Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1388/09.3 BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:10/04/2023
Relator:LURDES TOSCANO
Descritores: REVERSÃO
CULPA
ÓNUS DA PROVA
Sumário:I. No âmbito do art.º 24.º, n.º 1, al. a), da LGT, cabe à AT a demonstração do comportamento culposo do revertido.

II. O relevo atribuído a sentença penal condenatória relativamente a terceiros ocorre apenas nos casos em que estes sejam titulares de uma relação jurídica dependente da infração criminal.

III. Concluindo o Tribunal a quo pela não demonstração por parte da AT do pressuposto da culpa, estamos perante uma decisão que comporta a extinção da execução relativamente ao oponente revertido.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de execução fiscal e de recursos contra-ordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública, veio, em conformidade com o artigo 282.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, a qual julgou procedente a oposição deduzida por J....... ao processo de execução fiscal n.º ..........48, instaurado originariamente à firma “J......., Lda.

O Recorrente termina as alegações do seu recurso formulando as conclusões seguintes:
«a) O Tribunal “a quo” não deu como provada a gerência de direito por parte do oponente, considerando o mesmo parte ilegítima no processo de execução fiscal;
b) A RFP discorda dos factos dados como provados, bem como das conclusões da decisão judicial recorrida;
c) Decorrido o prazo para apresentação das alegações escritas, nos termos do art. 120.º ex vi art. 211.º, ambos do CPPT, (momento a partir do qual já não existiu qualquer intervenção da RFP neste processo de oposição), adveio ao conhecimento desta Representação, através de informação prestada pelos Serviços de Investigação Criminal e Fiscal da Direção de Finanças de Santarém, elementos de prova, designadamente, acórdãos proferidos pelo Tribunal Judicial de Santarém, datado de 21/01/2013 (NUIPC 382/07.3TASTR) e Tribunal da Relação de Évora, datado de 15/07/2014 (Pr. 382/07.3TASTR. E1), no âmbito do processo-crime, que contrariam os factos dados como provados pelo Tribunal Recorrido, que agora se juntam e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais - Doc, 1 e 2;
d) Estes documentos revelam-se fulcrais para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
e) Atendendo à importância dos referidos documentos e ainda que os mesmos não eram do conhecimento desta RFP, desde já se requer a não condenação em multa pela sua junção.
f) Em sede de processo-crime, com trânsito em julgado no dia 06/10/2014, foi o oponente J……., condenado pela prática, em concurso efetivo, de um crime de fraude fiscal, e um crime de insolvência dolosa, em cúmulo jurídico, na pena única de três anos de prisão;
g) Após recurso para o Tribunal da Relação de Évora, o arguido, aqui oponente viu confirmada a condenação, tendo sido apenas alterada a pena aplicada, de prisão efetiva, para pena suspensa, mediante a condição do pagamento ao Estado da quantia de € 295 758,38 (duzentos e noventa e cinco mil setecentos e cinquenta e oito euros e trinta e oito cêntimos);
h) Assim, do ponto de vista das instâncias dos Tribunais Judiciais de primeira e segunda instância, atrás aludidas, ficou provado de forma clara e sem margem para qualquer dúvida, que o oponente exerceu a gerência de facto da devedora originária, desde o ano de 1996 até à declaração de insolvência da mesma; isto é,
i) Ficou comprovado que os negócios da empresa eram ordenados e realizados pelo oponente, que era este que contratava com clientes e fornecedores, acordando preços, contratando trabalhadores, dando-lhes ordens, diretivas, instruções, inclusivamente negociando com instituições bancárias, ou seja, realizando todos os atos de gestão corrente e normal de uma sociedade;
j) Assim, contrariamente ao firmado no âmbito do processo-crime, decidiu o Tribunal “a quo” que da prova analisada ficou demonstrado que o oponente J……. deixou de exercer a gerência da devedora originária em 2002;
k) Mas a apreciação dos Meritíssimos e Venerando Juízes vai mais além, pois deram ainda como provado que o oponente engendrou um plano com o propósito, conseguido, de fazer desaparecer o património da sociedade devedora originária e, dessa forma fazer diminuir o ativo patrimonial da mesma, factos que determinaram a condenação do mesmo pela prática do crime de insolvência dolosa;
l) Contudo, perante a mesma realidade foram proferidas decisões judiciais completamente antagónicas, do ponto de vista penal e fiscal;
m) Sendo certo, que a avaliação das provas a realizar em sede processual penal é muito mais exigente;
n) Perante todos os factos, conclui esta RFP que se encontram preenchidos todos os requisitos legais que legitimam a Administração Tributária a proceder à reversão das dívidas tributárias contra os seus responsáveis subsidiários – gerência de facto e culpa pela inexistência de bens da devedora originária;
o) Pese embora, o Tribunal “a quo” ter proferido a sua decisão, a mesma não transitou em julgado, existindo nesta data novos elementos de prova, para além dos já constantes nos autos, que demonstram de forma clara e inequívoca, que as conclusões deste Tribunal, não espelham a realidade material, pelo que, não pode esta RFP aceitar o juízo decisório ora em recurso, maxime pelas decretadas decisões que agora se juntam.
p) Pelo que se conclui existir erro de julgamento.
Nestes termos e nos demais de Direito que esse Venerando Tribunal entenda por bem suprir, promove a Fazenda Pública que seja dado provimento ao recurso, devendo, em consequência, ser anulada a decisão judicial recorrida, com o que se fará a sempre e tão almejada Justiça!»
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O Recorrido J…… contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«1. Por decisão judicial do Tribunal da Comarca de Santarém sob o n.º 1471/05.4TBSTR proferida em 21.03.2006, e transitada em 21.04.2006, foi declarada a insolvência da empresa devedora originária sociedade comercial J…….., Lda.
2. O ora Oponente deixou de exercer funções de gerente da devedora originária em 2002, em virtude de doença e, posteriormente, de desemprego.
3. O ora Oponente foi notificado do despacho de reversão como responsável subsidiário respeitante a dívidas cujo limite para pagamento ocorreu nos anos de 2007 e 2008.
4. O despacho que ordenou a reversão contra o ora oponente nada de concreto menciona sobre a gerência efectiva da sociedade, apenas remetendo para fls. sem especificar quais.
Termos em que bem andou o Tribunal a quo, não merecendo qualquer censura a sentença proferida. Mais informa V. Ex.ª que prescinde do prazo para apresentar contra-alegações de recurso.»
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Notificado, o Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que a recorrente remate a sua alegação (art. 639º do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal.
De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.
Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, as questões fundamentais a decidir são as de saber se a sentença recorrida errou no seu julgamento em virtude de resultar provada quer a gestão de facto quer a culpa do oponente pela inexistência de bens da devedora originária.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.

