Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:687/07.3 BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:10/19/2023
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:ALARGAMENTO DA AÇÃO INSPETIVA
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
FORMALIDADE ESSENCIAL
APROVEITAMENTO DO ATO
Sumário:I. O despacho que determina o alargamento do âmbito de uma ação inspetiva tem de ser notificado ao administrado.

II. A falta da notificação mencionada em I. consubstancia violação de formalidade legal essencial estruturante do procedimento inspetivo, que implica a invalidade dos ulteriores termos procedimentais, onde se inclui a liquidação.

III. Nos termos da teoria do aproveitamento do ato, verifica-se uma inoperância da força invalidante do vício que inquina o ato, em virtude da preponderância do conteúdo sobre a forma.

IV. Não se pode apelar à teoria do aproveitamento do ato quando não se consegue antecipar, com razoável certeza, o resultado que decorreria em caso de inexistência da invalidade verificada.

Indicações Eventuais:Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 18.11.2021, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por S. – M. A., Lda (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto as liquidações adicionais de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e as dos respetivos juros compensatórios, atinentes ao ano de 2000.

Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

“A. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a Impugnação Judicial deduzida por S. M. A., Lda, e em consequência, anulou as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, relativas ao ano de 2000, no montante de €74.622,52.

B. Tendo presente a fundamentação aduzida pelo Tribunal a quo na Sentença recorrida, não pode, por diversas ordens de razão, a Recorrente conformar-se com o entendimento perfilhado na mesma, a qual deverá ser revogada e substituída por outra conforme às normas e princípios jurídicos aplicáveis.

C. No que à matéria de facto provada diz respeito, decorre que no cumprimento das ordens de serviço nº 69699 e 69700, de 21.10.2002, a Recorrida foi objeto de ação de inspeção externa, motivada pela evidência de sinais exteriores de riqueza e incidente sobre os exercícios de 1999 e 2000, com a finalidade deverificar quais os rendimentos atribuídos pela empresa à sócia gerente S. C., dado “os rendimentos declarados …serem insuficientes para o pagamento da prestação mensal no valor de 1.140.922$00 devida pelo empréstimo obtido para aquisição de um imóvel” (cfr. RIT a fls. 47 e seguintes do PA apenso).

D. Da ordem de serviço nº 69700, com despacho de 21.10.2002 e assinada pelo TOC a 22.11.2000, constam as seguintes menções: - Extensão: “20”; - Âmbito: “PC/Ext/IRCDIVERSOS” (cfr. fls. 85 do PA apenso).

E. A ação inspetiva teve início em 24.10.2002 (conforme resulta do RIT a fls. 47 e seguintes do PA apenso) e em 18.03.2003 foi emitido o seguinte parecer, sobre o qual recaiu despacho concordante, sob a epígrafe “Pedido de alteração à ordem de serviço”.

F. Em 02.04.2003, o TOC da Impugnante assinou nova ordem de serviço, com a indicação “Âmbito: PC/Ext/G-DIVERSOS” (cfr. fls. 87 do PA apenso).

G. Em 04.05.2003 foi elaborado o Relatório final de Inspeção Tributária e remetida à Recorrida, por carta registada com A/R, o ofício nº 007038, de 04.06.2003, da Direção de Finanças de Lisboa, acompanhado da nota de fixação do lucro tributável, para efeitos de IRC, para os exercícios de 1999 e 2000, e que fixa igualmente o montante de IVA em € 63.117,93, para o exercício de 2000, tendo o A/R sido assinado em 06.06.2003 (cfr. fls. 99 a 101 do PA apenso).

H. Não se conformando com a referida liquidação, a Recorrida reagiu, numa primeira fase através dos meios administrativos, nomeadamente através de pedido de revisão tributável e reclamação graciosa e, posteriormente, através da presente Impugnação judicial.

I. A ação inspetiva efetuada à Recorrida, referente ao ano de 2000, teve por base a evidência de sinais exteriores de riqueza, conjugado com o facto dos rendimentos da sócia gerente se mostrarem insuficientes para pagar a prestação mensal de amortização de um empréstimo bancário obtido para a aquisição de um imóvel.

J. Concluiu-se na referida inspeção, que se encontravam reunidos os pressupostos para o apuramento do lucro tributável com recurso a métodos indiretos, não sendo possível a quantificação e comprovação exata e direta da matéria coletável e do imposto em falta. Concluiu-se ainda, no decurso da referida inspeção, ser de propor a alteração da ordem de serviço, passado a mesma a ser de âmbito geral, a qual obteve despacho concordante datado de 18.03.2003.

K. Da ordem de serviço consta o número da mesma (69700), a data de emissão (18.03.2003), a identificação do serviço responsável pelo procedimento (Serviços de Inspeção Tributária Divisão IV – Chefe de Divisão Alfredo Realista), identificação do funcionário, do chefe de equipa e da entidade a inspecionar (M. I. S., M. T.e S. M. e A., Lda, respetivamente) e o âmbito e extensão (PC/Ext/IRC diversos e posteriormente “G Diversos”).

L. O art.º 46.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPITA) determina a credenciação da qual se encontra dependente o início do procedimento externo de inspeção, sendo que na falta desta, é legítima a oposição, conforme previsto no art.º 47.º do mesmo diploma legal.

M. No caso concreto dos autos, ainda que o âmbito do procedimento seja mencionado com abreviaturas, se dúvidas houvesse acerca das mesmas, poderia ter sido solicitado o devido esclarecimento ou oposição, o que não sucedeu.

N. Para além do mais, a notificação foi efetuada na pessoa do Técnico Oficial de Contas (TOC), funcionário da Recorrida, com conhecimentos técnicos e deontológicos suficientes, para analisar se a respetiva notificação padecia de erro ou omissão.

O. Sendo que, ainda que dúvidas houvesse, estas ficariam dissipadas, considerando que o relatório de inspeção menciona, entre outros elementos, a ordem de serviço e o seu âmbito (cfr. RIT junto aos autos), nos termos do n.º 3 do art.º 62.º do RCPITA, pelo que um eventual vício de falta de fundamentação ficaria sanado.

