Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2098/12.0 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:11/16/2023
Relator:ANA CRISTINA CARVALHO
Descritores:ÓNUS DE IMPULSO PROCESSUAL
DEVER DE COLABORAÇÃO
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:I - O ónus de impulso processual das partes está, em regra, associado ao princípio do dispositivo, fazendo recair sobre as partes um dever de actuação no processo, cujo incumprimento impede o prosseguimento da acção nos casos em que cabe à parte a iniciativa, cuja omissão constitui um impedimento ou irregularidade inultrapassável na tramitação do processo que determina a extinção da instância, por deserção;
II - A falta de identificação completa da testemunha, bem como da indicação dos factos a que a testemunha fora indicada, após convite dirigido à parte pelo Tribunal não integram a omissão de um impulso processual, porquanto tal informação não é essencial, nem necessária ao desenvolvimento do processo, integrando antes o dever de colaboração na celeridade processual na medida em que possibilita ao juiz apreciar mais fácil e rapidamente a necessidade da produção da prova testemunhal;
III - A omissão da prestação dos aludidos elementos de informação não impede o prosseguimento da marcha processual, pois não constitui em si um acto sem o qual o processo não pode prosseguir ou sem o qual não possa considerar-se assegurada a regularidade da instância.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Subsecção Comum do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

A Magistrada do Ministério Público interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que, no processo de impugnação judicial apresentado por E…., identificada nos autos, considerou deserta a instância e julgou, em consequência, extinta a instância, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 1 e 277.º alínea c), do Código de Processo Civil aplicável por força do disposto no artigo 2.º, alínea e, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

A Recorrente apresentou as suas alegações de recurso rematando-as com a formulação das seguintes conclusões:

«1) O Mmo Juiz a quo julgou deserta a instância e, consequentemente, determinou a sua extinção, nos termos dos arts. 281.° n° 1 e 277.° alínea c), do CPC, ex vi art. 2.° alínea e) do CPPT;

2) Não se encontram reunidos os pressupostos da deserção da instância tal como previstos no art.281° n° 1 do CPC;

3) A deserção pressupõe a verificação cumulativa de duas exigências: uma de natureza objetiva (falta de impulso processual das partes, máxime do A., para o prosseguimento da instância) e outra de natureza subjetiva (inércia causada por negligência).

4) Apenas releva a paragem imposta pela omissão no cumprimento de um ónus, ou seja, a omissão de um dever da parte que impede o normal prosseguimento dos autos;

5) A falta de indicação, por banda do autor, a que factos concretos pretende seja produzida prova testemunhal, não constitui a omissão de um dever da parte que impede o normal prosseguimento dos autos.

6) Face a todo o exposto, a decisão de deserção da instância deverá ser revogada, devendo os autos prosseguir os termos normais.»


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Por decisão Sumária de 13/06/2023, transitada em julgado, foi declarada a incompetência hierárquica do Supremo Tribunal Administrativo para o conhecimento do recurso, por a decisão recorrida não ser uma sentença sobre o mérito da impugnação judicial declarando, em consequência, competente para o efeito a Secção Tributária do Tribunal Central Administrativo Sul.

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Remetidos os autos a este Tribunal Central, o Procurador-Geral Adjunto, emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso por entender que não sendo obrigatória a indicação de testemunhas, caso a parte não as apresente ou caso não as identifique, como foi solicitado, a consequência será a não admissão das mesmas, prosseguindo os autos com vista à eventual decisão final e/ou outra diligência que seja julgada oportuna, face aos elementos junto aos autos.

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Com dispensa dos vistos legais, vem o processo submetido à conferência para apreciação e decisão.

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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente no âmbito das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Importa assim, decidir se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao julgar deserta a instância por falta de impulso processual há mais de seis meses consubstanciado na omissão da indicação dos factos a que responde a testemunha arrolada pela parte, após notificação para o feito.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III – 1. De facto


Decorrem dos autos as seguintes ocorrências processuais:
i) Com a petição inicial a impugnante indicou uma testemunha omitindo a sua residência, declarando o seguinte: «a apresentar»;
ii) Após a apresentação da contestação foi proferido nos autos o seguinte despacho: «A fim de ponderar da necessidade da inquirição das testemunhas arroladas pela Impugnante e atendendo ao princípio da cooperação, previsto no artigo 7.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), determino a notificação da Impugnante para, no prazo de vinte dias, vir aos autos identificar as testemunhas nos termos do artigo 498.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e dizer, quais os factos sobre os quais as testemunhas irão responder, identificando os artigos da douta petição em cumprimento do determinado no artigo 118.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.»
iii) Sobre o despacho que lhe foi notificado, identificado no ponto anterior, a impugnante nada disse ou requereu;
iv) Após a emissão de parecer pelo Ministério Público foi proferida a seguinte decisão: «Por despacho de 12.12.2016 foi a Impugnante notificada para “A fim de ponderar da necessidade da inquirição das testemunhas arroladas pela Impugnante e atendendo ao princípio da cooperação, previsto no artigo 7.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), determino a notificação da Impugnante para, no prazo de vinte dias, vir aos autos identificar as testemunhas nos termos do artigo 498.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e dizer, quais os factos sobre os quais as testemunhas irão responder, identificando os artigos da douta petição em cumprimento do determinado no artigo 118.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
A Impugnante não cumpriu o determinado no despacho citado e, decorridos 4 anos, nada veio requerer.
Por despacho de 09.12.2020, face à inércia da Impugnante, manifestada nos autos, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público, para os efeitos tidos por convenientes, tendo sido emitido o douto Parecer de fls. 206 (do Sitaf).
O processo encontra-se sem tramitação há mais de seis meses, sem que a Impugnante tenha manifestado interesse na manutenção da instância.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 281.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do artigo 2.º do CPPT, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Assim, decorridos mais de seis meses desde a data em que a instância aguarda o impulso processual da Impugnante, considera-se a mesma, actualmente, deserta, o que determina a sua extinção (da instância - cfr. arts. 281.º n.º 1 e 277.º alínea c), do CPC, ex vi art. 2.º alínea e) do CPPT).

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DECISÃO
Termos em que, por deserção, se julga extinta a presente instância.
(…)»
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III – 2. Da apreciação do recurso

A questão a apreciar no presente recurso é a de saber se o despacho recorrido incorreu em erro de julgamento ao julgar deserta a instância por negligência da parte consubstanciada na falta de resposta a anterior despacho que determinara a notificação da impugnante para proceder à identificação da testemunha e indicar a que factos pretendia ver inquirida a aludida testemunha.

A instância extingue-se, por verificação, além de outras causas, da deserção, conforme resulta da alínea c) do CPC.

A deserção da instância está prevista no n.º 1 do artigo 281.º do CPC, norma que dispõe o seguinte:

«1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.»

Decorre da citada disposição legal que a deserção da instância depende da verificação de três elementos. Um elemento subjectivo, que consiste na negligência da parte, num elemento objectivo consubstanciado na falta de impulso processual e por fim, do elemento temporal, ou seja, o decurso de 6 meses sobre a omissão de impulso processual.Nos termos do n.º 1 do artigo 498.º do CPC, as testemunhas são designadas no rol pelos seus nomes, profissões e moradas e por outras circunstâncias necessárias para as identificar.

A falta de identificação completa da testemunha, bem como a indicação dos factos a que a testemunha fora indicada, não constituem a omissão de um impulso processual, porquanto tal informação não é essencial, nem necessária ao desenvolvimento do processo. Sendo certo que permite contribuir para a celeridade processual, na medida em que possibilita ao juiz apreciar mais fácil e rapidamente a necessidade da produção da prova testemunhal, não constitui em si um acto sem o qual o processo não pode prosseguir ou sem o qual não possa considerar-se assegurada a regularidade da instância.

A omissão da prestação dos aludidos elementos de informação não impede o prosseguimento da marcha processual, por não ser um acto que se imponha à parte praticar. Daí que o despacho que antecedeu a decisão sob recurso ter feito apelo ao princípio da colaboração quando determinou a notificação da impugnante para identificar as testemunhas, nos termos do artigo 498.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e dizer, quais os factos sobre os quais as testemunhas iriam responder.

Se ao juiz é imposto o poder/dever de realizar todas as diligências instrutórias que repute necessárias para a descoberta da verdade, por força do princípio do inquisitório, tendo a parte indicado uma testemunha a apresentar, para prova dos factos que alega, a omissão da identificação completa da testemunha e a indicação dos factos a que a parte pretende ver a testemunha inquirida não impossibilitado a diligência de produção de prova, não constituem a omissão de um impulso que onere a parte com a deserção com a consequente extinção da instância.

Na verdade, incumbindo ao juiz o dever de gestão processual, previsto no artigo 6.º do CPC, nos termos do qual, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, cumpre-lhe a direcção activa do processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

Nos termos do n.º 2 da citada norma o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.

Ora, o processo tributário, tal como o processo civil, encontra-se balizado pelos princípios do dipositivo e do inquisitório.

O princípio do dispositivo, está, antes de mais, estabelecido no n.º 1 do artigo 5.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ao processo tributário por forçado do disposto no artigo 2.º alínea e) do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), nos termos do qual cabe às partes o ónus de invocar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

Já o princípio do inquisitório, consagrado no artigo 411.º do CPC, impõe ao juiz, quanto àqueles factos e aos demais de que lhe for lícito conhecer, a incumbência de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. Trata-se de um poder/dever de diligenciar no sentido da descoberta da verdade material apenas limitado pela admissibilidade dos meios de prova tendo em vista o facto a provar e a necessidade da prova tendo por referencial de decisão o objecto da acção, ou seja, a questão colocada nos autos.

No processo tributário dispõe o artigo 99.º da Lei Geral Tributária (LGT) sob a epígrafe «Princípio do inquisitório e direitos e deveres de colaboração processual» o seguinte:

«1 - O tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade relativamente aos factos alegados ou de que oficiosamente pode conhecer.

2 - Os particulares estão obrigados a prestar colaboração nos termos da lei de processo civil.

3 - Todas as autoridades ou repartições públicas são obrigadas a prestar as informações ou remeter cópia dos documentos que o juiz entender necessários ao conhecimento do objecto do processo

Este princípio encontra ainda consagração no artigo 13.º, n.º 1 do CPPT, a propósito dos poderes do juiz «aos juízes dos tribunais tributários incumbe a direcção e julgamento dos processos da sua jurisdição, devendo realizar ou ordenar todas as diligências que considerem úteis ao apuramento da verdade relativamente aos factos que lhes seja lícito conhecer.»

Tendo em conta que o tribunal não está limitado aos elementos probatórios apresentados pelas partes, dentro dos limites já referidos, impondo-se-lhe o poder-dever de procura da verdade material, o princípio do inquisitório, permite ao juiz na fase da instrução do processo, inquirir testemunhas ainda que a parte não indique nenhum meio de prova.

Para o cabal esclarecimento dos factos e para a formação da sua convicção impõe-se ao juiz, o poder de garantir que reúne toda a prova necessária à finalidade última do processo que constitui o apuramento dos factos de que lhe é lícito conhecer e que se revelem úteis com vista à decisão da causa através da justa composição do litígio.

Tais poderes probatórios do juiz são vinculados, sempre que ponderada a sua necessária para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio devem ser exercidos com o agendamento das diligências probatórias reputadas de necessárias.