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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. De facto

A sentença recorrida deu por provados os seguintes factos:
«A) Em 25/03/1955, foi constituída a sociedade “J……., Lda.”, tendo por objecto social o “comércio de ferro, aços, chapas importação e ferragens” - cfr. certidão permanente constante a fls. 63 a 64 dos Autos;
B) Foi designado gerente da sociedade referida na alínea antecedente o Oponente J…….. - cfr. certidão permanente constante a fls. 63 a 64 dos Autos;
C) A forma de obrigar a referida sociedade era a assinatura de um gerente - cfr. certidão permanente constante a fls. 63 a 64 dos Autos;
D) Entre Outubro de 2001 e Setembro de 2002, o Oponente recebeu da Segurança Social subsídio por doença - cfr. fls. 38 a 39 dos autos;
E) Em 31/07/2002, a sociedade referida em A) decidiu proceder à extinção do posto de trabalho do Oponente, com fundamento no encerramento da empresa - cfr. fls. 212 dos Autos;
F) A partir de Setembro de 2002, o Oponente deixou de desempenhar as funções de gerente da sociedade referida em A) e passou a receber da Segurança Social subsídio de desemprego - cfr. fls. 37 a 39 dos Autos e depoimento das testemunhas arroladas;

G) Na data em que o Oponente deixou de ser gerente da sociedade referida em A) a mesma não tinha dívidas perante a Administração Fiscal - cfr. fls. 215 dos autos;
H) Em 21/04/2006, transitou em julgado a decisão de declaração de insolvência proferida no processo n.º 1471/05.4TBSTR do 3.º Juízo de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca de Santarém - cfr. certidão permanente de fls. 63 dos Autos;
I) Na sentença referida na alínea antecedente, foi nomeado administrador da insolvência, A. P. - cfr. fls. 35 dos autos;
J) Em 6/05/2009, foi elaborada “Informação” no âmbito do processo de execução fiscal n.º ..........48, no qual se afirma que: “Em 23/01/2007, foi instaurado neste Serviço de Finanças o processo executivo supra, em nome de J ………. Lda. (…) por dívidas de IVA e Coimas dos anos de 2004 a 2005, com a quantia exequenda de 5.501,30€ à qual acresce juros de mora e custas. A empresa não possui bens, conforme se verifica pelos prints do sistema, folhas 5 a 9. A empresa não cessou a sua catividade em IVA nem em IRC conforme folhas 41 e 42.(…)» - cfr. fls. 52 dos Autos;