P. Importa referir que, compete à administração tributária a escolha do tipo de ação inspetiva a realizar, de acordo com critérios de oportunidade e conveniência por si definidos, gozando para tal de uma razoável margem de discricionariedade, cumprindo o princípio da legalidade.

Q. O acolhimento do princípio do contraditório, no âmbito do procedimento de inspeção tributária, implica para a administração tributária, a obrigação de permitir ao sujeito passivo ou obrigado tributário que esteja a ser inspecionado a possibilidade de se pronunciar livremente e em prazo razoável, sobre os factos que lhe sejam imputados, confirmando-os ou refutando-os.

R. O princípio da participação dos contribuintes nas decisões que lhes dizem respeito não pode ser afastado, excetuando nas situações previstas por lei, nomeadamente no n.º 2 do artigo 60.º LGT, uma vez que a sua falta conduz à anulabilidade ao ato tributário, por aplicação supletiva do artigo 163.º CPA.

S. Consubstancia entendimento da jurisprudência, (cfr. acórdão do TCA Norte, processo n.º 01196/05.0BEPRT de 02.02.2017), que “(…) há duas situações em que esta omissão legal poderá não ter consequências invalidantes. Uma, ocorre nas situações em que possa intervir o princípio do aproveitamento do acto, e outra quando em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o contribuinte teve oportunidade de se pronunciar sobre as questões acerca das quais foi omitida a audiência no procedimento de primeiro grau”.

T. Atento o princípio do aproveitamento dos atos administrativos determinaria a sanação destas eventuais irregularidades, porquanto, expurgado os vícios que os inquinam – ainda que a nova ordem de serviço tivesse sido mais explicita/fundamentada - o ato continuavam a ter o mesmo conteúdo decisório do ato impugnado.

U. O princípio do aproveitamento do ato administrativo, que se encontra expressamente consagrado no artigo 163º, n.º 5, do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, mas que, mesmo antes da sua consagração legal, já vinha sendo aplicado pela jurisprudência que o reconhece como um princípio geral de direito, nos termos do qual não se produz o efeito anulatório quando o conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

V. A degradação de formalidade em formalidade não essencial ocorre quando, atentas as circunstâncias, a intervenção do interessado se tornou inútil porque independentemente da sua intervenção e das posições que o mesmo pudesse tomar, a decisão da Administração só pudesse ser aquela que foi tomada, como é o caso dos autos.

W. O n.º 2 do artigo 36.º do CPPT refere que a notificação dos atos que em matéria tributária afetam direitos e interesses legítimos dos contribuintes, devem integrar a fundamentação dos mesmos. A falta ou insuficiência da fundamentação afeta a validade da notificação, pelo que esta não produzirá efeitos em relação ao seu destinatário, como prevê o n.º 1 do artigo 36.º do CPPT.

X. A notificação de um ato tributário e respetiva fundamentação, é um ato exterior a este, o que significa que os vícios que, eventualmente, afetem a notificação levam à invalidade da mesma e à consequente ineficácia do ato notificado, mas não afetam a validade do ato tributário.

Y. Fundamentação do ato tributário e notificação da fundamentação são realidades distintas e com consequências diversas: a falta da primeira leva à anulação do ato por vício de forma, a falta da segunda constitui irregularidade sanável que não inquina a validade do ato.

Z. O acórdão do STA de 4.02.2009, no processo n.º 0889/08, refere que “A notificação, ao contribuinte não integra o ato tributário, pelo que a sua falta ou irregularidade não afeta a validade deste mas apenas a sua eficácia”. “Fundamentação do ato e notificação da fundamentação são realidades diversas, apenas a primeira constituindo vício de forma determinante da sua anulabilidade.” Pelo que “Tal interpretação não viola qualquer princípio ou norma constitucional.”

AA. A fundamentação pretende assim assegurar a transparência da atuação da Inspeção Tributária, particularmente a observância dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade e impor aos Serviços de Inspeção Tributária uma adequada apreciação e ponderação sobre a existência de razões de facto e de direito para efetuar a correção proposta.

BB. Pelo exposto, a douta sentença ao decidir pela ilegalidade das liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, referentes ao exercício de 2000, violou as normas previstas nos artigos 77.º da LGT e 46.º do RCPITA, bem como o princípio da legalidade.

CC. Assim, face a todos os elementos coligidos nos autos, deverá o presente Recurso ser considerado procedente e em consequência, manter-se na ordem jurídica o ato tributário em apreço por estar em conformidade com os normativos legais supracitados.

DD. Pelo que, nestes termos se impõe a sua revogação e substituição por acórdão que, julgue procedente o presente recurso, e, consequentemente totalmente improcedente, a presente Impugnação Judicial, nos termos das conclusões que seguem e que V. Exas melhor suprirão.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o presente recurso e revogada a douta sentença na parte recorrida, como é de Direito e Justiça. PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA”.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Existe erro de julgamento, porquanto a falta de notificação do despacho de alargamento do âmbito da ação inspetiva não constitui ilegalidade que afete a validade da liquidação?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) A Impugnante é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica ao comércio a retalho de vestuário, sendo representante da marca M. (cfr. RIT fls. 47 e seguintes do PA apenso);

B) Em cumprimento das ordens de serviço nº 69699 e 69700, de 21.10.2002, a Impugnante foi objecto de acção de inspecção externa, incidente sobre os exercícios de 1999 e 2000, com a finalidade de verificar quais os rendimentos atribuídos pela empresa à sócia gerente S. C., dado “os rendimentos declarados …serem insuficientes para o pagamento da prestação mensal no valor de 1.140.922$00 devida pelo empréstimo obtido para aquisição de um imóvel” (cfr. RIT a fls. 47 e seguintes do PA apenso);

C) Da ordem de serviço nº 69700, com despacho de 21.10.2002, assinado pelo Chefe de Divisão identificado – Alfredo I.M. Ribeiro Realista – e assinada pelo TOC a 22.11.2000, constam as seguintes menções: - Extensão: “20”; - Âmbito: “PC/Ext/IRC-DIVERSOS” (cfr. fls. 85 do PA apenso);

D) A acção inspectiva teve início em 24.10.2002 (conforme resulta do RIT a fls. 47 e seguintes do PA apenso);

E) Em 18.03.2003 foi emitido o seguinte parecer, sobre o qual recaiu despacho concordante, sob a epígrafe “Pedido de alteração à ordem de serviço”:


Imagem: Original nos autos

(cfr. fls. 86 do PA apenso);

F) Em 02.04.2003, o TOC da Impugnante assinou nova ordem de serviço, indica no campo “Âmbito: PC/Ext/G-DIVERSOS” (cfr. fls. 87 do PA apenso);

G) Em 04.05.2003 foi elaborado o Relatório final de Inspecção Tributária (RIT), do qual consta, designadamente, o seguinte:

“(…) IV – Motivos e exposição dos factos que implicam o recurso a métodos indirectos

A – Da análise efectuada às diversas contas da empresa, …, verificámos que:

(…) > Além de não ser remunerada a sócia gerente fez empréstimos (entrega de suprimentos) à empresa em montantes bastante elevados (16 000 cts em Jan99). A conta 2551 regista em 1998 montante de 18 650 cts passando em 1999 para 26 555 cts e em 2000 para 29 400 cts, facto que não se compreende uma vez que a empresa parece não ter dificuldades financeiras. De referir que nos Balanços estes montantes aparecem como Dividas a Terceiros - médio e longo prazo;

> O cheque n.° …0, no montante de 1000 cts debitado pelo Banco (B.) em 20-8-99 foi lançado a débito da conta 221013 fornecedor S. M., Lda - 262 109$ e a débito da conta 211002 cliente-S. M., Lda - 737 891$, situação um pouco estranha uma vez que as contas de clientes são debitadas pelas vendas. Questionado o contabilista este informou que a situação iria ser corrigida nesta data (Out 2002) movimentando a débito a conta 25511- Sócios pelo valor do cheque. De referir que a sócia gerente desta empresa é a mesma da empresa em análise (S. C.). Esta situação vem demonstrar uma certa fragilidade no sistema contabilístico;

> 1-7-99 o extracto do Banco regista um crédito no valor de 8 000 cts indicando esse mesmo extracto as contas a movimentar (1207/211002), no entanto no diário de Bancos este movimento aparece registado nas contas 1207/2551, o que mostra uma relação directa e muito próxima entre contas de clientes e contas de sócios;

> A conta 11 - caixa é debitada ao longo por diversos cheques (n°s …1, ..0, ..6…) emitidos pela empresa, funcionando como reforço de caixa sem qualquer justificativo para este facto.

> Na rubrica “rendas e alugueres - outras rendas” a empresa regista como custos valores suportados com o arrendamento de um apartamento (expressamente destinado a habitação segundo o contrato) no montante mensal de 75 000$ e de um outro apartamento em aldeamento turístico no montante mensal de 100 000$ acrescido de outros custos (Elect, Telef) …

Em 2000 regista, a partir de Julho custos com um outro contrato de arrendamento, também destinado exclusivamente a habitação, no montante mensal de 65 000$. Neste ano o custo contabilizado com as referidas rendas totaliza 1 290 000$;

De acordo com o art.° 23° do CIRC, consideram-se como custos os que forem indispensáveis à realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, pelo que estes custos não respeitam o disposto naquele artigo.

B – Procedeu-se a uma análise detalhada das Vendas, Existências Iniciais, Compras e Existências finais dos exercícios em análise (1999 e 2000), tendo verificado diversas situações que mereceram algum reparo e que a seguir se descrevem:

1. A empresa não utiliza o sistema de inventário permanente e apresenta como inventário uma relação de mercadorias elaborada em EXCEL sem qualquer ordem. No sentido de tomar mais fácil a análise solicitámos o documento em suporte informático mas o mesmo não nos foi disponibilizado alegando não ser possível. Assim, para facilitar a análise procedemos ao registo, em folha Excel, de todos os dados dos vários inventários o que permitiu obter uma ordem alfabética;

2 Comercializa produtos adquiridos em Itália aos fornecedores M. SRL e C. A. SRL, pelo que efectua aquisições intracomunitárias;

3. Analisado o sistema VIES e as compras intracomunitárias verificamos que trimestralmente existem grandes diferenças, diferenças essas que no conjunto anual se dissipam. Assim sendo, quer fornecedor quer cliente declaram as mesmas trocas intracomunitárias, o que leva a crer que se tratam das compras reais;

4. Além das compras intracomunitárias, o sujeito passivo tem como fornecedores nacionais outras empresas cuja sócia gerente é a mesma. Estas transacções entre empresas deve-se ao facto de as mesmas comercializarem os mesmos produtos, pertencerem aos mesmos sócios e em caso de ruptura de stocks recorrerem às mesmas para suprir a falta de artigos e assim poder satisfazer as necessidades dos seus clientes;

(…)

7. Não possui caixa registadora mas sim folhas de caixa onde regista diariamente as facturas e vendas a dinheiro que emite, sendo de referir que este registo nem sempres segue a ordem numérica e por vezes são trocados os valores das facturas ou mesmo não registados (ver facturas 3504, 3508, 3528…)

8. Dado o elevado número de documentos emitidos não foi possível efectuar um controlo exaustivo, no entanto confrontando (de uma forma aleatória) algumas cópias das facturas e vendas a dinheiro com as folhas de caixa foram detectados, em ambos os anos em análise, diversos documentos que, embora emitidos, não foram forma registados nas respectivas folhas de caixa pelo que não foram contabilizados: Foram ainda detectados documentos mal emitidos ou deficientemente anulados e não contabilizados. Nestes casos o montante apurado ultrapassou … em 2000 os 1 200 cts;

9. A empresa, utilizando os artigos que tem em stocks, efectua ofertas (algumas em montantes elevados) emitindo factura mas não contabilizando ou regularizando o respectivo IVA que deduziu aquando da compra;

10. Verificámos que as facturas n° 1670 e 1734 foram eliminadas do respectivo livro e que a cópia da factura nº 469 bem como a da venda a dinheiro nº 49 estavam completamente em branco (só o último exemplar não anulado e não contabilizado), não podemos afirmar que se trata de casos isolados dado ser impraticável fazer um controlo exaustivo;