Requerida a produção de prova nos autos, com a indicação de uma testemunha a apresentar, não significa que o juiz esteja vinculado à sua inquirição.

Ainda que a parte tenha omitido o dever de colaboração com o Tribunal na identificação completa da testemunha e na indicação dos factos a que a mesma devia ser inquirida e para os quais havia sido arrolada, tal omissão não impede que o julgador determine oficiosamente o prosseguimento da acção, nem dispensa a ponderação sobre a necessidade de tal inquirição em função do objecto do processo, da existência de factos controvertidos, da admissibilidade da prova testemunhal para o seu esclarecimento e da sua necessidade tendo em conta a prova eventualmente já existente nos autos e sem prejuízo dos factos que não carecem de alegação ou de prova.

Conforme dispõe o artigo 114.º do CPPT, sobre diligências de prova, não conhecendo logo do pedido, o juiz ordena as diligências de produção de prova necessárias.

Dito isto, importa sublinhar que o ónus de impulso processual das partes está, em regra, associado ao princípio do dispositivo, fazendo recair sobre as partes um dever de actuação no processo, cujo incumprimento impede o prosseguimento da acção por lhes caber a iniciativa, cuja omissão constitui um impedimento ou irregularidade inultrapassável na tramitação do processo que determina a extinção da instância, por deserção.

O circunstancialismo dos autos não integra tal ónus, por a omissão em causa não constituir um dever de actuação no processo, para além da colaboração devida, nem se podendo afirmar que, sem a actuação omitida pela parte o juiz não pode determinar oficiosamente o normal andamento do processo.

Antes pelo contrário. A falta de identificação completa de testemunha a apresentar pela parte, bem como a omissão a indicação dos factos a que a testemunha responderia, caso a prova oferecida fosse produzida, não impede o normal andamento do processo, pelo que, não poderia ter sido jugada deserta nem extinta a instância com tal fundamento.

Nem da aludida omissão se pode extrair a ilacção de que a parte deixou de ter interesse no prosseguimento dos autos. Tanto mais que pode a todo o tempo desistir da inquirição de testemunhas que tenha oferecido, sem prejuízo da possibilidade de inquirição oficiosa, nos termos do artigo 526.º conforme resulta do disposto no artigo 498.º do CPC.

Assim sendo, a decisão recorrida não se pode manter, impondo-se a sua revogação e a determinação da baixa dos autos para o andamento subsequente dos autos.IV – CONCLUSÕES

I - O ónus de impulso processual das partes está, em regra, associado ao princípio do dispositivo, fazendo recair sobre as partes um dever de actuação no processo, cujo incumprimento impede o prosseguimento da acção nos casos em que cabe à parte a iniciativa, cuja omissão constitui um impedimento ou irregularidade inultrapassável na tramitação do processo que determina a extinção da instância, por deserção;

II - A falta de identificação completa da testemunha, bem como da indicação dos factos a que a testemunha fora indicada, após convite dirigido à parte pelo Tribunal não integram a omissão de um impulso processual, porquanto tal informação não é essencial, nem necessária ao desenvolvimento do processo, integrando antes o dever de colaboração na celeridade processual na medida em que possibilita ao juiz apreciar mais fácil e rapidamente a necessidade da produção da prova testemunhal;

III - A omissão da prestação dos aludidos elementos de informação não impede o prosseguimento da marcha processual, pois não constitui em si um acto sem o qual o processo não pode prosseguir ou sem o qual não possa considerar-se assegurada a regularidade da instância.

V – DECISÃO


Termos em que, acordam os Juízes da Secção Comum do Contencioso Tributário do TCA Sul em conceder provimento ao recurso jurisdicional revogar a decisão recorrida e determinar a baixa para o subsequente andamento do processo.

Sem custas.

Lisboa, 16 de Novembro de 2023.


Ana Cristina Carvalho - Relatora

Susana Barreto – 1ª Adjunta

Maria Cardoso – 2ª Adjunta