Em 8/05/2009, o Chefe do Serviço de Finanças de Santarém elaborou projecto de despacho de reversão, do qual consta, na parte relevante, o seguinte: « (…) 1. O(s) FACTO(s): a) Ao devedor principal não são conhecidos bens penhoráveis para garantir a dívida originária (…). b) São responsáveis subsidiários e solidários entre si, os gerentes indicados a fls. , os quais exerceram funções de administração na sociedade executada, nos períodos das dívidas identificadas e relativamente aos períodos a que se referem as alíneas a) e/ou b) do n.º 1 do artigo 24º da Lei Geral Tributária. (…)» - cfr. fls. 53 dos Autos;

K) Através do ofício n.º 005571, de 8/04/2009, recebido a 20/05/2009, foi o Oponente notificado para efeitos de audição prévia - cfr. fls. 87 e 88 dos Autos;
L) Em 9/06/2008, o Chefe do Serviço de Finanças de Santarém proferiu o despacho constante a fls. 99 dos Autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte: «(…) Face às diligências de fls. 5 a 69 e estando concretizada a audição do(s) responsável(veis) subsidiários(s), prossiga -se com a reversão da execução fiscal contra J…… contribuinte n.º ……35, morador em R…….. – Paço de Arcos – 2…… Paço de Arcos na qualidade de responsável subsidiário, pela dívida abaixo discriminada. (…) Inexistência ou insuficiência de bens penhoráveis pertence à originária devedora. Al. b) do n.º2 do ar.t 153º do CPPT
M) A p.i. foi apresentada em 24/07/2009 junto do Serviço de Finanças de Santarém - cfr. fls. 5 dos Autos.»
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No que respeita a factos não provados, refere a sentença o seguinte:
«Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.»
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Em matéria de convicção, refere o Tribunal a quo:
«A convicção do tribunal que permitiu dar como provados os factos acima descritos assentou na análise dos documentos constantes dos Autos, referidos a propósito de cada alínea do probatório, bem como, bem como, nos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Oponente, as quais, de forma credível e convicta, referiram que a partir de 2002, o Oponente não esteve à frente dos destinos da devedora originária, tendo esta inclusivamente encerrado.»

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Ao abrigo do art. 662º do CPC, porque provado documentalmente, adita-se o seguinte facto:

N) Nos Fundamentos da Reversão da Citação, consta o seguinte, cfr. fls. 100 dos autos:
«(…)
Dos administradores, directores, ou gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entidades fiscalmente equiparadas, por ter sido feita prova da culpa destes pela insuficiência do património da pessoa colectiva e entidades fiscalmente equiparadas para o pagamento, quando o facto constitutivo da dívida se verificou no período de exercício do cargo [art. 24/nº 1/a) LGT].»
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II.2. Enquadramento Jurídico

Questão prévia – Da admissibilidade de documentos em sede de recurso
Veio a recorrente junto com as alegações de recurso juntar documentos que entende revelarem-se fulcrais para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
Alega que decorrido o prazo para apresentação das alegações escritas, nos termos do art. 120.º ex vi art. 211.º, ambos do CPPT, adveio ao seu conhecimento, através de informação prestada pelos Serviços de Investigação Criminal e Fiscal da Direção de Finanças de Santarém, elementos de prova, designadamente, acórdãos proferidos pelo Tribunal Judicial de Santarém, datado de 21/01/2013 (NUIPC 382/07.3TASTR) e Tribunal da Relação de Évora, datado de 15/07/2014 (Pr. 382/07.3TASTR. E1), no âmbito do processo-crime, que junta como Doc. 1 e 2.