11.Nas vendas efectuadas a crédito verificámos que, no exercício de 2000, foi emitida e contabilizada uma factura (n° 190) cuja numeração dista muito da que foi utilizada ao longo do ano. Solicitamos e analisámos o respectivo livro tendo verificado que o mesmo tinha sido utilizado em 1998, sendo que a cópia da factura nº 190 bem como a factura nº 191 não registavam quaisquer dados, i.e., estavam em branco;

12.Notificada por escrito a empresa, na pessoa do contabilista, para justificar estes últimos factos, fomos informados, por escrito, que os mesmos não passavam de meros erros ou lapsos considerados irrelevantes no universo de milhares de documentos emitidos. De salientar que estes casos foram detectados de uma forma aleatória pelo que se desconhece se existem mais, uma vez que o controlo exaustivo era impraticável. No que diz respeito à factura n° 190 não foi dada qualquer explicação;

13. O registo nestas folhas de caixa é feito segundo a óptica das receitas, isto é, de acordo com o montante cobrado, por ex. no caso de o cliente dar um sinal é este o montante registado no dia da emissão da factura, sendo novamente registada a factura ou v.d. (por vezes bem mais tarde), pelo remanescente cobrado. De referir que em algumas destas situações não foi encontrado o registo do remanescente (fact n° 684 e 1492 e v.d. n° 437) ou ainda em outros casos esse registo foi efectuado por valor inferior (v.d. n°s 462,486 e 318);

14. Desta forma a empresa não regista correctamente os proveitos bem como o IVA liquidado é entregue nos cofres do estado em datas posteriores;

15. O montante de vendas é contabilizado na conta 11-caixa mensalmente e é feito com recurso ao somatório das diversas folhas diárias de caixa no mês efectuada pela empregada da loja e enviado em folha A4 por FAX para os serviços de contabilidade, ao qual é expurgado o correspondente IVA liquidado nos diversos documentos registados. Para testar correctamente estes valores teríamos que somar factura a factura o que é impraticável dado o volume de documentos emitidos e sua difícil leitura motivada pela utilização de químico, soc. Rasurados, somatórios emendados;

16. No entanto, tentado testar alguns daqueles montantes procedemos (primeiro seleccionando um mês ao acaso) ao somatório das diversas folhas de caixa mensais que lhes estavam subjacentes e verificámos que existiam diferenças negativas de valor significativo, em alguns meses (Abril 99) próximo dos 1000 cts, pelo que se procedeu ao apanhado anual das diversas diferenças totalizando um montante anual próximo de 4 000 cts no ano de 1999 e 1 700 cts no ano de 2000;

17. A fim de apurar as Margens Brutas praticadas pela empresa, procedemos, aleatoriamente e a produtos individualizados, a um teste tendo verificado que os produtos foram vendidos com margens muito acima da declarada pela empresa no total das vendas, sendo algumas delas superiores a 150% e por vezes 200% (tivemos por base os custos constantes do inventário);

18. … o inventário apresenta numa relação de produtos sem qualquer ordem o que dificultou imenso a análise. As facturas e vendas a dinheiro eram, por vezes, de difícil interpretação, os artigo estavam referenciados com nomes estranhos e de difícil identificação também motivado pela má caligrafia e uso de químicos, dados rasurados e somas mal efectuadas;

19.Neste contexto e com o esforço necessário para ultrapassar as dificuldades, testámos um maior número possível de produtos. Assim, não nos dispersando, focámos a nossa atenção no mês de Janeiro, procedendo à recolha de todas as vendas efectuadas, confrontando os artigos e valores de venda com os respectivos dados constantes do inventario inicial (as primeiras compras são efectuadas já a meio do mês e começam a ser vendidas no inicio de Fevereiro como nova colecção) e chegámos à conclusão que, tanto em 1999 como em 2000, as margens se situam todas acima dos 100%, tendo vendido …no ano de 2000 cerca de 5 produtos com margens acima dos 200%, sendo 1 destes acima dos 300% - VER ANEXOS A e B;

(…)

22. Analisados os artigos vendidos durante este mês encontrámos muitos que não existiam em stock, verificando-se um significativo acréscimo no ano 2000, como se pode verificar pelo mapa anexo coluna de quantidades (…)

(…)

24. Observando a evolução dos stocks de um exercício para o outro verifica-se que quando o inventario inicial é elevado o valor do stock final diminui, aumentando no ano seguinte. As compras do exercício são praticamente vendidas, porque as existências iniciais permanecem em stocks final e as compras do exercício que ficam em stocks final são de reduzido valor. Verifica-se ainda que a valorização dos produtos em stock nem sempre correspondem ao verdadeiro custo o que pode justificar situações de margens acima de 500%.;

25. Pelo que foi descrito, podemos afirmar que os inventários não reflectem uma situação real, sendo elaborados de forma a alterar ou deturpar a margem bruta das vendas, só assim se pode justificar a diferença de margem bruta encontrada, pelo que os inventários e as vendas não nos merecem qualquer crédito;

(…) 27. Desta forma, e porque não foi possível determinar de uma forma directa e exacta o Lucro Tributável efectivamente obtido pela empresa, consideram-se que estão reunidos os pressupostos para aplicação de métodos indirectos na determinação do Lucro Tributável (…)” (cfr. RIT a fls. 47 e seguintes do PA apenso);

H) Foi remetida à Impugnante, por carta registada com A/R, o ofício nº 007038, de 04.06.2003, da Direcção de Finanças de Lisboa, acompanhado da nota de fixação do lucro tributável, para efeitos de IRC, para os exercícios de 1999 e 2000, e que fixa igualmente o montante de IVA em € 63.117,93, para o exercício de 2000, assinado pelo Director de Finanças, tendo o A/R sido assinado em 06.06.2003 (cfr. fls. 99 a 101 do PA apenso);

I) A Impugnante apresentou pedido de revisão do acto e fixação da matéria tributável a que se refere a alínea antecedente (cfr. fls. 94 e seguintes do PA apenso);

J) Em 17.09.2003, houve lugar a debate contraditório dos peritos do qual resultou: “Não houve acordo, conforme posições dos peritos”, cujos laudos se dão aqui por integralmente reproduzidos (cfr. fls. 90 a 93 do PA apenso);

K) Do Laudo do Perito da Administração Tributária resulta, designadamente, o seguinte:

“(…) [o representante do contribuinte] inicialmente pretendeu não aceitar os motivos que levaram à tributação por métodos indirectos, por achar que não eram suficientes par por em causa a contabilidade (…).

(…) No decorrer da reunião, … aceitou a tributação por métodos indirectos, mostrando-se a disposto a aceitar valores mais baixos do que os propostos pela Inspecção. Contudo, questionado sobre tal quantificação não foi capaz de a definir; embora criticando a amostragem efectuada não apresentou alternativa (…).” (cfr. fls. 92 e 93 do PA apenso);

L) Por despacho de 19.09.2003, o Director de Finanças manteve os valores fixados pelos serviços de inspecção tributária em sede de IRC e IVA (cfr. fls. 94 a 98 do PA apenso);

M) Em 03.02.2004, foram emitidas as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, referentes ao exercício de 2000, com data limite de pagamento a 30.04.2004, nos seguintes termos:




(cfr. fls. 123 a 135 dos autos);

N) A Impugnante remeteu à Direcção de Finanças de Lisboa, por correio registado, expedido a 02.05.2005, reclamação graciosa dos actos de liquidação descritos na alínea antecedente, com os fundamentos que se dão aqui por reproduzidos e que se reconduzem, nomeadamente, a vícios procedimentais no procedimento de inspecção tributária, falta de notificação do acto de fixação da matéria tributável, falta de fundamentação, erro nos pressupostos de tributação por métodos indirectos e na determinação do imposto (cfr. fls. 3 a 33 do procedimento de reclamação graciosa nº 2097/05, em apenso);

O) Em 07.08.2006, foi elaborado o projecto de decisão, que propõe o indeferimento do pedido de reclamação graciosa, com o seguinte fundamento:

“II – Questão Prévia

(…) Estabelece o nº 1 do artº 102º do CPPT, aplicável por força do nº 1 do art.º 70º do mesmo Código, o prazo de 90 dias a contar do termo do prazo de pagamento voluntário da nota de cobrança para interposição da reclamação graciosa.

(…) Consequentemente, a presente petição, apresentada em 2005-05-03 mostra-se intempestiva, uma vez que o termo do prazo de pagamento voluntário das notas de cobrança ocorreu a 2004-04-30” (cfr. fls. 73 a 78 do procedimento de reclamação graciosa apenso);

P) Após notificação da Impugnante para efeitos de audição prévia, foi proferido despacho pelo Director de Finanças Adjunto da DF de Lisboa, de 13.02.2007, convolando em definitiva a proposta de decisão anterior, inferindo o pedido de reclamação graciosa, por se apresentar intempestiva (cfr. fls. 82 a 84 do procedimento de reclamação graciosa apenso);

Q) A decisão antecedente foi remetida à Impugnante e ao respectivo Procurador, através dos ofícios nº 015032 e 015033, ambos de 21.02.2007, por correio registado com A/R (cfr. fls. não numeradas do procedimento de reclamação graciosa apenso);

R) Os A/R’s foram assinados em 26.02.2007 e 23.02.2007, respectivamente (cfr. fls. não numeradas do procedimento de reclamação graciosa apenso);

S) A presente impugnação foi remetida a este Tribunal, por correio registado, expedido em 12.03.2007 (cfr. fls. 39 dos autos)”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Inexistem factos não provados com interesse para decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Quanto aos factos provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica da prova documental constante dos autos, processo administrativo apenso, contendo o procedimento de reclamação graciosa, conforme especificado em cada uma das alíneas supra”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porquanto a falta de notificação do despacho de alargamento do âmbito da ação inspetiva não constitui ilegalidade que afete a validade da liquidação.

Vejamos.

Em termos de factualidade pertinente, temos que:

a) Na sequência das ordens de serviço mencionadas em B), a Impugnante foi objeto de ação inspetiva, relativa aos exercícios de 1999 e 2000, “com a finalidade de verificar quais os rendimentos atribuídos pela empresa à sócia gerente S. C., dado ‘os rendimentos declarados …serem insuficientes para o pagamento da prestação mensal no valor de 1.140.922$00 devida pelo empréstimo obtido para aquisição de um imóvel’”;

b) A 18.03.2003, foi elaborado parecer, no sentido de se ter verificado na visita de fiscalização que seria de aplicar métodos indiretos, propondo-se a alteração da ação para ação de âmbito geral, o que obteve despacho de concordância da mesma data;

c) Foi emitida nova ordem de serviço, já de âmbito geral, e elaborado relatório de inspeção tributária (RIT), no qual foram aplicados métodos indiretos, designadamente em sede de IVA.

O Tribunal a quo considerou, a este respeito, que o procedimento inspetivo padecia de invalidade, por nunca ter sido notificado à Impugnante o despacho que procedeu à alteração do âmbito da inspeção, entendendo que o facto de o técnico oficial de contas (TOC) ter assinado a ordem de serviço dali decorrente não sana essa invalidade.

Apreciando.

Nos termos do art.º 15.º do então Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT):

“1. Os fins e a extensão do procedimento de inspeção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado”.

Apesar de, à época, não estar expressamente consagrada a obrigação de a administração tributária (AT) notificar ao inspecionado o mencionado despacho fundamentado (o que, em 2005, passou a constar expressamente no RCPIT), conclui-se, elementarmente, que, sendo um despacho que afeta o inspecionado, do mesmo tem de se dar conta oportunamente – isso mesmo ditaria, desde logo, o cumprimento de dever de colaboração, previsto no art.º 59.º da Lei Geral Tributária (LGT). Aliás, a notificação aos administrados dos atos administrativos é desiderato constitucionalmente consagrado (cfr. art.º 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa).

E isso não sucedeu in casu.

Ademais, não se pode extrair que tal ausência de notificação tenha sido ultrapassada pela notificação da nova ordem de serviço ao TOC – que não contém qualquer menção à dita prorrogação de âmbito e respetiva fundamentação, que só se extrai pela análise comparativa do âmbito constante das ordens de serviço, de forma, diga-se, dificilmente apreensível, atentas as siglas que não são, per se, autoexplicativas [cfr. factos C) e F)]. E não pode a AT imputar ao inspecionado a obrigação de pedir esclarecimentos sobre o teor de tais siglas, quando o que temos é a completa ausência sequer do conhecimento da fundamentação que determinou a alteração do âmbito da inspeção – não decorrendo tal, repetimos, da Ordem de Serviço.

A questão aqui não tem tanto a ver com a credenciação ou não dos funcionários, mas sim com a completa ausência de notificação ao inspecionado de um despacho que o afeta sobremaneira, impedindo a sua sindicância e a análise da respetiva fundamentação.

Mais: a questão aqui não tem a ver apenas com o âmbito, mas com o que determinou a alteração do âmbito. E isso não é sequer mencionado no RIT.

Ao contrário do que parece resultar das alegações da Recorrente, não está em causa o poder de a AT alargar o âmbito da ação inspetiva; está em causa, sim, o dever de a AT dar conhecimento de tal alargamento ao inspecionado e dos motivos subjacentes ao mesmo.

Estamos, pois, perante preterição de formalidade essencial.

Considera a Recorrente, no entanto, que, atenta a teoria do aproveitamento do ato, sempre a irregularidade se degradaria em não essencial.

A teoria do aproveitamento do ato há muito é acolhida entre a doutrina e a jurisprudência e atualmente até objeto de positivação legal [cfr. art.º 163.º, n.º 5, do Código do Procedimento Administrativo (CPA)].
Nos termos da mencionada teoria, verifica-se uma inoperância da força invalidante do vício que inquina o ato, em virtude da preponderância do conteúdo sobre a forma. Assim, quando em relação a um determinado ato, que padeça de ilegalidade formal ou externa, se possa afirmar inequivocamente que o ato só podia ter o conteúdo que teve em concreto, essa invalidade não é operante, em virtude da conformidade substancial do ato praticado. (1)
No entanto, apenas casuisticamente se consegue aferir se o ato teria o conteúdo que teve, mesmo sem a irregularidade praticada.

Como se refere no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 22.01.2014 (Processo: 0441/13)

“[A] jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se podem degradar em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las. Consequentemente, e tendo em conta que a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur.

O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso” [v. igualmente o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03.02.2019 (Processo: 01437/14.3BELRS 0304/18)].

Ora, no caso, não sendo dada a conhecer ao administrado a motivação inerente ao alargamento do âmbito e estando nós perante não um ato vinculado, mas sim um ato praticado dentro dos poderes discricionários da administração, não se pode antecipar que tipo de reação ao mesmo teria a Recorrida, o que afasta a certeza exigível para efeitos de aplicação da teoria do aproveitamento do ato.

Finalmente, sublinhe-se que há alguma confusão sobre o âmbito do art.º 36.º, n.º 2, do CPPT. Com efeito, a ineficácia do ato tributário a que a Recorrente se refere é a ineficácia da liquidação. Ora, se estamos perante a ineficácia de um ato do procedimento, tal implica que sejam afetados os atos subsequentes da inspeção que dele dependam.

A este respeito, referem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 361 e 362), mesmo que o ato ineficaz seja legal, a sua execução é sempre ilegítima.

Neste sentido, aliás, já se pronunciaram os nossos tribunais superiores, maxime o Supremo Tribunal Administrativo, em diversos arestos, designadamente:

a) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 15.06.2016 (Processo: 01101/15):

“[V]erifica-se que quanto ao exercício de 2010 não foram levadas ao conhecimento da recorrida o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção em manifesta desconformidade com o disposto nos artigos 2.º, 5.º, 9.º, 14.º, 15.º, 37.º, 40.º, 46.º e 47.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, com a consequente falta de credenciação os inspectores que a levaram a cabo. Tais formalidades são formalidades previstas na lei como formalidades essenciais, na ausência de disposição legal em contrário, estruturantes do procedimento inspectivo, que uma vez não observadas serão invalidantes dos posteriores termos procedimentais, designadamente da liquidação posterior que neles se suporta, dado não poder concluir-se, face à prova produzida, com um grau de certeza razoável, que o resultado a atingir sempre seria o mesmo, caso a formalidade tivesse sido cumprida, ou que o sujeito passivo prestou a sua colaboração com o acto inspectivo nesse âmbito alargado sem haver colocado em causa a falta de tal despacho”;

b) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.09.2018 (Processo: 01460/17), citado na sentença recorrida:

“À data dos factos (2003 e 2004), dispunha o n.º 1 do artigo 15.º do RCPIT que “os fins e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado”. Em 2005, com a aprovação e entrada em vigor da Lei n.º 50/2005, de 30 de agosto, a letra deste preceito legal foi alterada, passando a prever que “os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada(alterações a negrito).

[C]onclui-se com natural evidência que o legislador impunha já à data, de forma expressa, que os actos praticados no procedimento inspectivo, mormente aqueles que determinam a realização da acção inspectiva e que lhe fixam o fim, o âmbito e a extensão, bem como aqueles que respeitam à prática de actos de inspecção, devem ser previamente notificados à entidade que se encontra a ser inspeccionada.

Com efeito, a consagração expressa daquela obrigação de notificação introduzida pela Lei n.º 50/2005, de 30 de Agosto, não apresenta verdadeiro carácter inovatório, vindo apenas traduzir em letra de lei aquele que era já o entendimento do legislador que se extraía da lógica e da coerência sistemática do RCPIT, da LGT e da CRP”. Assim o era ao abrigo dos princípios da boa-fé [arts. 266º, n.º 2 da CRP e 6.º-A do Código de Procedimento Administrativo (CPA, na redacção em vigor à data dos factos)] e da colaboração [arts. 55º e 59º da LGT], aqui correcta e pertinentemente invocados pela Impugnante. E mais. Também o próprio princípio da legalidade [arts. 266º, n.º 2 da CRP e 55º da LGT] sempre imporia à Administração Tributária uma actuação bem diferente daquela que empreendeu no presente caso. Em rigor, a Administração Tributária não se podia mostrar alheia às consequências práticas e jurídicas de uma ampliação do âmbito e extensão da acção inspectiva a que estava a submeter a Impugnante, negando-lhe, manifesta e intencionalmente, o acesso aos fundamentos que determinaram aquela ampliação, impedindo-a, desde logo, de sobre os mesmos poder emitir qualquer pronúncia ou questionar a sua legalidade, tendo em conta o reflexo que tal despacho teria na sua esfera jurídica. E, repare-se, a privação de acesso aos fundamentos daquele despacho ocorreu quer no procedimento inspectivo quer posteriormente, pois a Impugnante, inequivocamente, nunca teve acesso ao mesmo nem ao seu teor.

