Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1955/14.3 BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:10/19/2023
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM O RECURSO
EXAME CRÍTICO DA PROVA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
CONTRATO-PROMESSA
Sumário:I - As partes apenas podem juntar documentos às alegações de recurso nas situações excecionais em que façam prova de que não lhes foi possível promover essa junção ao processo em momento anterior ou quando essa junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

II - O exame crítico da prova deve consistir na indicação dos elementos de prova que foram utilizados para formar a convicção do juiz e na sua apreciação crítica, de forma a ser possível conhecer as razões por que se decidiu num determinado sentido e não noutro.

III - Oo princípio do inquisitório não se destina a suprir a inércia de alegação e/ou de prova das partes; a auto-responsabilidade das partes impõe-lhes que cumpram os seus ónus processuais, designadamente de alegação e prova dos factos que invoquem.

IV - No nosso ordenamento jurídico, consagrou-se aquilo que se denomina por conceção subjetiva da posse, ou seja, uma conceção que envolve um elemento objetivo e um elemento subjetivo; um corpus e um animus.

V - Em regra, o contrato-promessa de compra e venda, ainda que seja acompanhado de tradição da coisa, não transfere a posse ao promitente-comprador o qual adquire o corpus possessório, mas não o animus possidendi, ou seja, a sua situação é a de mero detentor ou possuidor precário.

VI - São situações excecionais aquelas em que o contrato-promessa de compra e venda, acompanhado de tradição da coisa, para além de transferir a posse ao promitente-comprador (corpus possessório), o investe com um verdadeiro animus possidendi, autorizando que se deixe de falar de um mero detentor ou possuidor precário para passarmos a identificar alguém que atua como se fosse o proprietário da coisa.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de execução fiscal e de recursos contra-ordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais, da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

S………………….., S.L., m.i. nos autos, tendo tomado conhecimento da penhora da fração autónoma designada pela letra “BM”, correspondente ao 7.º C, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no …………….., lote 3, P............... descrita na Conservatória do Registo Predial de P............... sob o n.º ………., e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de P............... sob o artigo …………, efetuada no âmbito do processo de execução fiscal n.º …………..…….720 e apensos, instaurado no Serviço de Finanças de Amadora 3, em que é executada a sociedade “E …………………… CIVIL, LDA.”, deduziu, junto do TAF de Sintra, embargos de terceiro.

Por sentença de 19/01/15 foram os embargos julgados improcedentes.

Inconformada, veio a Embargante interpor o presente recurso jurisdicional, formulando para tanto as seguintes conclusões:

24. As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se o Tribunal a quo incorreu em erro de facto e de direito ao ter concluído que o direito de crédito invocado era incompatível com a penhora e assim serem aceites os embargos de terceiro deduzidos.

25. Para além do Douto Acórdão recorrido enumerar os meios de prova produzida, em rigor, deveria o mesmo explicitar os factos sobre que incidiram, para que se torne perceptível intuir de que forma chegou o Tribunal à conclusão de "provado" e/ou de "não provado" pois, a motivação dos factos da Sentença consistirá na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal,

26. Parecendo estarmos perante situação prevista no artigo 125 ° do CPPT (Nulidades da sentença): "Constituem causas de nulidade da sentença a falta de assinatura do juiz, a não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, a oposição dos fundamentos com a decisão, a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhece”.

27. Neste sentido Vem o Recorrente arguir a nulidade supra exposta que deverá ter as necessárias consequências legais, considerando-se nula a sentença recorrida.

28. Assim, não basta enumerar os meios de prova, antes se impondo a "explicitação do processo de formação da convicção do tribunal" (Ac. T.C nº 680/98 de 02/12), de forma a permitir uma compreensão "do porquê da decisão e do processo lógico–mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório" (Ac. STJ 99.05.12, rec. n.º406/99 - 3. ªSec).

29. Assim, o Douto Tribunal "a quo", ao decidir como decidiu, não fundamentou nem motivou suficientemente a sua decisão, o que impõe.

30. Os embargos de terceiro constituem actualmente um meio de defesa da posse, exclusivamente, podendo ser defendida através deste meio processual de defesa dos seus direitos, no caso concreto.

31. A Embargante reitera que o bem a colocado à venda pela AT é um abuso do seu direito; é um prédio -urbano cuja legítima possuidora é a ora Embargante, dado que em 2007, recebeu as chaves e a posse do imóvel, passando a suportar o pagamento de todos os consumos de água, taxas de saneamento. Efectuou, também diversos trabalhos de recuperação, protestando juntar os respectivos comprovativos.

32. Face a todo o expendido, deve ser reconhecido à Embargante, ora Reclamante, positivamente a existência e titularidade do direito invocado, com as subsequentes consequências legais.

33. No que tange ao protestar juntar tais documentos, no prazo concedido não foi possível nem concedido mais prazo, cerceando-se um direito fundamental da embargante. O de provar isto mesmo, sendo que na génese do processo administrativo, e no do Direito em geral, o ónus da prova não se inverte.

34. O douto Tribunal "a quo" ou deveria conceder melhor prazo para juntar os documentos (a sede da empresa é em Espanha), ou, oficiosamente, poderia solicitar às empresas públicas nacionais (EPAL; EDP e/ou outras), tais comprovativos.

Nestes termos e nos demais de direito que V.ª Exa. doutamente suprirá, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado e em consequência:

a) Ser reconhecido à Embargante, ora Reclamante, positivamente a existência e titularidade do direito invocado, com as subsequentes consequências legais.

b) Ser reconhecida a nulidade supra exposta nos termos e para os efeitos do artigo 125º CPPT, que deverá ter as necessárias consequências legais, considerando-se nula a sentença recorrida.


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A Recorrida, Fazenda Pública, não contra-alegou.

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O Exmo. Magistrado do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para decisão.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

É a seguinte a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida:

“Compulsados os autos e analisada a prova documental encontram-se assentes, por provados, os seguintes factos com interesse para a decisão do mérito:

A) . Com data de 07.05.2007, foi assinado pelos representantes da Embargante e da Executada, na qualidade de promitente-comprador e promitente vendedora, respectivamente, um documento com a epígrafe “contrato promessa de compra e venda”, referente à fracção autónoma designada pela letra “……….”, correspondente ao 7.º C, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no …………., lote 3, P............... descrita na Conservatória do Registo Predial de P............... sob o n.º ……., e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de P............... sob o artigo ……….. [cf. fls. 21 dos autos].

B) . No documento identificado em A) consta que a promitente vendedora promete vender aos promitentes-compradores a fracção autónoma para habitação, pelo preço de €112.000,00, e os parqueamentos por €7.500,00, cada, o que perfaz o total de €134.500,00 [cf. fls. 21 dos autos].

C) . No documento identificado em A) consta que a escritura pública de compra e venda seria celebrada em dia e hora e cartório notarial a designar pela Requerente, no prazo máximo de sessenta dias [cf. fls. 22 dos autos].

D) . No documento identificado em A) consta que a Executada deu quitação do pagamento da quantia de €13.450,00, a título de sinal e princípio de pagamento [cf. fls. 21 dos autos].

E) . Em 19.07.2012, contra a sociedade “E………………. CIVIL, LDA.”, NIPC …………, foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ………………..720 e apensos, a correr termos no Serviço de Finanças de Amadora 3, por dívidas de IRC, IVA e IMI, dos anos de 2008 a 2011, pela quantia exequenda de €398.800,51 [cf. fls. do PEF em apenso].

F) . No âmbito do processo identificado no ponto anterior foi efectuado o arresto da fracção autónoma identificada em A) supra [cf. fls. 57 dos autos].

G) . O arresto identificado no ponto anterior foi registado na Conservatória do Registo Predial de P…………….. sob a Ap. 1035 de 20.06.2012, e convertida em penhora, registada sob a Ap. 1948, de 19.10.2012 [cf. fls. 57 dos autos].

H) . Pelo Serviço de Finanças de A…………3 foi publicitada a venda n.º ……….., correspondente ao imóvel identificado em A) supra, designada para dia 16.09.2014, pelo valor base de licitação de €65.148,45 [cf. fls. 39 a 41 do PEF em apenso].

I) . A 21.08.2014 foi apresentada a petição inicial dos presentes embargos [cf. fls. 6 dos autos].

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A decisão da matéria de facto baseou-se nos documentos juntos aos autos não impugnados e indicados em cada um dos pontos dos factos provados. Nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa, designadamente, não se provou que:

1.º Em 2007 a Embargante recebeu as chaves e a posse do imóvel identificado em A) supra, e passou a suportar o pagamento de todos os consumos de água, taxas de saneamento;

2.º A Embargante efectuou diversos trabalhos de recuperação sobre o imóvel identificado em A) supra;

3.º Pela Embargante foi exercido o direito de execução específica do prédio identificado em A) supra em sede do processo no Tribunal de Família e Menores da Comarca de P …………….