Vejamos.
«I. Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.
II. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito.
(…)»(1)

Julgamos, assim, estarmos perante um caso de superveniência subjectiva uma vez que a recorrente só teve conhecimento posterior do documento através de informação prestada pelos Serviços de Investigação Criminal e Fiscal da Direcção de Finanças de Santarém.
Pelo que se admitem os referidos documentos.
***

Em virtude da admissão dos referidos documentos, e ao abrigo do art. 662º do CPC, por se encontrarem provados documentalmente, aditam-se ao probatório os seguintes factos:

O) Com data de 21-01-2013 no âmbito do proc.º n.º 382/07.3TASTR do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santarém, foi proferido acórdão a condenar o ora Oponente por um crime de fraude fiscal e um crime de insolvência dolosa, cujo teor consta de fls. 381 a 429 dos autos.

P) Em 15-07-2014 o Tribunal da Relação de Évora proferiu acórdão a confirmar, no essencial e no que respeita ao aqui Oponente, o acórdão referido na alínea antecedente, nos termos que constam de fls. 347 a 380v dos autos.
***

Em sede de aplicação de direito, a sentença recorrida julgou a presente oposição procedente, e em consequência, condenou a Fazenda Pública no pedido de extinção da execução fiscal nº………48 relativamente ao Oponente.
Para tal apresentou a seguinte fundamentação, em síntese:
«Na sequência da reversão efectuada contra o Oponente, este veio alegar que renunciou à gerência em Agosto de 2002 e por isso, entre 2003 a 2008 nunca exerceu funções de gerente.
Apreciemos
(…)
De acordo com o referido artigo 24º da LGT não há qualquer presunção de gerência de facto com base na gerência de direito. A única presunção consagrada nesse preceito legal é a presunção de culpa do gerente pela insuficiência do património societário, mas só se o fundamento da reversão se subsumir à situação da alínea b) do art. 24º.
Para além disso, não devemos esquecer as formas como se constituíam os pressupostos da responsabilidade subsidiária dos gerentes:
O exercício efectivo do cargo (gerência);
Que a dívida se reportasse ao período da gerência de quem é accionado;
Actuação culposa quanto à insuficiência do património social.
Assim, quando a Fazenda Pública pretende efectivar a responsabilidade subsidiária do gerente, exigindo o cumprimento coercivo da obrigação na execução fiscal inicialmente instaurada contra a originária devedora, deve, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, provar os factos que legitimam tal exigência (no mesmo sentido, cfr. Acórdão do TCAN, de 31/05/2012, Rec. 959/08.0 BEBRG (…)
Deste modo, à luz do regime legal aplicável ao caso vertente e na esteira do citado Acórdão do TCAN, a responsabilidade subsidiária, como referido supra, só pode ser atribuída em função do exercício efectivo do cargo de gerente e reportada ao período do respectivo exercício, cujo ónus da prova recaía sobre a Fazenda Pública.
Por último, importa também referir, desde logo, que a chamada gerência de facto de uma sociedade comercial consistirá no efectivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade. E para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efectivamente, dos respectivos poderes, que seja um órgão actuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros. (Cfr. RÚBEN ANJOS DE CARVALHO - FRANCISCO RODRIGUES PARDAL, Código de Processo das Contribuições e Impostos, Anotado e Comentado, 2ª Edição, Coimbra, 1969, pág. 139.).
Dito isto, vejamos o caso concreto. Como resulta, claramente, da matéria de facto provada nos autos, o Oponente deixou de exercer funções de gerente da devedora originária em 2002, em virtude de doença e, posteriormente, de desemprego.
Por outro lado, decorre também da matéria de facto provada que as dívidas em causa resultaram de várias liquidações adicionais de IVA (referente aos períodos de 2004 a 2006 e coimas) cujo prazo limite de pagamento voluntário das respectivas liquidações ocorreu depois da declaração de insolvência da devedora originária e de ter sido nomeado um administrador da insolvência.
Assim sendo, é manifesto não ser possível acolher a pretensão da Fazenda Pública, no sentido de considerar o Oponente como parte legítima na execução fiscal, uma vez que ficou claramente demonstrado que o Oponente, na data da constituição da dívida, não praticou qualquer acto relacionado com a gestão daquela sociedade.
Em conformidade, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT, deve a presente oposição, nesta parte, ser julgada procedente.»


Inconformada com a referida decisão, veio a Fazenda Pública interpor recurso da mesma alegando erro de julgamento em virtude de resultar provada quer a gestão de facto quer a culpa do oponente pela inexistência de bens da devedora originária, e que discorda dos factos dados como provados, bem como das conclusões da decisão judicial recorrida.

