 113.º do RDLPFP, o qual refere que "Os clubes que promovam, consintam ou tolerem a exibição de faixas, o cântico de slogans racistas ou, em geral, quaisquer comportamentos que atentem contra a dignidade humana em função da raça, língua, religião ou origem étnica, género ou orientação sexual serão punidos com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de dois e o máximo de cinco jogos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 250 UC e máximo de 1.250 UC".
30. No reverso desta norma, mas com ela relacionados, estão os deveres de agir a todos os intervenientes no espectáculo desportivo, em particular, aos clubes que participam nas competições profissionais de futebol, no sentido de tudo fazerem para que o espetáculo decorra no respeito pela observância de princípios que hoje em dia são de aquisição consolidada, concretamente com vista a incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos especialmente junto dos grupos organizados, e combate a comportamentos racistas e xenófobos, como o que está em causa.
31. Devendo aplicar, desde que tal se mostre necessário, medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto.
32. Tais deveres estão previstos não só nos Regulamentos Federativos e da Liga mas, desde logo, na Lei n.º 39/2009 de 30 de julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 114/2011, de 30/11 e pela Lei n.º 52/2013 de 25/07 pela Lei n.º 113/2019 de 11/09 e pela Lei n.º 92/2021 de 17/12 que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos.
33. O Tribunal a quo dá como provado que os coros racistas (sons a imitar macacos, uhuhuhuh) existiram e por isso foram descritos no Relatório de Policiamento Desportivo.
34. Não é verosímil que ninguém da estrutura funcional da[sic] tenha ouvido tais expressões racistas, essencialmente segundo as regras da experiência comum, da lógica, da razoabilidade e da razão. Isto porque, de acordo com a documentação dos autos, e que não é colocada em crise: i) O coro racista foi feito por cerca de 200 pessoas e pelo tempo de 10 segundos, ii) Por outro lado, o estádio em causa tem uma ótima acústica o que torna perfeitamente audível, incluindo na sala de CCTV onde se encontravam responsáveis da Demandante, qualquer cântico ou coro que seja entoado no estádio, seja de que parte for. iii) O espaço reservado ao CCTV estava de janelas abertas para poderem estar em mais próximo contacto com o que se está a passar no jogo. iv) O estádio contava com 2.094 adeptos presentes para uma capacidade total de 27.365 lugares, ou seja, com cerca de 10% da sua lotação, o que faz com que os sons do público no estádio sejam particularmente altos e melhor percetíveis.
35. Não soçobram dúvidas que a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da ora Recorrente, face aos factos apurados, operou uma correta subsunção no ilícito disciplinar p. e p. pelos artigos 113.º do RDLPFP20, e que tal conduta, para além de típica, se assume como ilícita e culposa, sustentando assim o relevo disciplinar que o órgão disciplinar bem defende, não sendo, pois, merecedora de qualquer censura.
36. Deste modo, andou mal o Tribunal a quo, devendo a decisão arbitral ser revogada e substituída por outra que mantenha a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da ora Recorrente.».

A Recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«Das contra-alegações
A) A Recorrente vem impugnar matéria de facto dada como provada em sede de julgamento realizado no Tribunal a quo.
B) Isto porque como se deslumbra nas alegações da Recorrente, são reportados depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento do Tribunal a quo, sem que para esse efeito respeite o regime legal aplicável, no que toca ao ónus existente a seu cargo, quando impugna uma decisão relativa à matéria de facto.
C) Nesta senda, refere a Recorrente que “Ora, o depoimento prestado pelas testemunhas na audiência disciplinar, bem como os prestados em sede de instrução e, muito em particular, em sede de processo arbitral não põem fundadamente em causa a presunção de veracidade de que beneficiam os factos descritos naquele Relatório e esclarecimentos complementares.”
D) Menciona ainda que, “Também em audiência, o Sr. Subintendente que elaborou o referido relatório afirmou que os cânticos ocorreram, que foi inclusivamente elaborado auto (NPP 420181/2021) por estes factos e que o Gestor de Segurança da Recorrida tinha sido informado de tais ocorrências.
E) Posto isto, de acordo com os artigos 61° LTAD, 140° nº3 CPTA e 640º do C.P.C. quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
F) Posto isto, deve o presente recurso ser rejeitado nas partes supramencionadas.
G) Vem a Recorrente mediante as alegações de recurso interpostas para o presente Tribunal, requerer que seja expurgado do elenco dos factos dados como não provados o supramencionado, e que seja acrescentado no elenco dos factos dados como provados, um ponto 8 com o seguinte teor:
H) 8. A Demandante teve conhecimento do ocorrido ao minuto 70 do iono não tendo adotado os comportamentos que lhe seriam exigíveis nesse contexto.”
í) Ora sucede que tal pretensão por parte da Recorrente, não passa de uma tentativa de dissuadir tudo o que por esta foi erradamente interpretado e praticado em sede de procedimento disciplinar, contra a recorrida.
d) Bem como uma tentativa de se imiscuir, da responsabilidade que lhe advém face a decisão recorrida, proferida pelo Tribunal a quo.
K) A decisão proferida pelo Tribunal a quo foi a correta, e não padece de qualquer contradição, vicio formal ou material.
L) O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova carreada para os autos, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da sua livre apreciação da prova, seguindo as regras do processo penal (artigo 127.° do CPP) com as garantias daí resultantes para o arguido, nomeadamente o princípio da presunção da inocência e o princípio in dubio oro reo.
M) A livre apreciação da prova resulta, aliás, do disposto no artigo 607.° n.° 5 do CPC. aplicável ex vi art.° 1.° do CPTA e artigo 61.° da LTAD. daí resultando que o tribunal aprecia livremente as provas produzidas decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
N) Foi tido em conta que o julgador deve “tomar em consideração todas as provas produzidas” (artigo 413.° do Código de Processo Civil), ou seja, a prova deve ser apreciada na sua globalidade.
O) O artigo 113° do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, prevê que os clubes que promovam, consintam ou tolerem a exibição de faixas, o cântico de slogans racistas ou, em geral, quaisquer comportamentos que atentem contra a dignidade humana em função da raça. língua, religião ou origem étnica, género ou orientação sexual serão punidos com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de dois e o máximo de cinco jogos e. acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 250 UC e máximo de 1.250 UC.
P) Ora, só pode “consentir” ou “tolerar” uma determinada conduta o agente que a tenha conhecido (ou devesse tê-la conhecido), em tempo de reagir - e tenha decidido não o fazer. E isto não ficou demonstrado.
Q) A demonstração de que a Demandante teve um conhecimento efetivo e atempado da ocorrência dos cânticos em causa, que lhe permitisse ter condições para reagir aos mesmos, é elemento constitutivo do ilícito p. e p. no artigo 113.° RDLPFP. pelo que no presente caso não pode considerar-se preenchida a sua fattispecie.
R) Face a todo o supra exposto, não ficaram provados os elementos necessários ao preenchimento da hipótese do Artigo 113.° RDLPFP subjacente à condenação da Recorrida em sede de processo disciplinar, razão pela qual esta foi revogada.
Da ampliação do âmbito do recurso
A) Foi instaurado processo disciplinar, pelo Conselho de Disciplina da FPF contra a Arguida, ora Recorrida, tendo sido esta acusada da prática de infração disciplinar prevista no artigo 113° do RDLPFP. quanto a comportamentos discriminatórios.
B) Do relatório final da comissão de instrutores da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, notificado a 30 de Dezembro de 2021, após a realização das diligências necessárias de esclarecimento, junto da Policia de Segurança Pública, conclui-se o seguinte, e passando a citar: “Apesar do cântico entoado e das expressões proferidas pelos adeptos da Arguida ser, na nossa perspetiva, inqualificável e ostensivamente grave, porque discriminatórios, não se logra, no entanto, o convencimento, de que haja responsabilidade direta do clube, sob a forma de ação ou omissão, na medida em que os cânticos e expressões supracitadas, nas circunstâncias espácio temporais em que ocorreram, não foram, conforme resulta dos autos, percecionados por nenhum elemento afeto à B... Futebol Clube Futebol, SAP, (incluindo ARD’s em serviço) e, quando tomaram conhecimento, depois de informados pelo Comandante de Policiamento, para além de se mostraram incomodados e desagradados, já nada havia a fazer, pois que os comportamentos já tinham cessado e, nessa medida, não foram nem toleradas pela Arguida, nem se demonstra que esta consentiu que tal comportamento continuasse a ter lugar”.
C) Deste modo, segundo a comissão de instrutores da Liga Portuguesa de Futebol, tornou-se impeditiva a sustentação de uma acusação pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 113.° do RDLPFP.
D) Mais ainda é referido, que a factualidade comprovada na instrução, consubstancia sim o ilícito previsto no artigo 187.° n.° 1, al. a), do RDLPFP, relativo a comportamento incorreto do público, e verificado o mapa de processos sumários, constatou a comissão de instrutores da Liga Portuguesa de Futebol, que a Recorrente iá foi punida pela dita factualidade. em função da subsunção da mesma, ao tipo legal previsto no artigo 187°, nº 1 al. a) do RDLPFP.
E) Destarte, através de uma correta interpretação do direito, a comissão de instrutores da Liga Portuguesa de Futebol, propôs o arquivamento o arquivamento[sic] do presente processo disciplinar, nos termos do disposto artigo 234.°. n.° 1. do RDLPFP.
F) Segundo o entendimento da digníssima Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, não se deslumbravam as condições necessárias, para sufragar a proposta de arquivamento formulada, por divergir quanto à interpretação jurídico-disciplinar, mas também por entender que as diligências probatórias deveriam ir mais além, em relação ao que fora realizado.
G) O Que implicou, mediante despacho proferido a 7 de Janeiro de 2022, indeferir a proposta de arquivamento, e que se ordenasse a Comissão de instrutores da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, a realizar diversas diligências.
H) Da instrução realizada no âmbito deste processo disciplinar, não resulta inequivocamente que por volta do minuto 70 do jogo n.° 10708 (203.01.062), entre a B... FC, SAD e a Estoril Praia, SAD, os adeptos afetos à equipa Recorrente, entoaram sons racistas a imitar o som do macaco dirigido ao jogador visitante n°… C….
I) Isto em função da discrepância existente, entre o Relatório de Policiamento desportivo e os esclarecimentos prestados posteriormente, e os depoimentos constantes nos autos, dos responsáveis pelo campo e segurança da Recorrente e ADR’s presentes no recinto desportivo.
J) A factualidade dada como provada, quanto aos adeptos afetos à equipa Recorrente, em que consta terem entoado sons racistas a imitar o som de macaco dirigido ao jogador visitante n°… C…, sustenta-se única e exclusivamente, numa informação transmitida por um oficial da PSP, ao seu Comandante do Policiamento, em que este afirma perentoriamente que os supostos cânticos racistas não foram percetíveis na sala de CCTV.
K) A lei é taxativa em atribuir aos agentes da autoridade o poder/dever de determinar a retirada de tais adeptos do Estádio, não podendo estes autos atribuir essa responsabilidade aos ARD e ao Gestor de segurança, sob pena dc violação da LCVRD.
L) Para que se pudesse extravasar a responsabilidade individual de cada um dos ARD ‘s e imputá-la ao clube, era necessário que o cluhe. por acão ou omissão, tivesse fomentado diretamente a prática pelos ARD'S dos atos relatados na decisão recorrida.
M) Sucede que a decisão recorrida não discrimina qualquer conduta do clube nesse sentido, ou seja, a decisão recorrida não relata qualquer conduta do clube que, por acão ou omissão, tivesse promovido, consentido ou tolerado a conduta omissiva dos ARDS descrita na decisão.
N) Quanto aos cânticos entoados, perto do minuto 90, dirigidos a R… com as seguintes expressões: “Ó Andrade vai para o caralho: Ó preto filho da puta, vai para o caralho, vai para a tua terra”, é inequívoca a consideração destes atos como reprováveis.
O) Porém, de acordo com a instrução realizada no presente processo disciplinar, por intermédio do Diretor de Campo e do Coordenador de Segurança, em conjunto com a PSP. verificasse que procederam à expulsão do referenciado adepto, do recinto desportivo.
P) Cumprindo estritamente o regulamento RSUEAP, quer no modo de atuação, quer quanto às indicações existentes para a prossecução de medidas de prevenção deste tipo de conduta.
Q) A factualidade existente no processo disciplinar, não consubstancia a prática do ilícito previsto no artigo 113° do RDLPFP, porém, subsidiariamente, mesmo ao considerar que a Recorrente praticou o mencionado ilícito, por ação ou omissão, na determinação da medida da sanção, não foi considerada a circunstância prevista no artigo 52°, nº2 alínea f) do RDLPFP. que milita a favor da Recorrente.
R) Como é de conhecimento da generalidade, a Demandante neste momento encontra-se sob uma situação económico-financeira delicada, fazendo os possíveis para cumprir com as obrigações existentes, conforme o seu Relatório de Contas de 2020/2021, vem a diligenciar no sentido de obter um plano de reestruturação, que lhe permita superar o prejuízo existente de 12.691.188.38€. logo é evidente, que este critério de medida da pena não foi tido em conta, e caso tivesse sido, qualquer outra quantificação da multa a aplicar, cumpriria com as finalidades de prevenção geral e especial perante a Recorrente, em função do artigo 18°, n°2 da CRP.
S) Deve-se mencionar ainda, que foi cumprido pela Recorrente, o disposto no artigo 29°, alínea a) RSUEAP, que estipula como condição de permanência dos espectadores no recinto desportivo, não ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, violentas, de caráter racista ou xenófobo, intolerantes nos espetáculos desportivos, que incitem à violência ou a qualquer outra forma de discriminação, ou que traduzam manifestações de ideologia política.
T) Acresce ainda, que no entendimento da Comissão de instrutores da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, as condutas relatadas, quanto aos atos praticados pelos adeptos afetos à Recorrente, refletem sim o tipo legal previsto no artigo 187°. n°1 al. a) do RDLPFP, enquanto comportamento incorreto do público, não é possível que por factos previamente averiguados e condenados em sede de processo sumário, seja novamente a Recorrente julgada e punida, constituindo uma violação da Constituição da República Portuguesa, em concreto do artigo 29°. n°5. que plasma o princípio fundamental do direito ne bis in idem.
U) E inegável a existência de dúvidas inultrapassáveis quanto à prática dos factos dados como provados, mas também, da subsuncão destes ao tipo legal previsto no artigo 113° RDLPFP implicando a violação do princípio fundamental do direito, in dúbio pro reo, previsto no artigo 32º da CRP.
Termos em que:
a) Deve o presente recurso de decisão proferida pelo Tribunal Arbitral do Desporto ser considerado como não provado e improcedente.
b) Deve ser proferido Acórdão, no sentido de manutenção do Acórdão recorrido:
c) Consequentemente devem ser dados como não provados os seguintes factos:
• Ao minuto 70 do referido jogo, os adeptos da Arguida da B... Futebol Clube - Futebol SAD, localizados na bancada topo sul, inferior, local exclusivamente reservado a adeptos afetos à sociedade desportiva visitada identificados com sinais distintivos afetos à Arguida, nomeadamente elementos afetos ao GOA “Panteras Negras”, entoaram, durante cerca de 10 segundos, na direção do atleta C…, n°…, da E… - Futebol SAD, o som a imitar os macacos (uhuhuhu).
• Não obstante tais comportamentos serem proibidos pelo ordenamento jusdiscipiinar desportivo, a Arguida não fez tudo o que estava ao seu alcance para que se não concretizassem, nomeadamente por não ter diligenciado no sentido de o speaker intervir para dissuadir condutas discriminatórias como as entretanto ocorridas.
• A Arguida ora Recorrida agiu, assim, de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento, ao não cumprir com o seu dever de acautelar, precaver, formar, zelar e incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados, constituía comportamento previsto c punido pelo ordenamento jusdisciplinar desportivo, não se abstendo, porém, de o realizar.
d) E serem dados como provados os seguintes factos:
• No dia 27 de Setembro de 2021. realizou-se no Estádio do Bessa Séc. XXI o jogo identificado com o n° 10708 (203.01.062), disputado entre a B... Futebol Clube, Futebol SAD, e a E… SAD, a contar para a Liga Portugal Bwin;
• Em momento algum, a Arguida ora Recorrida, promoveu, consentiu, ou tolerou qualquer ato racista ou discriminatório;
• Ou seja, a Recorrida não consentiu ou tolerou que os cânticos/insultos racistas acontecessem, pela simples razão, conforme consta também dos autos, pois a Demandante não teve conhecimento efetivo e/ou atempado da ocorrência dos factos em causa, que lhe permitisse encetar uma reação efetiva aos acontecimentos em tempo útil
• Não foram audíveis nem percetíveis quaisquer cânticos de teor racista ou xenófobo.
e) Bem como a Recorrida ser absolvida do processo disciplinar, e não aplicada a medida disciplinar prevista no artigo 113º do RDLPFP.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a decisão recorrida na parte aqui impugnada ser revogada, substituindo-a por outra que determine a improcedência do presente recurso, conforme contra-alegado e concluído, seguindo-se os demais termos legais. assim se fazendo a costumada e boa JUSTIÇA!».

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, não emitiu parecer.

Notificada para o efeito, a Recorrente pronunciou-se sobre a ampliação do âmbito do recurso, proferindo as seguintes conclusões:
«1. Em sede de contra-alegações, veio a Recorrida requerer a ampliação do objeto de Recurso referindo que não devia ter sido dado como provado o ponto 2 da matéria dada como provada no Acórdão recorrido, a saber, que ao minuto 70 do jogo em causa nos autos, os adeptos da Demandante, localizados na bancada topo sul, inferior, local exclusivamente reservado a adeptos afetos à sociedade desportiva visitada, identificados com sinais distintivos afetos à Demandante, nomeadamente elementos afetos ao GOA “Panteras Negras”, entoaram, durante cerca de 10 segundos, na direção do atleta C…, n.º …, da E… – Futebol SAD, o som a imitar os macacos (uhuhuh).
2. Este facto, em concreto, resulta quer dos Relatórios Oficiais de jogo que, como se sabe, gozam de presunção de veracidade do seu conteúdo, bem como do Relatório de Policiamento Desportivo, que goza da mesma força probatória e das imagens e sons captados pelo sistema de CCTV, bem como dos depoimentos obtidos em sede de audiência disciplinar, estando todos estes elementos juntos aos autos disciplinares.
3. Ademais, note-se, a Recorrida não colocou – nunca - verdadeiramente em causa que os cânticos do minuto 70 ocorreram; contesta, isso sim, que tenha tido deles conhecimento atempado. Pelo que não se compreende que apenas agora, em sede de contra alegações de recurso, venha colocar este facto em causa.
4. Aliás, a este respeito, o Colégio Arbitral refere mesmo que “Com efeito, comecemos por destacar que não se encontra aqui em discussão se o jogador foi, ou não, alvo de atitudes racistas. Na verdade, tal encontra-se plasmado de forma clara em sede de matéria provada na presente decisão. Com efeito, o jogador C… foi efetivamente alvo de cânticos proferidos pelos adeptos afetos à Demandante a imitar os sons que são produzidos pelos símios, em particular “uh, uh, uh”. E não pode estar – nem está – em causa a real censurabilidade, ética e jurídica, destes factos.”
5. No âmbito disciplinar desportivo os relatórios das forças policiais, por serem exarados por “autoridade pública” ou “oficial público”, no exercício público das “respetivas funções” (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (cf. artigo 363.º, n.º 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e seguintes do mesmo Código.
6. Nesse particular, tal relatório faz «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora» (cf. artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil).
7. Tal valor probatório apenas pode ser afastado com base na sua falsidade (cf. artigo 372.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que, no contexto processual penal e nos termos do artigo 169.º do Código de Processo Penal, se consideram «provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa».
8. Deste modo, também o julgador disciplinar desportivo se encontra, na apreciação da prova, vinculado à especial força probatória que, nos termos apresentados, legalmente é reconhecido ao documento autêntico – em cujo conceito se integra o Relatório de Policiamento Desportivo, elaborado, no caso concreto, pela PSP e respetivos esclarecimentos.
9. Ora, o depoimento prestado pelas testemunhas na audiência disciplinar, bem como os prestados em sede de instrução e, muito em particular, em sede de processo arbitral não põem fundadamente em causa a presunção de veracidade de que beneficiam os factos descritos naquele Relatório e esclarecimentos complementares.
10. Com efeito, no Relatório de Policiamento e esclarecimentos adicionais se faz clara e direta menção aos adeptos da Recorrida que assumiram por duas vezes comportamentos de cariz racista:
“(i) ao minuto 70, os adeptos localizados na bancada topo sul inferior, local aos mesmos exclusivamente reservado , e afeto aos GOA “Panteras Negras” entoaram, durante cerca de 10 segundos, na direção do atleta C…, jogador n.º … da E… SAD, som a imitar os macacos (uh-uh-huh).
(ii) ao minuto 91, um adepto da Arguida presente na bancada Poente dirigiu ao atleta R… da Estoril Praia SAD as expressões “Ó Andrade vai para o caralho; ó preto filho da puta vai para o caralho vai para a tua terra.”
11. Concretamente, no que respeita ao primeiro momento, os esclarecimentos adicionais prestados pelo Policiamento do Jogo elucidam que o som a imitar os símios foi entoado por um grupo significativo dos cerca de 200 adeptos que se encontravam na bancada afeta ao GOA da Arguida “Panteras Negras”, som este “perfeitamente audível em toda a bancada mas, segundo informação dos dirigentes e delegados de ambas as equipas, não foi percetível junto aos bancos e túnel”.
12. Também em audiência, o Sr. Subintendente que elaborou o referido relatório afirmou que os cânticos ocorreram, que foi inclusivamente elaborado auto (NPP 420181/2021) por estes factos e que o Gestor de Segurança da Recorrida tinha sido informado de tais ocorrências.
13. Apesar da alegação, por parte da Recorrida, de que tais sons não foram audíveis por ninguém a si vinculado, é inequívoco que os agentes de forças de segurança não podem, de acordo com as regras do senso comum, ter sido os únicos, em todo o estádio, a percecionar tais cânticos, ademais num Estádio com elevada capacidade que se encontrava com apenas cerca de 2000 adeptos presentes.
14. Os sons que se sucederam durante cerca de 10 segundos não se traduziram nos cânticos habituais de claques, pois é de clara evidência que o responsável pelo policiamento não teria sentido necessidade de os registar no relatório caso não os tivesse percecionado como percecionou: “som a imitar macaco.”
15. A passividade da Recorrida relativamente aos acontecimentos verificados ao minuto 70´, não pode ser entendida senão como um ato de tolerância perante os graves factos que no momento se verificavam e ao não atuar nesse instante permitiu que o segundo se sucedesse.
16. Por outro lado, a passividade da Recorrida mesmo em momento posterior, é igualmente relevante pois que se teve conhecimento dos factos (graves, como bem assinala o Colégio Arbitral) e face aos mesmos nada fez, de nenhum modo reagiu, está a tolerá-los de forma inequívoca.
17. A Recorrida foi sancionada pela prática de infração disciplinar p. e p. no artigo 113.º do RDLPFP, o qual tem a seguinte redação: “Os clubes que promovam, consintam ou tolerem a exibição de faixas, o cântico de slogans racistas ou, em geral, quaisquer comportamentos que atentem contra a dignidade humana em função da raça, língua, religião ou origem étnica, género ou orientação sexual serão punidos com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de dois e o máximo de cinco jogos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 250 UC e máximo de 1.250 UC.”
18. A Recorrida não aportou aos autos matéria que contrariasse o descrito no Relatório de Policiamento Desportivo, exceto depoimentos bem pouco credíveis de que os cânticos não foram ouvidos por ninguém ligado à Recorrida.
19. Não soçobram dúvidas que a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da ora Recorrente, face aos factos apurados, operou uma correta subsunção no ilícito disciplinar p. e p. pelos artigos 113.º do RDLPFP20, e que tal conduta, para além de típica, se assume como ilícita e culposa, sustentando assim o relevo disciplinar que o órgão disciplinar bem defende, não sendo, pois, merecedora de qualquer censura.
20. Deste modo, andou mal o Tribunal a quo, devendo a decisão arbitral ser revogada e substituída por outra que mantenha a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da ora Recorrente.».

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à sessão para julgamento.

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, consistem, no essencial, em saber se o acórdão recorrido incorreu em erros de julgamento na fixação da matéria de facto, devendo ser retirado dos factos não provados e aditado aos provados, os factos que indica, e na interpretação e aplicação do Direito, mormente o disposto no artigo 113º do RDFPP.

A proceder o recurso, deve ser ainda conhecida da ampliação da respectiva matéria pela Recorrida, por forma a aferir se, tal como vem alegar, os cânticos racistas não aconteceram efectivamente ao minuto 70 do jogo.

O colectivo de árbitros do TAD analisada e valorada a prova constante dos autos, e com interesse para a boa decisão da causa, considerou provados os seguintes factos:

«1. No dia 27.09.2021, realizou-se no Estádio do Bessa XXI o jogo oficialmente identificado sob o n.° 10708, entre a B... Futebol Clube - Futebol SAD e a E… - Futebol, SAD, a contar para a jornada 7 da Liga Portugal BWIN;

2. Ao minuto 70 do referido jogo, os adeptos da Demandante, localizados na bancada topo sul, inferior, local exclusivamente reservado a adeptos afetos à sociedade desportiva visitada, identificados com sinais distintivos afetos à Demandante, nomeadamente elementos afetos ao GOA «Panteras Negras», entoaram, durante cerca de 10 segundos, na direção do atleta C…, n.° …, da E… - Futebol, SAD, o som a imitar os macacos (uhuhuhu):

3. Ao minuto 91, quando o jogador R… da E… - Futebol, SAD, se preparava para entrar em campo, substituindo um colega de equipa, um adepto da Demandante, identificado com sinais distintivos afetos à B..., SAD, presente na bancada Poente, dirigiu-lhe as seguintes expressões: «Ó ANDRADE VAI PARA O CARALHO; Ó PRETO FILHO DA PUTA VAI PARA O CARALHO VAI PARA A TUA TERRA»;

4. A Demandante não reagiu ao ocorrido ao minuto 70 do jogo;

5. Na audição do vídeo do jogo, não se logra identificar com clareza e autonomizar, relativamente ao restante ruído ambiente, o ocorrido ao minuto 70 do jogo;

6. A Demandante adoptou todas as providências exigíveis relativamente ao ocorrido ao minuto 91 do jogo;

7. Do extrato disciplinar da Demandante ressalta um conjunto de ocorrências respeitantes a actos de violência perpetradas pelos seus sócios / simpatizantes, com alguma regularidade, evidenciando várias condenações disciplinares.

• 5.2 Matéria de Facto dada como não provada

Com relevo para a apreciação e decisão destes autos, não ficou provado que a Demandante tenha tido conhecimento do ocorrido ao minuto 70 do jogo em circunstâncias que lhe permitissem adoptar os comportamentos que lhe seriam exigíveis nesse contexto.

• 5.3 Fundamentação da decisão de facto
A matéria de facto dada como provada resulta da documentação junta aos autos, em especial da cópia do Processo Disciplinar.
O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova carreada para os autos, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da sua livre apreciação da prova, seguindo as regras do processo penal (artigo 127.° do CPP) com as garantias daí resultantes para o arguido, nomeadamente o princípio da presunção da inocência e o princípio in dubio pro reo.
A livre apreciação da prova resulta, aliás, do disposto no artigo 607.° n.° 5 do CPC, aplicável ex vi art.° 1º do CPTA e artigo 61º da LTAD, daí resultando que o tribunal aprecia livremente as provas produzidas decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. De acordo com Alberto dos Reis prova livre "quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei" (Código de Processo Civil, anotado, vol. IV, pág. 570).
Também temos de ter em linha de conta que o julgador deve "tomar em consideração todas as provas produzidas" (artigo 413.° do Código de Processo Civil), ou seja, a prova deve ser apreciada na sua globalidade.
Em concreto, com referência aos factos considerados provados, o Tribunal formou a sua convicção nos seguintes moldes:
1. Resulta dos documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente a fls. 6 a 23 do processo disciplinar.
2. Resulta dos documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente a fls. 50 a 52 e 78 a 79 do processo disciplinar.
3. Resulta dos documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente a fls. 50 a 52 e 78 a 79 do processo disciplinar.
4. Resulta dos documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente a fls. 79 do processo disciplinar.
5. Resulta da audição da gravação do referido minuto de jogo, bem como dos que o precedem e lhe sucedem, junta aos presentes autos.
6. Resulta dos documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente a fls. 80 do processo disciplinar.
7. Resulta dos documentos juntos aos presentes autos, nomeadamente a fls. 35 a 49 do processo disciplinar e de fls. 34 a 48 do processo apenso.

Entende-se clarificar que o Tribunal não ficou com dúvidas de que terão existido os actos e cânticos relatados pela PSP no seu relatório, mas a verdade é que não os conseguiu identificar na audição/visualização do vídeo do jogo, o que permite admitir ser possível terem sido percepcionados pela PSP, mas não pelos responsáveis da Demandante.

Cremos, pois, que a factualidade dada como assente resulta da instrução da causa, para além de qualquer dúvida razoável.».


Da impugnação da decisão da matéria de facto:

Alega a Recorrente que: no acórdão recorrido existe um erro na decisão da matéria de facto, o facto 5.2 considerado não provado, sem qualquer sustentação nos autos que permita concluir que a Recorrida não tenha conhecido do facto ocorrido ao minuto 70, o cântico racista; porque a situação foi reportada aos seus dirigentes na reunião final do jogo; nada consta sobre repúdio posterior do acontecido pela Recorrida; pelo que a mesma tolerou os acontecimentos, mesmo que se entenda, sem conceder, que deles não se apercebeu no exacto momento em que ocorreram; o TAD não indica a motivação deste facto não provado, em clara violação do artigo 607º, nº4 CPC; tal facto deverá ser dado como provado, com o nº 8 com a redacção que indica; o elenco dos factos provados pelo CD resultou dos Relatórios Oficiais de jogo, que gozam de presunção de veracidade do seu conteúdo, do Relatório de Policiamento, que goza da mesma força probatória, das imagens e sons captados pelo sistema CCTV, pelo cadastro da Recorrida e dos depoimentos obtidos em sede de audiência disciplinar.

Apreciando.

De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 640º do CPC, ex vi o nº 3 do artigo 140º do CPTA, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Em face do que a Recorrente observou os claramente os ónus que lhe são impostos nas referidas alíneas a) e c) mas já não o da alínea b).
Explicitando, para cumprimento desta norma não basta a referência aos meios de prova juntos aos autos, importando especificar a parte compreendida em cada um desses elementos probatórios que suporta a impugnação do facto não provado em referência.
O que a Recorrente não fez, apesar de pretender que tal facto seja considerado provado. Defendendo que o TAD não tem sustentação nos autos para assumir como não provado que a Recorrida não tinha conhecimento dos acontecimentos ocorridos ao minuto 70, também não indica de entre os vários meios de prova, que enuncia, de forma genérica e nos quais, refere, que o CD se suportou para fixar os factos provados para aplicar as penas à Recorrida, em que parte deles pretende suportar a impugnação que efectua para dar o mesmo facto como provado.
A Recorrente limita-se, a partir dos elementos de prova constantes do processo, a procurar extrair conclusões com base no bom senso e verosimilhança – se o cântico racista foi entoado durante 10 segundo por 200 adeptos, num estádio com pouca gente e boa acústica, e se consta dos Relatórios de jogo e de Policiamento, é porque foi ouvido por todos os que se encontravam no estádio, incluindo os representantes da Recorrida. Contudo, também admite que nos esclarecimentos adicionais prestados pelo Policiamento que os dirigentes e delegados de ambas as equipas informaram que não foi perceptível junto dos bancos e do túnel.
A alegada circunstância de a Recorrida ter ficado a ter conhecimento dos acontecimentos ocorrido na reunião depois do jogo, ou de que nada fez depois para repudiar os mesmos, não permite dar por provado que teve conhecimento do ocorrido ao minuto 70 do jogo [com o sentido de nesse mesmo momento].
Em face do que é de rejeitar esta parte do recurso.

Do erro de julgamento de direito:

Da fundamentação do acórdão recorrido extrai-se sobre a interpretação e aplicação do disposto no artigo 113º do RDFPF o seguinte:
«No artigo 113.° do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal dispõe-se o seguinte:
Artigo 113°
Comportamentos discriminatórios em função da raça, religião ou ideologia
Os clubes que promovam, consintam ou tolerem a exibição de faixas, o cântico de slogans racistas ou, em geral, quaisquer comportamentos que atentem contra a dignidade humana em função da raça, língua, religião ou origem étnica, género ou orientação sexual serão punidos com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de dois e o máximo de cinco jogos e, acessoriamente, com a sanção de muita de montante a fixar entre o mínimo de 250 UC e máximo de 1.250 UC.
Com efeito, comecemos por destacar que não se encontra aqui em discussão se o jogador foi, ou não, alvo de atitudes racistas. Na verdade, tal encontra-se plasmado de forma clara em sede de matéria provada na presente decisão. Com efeito, o jogador C… foi efetivamente alvo de cânticos proferidos pelos adeptos afetos à Demandante a imitar os sons que são produzidos pelos símios, em particular “uh, uh, uh". E não pode estar - nem está - em causa a real censurabilidade, ética e jurídica, destes factos.
Contudo, na opinião deste colégio arbitral, não ficou demonstrado que a Demandante tenha promovido, ou sequer consentido ou tolerado os cânticos racistas em questão, pela razão de que não ficou provado, nestes autos, que a Demandante tenha tido um conhecimento efetivo e/ou atempado da ocorrência dos factos em causa, que lhe permitisse reagir aos acontecimentos em tempo útil.
Na verdade, assumindo-se como verdadeiro que os referidos cânticos tiveram uma duração de cerca de 10 segundos, é facto que se tratou de uma ocorrência muito breve, num contexto de ruído do público particularmente alto, muitas vezes indistinto.
Neste contexto, não ficou demonstrado que a Demandante, por intermédio de alguém da sua estrutura profissional, teve efetivamente conhecimento da ocorrência dos cânticos racistas em causa a tempo de uma intervenção efetiva relativamente aos mesmos.
Ora, só pode “consentir" ou "tolerar" uma determinada conduta o agente que a tenha conhecido (ou devesse tê-la conhecido), em tempo de reagir - e tenha decidido não o fazer. E isto não ficou demonstrado.
A demonstração de que a Demandante teve um conhecimento efetivo e atempado da ocorrência dos cânticos em causa, que lhe permitisse ter condições para reagir aos mesmos, é elemento constitutivo do ilícito p. e p. no artigo 113.° RDLPFP, pelo que no presente caso não pode considerar-se preenchida a sua fattispecie.
Face a todo o supro exposto, não ficaram provados os elementos necessários ao preenchimento da hipótese do Artigo 113.° RDLPFP subjacente à condenação da Demandante em sede de processo disciplinar, razão pela qual deverá ser revogada.».

E o assim decidido é para manter.
A alegação de que o acórdão recorrido incorre em erro de julgamento na aplicação do direito aos factos tem como pressuposto que este Tribunal iria julgar procedente a impugnação da matéria de facto, ou seja, dar por provado nos autos o conhecimento pela Recorrida do cântico racista ocorrido ao minuto 70 do jogo e que a mesma nada fez.
Assim não tendo sido decidido, a manutenção da decisão da matéria provada e não provada do TAD, aliada à circunstância de o conhecimento efectivo e atempado do acontecimento, no caso, racista, ocorrido no jogo, ser um elemento constitutivo do ilícito previsto na norma em referência – não demonstrado ou provado nos autos -, implica a improcedência também desta parte o recurso.
Dito de outro modo, não resultando da factualidade provada que a Recorrida promoveu, consentiu ou tolerou os cânticos racistas entoados pelos seus adeptos contra um jogador da equipa adversária, não há que manter as sanções de multa e de dois jogos à porta fechada, em que foi condenada.

A improcedência do recurso obsta à apreciação da ampliação do seu objecto, formulada pela Recorrida nas suas contra-alegações.

Por tudo quanto vem exposto acordam em sessão os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e, em consequência, manter o acórdão recorrido na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Registe e Notifique.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2023.

(Lina Costa – relatora)

(Catarina Vasconcelos)

(Rui Pereira)