Era também assim atendendo aos normativos relativos ao procedimento inspectivo e respectivas notificações [arts. 59º, n.º 3, alínea l) da LGT e 42º e 49º do RCPIT]. Repare-se que a alínea l) do n.º 3 do art. 59º da LGT determina que a colaboração da Administração Tributária com os contribuintes compreende, designadamente, “a comunicação antecipada do início da inspecção da escrita, com a indicação do seu âmbito e extensão e dos direitos e deveres que assistem ao sujeito passivo”. (…) Sendo que o n.º 1 do art. 42º do RCPIT, na redacção então em vigor, já impunha que as notificações no procedimento de inspecção tributária devem ser sempre realizadas em momento anterior ao da prática dos actos de inspecção, podendo ser, o mais tardar, efectuadas no momento da sua prática.

Por outro lado, não seria curial, nem apresentaria qualquer coerência lógica e sistemática, o entendimento de que o despacho que determina ab initio o fim, o âmbito e a extensão da acção inspectiva tivesse que ser levado ao conhecimento da entidade a ser inspeccionada – assegurando a lei que tal seria efectuado através de uma “notificação prévia para procedimento de inspecção”, a efectuar com uma antecedência mínima de cinco dias [cf. art. 49º do RCPIT] –, e que, depois, qualquer alteração desses fins, âmbito e extensão pudesse ser efectuada sem o conhecimento atempado por banda da entidade inspeccionada. Por outro lado, não se perspectivaria qual a utilidade prática da exigência legal de emanação de um despacho fundamentado a determinar a alteração do fim, do âmbito e da extensão da acção inspectiva se o mesmo nunca chegaria ao conhecimento do seu destinatário: a entidade inspeccionada. Ora, se o legislador impôs que a decisão de alteração dos fins, do âmbito e da extensão da acção inspectiva fosse fundamentada, naturalmente que o fez com o objectivo de que o mesmo pudesse ser compreendido, questionado e escrutinado pela entidade inspeccionada. Qualquer outra interpretação, entende o Tribunal, carece de razoabilidade e ofende o princípio geral de notificação das decisões que afecte os direitos e interesses legítimos dos contribuintes.

Concluindo-se que à data dos factos impendia sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira a obrigação de comunicar à Recorrida a decisão unilateral de alteração do âmbito e da extensão do procedimento inspectivo no momento em que foi tomada – isto é, no decurso da inspecção fiscal de que era alvo e não apenas no momento da respetiva conclusão –, cumpre analisar se assiste razão à Recorrente Fazenda Pública quando alega que a falta de comunicação daquela decisão se converteu em formalidade não essencial a partir do momento em que a Recorrida exerceu o seu direito de audição sobre o Projecto de Relatório de Inspecção Tributária “sem que nessa sede tivesse sido aflorada a questão aqui invocada da preterição de formalidade (…) verificando-se assim uma ratificação expressa do ato inspetivo por parte da impugnante”.

Mas não assiste razão à Recorrente, conforme decorre aliás do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal a 15 de Junho de 2016 no âmbito do Processo 01101/15, nos termos do qual o “direito de audição é um direito de exercício facultativo para os contribuintes, cujo não exercício não importa a perda de direitos nomeadamente de contenciosamente reagirem contra os actos tributários ou em matéria tributária que sejam lesivos dos seus interesses patrimoniais e não hajam sido praticados com observância estrita da lei. De todo o modo quando foi dado cumprimento ao disposto no art.º 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária por definição estavam já praticados os actos de inspecção tornando impossível qualquer oposição à sua realização que já tinha tido lugar.

Assim, não estando em causa um procedimento de inspecção em que nos termos do disposto no art.º 50.º esteja dispensada a notificação prévia do procedimento de inspecção, verifica-se que (…) não foram levadas ao conhecimento da recorrida o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção em manifesta desconformidade com o disposto nos artigos 2.º, 5.º, 9.º, 14.º, 15.º, 37.º, 40.º, 46.º e 47.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, com a consequente falta de credenciação os inspectores que a levaram a cabo. Tais formalidades são formalidades previstas na lei como formalidades essenciais, na ausência de disposição legal em contrário, estruturantes do procedimento inspectivo, que uma vez não observadas serão invalidantes dos posteriores termos procedimentais, designadamente da liquidação posterior que neles se suporta, dado não poder concluir-se, face à prova produzida, com um grau de certeza razoável, que o resultado a atingir sempre seria o mesmo, caso a formalidade tivesse sido cumprida, ou que o sujeito passivo prestou a sua colaboração com o acto inspectivo nesse âmbito alargado sem haver colocado em causa a falta de tal despacho.

Nos termos do disposto no art.º 135.º do Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo DL n.º 442/91, de 15 de Novembro, vigente à data do procedimento inspectivo, aqui aplicável por força do disposto no art.º 4.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, são anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção, como aqui ocorre, pelo que a omissão do acto procedimental invalida, por anulabilidade que ora se confirma, todo o procedimento arrastando necessariamente a validade do acto de liquidação oficiosa [subsequente], que nele obteve os seus fundamentos legais”.

c) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04.12.2019 (Processo: 02243/16.6BEBRG):

No caso sub judice, o procedimento externo de inspecção, que tinha como âmbito inicial apenas o IRS e como extensão o ano de 2012 (…), foi alterado por despacho da AT, proferido em 16 de Abril de 2015, pelo qual foi determinado o alargamento da inspecção para IRS e IVA (…).

Dispõe o n.º 1 do art. 15.º do RCPITA: «Os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspecção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspeccionada». Ou seja, não há dúvida de que se impunha a notificação ao sujeito passivo, ora Recorrido, da alteração do âmbito do procedimento de inspecção.

No caso, não se discute a necessidade dessa notificação, mas apenas o momento em que a mesma deve ser efectuada.

Não há notícia nos autos de que a notificação desse despacho ao sujeito passivo, ora Recorrido, tenha ocorrido senão em 22 de Maio de 2015, conjuntamente com a notificação de que foi concluída a inspecção nessa data e com a remessa do projecto de conclusões do relatório da inspecção, nos termos e para os efeitos do art. 60.º do RCPITA (…).

Isto, apesar de em 7 de Maio de 2015 (i.e., depois de proferido o despacho que alargou o âmbito da inspecção ao IVA e antes de concluída a inspecção) a AT ter notificado o sujeito passivo da prorrogação do prazo do procedimento de inspecção (cfr. facto provado sob o n.º 4).

Considerou a sentença que o despacho por que foi determinado o alargamento do âmbito da inspecção deveria ter sido notificado ao sujeito passivo no momento da prática dos actos de inspecção, ou anteriormente, por força do disposto no n.º 1 do art. 46.º do RCPITA, mas nunca posteriormente.

Antes do mais, diremos que a notificação sobre o âmbito do procedimento externo de inspecção e sua alteração, para cumprir com as suas finalidades, deverá, em regra, ser efectuada antes da realização dos actos de inspecção.

É o que resulta da conjugação do disposto no art. 49.º do RCPITA – sendo este artigo que encerra a regra geral em sede de notificação a efectuar no procedimento de inspecção externa, impondo, designadamente que «[o] procedimento externo de inspecção deve ser notificado ao sujeito passivo ou obrigado tributário com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início» (n.º 1) e que dessa notificação, para além do mais, deve constar o «[â]mbito e extensão da inspecção a realizar» [n.º 2, alínea b)] – com o já citado n.º 1 do art. 15.º do mesmo Regime.

Aliás, como salientou já este Supremo Tribunal (Cfr. o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Setembro de 2018, proferido no processo com o n.º 1460/17 (…)), não faria sentido, à luz da harmonia sistemática do regime das notificações em sede de procedimento inspectivo, que o despacho que determina o fim, o âmbito e a extensão da acção inspectiva tivesse que ser levado ao conhecimento da entidade a ser inspeccionada – assegurando a lei que tal seria efectuado através de uma notificação prévia para procedimento de inspecção, a efectuar com uma antecedência mínima de cinco dias relativamente ao seu início (cf. art. 49.º do RCPITA) –, e que, depois, qualquer alteração desses fins, âmbito e extensão pudesse ser efectuada sem o conhecimento atempado por banda da entidade inspeccionada.

Note-se também que o art. 37.º do RCPITA, que constitui a regra geral em matéria de notificação em sede de inspecção tributária, dá um subsídio no sentido da notificação prévia, quando no seu n.º 2 estabelece que as notificações devem indicar o local e hora da realização dos actos de inspecção.

Por outro lado, como também já salientou este Supremo Tribunal (Ver acórdão referido na nota anterior.), «não se perspectivaria qual a utilidade prática da exigência legal de emanação de um despacho fundamentado a determinar a alteração do fim, do âmbito e da extensão da acção inspectiva se o mesmo nunca chegaria ao conhecimento do seu destinatário: a entidade inspeccionada. Ora, se o legislador impôs que a decisão de alteração dos fins, do âmbito e da extensão da acção inspectiva fosse fundamentada, naturalmente que o fez com o objectivo de que o mesmo pudesse ser compreendido, questionado e escrutinado pela entidade inspeccionada. Qualquer outra interpretação, entende o Tribunal, carece de razoabilidade e ofende o princípio geral de notificação das decisões que afecte os direitos e interesses legítimos dos contribuintes».

Afigura-se-nos, pois, impor-se a notificação prévia do despacho que ordenou o alargamento do âmbito da inspecção externa. O que bem se compreende, porque «apenas se a pessoa ou entidade em causa for notificada com antecedência em relação ao facto intrusivo ou potencialmente lesivo de que vai ser alvo poderá ela antecipar com razoabilidade na sua esfera jurídica as consequências gravosas que poderá sofrer, não sendo apanhada desprevenida pelas mesmas» (Cfr. JOAQUIM FREITAS DA ROCHA e JOÃO DAMIÃO CALDEIRA, Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária, Comentado e Anotado, Coimbra Editora, anotação ao art. 42.º, págs. 243 a 245, também citado na sentença recorrida. ).

Só assim não será nas situações exceptuadas pelo n.º 2 do art. 42.º do RCPITA, situações em que «admite-se que a notificação anterior do visado poderia implicar uma perda do efeito útil que a adopção da medida pretende precisamente efectivar» (Ibidem.).

Concluímos (…) que impendia sobre a AT a obrigação de comunicar previamente ao ora Recorrido a decisão de alteração do âmbito do procedimento inspectivo (tal como comunicou a prorrogação da acção de inspecção), obrigação que não pode dar-se como cumprida com a ulterior comunicação, no momento em que enviou o projecto de conclusões do relatório.

Essa notificação extemporânea constitui (…) uma preterição de formalidade essencial, uma vez que à data em que ocorreu, em simultâneo com o cumprimento do disposto no art. 60.º do RCPITA, estavam já praticados os actos de inspecção, inviabilizando qualquer oposição à sua realização, que já tinha tido lugar.

Podemos, pois, em sintonia com a sentença recorrida, com o acórdão deste Supremo Tribunal nela citado (Acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Junho de 2016 (…)) e aquele já acima referido, concluir que a falta de notificação prévia ao sujeito passivo inspeccionado do despacho que determinou o alargamento do âmbito da inspecção, inexistindo motivo legal para diferir esse notificação, constitui violação de formalidade legal essencial, porque estruturante do procedimento inspectivo, a determinar a invalidade dos ulteriores termos procedimentais, designadamente da liquidação que neles se suporta (cfr. art. 163.º do Código de Procedimento Administrativo, aplicável ex vi do art. 4.º do RCPITA)”.

Uma nota final para acrescentar que o Tribunal a quo considerou que o despacho de alargamento do âmbito da ação inspetiva não estava fundamentado, o que, em bom rigor, não foi posto em causa pela Recorrente.

Como tal, não lhe assiste razão.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 19 de outubro de 2023

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)






















1) Cfr. José Carlos Vieira de Andrade, O dever de fundamentação expressa de actos administrativos, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 329 a 336. V. a este propósito o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.03.2019 (Processo: 24/08.0BELRS).