Vejamos.
Embora a recorrente alegue que discorda dos factos dados como provados, a realidade é que não impugna a matéria de facto, nos termos do art. 640º do CPC.

Efectivamente, todo o recurso da Fazenda Pública se apoia nos documentos que, agora, se admitiram.
Entende a recorrente que, pelas decisões judiciais constantes das alíneas O) e P) do probatório, ficou provado que o oponente exerceu a gerência de facto da devedora originária, desde o ano de 1996 até à declaração de insolvência da mesma.
Entende que contrariamente ao firmado no âmbito do processo-crime, decidiu o Tribunal “a quo” que da prova analisada ficou demonstrado que o oponente J………, deixou de exercer a gerência da devedora originária em 2002.
Pelo que para a mesma realidade foram proferidas decisões judiciais completamente diferentes.
Concluindo, que perante todos estes factos, se encontram preenchidos todos os requisitos legais que legitimam a AT a proceder à reversão das dívidas tributárias contra os seus responsáveis subsidiários – gerência de facto e culpa pela inexistência de bens da devedora originária.

Vejamos.
A responsabilidade do gerente pela violação das normas que impõem o cumprimento da obrigação fiscal radica no instituto da responsabilidade por facto ilícito assente em culpa funcional, isto é, em responsabilidade civil extracontratual. O estatuto do gerente/administrador advém-lhe por virtude da sua relação negocial com a sociedade, iniciada com a sua nomeação para o exercício do cargo de gerente e consequente aceitação do mesmo, em virtude do que assume uma situação de garante das dívidas sociais, embora com direito à prévia excussão dos bens da empresa (cfr.artº.146, do C.P.C.I; artº.239, nº.2, do C.P.T; artº.153, nº.2, do C.P.P.T).

Analisemos agora o regime aqui aplicável.
“Artigo. 24º da LGT
Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.”.

Na previsão da al. a), do normativo em análise pretendem-se isolar as situações em que o gerente/administrador culpado pela diminuição do património societário será responsável pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou de entrega tenha terminado depois deste, competindo à Administração Fiscal fazer a prova de que foi por culpa sua que o património se tornou insuficiente. Já na al. b), do preceito o gerente é responsável pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou de entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, recaindo sobre o mesmo o ónus da prova de que não foi por culpa sua que o pagamento não se efectuou.
Por outras palavras, nas situações em que o gestor exerce, efectivamente, as suas funções e é no decurso desse exercício que se forma o facto tributário ou se inicia o prazo para o pagamento, mas antes que tal prazo se esgote, o gestor cessa as suas funções, o ónus da prova, de que o património da sociedade se tornou insuficiente para a satisfação da dívida por acto culposo do gestor, corre por conta da Fazenda Pública (cfr. alínea a), do nº.1, do artigo 24, da L.G.T.). Se é no decurso do exercício efectivo do cargo societário de gerente que se esgota o prazo para o pagamento do imposto, não vindo ele a acontecer (o pagamento não se efectuou no prazo devido), o ónus da prova inverte-se contra o gerente, sendo ele quem tem de provar que não lhe foi imputável a falta de pagamento (o gestor está obrigado a fazer prova de um facto negativo, poupando-se a Fazenda Pública a qualquer esforço probatório - cfr.al. b), do normativo em exame).

Na alínea b), do nº.1, do artº.24, da LGT, consagra-se uma presunção de culpa, pelo que a Administração Fiscal está dispensada de a provar. Concluindo, se a gestão real ou de facto cessa antes de verificado o momento em que se esgota o prazo para pagamento do imposto, o ónus da prova recai sobre a Fazenda Pública, se a gestão coincide com ele, o ónus volta-se contra o gestor.
A diferença de regimes, em termos de repartição do ónus da prova, prevista nas als. a) e b), do artº.24, da LGT, decorre da distinção entre “dívidas tributárias vencidas” no período do exercício do cargo e “dívidas tributárias vencidas” posteriormente (cfr.al. c) do nº.15, do artº.2, da Lei 41/98, de 4/8 - autorização legislativa ao abrigo da qual foi aprovada a L.G.T.