Em relação a estes factos não foi produzida qualquer prova.


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- De direito

A sentença recorrida julgou improcedentes os embargos deduzidos pela ora Embargante contra a penhora da fração autónoma designada pela letra “…”, correspondente ao 7.º C, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no ………….., lote 3, P............... descrita na Conservatória do Registo Predial de P............... sob o n.º ………., e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de P............... sob o artigo …., efetuada no âmbito do processo de execução fiscal n.º ……….720 e apensos, instaurado no Serviço de Finanças de Amadora 3, em que é executada a sociedade “E ……………. CIVIL, LDA.”

A Embargante não se conforma com o decidido e pretende ver aqui reapreciado o julgamento efetuado pelo TAF de Sintra, nos termos que constam das conclusões transcritas.

Vejamos por partes, começando por nos debruçarmos sobre junção ao recurso jurisdicional de 7 documentos, a saber: 3 faturas/recibos de consumos de água (respeitantes a três diferentes meses de 2011 e de 2012) e 4 faturas de consumos de eletricidade (de diversos meses do ano de 2012). Em qualquer dos casos, os documentos reportam-se a consumos respeitantes ao local correspondente à fração penhorada.

Avançando a razão para só juntar em 2015, em sede de recurso jurisdicional, documentos emitidos em 2011 e 2012, quando – como ocorreu – apresentou a p.i de embargos em 2014, a Recorrente afirma que “no prazo concedido não foi possível nem concedido mais prazo, cerceando-se um direito fundamental da embargante. O de provar isto mesmo, sendo que na génese do processo administrativo, e no do Direito em geral, o ónus da prova não se inverte”. Acrescenta, ainda, que o Tribunal “deveria conceder melhor prazo para juntar os documentos (a sede da empresa é em Espanha), ou, oficiosamente, poderia solicitar às empresas públicas nacionais (EPAL; EDP e/ou outras), tais comprovativos”.

Importa ter presente que, de acordo com o artigo 651º, n.º 1 do CPC, “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.

A este propósito, e lançando mão da análise feita pelo STA, no acórdão de 3/06/20, processo nº 2383/07.2BELSB, aí se lê que “envolvendo também o disposto no artigo 425.º do CPC (antigo artigo 524.º) onde, por seu turno, se refere que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”. Na verdade, o disposto no artigo 425.º reitera apenas o conteúdo das regras legais sobre a apresentação de documentos, contempladas no artigo 423.º do CPC (antigo artigo 523.º), que: i) exigem a respectiva apresentação com os articulados em que se aleguem os factos correspondentes (n.º 1); ii) ou até 20 dias antes da realização da audiência final, mediante multa, excepto se a parte provar que não lhe foi possível oferecer os documentos com o articulado (n.º 2); iii) depois daquele prazo limite, apenas podem ser admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, assim como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (n.º 3).

As regras que acabámos de transcrever correspondem à positivação legal dos princípios fundamentais que informam a produção de prova no processo judicial e que, por seu turno, expressam a efectivação do princípio da garantia da tutela jurisdicional plena e efectiva (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP). Referimo-nos ao que a doutrina e a jurisprudência constitucional há muito designam como a conciliação entre o princípio processual de oferecimento imediato de documentos e o princípio da justiça, ou seja, a garantia fundamental de que a parte não fica privada “em qualquer estado do processo” do direito de juntar todos os documentos que sejam essenciais para o esclarecimento da situação e para habilitar o tribunal a proferir uma decisão justa, com a regra essencial à promoção da actividade jurisdicional (direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas), segundo a qual são punidas – seja com multa, seja com a inadmissibilidade da junção posterior – as condutas, mesmo que negligentes, que levaram à não apresentação atempada dos documentos, sempre que não seja apresentado ou não exista um fundamento legal para a admissibilidade daquela junção tardia. Neste sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 473/94, que confrontou as regras legais processuais antes enunciadas com a garantia fundamental da “proibição da indefesa”, tendo aquele aresto concluído pela conformidade constitucional das referidas regras, uma vez que as mesmas consubstanciam, no entendimento do Tribunal, a conciliação, em termos adequadamente proporcionais, “do interesse público do apuramento da verdade e da realização da justiça, ao qual convém a junção ainda que tardia dos documentos, com a disciplina ideal do processamento da acção que faz impender sobre as partes um dever de diligência e de colaboração com o tribunal”.

Assim, quer a solução legalmente contemplada, quer a interpretação que destas regras fez o Tribunal Constitucional no respectivo confronto com os princípios fundamentais da ordem jurídica nacional, afiguram-se-nos actuais, adequados, proporcionais e justos, pelo que não encontramos razão para deles divergir.

Ora, resulta desta interpretação jurisprudencial o seguinte: i) constitui um ónus das partes a apresentação dos documentos com os articulados em que sejam alegados os factos que pretendem provar; ii) não obstante aquele ónus, a efectivação do princípio da justiça admite a junção tardia de documentos até 20 dias antes da realização da audiência final, sendo a negligência da parte cominada com o pagamento de uma multa; iii) não haverá lugar a multa sempre que a parte apresente os documentos até 20 dias antes da realização da audiência final e prove que não lhe foi possível oferecer os documentos com o articulado em que foram invocados os factos a provar; iv) após o decurso daquele prazo (20 dias antes da realização da audiência final), a apresentação de documentos apenas é possível se a parte provar que não foi possível apresentá-los antes ou que a sua apresentação apenas se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior, valendo esta regra, também, para a apresentação de documentos com as alegações de recurso.

Em outras palavras, as partes apenas podem juntar documentos às alegações de recurso nas situações excepcionais em que façam prova de que não lhes foi possível promover essa junção ao processo em momento anterior ou quando essa junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Este último pressuposto – ter a junção dos documentos resultado do julgamento proferido na 1.ª instância – tem de ser interpretado no âmbito do sentido da excepcionalidade em que se admite a junção tardia de documentos, ou seja, não se trata de uma necessidade decorrente do resultado ou do desfecho da decisão em 1.ª instância, mas sim de uma necessidade resultante do conteúdo da decisão proferida em 1.ª instância, por a mesma se basear em factos ou interpretações factuais com as quais a parte não poderia razoavelmente ter contado no âmbito da tramitação processual em 1.ª instância, mesmo que tenham sido observadas todas as garantias impostas pelo princípio do contraditório.

Diremos que – para além dos casos em que os documentos a juntar só tenham sido obtidos mais tarde, apesar dos esforços envidados pela parte para promover a sua junção atempada – a junção de documentos só pode ser admitida com as alegações se se mostrar que a mesma foi “imposta” por um facto superveniente, pelo conteúdo da decisão de facto em 1.ª instância, a qual assentou em pressupostos com os quais a parte, por mais diligente que tenha sido na instrução do processo com todos os meios de prova, não teve como antever. É só neste caso – neste limitadíssimo caso, em que o princípio da justiça se pode sobrepor ao princípio processual de oferecimento imediato de documentos ― quando se demonstre que a parte actuou de forma diligente e que existe uma verdadeira necessidade de admitir novas provas ou complementos de prova para dimensões factuais com as quais não era possível ter contado na instrução do processo em primeira instância -, que se pode admitir a junção de documentos com as alegações de recurso”.

No caso concreto, os 7 documentos cuja junção é pretendida consistem, como dissemos, em faturas de consumos de água e de eletricidade de 2011 e 2012, referentes ao local correspondente à fração penhorada. Tais faturas/recibos foram emitidas em nome de Luís Camacho que, segundo a Recorrente, é o sócio-gerente da Embargante.

Alude a Recorrente a ter protestado juntar os documentos, a ter sido concedido prazo insuficiente para juntar os referidos documentos e, ainda, à possibilidade de o tribunal ter oficiado as empresas prestadoras dos serviços consumidos e obter os comprovativos dos pagamentos em causa.

Não serão precisas considerações muito aturadas para afirmar que a Recorrente não tem a menor razão.

No artigo 14º da p.i afirmava a Embargante que havia passado a “suportar o pagamento de todos os consumos de água, taxas de saneamento…”. Nesta fase, nenhum documento a este respeito juntou ou protestou juntar. Posteriormente, em sede de alegações pré-sentenciais, reiterava a Recorrente que passou “ a suportar o pagamento de todos os consumos de água, taxas de saneamento. Efectuou, também, diversos trabalhos de recuperação, protestando juntar os respetivos documentos”.

Como está bem de ver, nunca a Impugnante protestou, em sede de p.i, juntar quaisquer documentos, nem – acrescente-se – foi concedido prazo para tal ou inviabilizada a sua junção, como a Recorrente parece sugerir. Se a Recorrente não juntou os apontados documentos, no momento em que alegou a factualidade correspondente, foi por razões que só a si certamente respeitam – todavia, não explicitadas - e às quais o Tribunal é alheio.

Em alegações pré-sentenciais, protestou juntar documentos relativos a trabalhos de recuperação, o que nunca veio a acontecer; contudo – diga-se – tais despesas não estão em causa nos documentos que agora pretende juntar.

Note-se que, quer na 1ª instância, quer no recurso jurisdicional, não foi ensaiada sequer uma explicação para a junção tardia (leia-se, em momento diferente da p.i) dos documentos em causa, o que, de resto, sempre seria dificilmente explicável, atendendo a que se trata de documentos emitidos e remetidos para o sócio-gerente da Recorrente, nos anos de 2011 e 2012 (ou seja, 2 e 3 anos antes da data da apresentação do articulado de embargos).

Se a apresentação dos documentos com os articulados em que se alegaram os factos correspondentes não foi feita, em 1ª instância, mesmo que em momento posterior à p.i, ainda que sujeita ao pagamento de multa, não será no recurso jurisdicional que os mesmos serão admitidos. Com efeito, atento o carater excecional da junção de documentos no recurso, a mesma só está prevista para casos em que não tenha sido possível até àquele momento juntar os elementos em causa ou se a apresentação dos documentos apenas se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior. Ora, nada disto vem alegado ou demonstrado, sendo certo que a análise dos documentos, pela sua própria natureza, data e destinatário, logo afastam qualquer tipo de superveniência.

Tanto basta, pois, para não admitirmos os 7 documentos juntos com as alegações de recurso, os quais devem ser desentranhados e restituídos à Recorrente, condenando-se esta no pagamento de multa pelo incidente (cfr. artigo 443º, nº.1, do CPC, na redação da Lei nº 41/2013, de 26/6; artigo10º, do RCP), ao que se provirá no dispositivo do presente acórdão.


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Vista esta primeira questão, avancemos.

Segue-se a alegação que sustenta a nulidade da sentença, por falta de explicitação dos motivos que subjazem ao julgamento da matéria de facto.

Vejamos.

Recuperando a análise feita no acórdão do TCA Norte de 30/04/15, no processo º 730/09.1 BEPNF, dir-se-á que “Como é sabido a exigência de fundamentação é justificada pela necessidade de permitir que as partes conheçam as razões em que se apoiou o veredicto do tribunal a fim de as poderem impugnar e para que o tribunal superior exerça sobre elas a censura que se impuser. Dito de forma diversa, a fundamentação, para além de visar persuadir os interessados sobre a correcção da solução legal encontrada pelo Estado, através do seu órgão jurisdicional, tem como finalidade elucidar as partes sobre as razões por que não obtiveram ganho de causa, para as poderem impugnar perante o tribunal superior, desde que a sentença admita recurso, e também para este tribunal poder apreciar essas razões no momento do julgamento.

Logo, o julgamento da matéria de facto é um momento essencial da realização da justiça constitucionalmente cometida aos tribunais. De acordo com o disposto no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. O juiz tem, por isso, o dever de se pronunciar sobre a factualidade alegada e sobre a que lhe seja lícito conhecer oficiosamente e que se apresente relevante para a decisão, discriminando também a matéria provada da não provada e fundamentando as suas decisões, procedendo à apreciação crítica dos elementos de prova e especificando os fundamentos decisivos para a convicção formada - cfr. artigos 123.º, n.º 2, do CPPT.

Exige-se assim, por um lado, a análise crítica dos meios de prova produzidos e, por outro, a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, expressa na resposta positiva ou negativa dada à matéria de facto controvertida. “Não se trata, por conseguinte, de um mero juízo arbitrário ou de intuição sobre a realidade ou não de um facto, mas de uma convicção adquirida através de um processo racional, alicerçado - e, de certa maneira, objectivado e transparente - na análise criticamente comparativa dos diversos dados trazidos através das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações essencialmente determinantes da opção feita e cuja enunciação, por exigência legal, representa o assumir das responsabilidades do julgador inerentes ao carácter público da administração da Justiça” – cfr. J. Pereira Baptista, in Reforma do Processo Civil, 1997, pags 90 e ss.

O exame crítico da prova deve consistir, assim, na indicação dos elementos de prova que foram utilizados para formar a convicção do juiz e na sua apreciação crítica, de forma a ser possível conhecer as razões por que se decidiu num determinado sentido e não noutro.

Logo, o julgador não se deve limitar a uma simples e genérica indicação dos meios de prova produzidos (v.g. “prova testemunhal” ou “prova por documentos”), impondo-se-lhe que analise criticamente essa prova produzida. Rectius, o tribunal deve justificar os motivos da sua decisão quanto à matéria de facto, declarando por que razão deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos, achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos particulares, etc.

Não basta, pois apresentar como fundamentação, o mero elenco dos meios de prova, v.g., “os depoimentos prestados pelas testemunhas e a inspecção ao local”, sendo necessária a indicação das razões ou motivos porque relevaram no espírito do julgador - cf. António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, 2ª, edição, a págs. 253 a 256.

Em suma, a fundamentação de facto não se deve limitar à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo revelar o itinerário cogniscitivo e valorativo seguido pelo juiz ao decidir como decidiu sobre os pontos da matéria de facto - assim, Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, 6ª edição, 2011, Vol. II, pág. 321”.

E prosseguindo, “Nos casos em que os elementos probatórios tenham um valor objectivo (como sucede, na maior parte dos casos, com a prova documental), a revelação das razões por que se decidiu dar como provados determinados factos poderá ser atingida com a mera indicação dos respectivos meios de prova, sem prejuízo da necessidade de fazer uma apreciação crítica, quando for questionável o valor probatório de algum ou alguns documentos (…).

Mas, quando se tratar de meios de prova susceptíveis de avaliação subjectiva (como sucede com a prova testemunhal) será indispensável, para atingir tal objectivo de revelação das razões da decisão, que seja efectuada uma apreciação crítica da prova, traduzida na indicação das razões por que se deu ou não valor probatório a determinados elementos de prova ou se deu preferência probatória a determinados elementos em prejuízo de outros, relativamente a cada um dos factos relativamente aos quais essa apreciação seja necessária”, vide, Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, vol. II, 6ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 321 e 322.

Como ensina M. Teixeira de Sousa “… o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente …”, vide, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lx 1997, pág. 348.

Detenhamo-nos, agora, sobre o caso concreto em apreciação.

E, visto o probatório, é para nós certo que o dever de fundamentação que vimos analisando foi integralmente observado pelo tribunal a quo, designadamente no que concerne à análise crítica das provas.

O Tribunal autonomizou a matéria de facto provada e não provada.

A propósito dos factos provados, indicou separadamente as fls. do processo (ou do PEF) correspondentes ao documento em que se baseou para julgar provada certa factualidade. Fê-lo em termos que não deixam margem para dúvidas.

Também em relação à matéria de facto não provada, foram indicadas as asserções factuais consideradas não demonstradas e a razão para tal julgamento. No caso particular dos factos não provados, e perante a inércia probatória, nada mais se impunha ao Tribunal para além de constatar – como fez – que “não foi produzida qualquer prova”.

Assim sendo, e sem necessidade de mais nos alongarmos nesta questão, há que julgar improcedentes as conclusões a ela atinentes.

Prosseguindo, importa que deixemos uma breve nota que, como se percebe, se prende com uma vaga discordância quanto à aplicação do princípio do inquisitório e à matéria de facto.

Contrariamente ao que sustenta a Recorrente, não cabia ao Tribunal de 1ª instância oficiosamente “solicitar às empresas públicas nacionais (EPAL; EDP e/ou outras), tais comprovativos”.

Com efeito, o princípio do inquisitório não vai tão longe e nem tem o cunho paternalista que as palavras da Recorrente parecem inculcar. Dito por outras palavras, o princípio do inquisitório não se destina a suprir a inércia de alegação e/ou de prova das partes. A auto-responsabilidade das partes impõe-lhes que cumpram os seus ónus processuais, designadamente de alegação e prova dos factos que invoquem. No caso, tal obrigação foi, por parte da Recorrente, – e por razões que só a ela respeitam – inobservada.


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Estabilizadas todos estes aspetos, passemos à análise do direito e à sua aplicação aos factos.

A Recorrente insurge-se contra o decidido, defendendo, em síntese útil, que: “o bem colocado à venda pela AT é um abuso do seu direito; é um prédio -urbano cuja legítima possuidora é a ora Embargante, dado que em 2007, recebeu as chaves e a posse do imóvel, passando a suportar o pagamento de todos os consumos de água, taxas de saneamento. Efectuou, também diversos trabalhos de recuperação, protestando juntar os respectivos comprovativos”. Como tal, “… deve ser reconhecido à Embargante, ora Reclamante, positivamente a existência e titularidade do direito invocado, com as subsequentes consequências legais”.

Vejamos, então.

Dispõe o nº 1 do artigo 237º do CPPT que quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro.

O escopo dos embargos de terceiro é, pois, afastar juridicamente o acto lesivo do direito do embargante.

Centremo-nos nos embargos de terceiro que têm como fundamento a posse dos bens atingidos pela diligência, como é o caso da penhora.

Dispõe o artigo 1251º do Código Civil que posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Por seu turno, o artigo 1253º do mesmo código preceitua que são havidos como detentores ou possuidores precários: (i) os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; (ii) os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; (iii) os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.

Daqui se retira que, no nosso ordenamento jurídico, se consagrou aquilo que se denomina por concepção subjectiva da posse, ou seja, uma concepção que envolve um elemento objectivo e um elemento subjectivo; um corpus e um animus.

O primeiro elemento caracteriza-se pelo exercício de poderes de facto sobre uma coisa; o segundo pela existência de uma intenção de, ao exercer tais poderes, estar a agir como titular do direito a que os actos praticados correspondem (J. Lopes de Sousa, CPPT, Anotado e Comentado, Vol. III, Áreas Editora, pág. 164; sobre este ponto, cfr. Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição revista e actualizada, pág. 5 e Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122º, página 68).

Para que o terceiro possa ser reconhecido como possuidor, para efeitos dos embargos de terceiro, deve invocar e provar os elementos constitutivos da sua posse, isto é, corpus e animus, devendo ainda invocar o modo de aquisição dessa mesma posse.

No tocante à determinação de outros direitos incompatíveis com a realização ou o âmbito de penhora ou qualquer ato de apreensão, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, tal “… faz-se considerando a função e a finalidade concreta da diligência (…). // Assim, são incompatíveis com a penhora (…) o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva (art. 824.º, nº2 CC), bem como, quando a penhora incida sobre um direito, a titularidade deste de que um terceiro se arrogue; mas não o são os direitos reais de gozo que a subsequente venda não extingue, os direitos reais de aquisição e de garantia que, como normalmente acontece, encontrem satisfação no esquema da ação executiva, nem os direitos pessoais de gozo e de aquisição, que são inoponíveis ao exequente ou, no caso especial do arrendamento, perduram para além da venda executiva” – vide, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol 1.º, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2014, p. 663.

Assim sendo, se, como no caso, a embargante (ora Recorrente) pretende a defesa da sua posse sobre a fracção penhorada, impõe-se-lhe que alegue e demonstre essa posse, seja na vertente material, seja na vertente intencional. Isto mesmo foi o que, em 1ª instância, se julgou não verificado, daí resultando a improcedência dos embargos.

Como se sabe, em regra, o contrato-promessa de compra e venda, ainda que seja acompanhado de tradição da coisa, não transfere a posse ao promitente-comprador o qual adquire o corpus possessório, mas não o animus possidendi, ou seja, a sua situação é a de mero detentor ou possuidor precário.

Neste sentido, como se escreveu no acórdão deste TCA, de 27/01/22, processo nº 1028/09.0 BEALM, “Em regra, a penhora de coisa, que tenha sido objeto de contrato-promessa de compra e venda anterior, não constitui, per se, um ato ofensivo da posse, desde logo porque a celebração de tal contrato não comporta, por si mesma, a aquisição da posse.

Concretizemos.

O contrato-promessa consiste na “… convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato…” (cfr. n.º 1 do art.º 410.º do Código Civil).

Como referido por Antunes Varela, (5) “[o] contrato-promessa cria a obrigação de contratar, ou mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido”.

Normalmente o contrato-promessa tem apenas eficácia inter partes, podendo, no entanto, ser dotado de eficácia real, produzindo, nesse caso, efeitos relativamente a terceiros (cfr. art.º 413.º do Código Civil), o que não é ora discutido.

Como já referimos, com a celebração de um contrato-promessa não decorre, inexoravelmente, que o promitente comprador seja o possuidor da coisa prometida, mesmo que haja traditio, sendo que, em regra, nestes casos, o promitente comprador é apenas titular de um direito pessoal de gozo.

Efetivamente, como mencionado supra, inerente ao conceito de posse está não só o corpus, mas o animus, ou seja, é fundamental, para que se possa falar em posse e não em mera detenção, que a atuação seja de tal forma que o promitente comprador aja como se fosse titular do direito real correspondente ao domínio de facto consubstanciado no corpus”.

A sentença em apreciação concluiu que, no caso, “não resulta provado que a Embargante tenha a posse do imóvel, não tendo apresentado qualquer prova que demonstre que tenha o exercício de facto sobre a coisa, não tendo feito prova do pagamento das despesas referentes ao imóvel, ou as obras de recuperação que alegou nos seus articulados. Pelo que se conclui que à data da penhora, os embargantes não eram titulares de direito de posse ou de outro direito incompatível com penhora”.

Vejamos, então, o caso concreto.

Na situação que nos vem colocada, verifica-se que: com data de 07/05/07, foi assinado pelos representantes da Embargante e da Executada, na qualidade de promitente-comprador e promitente vendedora, respetivamente, um documento com a epígrafe “contrato promessa de compra e venda”, referente à fração autónoma designada pela letra “……..”, correspondente ao 7.º C, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito no ……………, lote 3, P............... descrita na Conservatória do Registo Predial de P............... sob o n.º ……………, e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de P............... sob o artigo ……………; nesse documento consta que a promitente vendedora promete vender aos promitentes-compradores a fração autónoma para habitação, pelo preço de €112.000,00, e os parqueamentos por €7.500,00, cada, o que perfaz o total de €134.500,00; nesse mesmo documento consta que a escritura pública de compra e venda seria celebrada em dia e hora e cartório notarial a designar pela Requerente, no prazo máximo de sessenta dias; consta ainda que a Executada deu quitação do pagamento da quantia de €13.450,00, a título de sinal e princípio de pagamento. E, de relevante, na mais se provou.

Tenha-se presente, com determinante relevo, que o TAF de Sintra levou aos factos não provados, sem que tal fosse impugnado, que em 2007 a Embargante recebeu as chaves e a posse do imóvel penhorado e que passou a suportar o pagamento de todos os consumos de água, taxas de saneamento; deu ainda como não provado que a Recorrente tenha efetuado diversos trabalhos de recuperação sobre o imóvel em causa e que tenha exercido o direito de execução específica do prédio penhorado.

Ora, em face da análise da matéria de facto, estamos em condições de concluir que o TAF de Sintra decidiu com acerto, no sentido de que a Embargante, à data da penhora, não era titular de direito de posse ou outro direito incompatível com a penhora.

São, na verdade, situações excecionais aquelas em que o contrato-promessa de compra e venda, acompanhado de tradição da coisa, para além de transferir a posse ao promitente-comprador (corpus possessório), o investe com um verdadeiro animus possidendi, autorizando que se deixe de falar de um mero detentor ou possuidor precário para passarmos a identificar alguém que atua como se fosse o proprietário da coisa. Sublinhe-se que, na presente situação, não vem sequer provado (pelo contrário, aliás) que a Embargante tenha recebido as chaves do imóvel penhorado.

Como se sintetiza no acórdão do TCA Norte, de 18/01/12 (processo 642/09.9 BEBRG), “A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no seguimento, sobretudo, da doutrina de Antunes Varela, tem vindo a decidir no sentido de que “são concebíveis (…) situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse”, dando-se como exemplo as situações em que, “havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade”cf. acórdão STA 10 Fev. 2010, recurso 1117/09, disponível em versão integral no endereço www.dgsi.pt, e que, nestas situações excepcionais em que o promitente-comprador tem uma posse em nome próprio relativamente ao bem que lhe foi prometido vender e que, entretanto, foi penhorado, tal posse fundamentará a procedência dos embargos de terceiro que, com base nela, sejam deduzidos – neste mesmo sentido, acórdão STA 10 Abr. 2002, recurso 26295 e acórdão STA 27 Out. 2010, processo 0453/10, ambos disponíveis no endereço www.dgsi.pt”.

No caso, vista toda a matéria de facto, somos levados a concluir pela inexistência de atos materiais que possam ser tidos como correspondentes ao exercício do direito de propriedade, em nome próprio, sendo evidente que a Embargante bem sabe que a fração penhorada não lhe pertence e que a sua atuação (alegada mas não provada) ao longo dos anos só pode ser resultante da mera tolerância do promitente-vendedor.

Por conseguinte, conclui-se, com o TAF de Sintra, que a Embargante, ora Recorrente, apenas detêm a posse precária do imóvel e daí que não lhe assista o direito de embargar a penhora.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação de recurso que vimos analisando, negando-se provimento ao mesmo.


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III - DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes da Subsecção de execução fiscal e de recursos contraordenacionais, da Secção de Contencioso Tributário do TCA Sul, em:

- Ordenar o desentranhamento e restituição à Recorrente dos documentos juntos com as alegações de recurso, condenando-se a mesmo em multa no montante de uma (1) UC.;

- Negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 19/10/23


(Catarina Almeida e Sousa)

(Hélia Gameiro)

(Isabel Fernandes)