Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:87/20.0BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:02/11/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IMPUGNAÇÃO ARBITRAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário:
I. Há nulidade por omissão de pronúncia quando uma das questões suscitadas não tenha sido apreciada, se o seu não conhecimento não resultou prejudicado pela solução dada às demais questões.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

T….., S.A. e N….., S.A. (doravante Impugnantes) vieram apresentar impugnação da decisão arbitral proferida a 22.09.2020, pelo Tribunal Arbitral Coletivo constituído no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no processo a que aí foi atribuído o n.º ….., ao abrigo dos art.ºs 27.º e 28.º do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – RJAT).

Nesse seguimento, as Impugnantes apresentaram alegações, nas quais concluíram nos seguintes termos:

A. O tribunal arbitral tributário constituído no processo n.º ….., quando confrontado com a arguição, pelas ora Impugnantes, de questões que se reconduziam à ilegalidade e inconstitucionalidade do artigo 87.º-A do Código do IRC, que prevê e regulamenta a liquidação da derrama estadual, não se pronunciou em relação a algumas delas no Acórdão proferido em 22 de setembro de 2020.

B. A decisão arbitral em referência deve, por isso, ser anulada com fundamento em omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

C. A primeira questão sobre a qual o tribunal arbitral não se pronunciou prende-se com a circunstância de a derrama estadual – que JOSÉ CASALTA NABAIS entende “não passa[r] de uma sobretaxa sobre o IRC” – constituir uma sobreposição ao IRC que redunda numa ilegítima duplicação da tributação (cf. artigos 84.º a 97.º e 252.º a 292.º do articulado inicial).

D. Sendo certo que a admissibilidade (ou não) da duplicação de coleta ou dupla tributação que a derrama estadual encerra tem de analisada à luz da CRP, na petição inicial foi invocado o princípio da igualdade, mormente na sua aceção de capacidade contributiva, na medida em que a derrama estadual (imposto acessório) diverge do IRC (imposto principal) por ser progressiva, por introduzir diferenciações injustificadas entre pessoas na mesma situação em decorrência da repercussão económica ou diferida dos impostos sobre o rendimento das empresas e, bem assim, por desconsiderar manifestações negativas dessa capacidade para contribuir sob a forma de prejuízos fiscais tanto numa ótica individual como de grupo (i.e., no âmbito do RETGS) (cf. artigos 252.º a 292.º da petição inicial).

E. Contudo, o tribunal arbitral não se pronunciou sobre de que forma exigir outro imposto sobre o lucro tributável em IRC aos respetivos sujeitos passivos e relativamente ao mesmo período temporal pode ser compatível com o ordenamento jurídico fiscal em geral e, em particular, com a CRP (cf. pp. 10 e 11 da decisão impugnada).

F. O tribunal arbitral avaliou, ainda que de forma superficial e em moldes que merecem a absoluta discordância das Impugnantes, se a progressividade da derrama estadual e a desconsideração dos prejuízos fiscais e do lucro tributável do grupo eram, em si mesmas, constitucionalmente válidas independentemente da duplicação de tributos, e não se “a fragmentação e sobreposição metastáticas de impostos” sobre o mesmo rendimento é em si mesma admissível.

G. A sobreposição de tributos sobre o mesmo rendimento é uma questão de direito, sendo aquelas violações de regras e princípios constitucionais, no que à invocada duplicação de tributação ou coleta concerne, os argumentos ou razões que a suportam.

H. O facto de a sobreposição tributária em questão poder ser também configurada como um argumento no sentido da ilegalidade do ato de liquidação da derrama estadual não invalidava que o tribunal tivesse de se pronunciar sobre ela como verdadeira e própria questão (vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul n.º 168/17.7BCLSB, de 6 de dezembro de 2018).

I. Como não se pronunciou a esse respeito, a decisão arbitral contrariou o disposto no artigo 95.º, n.º 1, do CPTA e no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT, o que consubstancia uma violação do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 28.º, do RJAT.

J. A segunda questão sobre a qual o tribunal arbitral tributário omitiu pronúncia prende-se com a compatibilidade (ou não) com o princípio da igualdade em sentido estrito, bem como com o seu corolário da capacidade contributiva, deste adicional progressivo ao IRC que é a derrama estadual quando analisado sob a ótica da sua repercussão sobre indivíduos cuja capacidade contributiva nada tem a ver com a da empresa (cf. artigos 48.º a 78.º e 520.º a 544.º da petição inicial).

K. A repercussão económica (ou diferida) dos impostos sobre o rendimento das pessoas coletivas é uma das razões pelas quais a progressividade – que na derrama estadual é evidente e resulta dos n.ºs 1 e 2 do artigo 87.º-A do Código do IRC – é inapta para materializar a capacidade contributiva – corolário do princípio da igualdade e critério de repartição material dos encargos públicos adequado aos impostos – nesse domínio, sendo, ao invés, indutora de discriminação e desigualdade.

L. As Impugnantes alegaram e demonstraram, com recurso a um exemplo prático de distribuição de lucros por duas sociedades distintas (uma sujeita à derrama estadual e outra não), que a repercussão do encargo de um imposto progressivo sobre o rendimento das empresas, como a derrama estadual, em terceiros com elas relacionados (e.g. sócios/investidores, trabalhadores, fornecedores) cria uma discriminação entre pessoas singulares que encerra uma flagrante desigualdade tributária (cf. artigos 166.º a 171.º, 263.º a 272.º e 542.º a 544.º da petição inicial).

M. Derradeiramente, o efeito criado é exatamente o oposto daquele que é visado pela progressividade – que, na derrama estadual, está “em contradição aberta com os propósitos da Reforma Fiscal que criou o IRC”, como explica o Prof. Doutor Fernando Araújo no voto vencido proferido na decisão impugnada –, e que é tirar de quem mais tem para dar a quem mais precisa.

N. No entanto, a apreciação que o coletivo fez à compatibilidade entre a progressividade da derrama estadual e o princípio constitucional da igualdade, tanto em sentido próprio como na aceção da capacidade contributiva, ignora por completo a questão da repercussão económica ou diferida dos impostos sobre o rendimento sobre os indivíduos.

O. O tribunal arbitral limitou-se a afirmar, sem mais, que a progressividade dos impostos sobre o rendimento das empresas não está constitucionalmente vedada e que a observância da capacidade contributiva está assegurada pelo facto de a derrama estadual incidir apenas sobre sujeitos passivos com lucro tributável superior a determinado limiar.

P. A tributação de um grupo seleto de empresas dentro do universo dos sujeitos passivos de IRC apenas porque os seus lucros ultrapassam um certo limite (primeira questão) não tem o mesmo significado e tão-pouco implica a mesma análise, à luz dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, que a procura em determinados terceiros – e.g. sócios, trabalhadores, fornecedores, clientes da empresa sujeita à derrama estadual – de um indício de maior capacidade para contribuir no âmbito de um imposto sobre as pessoas coletivas (segunda questão).

Q. A apreciação da primeira questão pelo tribunal arbitral não consumia, muito menos dispensava, a apreciação da segunda.

R. E trata-se (a segunda questão) de uma verdadeira questão, e não de uma razão ou argumento, pois sendo certo que a violação do princípio da igualdade pode ser reconduzida, em termos muito latos, a uma questão, é igualmente verdade que essa questão pode desdobrar-se em várias outras, como aqui sucede.

S. Embora estejam em causa os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, o sentido extraído dos mesmos não é unívoco, assim como não são idênticos os pressupostos em que assenta a arguição da inconstitucionalidade.

T. Como decidiu este Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão n.º 141/19.0BCLSB, de 7 de maio de 2020, “É uma verdadeira questão, e não um mero argumento, a alegação de que uma determinada disposição legal, interpretada num determinado sentido é inconstitucional (…) discordamos que a invocação de que uma norma, quando interpretada num determinado sentido, é inconstitucional, seja um mero argumento. Ou seja, essa alegação de inconstitucionalidade, por princípio, é uma verdadeira questão” (sublinhado das Impugnantes).

U. Prossegue este douto Acórdão que, “como este Tribunal Central tem vindo a sublinhar, a constitucionalidade da norma constitui, inclusive, questão de conhecimento oficioso” e que “a alegação de constitucionalidade não deve ser equacionada como um argumento e, neste contexto, não deve ser ignorada pelo Juiz perante quem é suscitada”.

Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deve a presente impugnação da decisão arbitral proferida em 22 de setembro de 2020 no processo n.º …..ser julgada procedente, por provada, e, por conseguinte, a decisão em referência ser anulada.

Mais requer seja determinada a dispensa total do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro”.

A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Impugnada ou AT) foi notificada para alegar, nos termos consignados no art.º 144.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), ex vi art.º 27.º, n.º 2, do RJAT, não tendo sido apresentadas contra-alegações.

O Ilustre Magistrado do Ministério Público (IMMP) foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do CPTA.

Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há nulidade da decisão arbitral por omissão de pronúncia?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. Para a apreciação da presente Impugnação estão provados os seguintes factos:

1) As Impugnantes apresentaram junto do CAAD pedido de constituição de tribunal arbitral, do qual consta, designadamente, o seguinte:

“I. Ao que vêm as Requerentes


1.°

O presente caso incide sobre uma única questão: será a figura da derrama estadual conforme, nos dias de hoje, às regras e princípios consagrados no ordenamento jurídico português, em particular, na Constituição da República Portuguesa (“CRP”)?

(…)

II. Breve retrato de um erro chamado derrama estadual

(…)


40.°

Acresce a isso o facto de a derrama estadual se assumir - como já se adiantou - como um tributo de natureza progressiva, característica que é por definição estranha ao domínio da tributação sobre o rendimento das pessoas coletivas.

(…)


47.°

Esta evolução da derrama estadual, para além de ir ao arrepio de tudo o que foi proclamado aquando da sua criação, colocou simultaneamente em crise uma das premissas máximas do nosso Estado de Direito: a de que só deve existir imposto havendo capacidade contributiva.

48.°

Na realidade, “não constitui novidade de maior o facto de o critério da capacidade contributiva se aplicar às pessoas coletivas”(…), até em virtude de o mesmo ser condição e, por outro, critério e parâmetro da tributação (...) .

49.°

Acontece que essa capacidade contributiva não se projeta “sobre as pessoas ou organizações coletivas nos mesmos termos com que se projeta sobre as pessoas individuais" (...) .

50.°

É que no caso das pessoas coletivas “vale sempre uma capacidade contributiva objetiva, que se contenta com a existência de uma realidade económica (rendimento, património ou despesa) e com a sua tributação proporcional” (…) (sublinhado das Requerentes),

51.°

O que significa que a progressividade ficaria necessariamente reservada para as pessoas singulares.

(…)


55.°

As pessoas coletivas, enquanto ficções legais, acabam por inelutavelmente repercutir os impostos que sobre si incidem nas pessoas singulares,

(…)


59.°

O que significa que “As pessoas coletivas são, no limite, pré-arrecadoras do imposto sobre o rendimento que sempre seria cobrado na esfera das singulares” (...) (destaque das Requerentes).

60.°

Daí que quando um Estado decide aumentar os impostos sobre as sociedades, estas funcionarão mais como cobradoras de impostos (tax collectors) do que como pagadoras de impostos (taxpayers) (...).

(…)


63.°

Certo é que a repercussão económica do impacto de qualquer tributação sobre o rendimento das pessoas coletivas se revela, no final, uma consequência inevitável,

64.°

E ocorrerá independentemente da dimensão da empresa ou dos respetivos lucros tributáveis.

65.°

Com efeito, “Na tributação das empresas, a capacidade contributiva encontra-se exposta às implicações que a existência de um imposto sobre os entes coletivos acarreta para uma suposta dupla tributação dos indivíduos, na medida em que [os indivíduos] acabam por ser os destinatários das repercussões económicas de semelhante género de tributação, o que chega mesmo a justificar a existência de posições que encontram no próprio imposto sobre as sociedades uma retenção na fonte, de natureza estrutural, sobre os rendimentos das pessoas singulares"(…) (sublinhado das Requerentes).

66.°

O que é sinónimo de dizer que a introdução de progressividade ao nível das pessoas coletivas implicará realizar, no final, discriminações entre as pessoas singulares que suportam o imposto,

67.°

Isto é, discriminações entre trabalhadores, clientes e sócios de determinadas empresas face a trabalhadores, clientes e sócios de outras.

(…)


69.°

Por seu turno - mas intimamente ligado a este ponto - está o facto de os lucros tributáveis de uma empresa pouco ou nada nos dizerem acerca da efetiva capacidade contributiva daqueles indivíduos.

70.°

Uma empresa maior - e que registe lucros tributáveis mais significativos - poderá contar com centenas ou milhares de trabalhadores a receber salários mais baixos, interagir com clientes de menores posses e revelar uma estrutura acionista que, de tão dispersa, compreenda diversos pequenos aforradores diretos ou múltiplos aforradores indiretos através de fundos de pensões e estruturas similares que naquela empresa tenham decidido investir.

71.°

Daí que a existência de lucros tributáveis maiores ao nível da empresa não seja reveladora - ou sequer indiciadora - de uma particular capacidade contributiva de qualquer daqueles grupos de indivíduos.

72.°

Este contexto - compreendido há anos por todos, incluindo legisladores - levou a que fosse liminarmente afastada a adoção de taxas progressivas na tributação das pessoas coletivas,

73.°

Privilegiando-se, por isso, invariavelmente, tributações de base proporcional.

74.°

Assim o fez o nosso legislador constituinte na CRP de 1976.

75.°

E isto não apenas por razões de eficiência ou competitividade, mas igualmente por motivações de justiça social,

76.°

Isto porque o espírito redistributivo agravado em que assentam as taxas progressivas - manifestação do princípio do estado social (…) ou “exigência do princípio do Estado Social e do princípio da igualdade, enquanto expressão da capacidade contributiva" (…) - não deve estender-se às pessoas coletivas,

77.°

Sob pena de se tributarem mais aqueles que menor capacidade contributiva revelam, ou seja, os trabalhadores, clientes e/ou sócios das empresas em quem é necessariamente repercutido o imposto que sobre aquelas incide, naquilo que alguns denominaram de repercussão diferida (...) .

(…)


79.°

Nas palavras do Professor Doutor GOMES CANOTILHO - expressas no âmbito de um parecer jurídico solicitado pelas Requerentes e dedicado, em exclusivo, à questão da constitucionalidade da derrama estadual (…) - a “tributação progressiva das empresas, para além de se revelar inapta, por si só, a promover a igualdade e a justiça social, tende a produzir efeitos contraproducentes, em virtude dos efeitos distorcionários que gera no funcionamento dos mercados" (...) .

80.°

O que significa que o caráter anómalo da derrama estadual - enquanto tributo progressivo - se prende não apenas com a corrupção da lógica redistributiva em que seria suposto assentar,

81.°

Mas igualmente com os efeitos nefastos que cria, induzindo os agentes económicos à modelação das respetivas estruturas societárias de forma a tentar mitigar o respetivo impacto financeiro.

82.°

Algo natural - os agentes reagem a incentivos e desincentivos - mas que afeta, quando falamos de tributos, os princípios da neutralidade fiscal e da liberdade de gestão,

83.°

Ambos, recorde-se, com habilitação no artigo 81.°, alínea f), da CRP (...) .

84.°

Por outro lado, a justaposição da derrama estadual ao IRC - em relação ao qual funciona como um apêndice - conduz a uma dupla tributação jurídica deveras sui generis,

85.°

Dupla tributação essa que só em circunstâncias especiais se revela legítima, conforme a nossa melhor doutrina já sublinhou.

86.°

Na realidade, a dupla tributação jurídica, [que se] concretize numa acumulação de impostos autónomos ou de impostos numa relação de dependência ou acessoriedade (...) pode justificar-se plenamente, seja pela existência de pluralidade de titulares do poder tributário (estado federal, estados federados ou regiões autónomas, autarquias locais), em que teremos a chamada dupla tributação vertical ou concurso de poderes tributários, seja por razões da própria estruturação do sistema fiscal ou de técnica tributária, entre as quais se contam as que se prendem com a autonomia financeira dos diversos níveis da atual descentralização administrativa (as autarquias locais, maxime os municípios), a reclamar a consignação de determinadas receitas fiscais, caso em que estamos perante a chamada dupla tributação horizontal ou dupla tributação tout court” (...) (destaque das Requerentes).

87.°

Acontece que aqui, no contexto da derrama estadual, estamos bem longe de qualquer daquelas circunstâncias especiais que habilitariam uma dupla tributação jurídica.

88.°

É que nenhuma dessas situações - i.e. pluralidade de titulares do poder tributário ou consignação de receitas - se encontra minimamente verificada,

89.°

Nem o titular do poder tributário é diferente: as receitas do IRC e da derrama estadual pertencem ao mesmo sujeito ativo da relação tributária (...), o Estado-administração.

90.°

Nem tão-pouco existe um qualquer propósito de proceder à consignação de receitas tributárias da derrama estadual por motivações de descentralização financeira.

91.°

Daí que esta dupla tributação que a derrama estadual vem introduzir se revele arbitrária quanto ao âmbito - limitado - de sujeitos passivos abrangidos, pois submete a uma carga fiscal determinados contribuintes, e não outros, não obstante a idêntica ou inclusive maior capacidade contributiva dos últimos (...) .

92.°

O que é equivalente a derrogar qualquer propósito de igualdade horizontal.

93.°

Intimamente relacionado com este tema está, depois, a duplicação de coleta que este regime normativo encerra, uma vez que estão verificadas as condições que a jurisprudência tem surpreendido como sendo necessárias para chegar a essa conclusão (...) ,

94.°

A saber, e em primeiro lugar, a unicidade de factos tributários - tanto o IRC como a derrama estadual incidem sobre o rendimento das pessoas coletivas.

95.°

Em segundo lugar, a identidade de natureza entre os impostos - ambos incidem sobre o rendimento das pessoas coletivas.

96.°

Por fim, a coincidência temporal do IRC e a derrama estadual.

97.°

Razões pelas quais a duplicação de coleta se revela flagrante e, nessa estrita medida, ilegal.

98.°

Mas não obstante a identidade matricial da derrama estadual com o IRC - tributo sobre o qual foi construída - há dois pontos de enorme divergência com aquele, para além da já referida progressividade.

i. A incidência sobre o lucro tributável e não sobre a matéria coletável


99.°

A derrama estadual incide sobre o lucro tributável, não sobre a matéria coletável,

100.°

O que significa que se desconsideram os prejuízos fiscais de anos anteriores, algo especialmente anormal num imposto sobre o rendimento de natureza progressiva.

(…)


132.°

Por último, mas não menos importante, a derrama estadual põe ainda em causa o princípio da proporcionalidade,

133.°

Que tem igualmente expressão no princípio da igualdade tributária, com guarida constitucional no artigo 13.° da CRP (...) ,

134.°

E que na vertente da proibição do excesso goza também de proteção constitucional no princípio do estado de direito (cf. artigo 2.° da CRP), além de ser, ele próprio, um princípio normativo concreto da ordem constitucional portuguesa e, por isso, com respaldo no artigo 18.°, n.° 2, da CRP.

As razões para tal são fáceis de enunciar.


135.°

A derrama estadual gerou, em termos de receita, cerca de € 582 milhões no ano de 2017 (...) ,

136.°

Ficando o sacrifício distribuído - como se aludiu já - por um número muito reduzido de sujeitos passivos, a saber, 1.698 sujeitos passivos (cerca de 0,36% do universo total),

(…)


156.°

Ora, se este bloco de legalidade poderia ser, por hipótese, colocado em suspenso aquando da situação de emergência nacional que o país atravessou, torna-se complicado anos mais tarde - em particular em 2018 e já completamente fora desse contexto - o regime normativo não apenas manter-se mas, inclusivamente, agravar-se.

(…)


164.°

Mas, diversamente do que sucede com essas contribuições, a derrama estadual não tem outro propósito que não o de arrecadação de receitas,

165.°

Um objetivo que é inerente a todo o sistema fiscal mas que, como bem ressalva a doutrina, “não pode autojustificar-se, pois ele próprio é limitado pelos princípios constitucionais basilares dos Estados de Direito: princípio da capacidade contributiva e tributação do rendimento real como regra" (...).

166.°

No final, o regime da derrama estadual corresponde à materialização efetiva e tangível de uma desigualdade fiscal.

167.°

Vejamos isso através de um exemplo: € 100 distribuídos por uma sociedade sujeita a IRC, derrama estadual e derrama municipal e esses mesmos € 100 distribuídos por uma segunda sociedade sujeita somente a IRC e derrama municipal. A tributação será, sem mais, completamente distinta ao nível de uma pessoa singular que invista nessas sociedades.

168.°

É que de acordo com o artigo 71.°, n.° 1, alínea a), do Código do IRS - que estabelece uma tributação liberatória de 28% - o sócio da sociedade que paga derrama estadual é tributado, nesse exemplo, em cerca de mais € 17 do que o sócio da sociedade que apenas paga derrama municipal.

169.º

A totalidade do lucro adicional que a primeira sociedade sujeita a derrama estadual precisa para distribuir os referidos € 100 euros - os € 45,99 - é apropriada pelo Estado, ao invés dos € 29,03 da sociedade sujeita, somente, a IRC e derrama municipal.

170.º

Portanto, uma diferença de cerca de 37%.

171.º

Em suma, para o mesmo rendimento líquido temos tributações completamente diferentes que seguem, sem mais, um critério grosseiro - a forma escolhida para proceder ao recorte legal da incidência de imposto -, realizando um simulacro triste - e falso - de justiça distributiva que nada tem que ver com a situação real do sujeito passivo.

(…)

V. Da violação da capacidade contributiva (logo, em simultâneo, da igualdade tributária) e da dupla tributação / duplicação de coleta


252.º

Nas palavras de SÉRGIO VASQUES, “a ideia de que o imposto deve corresponder às forças económicas do contribuinte é conhecida desde tempos imemoriais’’ (...) .

253.º

Estamos aqui, de acordo com a lição seminal de JOSÉ CASALTA NABAIS, perante o critério em que assenta o dever de pagar impostos (...) .

254.º

E, “quanto a qual deva ser esse critério, não há atualmente divergências que o mesmo deve ser o da capacidade contributiva (stuerliche Leistungsfahigkeit, taxable capacity), capacidade económica (wirrschaftliche Leistungsfahigkeit) ou capacidade de pagar (ability to pay) (...)”.

255.º

A capacidade contributiva é a condição, o critério e o parâmetro da tributação (...).

256.º

O que não quer dizer que no passado a aplicação deste princípio às pessoas coletivas tenha sido pacífica, uma vez que sobre estas não se projeta do mesmo modo que nas pessoas singulares (...).

257.º

A capacidade contributiva é, no final, uma decorrência do princípio da igualdade.

258.º

O mesmo “exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de ‘uniformidade’ - o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério - preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação" (...).

259.º

Daí que seja “entendimento generalizado da doutrina que a capacidade contributiva continua a ser um critério básico da nossa ‘Constituição fiscal’ sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103° e 104° da CRP’ (...).

260.º

No entanto, como acima se referiu, este critério básico exprime-se efetivamente de forma distinta nas pessoas coletivas, uma vez que são os indivíduos “que acabam por ser os destinatários das repercussões económicas de semelhante género de tributação [das pessoas coletivas]” (...).

261.º

É assim o princípio da igualdade que pressupõe e exige que a tributação das empresas seja proporcional, reservando a progressividade para as pessoas singulares (cf. artigo 104.°, n.° 1, da CRP).

262.º

Na realidade, o espírito redistributivo agravado em que assentam as taxas progressivas não pode aplicar-se, sem mais, às pessoas coletivas, isto sob pena de se tributar de forma mais elevada aqueles que menos capacidade contributiva revelam, em especial, os trabalhadores, clientes e/ou sócios das empresas em quem é inelutavelmente repercutido o imposto sobre o lucro que sobre estas incide - a chamada repercussão diferida (...) .

263.º

Retomemos o exemplo dos (i) € 100 distribuídos por uma sociedade sujeita a IRC, derrama estadual e derrama municipal, por comparação com (ii) os mesmos € 100 distribuídos por uma segunda sociedade sujeita somente a IRC e derrama municipal.

264.º

Aquela diferença de enquadramento conduz, no final, a níveis de tributação completamente distintos ao nível de um investidor individual.

265.º

Tal como foi referido supra, no exemplo aqui oferecido o sócio da sociedade que paga derrama estadual é tributado em cerca de € 17 mais do que o sócio da sociedade que apenas paga derrama municipal.

266.º

O que significa que a totalidade do lucro adicional que a sociedade sujeita a derrama estadual precisa para distribuir os referidos € 100 - os € 45,99 - é apropriada pelo Estado, ao invés dos € 29,03 da sociedade apenas sujeita a IRC e derrama municipal.

267.º

Portanto, uma diferença superior a 37%.

268.º

Para o mesmo rendimento líquido temos, pois, tributações completamente diferentes que seguem um critério derradeiramente arbitrário,

269.º

A saber: o critério escolhido para proceder ao recorte legal da incidência tributária.

270.º

Não há aqui, atente-se, qualquer resquício de justiça distributiva porque o modelo de tributação abstrai por completo da situação real do sujeito passivo.

271.º

Sujeito passivo que pode, inclusivamente, ser tributado, sem apelo nem agravo, pelo rendimento bruto e não pelo rendimento líquido, bastando para isso ver-lhe aplicada a taxa (liberatória) de IRS de 28% e não exista possibilidade real de a mesma se converter num mero pagamento por conta.

272.º

O que poderia, inclusive, suscitar questões de desconformidade da solução legal com as liberdades fundamentais da União Europeia - liberdade de estabelecimento e liberdade de circulação de capitais - em face de poderem existir circunstâncias onde rendimentos idênticos são tributados em Portugal de forma completamente distinta em face, por exemplo, da residência fiscal do sócio (...).

273.º

A tudo isto vem acrescer o facto - grave - de a liquidação da derrama estadual, ao contrário do IRC (imposto principal), não considerar os prejuízos fiscais de anos anteriores.

274.º

O que é um aspeto crucial na determinação da concreta capacidade contributiva.

(…)


277.º

Daí que uma tributação progressiva que abstraia dos prejuízos fiscais de anos anteriores seja um contrassenso,

278.º

Consubstanciando, nessa medida, uma realidade “manifestamente violadora do princípio da capacidade contributiva, previsto na Constituição da República Portuguesa, considerando que a dedução ou compensação das perdas constitui um ato de correta medição da capacidade contributiva (...)” (...).

279.º

Para agravar a situação, o regime de liquidação da derrama estadual constante do artigo 87.°-A, n.º 3, do CIRC negligencia por completo a lógica de unidade (...) que preside ao RETGS,

280.º

Isto na medida em que a mesma se aplica, sempre, numa base individualizada e nunca de grupo.

281.º

O que não pode também deixar de surpreender.

282.º

Recorrendo uma vez mais à jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, desta feita ao Acórdão n.° 0265/12, de 5 de julho de 2012, “a opção pelo RETGS traduz-se precisamente na determinação do lucro tributável do grupo com base na soma algébrica dos lucros e prejuízos fiscais apurados na declaração periódica de cada uma das sociedades que o integram, opção esta que se funda no princípio da capacidade contributiva, ao fazer prevalecer a capacidade do grupo sobre a capacidade contributiva individual das empresas que o integram. Ora, se a base de incidência da derrama (...) tivesse por referência o lucro de cada uma das sociedades que o integram, seria atingido o princípio da capacidade contributiva do grupo, um dos fundamentos do RETGS" (sublinhado das Requerentes).

283.º

Aliás, JOSÉ CASALTA NABAIS questiona a conformidade do regime do artigo 87.°-A, n.° 3, do CIRC com a CRP por a derrama estadual divergir do imposto principal em matéria de dedução de prejuízos fiscais no seio de um grupo que optou pelo RETGS e observa que as empresas que nele se encontrem inseridas “acabam sendo oneradas e discriminadas em razão dessa opção, porquanto ficam sujeitas a essa sobretaxa de IRC em termos de não poderem beneficiar da referida compensação lucros/prejuízos verificados no seio do grupo de empresas" (...) .

284.º

O regime da derrama estadual introduz pois, sem justificação, um desvio a um pressuposto elementar do imposto principal (IRC) que é o reconhecimento do grupo como realidade económica unitária dotado, por conseguinte, de uma capacidade contributiva igualmente única.

285.º

O cálculo atomístico do lucro tributável é, nesta sede, um elemento estranho no processo de apuramento do IRC a pagar no contexto de um grupo de sociedades sujeito ao RETGS, particularmente quando o sujeito ativo e destinatário da receita é - aqui - exatamente o mesmo.

286.º

Utilizemos como exemplo uma empresa que optou pelo RETGS e obteve o seguinte lucro tributável num determinado exercício, distribuído pelas suas 4 pessoas coletivas:

- Empresa “A”= € 2.000.000

- Empresa “B”= (€ 1.500.000)

- Empresa “C” = € 1.600.000

- Empresa “D” = (€ 1.000.000)


287.º

Nos termos do artigo 70.° do CIRC, o lucro tributável do grupo seria de € 1.100.000, o que deveria estar - a priori - abaixo do limiar necessário para despoletar a sujeição a derrama estadual.

288.º

Contudo, o imposto acessório vem, sem razão material aparente, afastar-se do regime previsto para o imposto principal no que aos grupos diz respeito e obriga a empresa “A” a pagar derrama estadual sobre o valor de € 500.000 (i.e., a parte do lucro tributável individual que excede € 1.500.000) e a empresa “C” a pagar derrama estadual sobre o valor de € 100.000 (i.e., a parte do lucro tributável individual que excede € 1.500.000).

289.º

Desconsidera-se assim, injustificadamente, a realidade unitária dos grupos, isto perante todo o “artificialismo’’ que a divisão da vida de uma empresa em períodos distintos comporta já (...),

290.º

Contexto normativo que encerra desta forma uma flagrante violação do princípio de solidariedade entre exercícios.

291.º

Razões mais do que suficientes para concluir que o princípio da capacidade contributiva consagrado nos artigos 13.°, 103.° e 104.° da CRP é direta e irremediavelmente atingido pelo atual regime da derrama estadual.

292.º

Tal como o é o princípio da tributação pelo rendimento real que, como se sabe, constitui a trave-mestra da tributação das pessoas coletivas no nosso ordenamento jurídico.

(…)

IX. Conclusões

(…)


520.º

A tudo isto acresce o facto de que contrariamente ao que sucede na tributação do rendimento das pessoas singulares - IRS - a CRP não prevê a progressividade da tributação do rendimento das empresas.

521.º

É que a progressividade da tributação ao nível das empresas “para além [de] (...) se revelar inapta, por si só, a promover a igualdade e a justiça social, tende a produzir efeitos distorcionários que gera no funcionamento dos mercados" (...).

522.º

Não se esqueça, para este efeito, a máxima de GREGORY MANKIW:

“People pay all taxes" (...)


523.º

Ou seja, as pessoas singulares pagam derradeiramente todos os impostos.

524.º

Já as pessoas coletivas, enquanto ficções legais que são, acabam por inelutavelmente repercutir os impostos que sobre si incidem nas pessoas singulares,

525.º

Isto é, nos seus trabalhadores, nos seus clientes e/ou nos seus sócios (...).

526.º

Daí que seja sobre essas pessoas singulares - e não sobre as empresas - que tributações progressivas se revelam suscetíveis de ser adequadamente impostas.

527.º

É que os lucros tributáveis de uma empresa pouco ou nada nos dizem acerca da efetiva capacidade contributiva dos indivíduos que suportam os encargos tributários.

528.º

Uma empresa maior - e que registe lucros tributáveis mais significativos - poderá contar com centenas ou milhares de trabalhadores a receber salários mais baixos, interagir com clientes de menores posses e revelar uma estrutura acionista que, de tão dispersa, compreenda diversos pequenos aforradores diretos ou múltiplos aforradores indiretos através de fundos de pensões e estruturas similares que naquela empresa tenham decidido investir, o que, no entanto, não confere a nenhum destes grupos de indivíduos uma particular capacidade contributiva.

529.º

Este contexto - compreendido há anos por todos, incluindo legisladores - levou a que fosse liminarmente afastada a adoção de taxas progressivas na tributação das pessoas coletivas,

530.º

Privilegiando-se por isso, invariavelmente, tributações de base proporcional.

531.º

Assim o fez - sem surpresa - o nosso legislador constituinte na CRP de 1976.

532.º

A introdução de progressividade ao nível das pessoas coletivas implica então derradeiramente introduzir, no final, discriminações entre trabalhadores, clientes e sócios de determinadas empresas face a trabalhadores, clientes e sócios de outras.

533.º

O que por sua vez tem implicações do ponto de vista da eficiência económica.

534.º

Recorde-se, a este nível, que “uma das principais aspirações do sistema fiscal constitucionalmente consagrado consiste na estruturação de um conjunto de soluções jurídico-fiscais economicamente neutrais, isto é, que, na medida do possível, não encorajem ou desencorajem uma particular atividade de natureza económica" (...).

535.º

Acontece, porém, que “a derrama estadual não incide de forma idêntica sobre todas as empresas, originando uma desvantagem competitiva para algumas delas, sem qualquer justificação racional, o que pode ter um forte impacto na sua competitividade diante das outras empresas do mesmo mercado relevante (que pode ser de âmbito nacional, europeu ou global)" (...).

536.º

Tal tem como efeito a “distorção da concorrência e a frustração dos princípios jurídicos e económicos estruturantes do funcionamento do mercado, designadamente o princípio da igualdade" (...).

537.º

O que não se compagina com a liberdade de gestão fiscal dos particulares e a neutralidade fiscal que compete ao Estado assegurar (cf. artigo 81.°, alínea f), da CRP).

538.º

Como indica o Professor Doutor GOMES CANOTILHO, em reflexão quanto à evolução normativa da derrama estadual, “Num quadro de normalidade orçamental, qualquer opção política de agravamento da tributação do rendimento das empresas deve ser feita em sede de IRC, com ganhos de coerência sistémica, simplicidade, transparência, certeza jurídica, previsibilidade e com observância dos princípios da universalidade, da igualdade e da concorrência" (...) .

539.º

No final - e numa análise derradeira - é o princípio da igualdade o que mais severamente é sacrificado na derrama estadual.

540.º

Não é efetivamente possível falar em igualdade quando a distribuição de lucros por uma sociedade sujeita a derrama estadual e por uma sociedade não sujeita a este adicionamento acaba por conduzir a níveis de tributação completamente diferentes na esfera do investidor,

541.º

Isto sem que o mesmo revele quaisquer características que possam justificar tal diferença de tratamento.

542.º

Em termos ilustrativos, a sociedade sujeita a derrama estadual precisa de um lucro adicional de € 45,99, em contraposição aos € 29,03 de que a sociedade não sujeita a derrama estadual necessita para assegurar ao sócio individual € 100 de lucros líquidos de imposto,

543.º

Uma diferença de aproximadamente 37%.

544.º

O investidor individual que é sócio da sociedade sujeita a derrama estadual - atenta a taxa liberatória de IRS de 28% prevista no artigo 71.°, n.° 1, alínea a), do Código do IRS - é tributado, neste exemplo, em cerca de mais € 17 do que o investidor/sócio individual da sociedade não sujeita.

545.º

Ainda no domínio da igualdade - ou melhor, da falta dela - a derrama estadual, pela própria forma como a sua base de incidência é construída, revela também uma seletividade que é incompatível com a ideia de generalidade ou universalidade dos impostos (...).

546.º

A incidência a partir de um limiar do lucro fixado em € 1,5 milhões indicia o propósito de submeter um grupo perfeitamente identificado ou identificável de empresas a um sacrifício fiscal maior do que aquele que é exigido à restante coletividade.

547.º

E o que dizer dos sujeitos passivos sujeitos à taxa marginal de 9%, isto é, aqueles com um lucro tributável superior a € 35 milhões?

548.º

A seletividade da derrama estadual é tão gritante que em 2017 - o último ano de que há informação disponível (...) - apenas 1.698 contribuintes, ou seja, cerca de 0,36% do total de sujeitos passivos de IRC, suportaram o respetivo encargo.

549.º

Uma seletividade que decorre, para além do mais, de um critério - os lucros tributáveis de uma empresa, negligenciando prejuízos ficais - que sacrifica de forma arbitrária determinados contribuintes face a outros.

550.º

Na realidade, o critério escolhido pelo legislador não seria materialmente diferente de uma solução à luz da qual se passasse a cobrar derrama estadual a sujeitos passivos que detivessem um capital social superior a € 1,5 milhões,

551.º

Ou que detivessem órgãos sociais de gestão com mais de 5 membros,

552.º

Ou que tivessem presença física em mais de 3 locais diferentes ao nível do território nacional,

553.º

Ou cujas ações estivessem admitidas à negociação em mercado regulamentado.

554.º

Qualquer um destes critérios seria meramente indiciário de qualquer coisa.

555.º

Mas pouca ou nenhuma aptidão revelaria para atender à real capacidade contributiva da empresa que é, recorde-se, o critério material de repartição dos encargos públicos aplicável aos impostos.

556.º

Todos aqueles critérios seriam, pois, derradeiramente proibidos ao abrigo do princípio da igualdade, na vertente da proibição do arbítrio.

557.º

É que o critério a que o legislador recorre para “surpreender” um facto tributário deve possuir, pois, uma natureza e peso suficientes para justificar um tratamento desigual.

558.º

Nas palavras do Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade veda “as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes" (...).

559.º

Daí o regime legal da derrama estadual violar, em simultâneo, o princípio da igualdade, o princípio da segurança jurídica, o princípio da capacidade contributiva e o princípio da tributação pelo lucro real.

560.º

Por seu turno, a derrama estadual também não passa pelo crivo da proporcionalidade que é imanente a quaisquer restrições a direitos, liberdades ou garantias ou direitos análogos a estes, como é o caso da imposição de uma obrigação tributária que atinge o direito de propriedade enquanto garantia de “espaço de autonomia pessoal" do particular (…) (cf. artigo 18.°, n.° 2, da CRP) (…),

561.º

Sobretudo na sua vertente ou máxima de necessidade ou indispensabilidade, a qual, no essencial, visa questionar “se não haverá, relativamente ao meio efetivamente escolhido, um outro meio que sendo, em princípio, tão eficaz ou idóneo como aquele para atingir o fim, seja, todavia, sensivelmente menos agressivo" (...).

562.º

A criação de um acessório - sob a forma de adicionamento - ao IRC acaba pois por subverter as regras e princípios que enformam este último, bem como os preceitos constitucionais mais elementares do direito fiscal, uma vez que a criação de derrama estava longe de ser a única medida apta a atingir os fins de arrecadação de receita e consolidação orçamental propugnados pelo Estado,

563.º

E mais distante ainda se revela de ser o mecanismo menos agressivo e restritivo dos direitos e interesses legítimos dos contribuintes.

564.º

Donde “se conclui que a manutenção da vigência da Derrama Estadual não supera o teste da necessidade, configurando uma medida violadora do princípio da proporcionalidade’’ (...).

565.º

Aliás, a própria adequação, idoneidade ou aptidão - outra das aceções do princípio da proporcionalidade - é colocada em crise quando as circunstâncias de facto que presidiram à introdução da medida restritiva (i.e., da derrama estadual) manifestamente não subsistem,

566.º

Uma comparação entre a vantagem que a solução efetivamente adotada proporciona e a desvantagem que o sacrifício imposto acarreta para o afetado - teste da proporcionalidade em sentido estrito - levamos a concluir que a restrição em causa perde toda a sua razão de ser.

567.º

A Autoridade Tributária e Aduaneira não se pronunciou, em todo o caso, sobre qualquer um destes vícios imputados à derrama estadual em sede de reclamação graciosa com o argumento de que a fiscalização da constitucionalidade lhe está vedada pelo princípio da legalidade (cf. Doc. n.° 2 ora junto).

568.º

Orientação que não colhe, uma vez que há muito que se consolidou o entendimento de que “A consagração constitucional do princípio da constitucionalidade da Administração confirma a integração das normas constitucionais no bloco de legalidade administrativa; o princípio da legalidade em sentido amplo implica também, portanto, a vinculação à Constituição” (…) (destaque das Requerentes),

569.º

Uma integração que implica “o reconhecimento de uma competência administrativa de fiscalização da constitucionalidade das leis e, mais concretamente, para a admissibilidade de um poder administrativo de rejeição das leis inconstitucionais" (...).

570.º

Uma das manifestações da chamada dimensão constitucional do princípio da legalidade é, pois, precisamente a admissibilidade da “recusa de aplicação de normas inconstitucionais por órgãos administrativos [que] permite uma abordagem à defesa preventiva da Constituição, visto que, nestas hipóteses, aqueles, ao contrário dos tribunais - chamados a reagir relativamente a ofensas à Constituição já perpetradas -, evitam o aprofundamento das inconstitucionalidades no ordenamento jurídico’’ (...)

571.º

Nessa medida, “o princípio da constitucionalidade da Administração impõe (...) prima facie, a existência de uma competência administrativa de desaplicação de normas inconstitucionais”(…) (destaque das Requerentes).

572.°

Não tendo sido este o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira, resta às Requerentes o recurso aos tribunais arbitrais tributários para a apreciação efetiva das ilegalidades - inconstitucionalidades - que inquinam o regime da derrama estadual e, por conseguinte, a correspondente liquidação” (cfr. documento com o n.º de registo no SITAF 003910941, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

2) Na sequência do referido em 1), foi constituído Tribunal arbitral coletivo, tendo dado origem ao processo n.º ….. (cfr. documento com o n.º de registo no SITAF 003910950).

3) No âmbito do processo referido em 2), foi proferida decisão arbitral, a 22.09.2020, da qual consta designadamente o seguinte:

“… II - Fundamentação

(…) Matéria de direito

7. A única questão em debate refere-se à constitucionalidade da derrama estadual.

A derrama estadual foi criada pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, que, nesse âmbito, aditou três novos artigos ao Código de IRC: os artigos 87.º-A, que institui a derrama estadual, 104.º-A, que estabelece as regras de pagamento da derrama estadual, e 105.º-A, que se reporta ao cálculo do pagamento adicional por conta. (…)

8. Como se depreende da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 26/XI/1.ª, que originou a Lei n.º 12-A/2010, este diploma teve em vista adoptar um conjunto adicional de medidas fiscais, no quadro de uma conjuntura económico-financeira excepcional de instabilidade, de modo a reforçar e a acelerar a estratégia de consolidação orçamental prevista no PEC 2010-2013, tendo como meta a redução do défice orçamental, em 2010, de 9,3% para 7,3% do PIB (anteriormente 8,3%), e, em 2011, para 4,6% (anteriormente 6,6%). Entre essas medidas contava-se a implementação de uma tributação adicional em sede de IRC, aplicando uma sobretaxa correspondente a uma derrama de 2,5 pontos percentuais às empresas cujo lucro tributável seja superior a 2 milhões de euros.

O adicional ao IRC que veio a ser instituído por essa lei, sob a designação de derrama estadual, através do aditamento do artigo 87.º-A ao CIRC, não foi acompanhada de um limite temporal de vigência e a única referência que é feita a esse propósito surge na exposição de motivos constante da Proposta de Lei nº 175/XII, no âmbito do procedimento legislativo de aprovação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que procedeu à reforma do Código do IRC.

Reconhecendo que existe um amplo consenso a nível internacional no sentido de que o IRC é o imposto com o impacto mais significativo nas decisões de investimento dos agentes económicos e que a tributação direta sobre as empresas é o instrumento fiscal mais adequado para promover o investimento em geral e o investimento direto estrangeiro em particular e que a Reforma do IRC é um elemento decisivo para o relançamento da economia nacional, esse documento refere a dado passo o seguinte:

Com este propósito, a reforma do IRC visa corrigir um conjunto de problemas crónicos que penalizam a competitividade do nosso sistema fiscal. Desde logo, o elevado nível das taxas aplicáveis. Atualmente, a taxa de IRC é de 25%. A esta acrescem a derrama municipal, cuja taxa pode ir até 1,5% do lucro tributável e a derrama estadual que incide, a uma taxa de 3%, sobre lucro tributável superior a 1,5M€ e até 7,5M€ e de 5% sobre lucro tributável superior a 7,5M€.

No âmbito da reforma do IRC propõe-se uma redução gradual da taxa de IRC para 23% em 2014, com o objetivo final de a fixar entre 17% e 19% em 2016. Simultaneamente, propõe-se a eliminação da Derrama municipal e da Derrama Estadual em 2018, de forma a que as taxas de tributação em Portugal sejam competitivas em termos internacionais, nomeadamente com os países que concorrem com Portugal na atração de investimento estrangeiro.

Não obstante, a Lei do Orçamento para 2018 (Lei n.º 114/2017), não só manteve a derrama estadual, como agravou a taxa aplicável ao último escalão (correspondente ao lucro tributável que exceda € 35.000.000), que passou de 7% para 9%.

Para explicar a manutenção da derrama estadual (e o seu agravamento), interessa reter o que se refere, na parte mais relevante, no prefácio do Relatório do Orçamento do Estado para 2018:

Portugal está novamente a convergir com os seus parceiros europeus. A economia portuguesa recuperou da severa recessão de 2011 a 2013, e do abrandamento do segundo semestre de 2015, e tem hoje condições impares, desde a adesão ao Euro, para crescer de forma sustentável, duradoura e inclusiva.

Cabe à política orçamental assumir um papel crucial na recuperação da confiança interna e externa na economia portuguesa. A continuação do processo de consolidação orçamental, alicerçada na recuperação da economia e do mercado de trabalho, tem permitido a implementação de reformas essenciais, de onde se destaca a estabilização do sistema financeiro.

[…]

Com esta política, Portugal registará, em 2017, o maior crescimento desde o ano 2000 - 2,6%. A taxa de desemprego recuará para mínimos de 2009, prevendo-se que a taxa média de 2017 se situe em 9,2%. A economia cresce sustentada pelas exportações e pelo investimento. As exportações de bens e serviços deverão registar um aumento de 8,3% em 2017, com um ganho de quota de mercado superior 3 p.p., mantendo-se a balança comercial positiva. O investimento cresce 7,7%, com uma dinâmica muito forte em todas as suas componentes.

[…]

Mas ainda há um longo percurso a fazer. A crise económica e financeira retirou à economia e à sociedade portuguesa um elevado número de recursos e desvalorizou os ativos produtivos nacionais numa dimensão que ainda não foi recuperada. A emigração de jovens portugueses, que o país conseguiu reverter em 2016, a perda permanente de empregos, que apenas parcialmente foi recuperada, e o nível da atividade económica, que permanece abaixo dos máximos do período anterior a crise, são questões que continuamos a combater.

[…]

O presente Orçamento do Estado encontra-se alinhado com os objetivos estabelecidos no Programa Nacional de Reformas 2017-2021, promovendo a implementação das reformas necessárias para continuar a superar os bloqueios estruturais que caracterizam a economia nacional.

No contexto legislativo e económico-financeiro em que se insere a derrama estadual, pode concluir-se que se trata de um imposto contingente, pelo qual se procura obter uma fonte adicional de receitas destinada à consolidação orçamental com vista à redução do défice excessivo e ao controlo do crescimento da dívida pública.

No plano estritamente jurídico, a derrama estadual caracteriza-se como um imposto acessório relativamente ao IRC, e que, não obstante ser definido pela lei como adicional, reveste a modalidade de adicionamento, na medida em que incide sobre a matéria coletável do imposto principal e não sobre a sua coleta (CASALTA NABAIS, Manual de Direito Fiscal, 8ª edição, Coimbra, 2015, pág. 81). Por outro lado, tendo sido instituída como um imposto proporcional, no ponto em que se previa a aplicação de uma taxa uniforme de 2,5% sobre a parte do lucro tributável superior a € 2 000 000, com as alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 64-B/2011 e 2/2014 transformou-se num imposto progressivo mediante a aplicação de taxas crescentes relativamente a cada um dos escalões em que passou a dividir-se a matéria tributável, significando que o imposto aumenta mais que proporcionalmente em função dos rendimentos que os contribuintes aufiram.

9. A Requerente começa por considerar que o legislador, ao instituir a derrama estadual num momento de emergência financeira, tinha gerado nos contribuintes a legítima expectativa de se tratar de um imposto transitório que apenas se manteria em vigor enquanto subsistissem as razões que justificaram a sua implementação. Incidindo sobre o lucro tributável de cada uma das sociedades do grupo, sem possibilidade de dedução dos prejuízos fiscais das demais empresas que o integram, a derrama estadual viola o princípio da tributação segundo o rendimento real, bem como o princípio da capacidade contributiva. Além disso, por efeito da progressividade da tributação do rendimento das empresas, trata-se de um imposto selectivo, afrontando os princípios da concorrência e do eficiente funcionamento do mercado, bem como o princípio da igualdade, na vertente da proibição do arbítrio. No entender da Requerente, a derrama estadual viola ainda o princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes de adequação ou idoneidade, necessidade ou indispensabilidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Para dar resposta a estas questões deve começar por efectuar-se, ainda que em termos sucintos, a caracterização dos princípios constitucionais da progressividade, da igualdade fiscal e da capacidade contributiva.

Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, um dos objectivos essenciais constitucionalmente definidos do sistema fiscal, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, é o da repartição justa dos rendimentos e da riqueza, como se depreende do artigo 103.º, n.º 1, da Constituição.

É esta vinculação do sistema fiscal à ideia de justiça social e à diminuição da desigualdade na distribuição social dos rendimentos e da riqueza que exige que o mesmo seja progressivo. Essa exigência está expressamente consagrada no âmbito da tributação do rendimento pessoal: de acordo com o n.º 1 do artigo 104.º, o imposto sobre o rendimento pessoal visa «a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar».

A progressividade fiscal requer que a relação entre o imposto pago e o nível de rendimentos seja mais do que proporcional, o que só pode alcançar-se aplicando aos contribuintes com maiores rendimentos uma taxa de imposto superior. Por outras palavras, há progressividade quando o valor do imposto aumenta em proporção superior ao incremento da matéria coletável.

Consequentemente, a Constituição exige uma progressividade com a virtualidade intrínseca de contribuir para uma diminuição da desigualdade de rendimentos (sobre todos estes aspectos, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/13, n.ºs 97, 98 e 99).

A progressividade do sistema fiscal constitui também uma exigência do princípio da igualdade material.

Conforme refere CASALTA NABAIS, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (Direito Fiscal, 8ª edição, Coimbra, 2009, págs. 151-152).

Configurando-se o princípio geral da igualdade como uma igualdade material, o princípio da capacidade contributiva – segundo o mesmo autor - enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece dum específico e directo preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respectiva “constituição fiscal” e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103º e 104º da Constituição (ob. cit., pág. 152).

Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva – dentro da mesma linha de entendimento - «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objecto e matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto» (ob. cit., pág. 154).

Também o Tribunal Constitucional, mais recentemente, tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no acórdão n.º 142/2004, onde se consigna que «[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação».

O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo».

O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adoptar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.

Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).

Por sua vez, o princípio da tributação segundo o lucro real das empresas é também uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 162/04) e a sua principal concretização traduz-se em afastar a tributação das empresas pelo seu lucro normal, isto é, tributar o rendimento que estas poderiam ter obtido em condições normais de exploração, independentemente das condições concretas em que desenvolveram a sua atividade (XAVIER DE BASTO, “O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, Fiscalidade, n.º 5, 2001, pág. 10). E, nesse sentido, a tributação segundo o lucro real pretende garantir que possa ser estabelecida uma conexão entre a matéria coletável e o imposto que se torna exigível ao contribuinte.

10. Ainda que a progressividade se encontre apenas prevista para o imposto sobre o rendimento pessoal, como um objectivo destacado da diminuição da desigualdade económica entre os cidadãos (artigo 104.º, n.º 1, da CRP), não está constitucionalmente vedado que um imposto incidente sobre as empresas possa igualmente assumir um carácter progressivo, o que só por si não é susceptível de violar o princípio da igualdade, da capacidade contributiva ou da tributação segundo o rendimento real.

Importa começar por fazer notar que a derrama estadual, não obstante incidir também sobre o rendimento das empresas, apenas se aplica às empresas que apresentem lucros tributáveis superiores a € 1.5000.000 (sendo o limiar mínimo, na versão originária, de € 2.0000.000) e à parte do lucro tributável superior ao estabelecido para cada um dos escalões, que se encontra actualmente fixado em € 6 000 000 e 7 500 000, quando o lucro atinja € 35 000 000, e em € 6 000 000, € 27 500 000 e € 35 000 000, quando o lucro exceda aquele valor.

Assim, a derrama tem por universo de destinatários um grupo circunscrito de empresas com um nível de ganhos de valor considerável, e que, em grupos societários, se afere a partir da matéria colectável mencionada na declaração individual de rendimentos de cada uma das sociedades do grupo. E embora não haja lugar à dedução dos eventuais prejuízos apurados por outras sociedades do grupo, não pode concluir-se – como já se decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 430/2016 – que há uma violação do princípio da capacidade contributiva das empresas ou do princípio da tributação segundo o rendimento real.

Com efeito, é possível estabelecer uma efetiva relação entre o imposto, tal como se encontra configurado pelo legislador, e o pressuposto económico que constitui a sua base de incidência, e que se traduz numa parte do lucro tributável auferido por empresas que apresentam um maior índice de rentabilidade, e, portanto, uma maior capacidade contributiva.

Por outro lado, incindindo o imposto sobre o lucro individualizado de cada sociedade, não pode afirmar-se que é posto em causa o princípio da tributação segundo o rendimento real, visto que o que é objecto de tributação é o lucro efectivo apurado por cada uma das empresas do grupo e, como tal, inscrito na sua declaração de rendimentos.

O que pode dizer-se é que a não dedutibilidade dos prejuízos fiscais de outras empresas integrantes constitui um mecanismo destinado a evitar que uma receita fiscal adicional, que é justificada por razões de natureza conjuntural e assenta em resultados económicos positivos, possa ser neutralizada pelos resultados negativos que possam ser imputados a outros membros do grupo societário.

Importa a este respeito sublinhar que a assunção da substância económica do grupo de sociedades e, consequentemente, a possibilidade de determinação de uma base de tributação comum, não se assume, no ordenamento interno, como um modelo de consolidação total e pleno. O modelo existente é de Group Pooling, isto é, permite-se a agregação dos resultados individuais de cada membro do grupo societário (rendimentos e perdas) por forma a permitir-se a compensação, sendo a gestão dessa agregação da competência da sociedade dominante, sem que se verifique a perda da existência jurídica individual e das obrigações fiscais individuais de cada uma das sociedades dominadas. E, nesse sentido, o regime especial de tributação de grupos de sociedades apenas admite um reconhecimento parcial da agregação das contas do grupo de sociedades, nada obstando a que o legislador possa instituir para situações fiscais específicas um regime jurídico que afaste a possibilidade de compensação entre ganhos e perdas no âmbito do grupo (cfr. neste sentido, acórdão proferido no Processo n.º 133/2019-T).

Recorde-se ainda que o regime especial de tributação de grupos de sociedades é de aplicação facultativa e de acesso condicionado aos requisitos estabelecidos na lei, não abrangendo todas ou outras possíveis realidades de empresas plurissocietárias e o legislador não prescinde da entrega individualizada das declarações de rendimentos de cada uma das sociedades que compõem o grupo, mesmo que estabeleça o cálculo da matéria coletável do IRC a partir da soma algébrica dos lucros e prejuízos declarados pelas várias sociedades. E a própria modelação deste regime especial de tributação revela a ampla margem de conformação do legislador na definição da matéria tributável.

Conclui-se que progressividade do imposto e a não dedutibilidade dos prejuízos fiscais no âmbito do grupo societário não afrontam os parâmetros de constitucionalidade considerados.

10. A Requerente alega ainda que a derrama estadual é selectiva, não incidindo de forma idêntica sobre todas as empresas, originando uma desvantagem competitiva para algumas delas, sem qualquer justificação racional, o que provoca uma distorção da concorrência e viola os princípios estruturantes do funcionamento dos mercados, e, designadamente, o princípio da igualdade, a liberdade de gestão fiscal dos particulares e a neutralidade fiscal que ao Estado.

Como se deixou dito, o princípio da igualdade tributária concretiza-se através de diversas vertentes e, entre elas, na uniformidade da lei de imposto e na proibição do arbítrio. A uniformidade pressupõe o tratamento igualitário dos contribuintes que se encontrem em situações iguais e o tratamento diferenciado daqueles que se encontrem em situações diferentes e possam revelar uma maior capacidade contributiva; a proibição do arbítrio veda a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional.

Como resulta da exposição de motivos da Lei n.º 12-A/2010, a que já se fez referência, a tributação adicional em IRC mediante a aplicação de uma sobretaxa correspondente a uma derrama a empresas cujo lucro tributável a € 2 000 000 (depois, a partir de € 1 500 000) foi motivada pelo interesse geral, numa conjuntura económico-financeira excepcional de instabilidade e de ataques especulativos nos mercados financeiros, e teve em vista, a par de um conjunto de outras de medidas fiscais, reforçar e a acelerar a estratégia de consolidação orçamental prevista no PEC 2010-2013.

Não se pode afirmar, por conseguinte, que a implementação da derrama estadual se mostre como uma medida arbitrária, desprovida de fundamento razoável ou de justificação objectiva e racional. Por outro lado, ao afectar as empresas com um lucro tributável muito considerável e ao estabelecer, através de sucessivas alterações legislativas, a progressividade do imposto, a lei continua a salvaguardar o princípio da capacidade contributiva, exigindo um maior esforço do ponto de vista fiscal às empresas que auferem mais elevados rendimentos e de acordo com um escalonamento diferenciado em função dos rendimentos auferidos.

Certo é que na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 175/XII, que esteve na base do diploma que procedeu à reforma do Código do IRC (Lei n.º 2/2014), se propõe uma redução gradual da taxa de IRC para 23% em 2014, com o objetivo final de a fixar entre 17% e 19% em 2016, e simultaneamente, a eliminação da derrama municipal e da derrama estadual em 2018. O objectivo era assegurar que as taxas de tributação das empresas se tornem competitivas em termos internacionais, em vista à atração de investimento estrangeiro.

No entanto, a Lei n.º 2/2014, embora tenha reduzido a taxa de IRC para 23%, mediante a nova redacção dada ao artigo 87.º, n.º 1, do CIRC (que foi fixada em 21% com a Lei do Orçamento de Estado para 2015), manteve a derrama estadual e até produziu um agravamento fiscal através da criação de um novo escalão (superior a € 35 000 000), a que se tornou aplicável a taxa de 7%.

Neste contexto, o anúncio da eliminação da derrama a partir de 2018, inserindo-se na mesma finalidade central de aumentar a competividade da economia, não é mais do que uma medida programática, tal como a pretendida redução da taxa de IRC entre 17% e 19% para o ano de 2016, que não teve qualquer reflexo no plano normativo, nem pode ser encarada como gerando a legítima expectativa da efectiva supressão da derrama nesse mesmo ano ou representando a violação do princípio da segurança jurídica.

E embora o Relatório do Orçamento do Estado para 2018 tenha dado indicação de um progresso da economia portuguesa, mediante o registo, em 2017, do aumento do crescimento, sustentado pelas exportações e o investimento, e a redução da taxa de desemprego, que permitiu uma recuperação relativamente à recessão de 2011 a 2013, o documento não deixa de assinalar a necessidade de implementação das reformas para continuar a superar os bloqueios estruturais que caracterizam a economia nacional, em parte determinados pela anterior crise económica e financeira.

É a todos os títulos evidente e de conhecimento geral que, em 2018, ainda se colocavam constrangimentos de política fiscal determinados pela necessidade de consolidação orçamental, centrada na diminuição da despesa e no aumento da receita, e de redução dos níveis de endividamento público.

Assim se compreende que a Lei do Orçamento do Estado para 2018, não só não tenha abolido a derrama estadual, como tenha ainda procedido um agravamento fiscal, ao aumentar a taxa aplicável ao último escalão, que passou de 7% para 9%.

Por outro lado, não cabe ao tribunal declarar, substituindo-se ao poder legislativo, que em 2018 cessaram as razões de contingência que tinham justificado a criação da derrama estadual – o que, aliás, seria hoje desmentido pela grave situação económica e social gerada pela situação epidemiológica -, e o que importa reter é que a medida se encontra legitimada por poderosas razões de política fiscal – o que afasta a violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio – e, pela sua específica configuração, não afronta o princípio da capacidade contributiva.

11. A Requerente refere ainda que a derrama estadual ofende o princípio da proporcionalidade nas suas diferentes vertentes de necessidade ou indispensabilidade, de adequação e idoneidade e de proporcionalidade em sentido estrito. Questiona se não haveria um outro meio que sendo, em princípio, tão eficaz ou idóneo para atingir o fim pretendido, pudesse ser menos agressivo, e argumenta que as circunstâncias de facto que presidiram à introdução da medida restritiva já não subsistem na actualidade. Por outro lado, considera que a medida é excessiva tendo como ponto de referência a comparação entre a vantagem que a solução adoptada proporciona para o interesse público e o sacrifício que é imposto aos destinatários da medida.

É esta a questão que cabe agora analisar.

No que respeita à adequação do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei, sublinha-se que o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido ou contribuir para o alcançar. No entanto, “o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado” (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009).

O princípio da indispensabilidade exige que as medidas restritivas se tornem necessárias por não poderem ser obtidos por outros meios menos onerosos e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito significa que os meios e os fins a atingir se devem situar na justa medida, impedindo a adopção de medidas desproporcionas ou excessivas relativamente aos fins visados. Como refere JORGE REIS NOVAIS, o princípio da indispensabilidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito partem de perspectivas distintas. “Enquanto que o critério de indispensabilidade se baseia numa comparação e opção entre meios condicionada pela comparação dos respectivos efeitos restritivos, já o controlo da proporcionalidade se baseia, essencialmente, numa relação de meio-fim, ou mais precisamente, numa relação de adequação ou inadequação entre o agravo produzidos na esfera dos particulares afectados com a restrição e o fim que justifica essa restrição ou o benefício que ela pretende proporcionar” (Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, pág. 176).

Ora, não pode deixar de reconhecer-se que a criação da derrama estadual constitui objectivamente uma medida idónea para o fim se pretendia atingir que era o de aumentar a receita fiscal numa conjuntura especialmente negativa, e, nesse sentido, permite a aproximação ao resultado pretendido, satisfazendo, por isso, o princípio da idoneidade ou da aptidão.

Acresce que a derrama estadual foi instituída conjuntamente com outras medidas de obtenção adicional de receita em sede de IRC, no quadro de uma estratégia de consolidação orçamental, tendo em vista a correção do défice excessivo e a redução da dívida pública, e não tinha limite temporal de vigência, não podendo afirmar-se que, em 2018, se encontravam já ultrapassadas as condicionantes, sobretudo no plano do endividamento externo e da recuperação da economia e do mercado do trabalho, que tinham justificado essa solução legislativa, ou que, a essa data, já não fosse necessário prosseguir com o processo de consolidação orçamental, quando se constata que o Relatório do Orçamento do Estado para 2018 tinha justamente apontado esse como um dos objectivos da lei orçamental para esse ano.

Por outro lado, o controlo da indispensabilidade tem de se basear em critérios objectivos, tornando-se necessário identificar os meios restritivos alternativos que possuíssem idêntica aptidão para a prossecução do mesmo fim (JORGE REIS NOVAIS, ob. e loc. cit.). A Requerente não indica quais os meios que poderiam ser mais eficazes e menos agressivos para as empresas com avultados rendimentos, sendo que a comparação apenas pode ser realizada de acordo com um princípio de evidência, e sempre seria complexo detectar a violação do princípio da indispensabilidade quando a Lei n.º 12-A/2010, para atingir os seus objectivos de política fiscal, igualmente veio prever uma tributação adicional em IVA, com o aumento de um ponto percentual em todas as taxas, normal, intermédia e reduzida, e uma tributação adicional em sede de IRS, mediante o aumento, em 1 ponto percentual, das taxas gerais deste imposto aplicáveis até ao 3.º escalão de rendimentos e em 1,5 pontos percentuais a partir do 4.º escalão, bem como um aumento correspondente nas taxas liberatórias de IRS.

Também não parece que a norma do artigo 87.º-A da Lei n.º 12-A/2010 afronte um princípio da proporcionalidade em sentido estrito quando o controlo da proporcionalidade, nesse plano, tem como critério orientador a comparação entre a gravidade da restrição e a importância ou premência dos interesses que justificam a restrição. Incidindo a derrama estadual sobre empresas com lucros tributáveis superiores a € 1.500.000 (ou € 2.000.000, na versão originária), com taxas progressivas em função do lucro tributável apurado, e, portanto, sobre empresas com maior capacidade contributiva, não se vê em que termos é que a medida se mostra ser desproporcionada em razão do interesse público em presença quando esse mesmo interesse geral determinou um agravamento fiscal da população em geral, seja através de impostos indirectos, seja através do imposto sobre o rendimento pessoal.

12. A Requerente alega ainda que a derrama estadual viola o princípio do funcionamento dos mercados, a liberdade de gestão fiscal dos particulares e o princípio da neutralidade fiscal, fazendo referência a esse propósito ao artigo 81.º, alínea f), da Constituição.

O artigo 81.º insere-se na constituição económica onde se encontram definidos os princípios essenciais da organização económica do Estado e enuncia especificamente as incumbências prioritárias do Estado no âmbito económico e social, aludindo a tarefas ou directivas políticas de carácter heterógeno e não imediatamente determináveis.

A alínea f), referindo-se à tarefa de assegurar o funcionamento eficiente dos mercados de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas tem em vista a defesa da concorrência, que constitui um dos princípios essenciais do direito da união europeia e que tem como principais objectivos a proibição de práticas restritivas, a repressão de abusos de posição dominante e o controlo preventivo de operações de concentração (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol I, 4.ª edição, Coimbra, págs. 969-970).

Por seu turno, a liberdade de gestão fiscal pode ser entendida como uma expressão da liberdade económica e de empresa, que tem assento no artigo 86.º, n.º 2, da Constituição, que postula essencialmente a liberdade de escolha e planificação da vida económica e empresarial por parte dos operadores económicos e a proibição ou limitação de ingerência na gestão das empresas privadas.

Poderá entender-se que esses dois princípios – eficiente funcionamento dos mercados e liberdade de empresa – consubstanciam a exigência de neutralidade fiscal, de modo a que o próprio sistema fiscal não constitua um condicionamento desproporcionado da liberdade de iniciativa económica e um elemento de distorção dos mercados (CASALTA NABAIS, Manual de Direito Fiscal, cit., págs. 159-160).

Não está, no entanto, evidenciado de que modo é que a derrama estadual, incindindo sobre empresas com rendimentos avultados que dispõem de capacidade contributiva para suportar o imposto, possa afectar especialmente o direito à concorrência, como emanação da incumbência estadual de assegurar o eficiente funcionamento dos mercados, ou a liberdade de iniciativa empresarial.

Por todo o exposto, entende-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 87.º-A do Código do IRC, na redação introduzida pela Lei n.º 114/2017, 29 de Dezembro, vigente à data dos factos, e, consequentemente, julgar improcedente o pedido arbitral, e prejudicado o conhecimento do pedido de condenação da Autoridade Tributário no reembolso do imposto e no pagamento de juros indemnizatórios” (cfr. documento com o n.º de registo no SITAF 003910940, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da nulidade da decisão impugnada por omissão de pronúncia

Entendem as Impugnantes que a decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º ….. padece de nulidade, por omissão de pronúncia, em dois aspetos:

a) Por um lado, nada consta da decisão impugnada atinente à sobreposição da derrama estadual ao IRC, que redunda numa ilegítima duplicação de tributação ou duplicação de coleta, alegada nos art.ºs 84.º a 97.º e 252.º a 292.º do articulado inicial;

b) Por outro lado, nada consta na decisão arbitral em termos de a compatibilidade (ou não) com o princípio da igualdade em sentido estrito, bem como com o seu corolário da capacidade contributiva, deste adicional progressivo ao IRC, quando analisado sob a ótica da sua repercussão sobre indivíduos cuja capacidade contributiva nada tem a ver com a da empresa.

Apreciando.

A sindicância das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais tributários é limitada às situações previstas no art.º 25.º (que prevê a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos circunscritos aí previstos) e nos art.ºs 27.º e 28.º, todos do RJAT. Estes últimos, relativos à impugnação da decisão arbitral junto do Tribunal Central Administrativo, definem, de forma taxativa, os termos e os fundamentos dessa mesma impugnação. Resulta desta disciplina que, ao contrário do que decorre do regime de recurso das decisões proferidas pelos tribunais tributários de 1.ª instância, o mérito das decisões proferidas pelos tribunais arbitrais tributários é sindicável num conjunto muito limitado de situações (cfr. novamente o art.º 25.º do RJAT) e nunca no âmbito da sua impugnação junto do Tribunal Central Administrativo.

Centrando-nos, pois, na impugnação da decisão arbitral junto do TCA, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, do RJAT, tal decisão pode ser anulada, sendo que a impugnação pode ser apresentada considerando um dos fundamentos taxativamente elencados no n.º 1 do art.º 28.º do mesmo diploma.

Assim, nos termos desta última disposição legal, a decisão arbitral é impugnável com fundamento em:

“a) não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

b) oposição dos fundamentos com a decisão;

c) pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia;

d) violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos em que estes são estabelecidos no artigo 16.º”.

Logo, atento o art.º 28.º, n.º 1, al. c), do RJAT, a decisão arbitral é impugnável com fundamento em omissão de pronúncia.

Tendo em conta o disposto no art.º 29.º, n.º 1, do RJAT, é de considerar a disciplina subsidiariamente aplicável, de onde se destacam as normas constantes do CPPT, do CPTA e do CPC [cfr. art.º 29.º, n.º 1, als. a), c) e e), do RJAT].

Atentando no art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há omissão de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC].

As questões que o juiz deve conhecer são ou as alegadas pelas partes ou as que sejam de conhecimento oficioso.

A este propósito cumpre sublinhar a diferença entre questões e argumentos suscitados pelas partes, porquanto apenas o não conhecimento das questões se configura como omissão de pronúncia.

Assim, para os efeitos do art.º 608.º, n.º 2, do CPC, questões são os pontos de facto ou de direito, atinentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções. Já os argumentos são os motivos ou razões que fazem sustentar a pretensão inerente às questões. “As questões (…) reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes” (1).

A dicotomia questões / argumentos, nos termos sumariamente descritos, implica, pois, que o julgador tenha de conhecer todas as questões que lhe são colocadas (exceto se o conhecimento de umas resultar prejudicado pelo conhecimento de outras), já não lhe sendo exigível que se pronuncie sobre todos os argumentos esgrimidos (2).

Feito este enquadramento, apliquemos os conceitos ao caso dos autos, apreciando separadamente cada uma das alegadas omissões de pronúncia.

III.A.1. Quanto à dupla tributação e/ou duplicação de coleta

Como referimos, consideram as Impugnantes que a decisão impugnada padece de omissão de pronúncia, em virtude de não ter sido a ocorrência de uma situação de dupla tributação ou de duplicação de coleta objeto de conhecimento.

Compulsado o pedido de pronúncia arbitral, verifica-se que as Impugnantes invocam a existência de dupla tributação e/ou duplicação de coleta entre a derrama estadual e o IRC em diversos momentos e sob diversas perspetivas, como decorre da análise do pedido de constituição de tribunal arbitral.

Refira-se, antes de mais, que o alegado em torno de ter havido, sob alguns prismas, avaliação superficial pelo Tribunal arbitral é aspeto que extravasa a nossa intervenção e que se relaciona com o erro de julgamento, o que se encontra arredado da apreciação em sede de impugnação da decisão arbitral perante o TCAS.

Centremo-nos, pois e exclusivamente, na questão de saber se a dupla tributação ou a duplicação de coleta foi alegada, por um lado, como questão e não como argumento e, caso seja alegada como questão, se foi ou não conhecida.

Desde já se refira que se entende que a mesma foi abordada sob ambos os prismas, ou seja, quer como questão autónoma quer como argumento.

Explicitemos.

Compulsado o pedido de pronúncia arbitral, verifica-se que a “justaposição da derrama estadual ao IRC” é invocada nos artigos desse articulado citados pelas Impugnantes nas suas conclusões, na perspetiva de que não se reúnem as circunstâncias especiais que tornem legítima tal dupla tributação, revelando-se, assim, arbitrária.

Por outro lado, alegam que estão verificados os pressupostos da unicidade de factos tributários, da natureza dos impostos e da coincidência temporal dos tributos, que conduz à ilegalidade da derrama (cfr. art.ºs 93.º a 97.º do pedido de pronúncia arbitral).

Ou seja, por um lado, as Impugnantes configuram aquilo que classificam como dupla tributação e/ou duplicação de coleta quer como vício de ilegalidade quer associado com a inconstitucionalidade invocada.

Quanto à tributação adicional em IRC através da derrama estadual, o Tribunal arbitral pronunciou-se, em termos da sua justificação.

Ali se refere: “a tributação adicional em IRC mediante a aplicação de uma sobretaxa correspondente a uma derrama a empresas cujo lucro tributável a € 2 000 000 (depois, a partir de € 1 500 000) foi motivada pelo interesse geral, numa conjuntura económico-financeira excepcional de instabilidade e de ataques especulativos nos mercados financeiros (…) // Não se pode afirmar, por conseguinte, que a implementação da derrama estadual se mostre como uma medida arbitrária, desprovida de fundamento razoável ou de justificação objectiva e racional. // Por outro lado, não cabe ao tribunal declarar, substituindo-se ao poder legislativo, que em 2018 cessaram as razões de contingência que tinham justificado a criação da derrama estadual – o que, aliás, seria hoje desmentido pela grave situação económica e social gerada pela situação epidemiológica -, e o que importa reter é que a medida se encontra legitimada por poderosas razões de política fiscal – o que afasta a violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio – e, pela sua específica configuração, não afronta o princípio da capacidade contributiva”.

Portanto, deste ponto de vista da alegada arbitrariedade da tributação paralela em sede de IRC e em sede de derrama estadual, que as Impugnantes configuram como dupla tributação, a mesma foi conhecida.

Já quanto à ilegalidade por dupla tributação jurídica ou duplicação de coleta, alegada pelas Impugnantes, a mesma, per se, não foi analisada, não obstante ter sido expressamente invocada.

Com efeito, como resulta designadamente do art.º 93.º do pedido de pronúncia arbitral, as Impugnantes referem que “[i]ntimamente relacionado com este tema está, depois, a duplicação de coleta que este regime normativo encerra, uma vez que estão verificadas as condições que a jurisprudência tem surpreendido como sendo necessárias para chegar a essa conclusão”, concluindo no art.º 98.º: “[r]azões pelas quais a duplicação de coleta se revela flagrante e, nessa estrita medida, ilegal”.

Ou seja, para além do alegado a propósito da inconstitucionalidade do regime, as Impugnantes invocaram autonomamente um vício de violação de lei, que não foi conhecido pelo Tribunal arbitral, não decorrendo da decisão impugnada que tal questão resulte prejudicada pelo conhecimento da demais.

Como tal, nesta perspetiva, assiste razão às Impugnantes.

III.A.2. Quanto princípio da igualdade em sentido estrito

Consideram as Impugnantes, a este propósito, que nada consta na decisão arbitral em termos de compatibilidade (ou não) com o princípio da igualdade em sentido estrito, bem como com o seu corolário da capacidade contributiva, deste adicional progressivo ao IRC, quando analisado sob a ótica da sua repercussão sobre indivíduos cuja capacidade contributiva nada tem a ver com a da empresa.

Vejamos.

Compulsado o pedido de pronúncia arbitral, verifica-se que no mesmo é alegado, em sede de apreciação da questão da progressividade da derrama estadual, que as pessoas coletivas acabam por repercutir os impostos sobre as mesmas incidentes nas pessoas singulares e que essa progressividade acabará por implicar discriminações entre as pessoas singulares que suportam o imposto.

Ora, sendo certo que as questões de inconstitucionalidade são verdadeiras questões e, por isso mesmo, devem ser conhecidas (3), isso não significa que não haja, para cada questão de inconstitucionalidade, vários argumentos que se podem esgrimir, sendo que, como já referimos supra, não há omissão de pronúncia quando o Tribunal não se pronuncie sobre um determinado argumento, conquanto a questão em que tal argumento se integra seja conhecida.

In casu, o alegado a propósito da repercussão nos particulares configura-se como um argumento tendente a sustentar a alegação de inconstitucionalidade, em virtude de a progressividade ser estranha à tributação das pessoas coletivas, podendo redundar numa violação do princípio da igualdade.

Retornando ao caso concreto, da decisão arbitral impugnada resulta que a questão da inconstitucionalidade da progressividade da derrama estadual e, bem assim, da sua compatibilidade com o princípio da igualdade foi apreciada. Ali se refere:

… [N]ão está constitucionalmente vedado que um imposto incidente sobre as empresas possa igualmente assumir um carácter progressivo, o que só por si não é susceptível de violar o princípio da igualdade, da capacidade contributiva ou da tributação segundo o rendimento real.

(…) Assim, a derrama tem por universo de destinatários um grupo circunscrito de empresas com um nível de ganhos de valor considerável, e que, em grupos societários, se afere a partir da matéria colectável mencionada na declaração individual de rendimentos de cada uma das sociedades do grupo. E embora não haja lugar à dedução dos eventuais prejuízos apurados por outras sociedades do grupo, não pode concluir-se (…) que há uma violação do princípio da capacidade contributiva das empresas ou do princípio da tributação segundo o rendimento real.

Com efeito, é possível estabelecer uma efetiva relação entre o imposto, tal como se encontra configurado pelo legislador, e o pressuposto económico que constitui a sua base de incidência, e que se traduz numa parte do lucro tributável auferido por empresas que apresentam um maior índice de rentabilidade, e, portanto, uma maior capacidade contributiva.

(…) Conclui-se que progressividade do imposto e a não dedutibilidade dos prejuízos fiscais no âmbito do grupo societário não afrontam os parâmetros de constitucionalidade considerados.

(…) A Requerente alega ainda que a derrama estadual é selectiva, não incidindo de forma idêntica sobre todas as empresas, originando uma desvantagem competitiva para algumas delas, sem qualquer justificação racional, o que provoca uma distorção da concorrência e viola os princípios estruturantes do funcionamento dos mercados, e, designadamente, o princípio da igualdade, a liberdade de gestão fiscal dos particulares e a neutralidade fiscal que ao Estado.

Como se deixou dito, o princípio da igualdade tributária concretiza-se através de diversas vertentes e, entre elas, na uniformidade da lei de imposto e na proibição do arbítrio. A uniformidade pressupõe o tratamento igualitário dos contribuintes que se encontrem em situações iguais e o tratamento diferenciado daqueles que se encontrem em situações diferentes e possam revelar uma maior capacidade contributiva; a proibição do arbítrio veda a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional.

Como resulta da exposição de motivos da Lei n.º 12-A/2010, a que já se fez referência, a tributação adicional em IRC mediante a aplicação de uma sobretaxa correspondente a uma derrama a empresas cujo lucro tributável a € 2 000 000 (depois, a partir de € 1 500 000) foi motivada pelo interesse geral, numa conjuntura económico-financeira excepcional de instabilidade e de ataques especulativos nos mercados financeiros, e teve em vista, a par de um conjunto de outras de medidas fiscais, reforçar e a acelerar a estratégia de consolidação orçamental prevista no PEC 2010-2013.

Não se pode afirmar, por conseguinte, que a implementação da derrama estadual se mostre como uma medida arbitrária, desprovida de fundamento razoável ou de justificação objectiva e racional. Por outro lado, ao afectar as empresas com um lucro tributável muito considerável e ao estabelecer, através de sucessivas alterações legislativas, a progressividade do imposto, a lei continua a salvaguardar o princípio da capacidade contributiva, exigindo um maior esforço do ponto de vista fiscal às empresas que auferem mais elevados rendimentos e de acordo com um escalonamento diferenciado em função dos rendimentos auferidos.

(…) Por outro lado, não cabe ao tribunal declarar, substituindo-se ao poder legislativo, que em 2018 cessaram as razões de contingência que tinham justificado a criação da derrama estadual – o que, aliás, seria hoje desmentido pela grave situação económica e social gerada pela situação epidemiológica -, e o que importa reter é que a medida se encontra legitimada por poderosas razões de política fiscal – o que afasta a violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio – e, pela sua específica configuração, não afronta o princípio da capacidade contributiva”.

Considera-se assim que, tendo sido a questão conhecida, como foi, não há omissão de pronúncia. É certo que o Tribunal arbitral não refere explicitamente o argumento aventado quanto à repercussão, mas pronuncia-se sobre a questão em termos suficientes, concluindo inexistir qualquer discriminação na disciplina em causa que se revele atentatória da nossa lei fundamental.

Como tal, nesta parte não assiste razão às Impugnantes.

Em suma, verifica-se apenas ocorrer omissão de pronúncia, quanto à questão da ilegalidade por dupla tributação ou duplicação de coleta, alegada expressamente pelas Impugnantes.

Uma vez que se considera inexistir tributação em custas, em casos como o dos autos, dada a ausência de contra-alegações, resulta prejudicada a apreciação do requerido em termos de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Julgar procedente a presente impugnação e, em consequência, declarar a nulidade de decisão arbitral proferida no âmbito do processo ….., por omissão de pronúncia, e determinar a baixa dos autos ao CAAD, para, se a tal nada obstar, ser proferida nova decisão, suprida da concreta irregularidade identificada;

b) Sem custas;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 11 de fevereiro de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Vital Lopes]

Tânia Meireles da Cunha

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(1) António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2019, p. 727.
(2) Cfr. José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 320; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 219 e 220.
(3) Neste sentido, v. os Acórdãos deste TCAS de 22.10.2015 (Processo: 08101/14), de 15.09.2016 (Processo: 09210/15), de 11.07.2019 (Processo: 9207/15.5BCLSB), de 31.10.2019 (Processo: 95/17.8BCLSB) e de 07.05.2020 (Processo: 141/19.0BCLSB).