Aqui chegados, importa referir que a questão em causa nos presentes autos já foi decidida neste Tribunal em dois acórdãos anteriores das mesmas partes.
Por facilidade de exposição iremos seguir o que se escreveu no Acórdão do Proc. 1906/09.7BELRA, de 25/06/2020, disponível em www.dgsi.pt:

«In casu, o Tribunal a quo decidiu no sentido de o Recorrido ter exercido tais funções de gestor de facto até 2002. Entendeu igualmente o Tribunal a quo que a AT não demonstrou, ao contrário do que era seu ónus, que o Recorrido atuou com culpa. Vejamos se assim é.
(…)
Ou seja, tal como decidido pelo Tribunal a quo, nunca a AT alegou nem demonstrou, como era seu ónus, a culpa do Recorrido pelo depauperamento do património da devedora originária, durante o período do exercício do seu cargo.
A junção em sede de alegações apresentadas ao abrigo do art.º 120.º do CPPT (ou seja, depois de finda a instrução dos autos) dos acórdãos mencionados em R) e S) do probatório em nada altera esta conclusão.
Desde logo, os factos que podem deles decorrer nunca foram alegados em tempo oportuno. Daí que careça de relevância chamar à colação o disposto no art.º 623.º do CPC. Sublinhe-se, aliás, que, como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa1 , “[o] preceito trata apenas do relevo a atribuir à mesma sentença relativamente a terceiros, nos casos em que sejam titulares de uma relação jurídica dependente da infração criminal”, o que não é o caso.
A este respeito chama-se ainda à colação o já mencionado Acórdão deste TCAS, proferido a 31.01.2019, no âmbito dos autos n.º 2004/09.9BELRA, que apresenta grandes similitudes com os presentes autos (quer no tocante às partes, quer no que se refere ao teor das próprias alegações de recurso). Ali se escreveu:
Revertendo ao caso dos autos, do exame da matéria assente nenhum facto constitutivo da culpa do oponente pela diminuição do património societário se alcança com referência ao momento da reversão (2009).
Os factos dados como provados em decisões judiciais proferidas e transitadas posteriormente à decisão de reversão (2013/2014) e juntas com as alegações finais (fls.293), de que a Recorrente Fazenda Pública se pretende prevalecer, não podem, logicamente, integrar a fundamentação material de um acto de reversão anterior.
E sendo a alegação e demonstração da culpa do oponente um ónus da Fazenda Pública, contra si deve ser valorada a ausência dessa prova, julgando-se o oponente parte ilegítima na execução por dívidas tributárias (art.º204/1/b) do CPPT), como bem se decidiu na sentença recorrida”.

Assim, não tendo sido oportunamente alegados e demonstrados pela AT concretos factos passíveis de evidenciar a atuação culposa do Recorrido e estando nós no âmbito da al. a) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, segundo a qual cabe à AT o ónus da prova de tal realidade, essa ausência de alegação e prova implica que não tivessem sido demonstrados os pressupostos de que depende a reversão, comportando a ilegitimidade do Recorrido.
Como tal, carece de razão a Recorrente.»

O acórdão acabado de citar tem inteira aplicação nos presentes autos, pelo que fazemos nossos os seus fundamentos.
A única diferença entre os presentes autos e os já decididos é que nestes os documentos foram apresentados já em sede de recurso, e nos demais foram apresentados ainda em 1ª instância aquando da apresentação das alegações do art. 120º do CPPT. Ora, essa diferença é inócua para o caso em apreço, sendo que nos presentes autos os documentos ainda foram apresentados mais tarde do que nos restantes processos.
Assim sendo, e tendo em atenção os documentos juntos, decisões judiciais constantes das alíneas O) e P) do probatório, concluímos na esteira do já decidido, que os factos que podem deles decorrer nunca foram alegados em tempo oportuno.
Deste modo, não tendo sido oportunamente alegados e demonstrados pela AT concretos factos passíveis de evidenciar a atuação culposa do Recorrido e estando nós no âmbito da al. a) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, segundo a qual cabe à AT o ónus da prova de tal realidade, essa ausência de alegação e prova implica que não tivessem sido demonstrados os pressupostos de que depende a reversão, comportando a ilegitimidade do Recorrido.

Pelo que improcede o presente recurso e se mantém a sentença recorrida.

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III. DECISÃO

Face ao exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.


Lisboa, 4 de Outubro de 2023


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[Lurdes Toscano]

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[Catarina Almeida e Sousa]

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[Isabel Maria Fernandes]



(1) Acórdão do STJ de 30/04/2019, Proc. 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt