Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2223/09.8BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:02/11/2021
Relator:ANA CRISTINA CARVALHO
Descritores:RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
GERENTE
EXERCÍCIO EFECTIVO
ÓNUS DA PROVA
ASSINATURA DE UM OU DOIS DOCUMENTOS NÃO CONTEMPORÂNEOS DA CONSTITUIÇÃO DAS DÍVIDAS EM COBRANÇA
Sumário:i) A responsabilidade subsidiária dos gerentes, por dívidas da executada principal, tem por pressuposto o exercício efectivo do cargo de gerente não se satisfazendo com a mera gerência nominal ou de direito;

ii) Da assinatura de um ou dois documentos, não contemporâneos da constituição das dívidas em cobrança coerciva, não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que a Oponente exerceu, de facto, a gerência da sociedade;

iii) Recaindo o ónus da prova de tal pressuposto sobre a exequente, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efetivo exercício da gerência.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

A Fazenda Pública, recorreu da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a oposição deduzida por M….., enquanto revertida, no âmbito do processo de execução fiscal n.º …… e apensos, instaurado pelo Serviço de Finanças de Lisboa 13, para cobrança de dívidas fiscais referentes a IVA, a juros compensatórios e a coimas originariamente instaurada contra a sociedade I……, Lda.

Formula, para o efeito, as seguintes conclusões:

« I. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a presente oposição, com as consequências aí sufragadas, considerando a oponente parte ilegítima na execução em apreço.

II. Considerou a Meritíssíma Juiz do tribunal a quo que de acordo com a factualidade apurada e com a corrente jurisprudencial hoje firmada, ter-se de concluir não ter a Fazenda Pública feito qualquer prova da gerência de facto por parte da oponente.

III. Não se conforma a Fazenda Pública com a douta decisão recorrida, porquanto considera que da prova produzida se não podem extrair as conclusões que lhe serviram de base, determinando que se julgasse pela ilegitimidade da oponente consubstanciada na ausência de prova, pela Fazenda Pública, da gerência de facto, com a consequente extinção da execução relativamente à oponente.

Senão vejamos,

IV. A lei não define, de forma exacta e peremptória, o que são os poderes de administração ou gerência, no entanto, da leitura das normas do Código das Sociedades Comerciais (CSC) nomeadamente os artigos 259° e 260° somos levados a considerar que são os que se traduzam na representação da empresa face a terceiros (ex: credores, trabalhadores, fisco, fornecedores, entidades bancárias, etc.) de acordo com o objecto social e mediante os quais o ente colectivo fique vinculado, Acrescentando o n.° 4 do sobredito artigo 260° que, os gerentes vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade.

V. Isto é, um administrador/gerente, uma vez nomeado e iniciado o exercício das suas funções passa a ter direitos e obrigações para com a sociedade e para com terceiros. Ou seja, tem o dever de administrar a empresa dentro dos altos padrões de diligência, agindo com rigor e responsabilidade, empregando a diligência de um gestor criterioso e ordenado (nos termos do art. 64° do CSC),

VI. devendo para tanto cumprir os contratos celebrados com terceiros e proceder ao pagamento das dívidas da sociedade e cobrança dos seus créditos de modo a evitar a insuficiência do património da sociedade para o pagamento do passivo da sociedade, tendo ainda a obrigação, in extremis, de pedir em tribunal a convocação dos credores para que estes e o juiz decidam o destino da empresa.

VII. Assim sendo, aos administradores/gerentes peia posição que ocupam é-lhes exigida uma postura responsável e ponderada, no desempenho das suas funções, de modo a que aquela corresponda a uma actuação diligente de acordo com o exigível a um administrador criterioso colocado em idêntica situação e dentro da inerente discricionariedade técnica, 

VIII. Neste sentido, a posição do tribunal de Santa Maria da Feira, ao referir que “os gestores ou administradores estatutários, ainda que não o sejam na prática, encontram-se numa posição legal de garante em relação aos credores sociais, com vista a que os "gestores de facto" adoptem métodos de um "gestor criterioso", impondo-se-lhes um dever de vigilância quanto aos procedimentos de gestão adoptados por estes últimos. No caso da omissão desse dever de vigilância e se os “gestores ou administradores de facto” não actuarem de modo diligente no exercício dessas funções de direcção, os dirigentes societários estatutários respondem civilmente perante os credores sociais pelos danos causados por aqueles outros “dirigentes de facto". “Sentença do 2o Juízo Cível do Circulo de Santa Maria da Feira, sentença A. Ordinária n.° 237/2002 (sublinhados nossos)

IX. Corroborada pelos ensinamentos do Professor Germano Marques da Silva “o exercício das funções de administrador acarreta desde logo o dever de praticar os actos que a lei impõe às respectivas empresas. Cumpre à administração praticar os actos que por lei são impostos às empresas, donde que a omissão desses actos é objectivamente imputável aos seus administradores". Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, p. 305

X. Nestes termos e, no seguimento da doutrina e jurisprudência citada, não se exige para a responsabilização dos gerentes pelas dividas fiscais da sociedade uma administração continuada, bastando-se que essa gerência, ainda que de modo esporádico, evidencie de algum modo a vinculação da vontade social perante terceiros,

XI. Assim o entendimento da Dra. Tânia Cunha, "A gerência de facto ocorre quando alguém - ainda que de modo esporádico e apenas em relação a um único pelouro da empresa - exterioriza de algum modo a representação da vontade social por meio de atos substantivos e materiais, vinculando a sociedade perante terceiros.

XII. Expresso na jurisprudência do TCA Norte (processo n.° 00129/98) "a lei não exige, para a responsabilização dos gerentes pelas dívidas fiscais da sociedade, que estes exerçam uma administração continuada, nem em todas as áreas que se desenvolve a actividade da sociedade.” (...) “quando a gerência ou administração das sociedades è composta por várias pessoas, é normal proceder-se à distribuição das respectivas funções entre elas, sem que, tal repartição e competência arrede a responsabilidade de cada uma delas relativamente à gerência global da sociedade. Não se exige, para que se considere que houve exercício de funções de gerência, que estas respeitem a todas as áreas em que aquela se pode manifestar, nem sequer que o sejam nas concretas áreas da contabilidade e administração financeira." (neste sentido, também o Acórdão do TCA Sul, processo n.° 01953/07 de 9 de Outubro de 2007)

XIII. Ora, em primeiro lugar, a aposição da assinatura como sócia gerente da sociedade em documento que vincula a própria sociedade, perante terceiros, não pode, só por si, ser distintivo da gerência de direito, pelo contrário é demonstrativo do exercício da gerência de facto.

XIV. Isto somente demonstra uma actuação passiva como gerente da sociedade e marcada por uma conduta omissiva e pouco zelosa de quem pela posição que ocupa junto da sociedade se espera exactamente o contrário.

XV. Face ao exposto e contrariamente ao expendido na douta sentença, não se vislumbra qualquer ilegalidade praticada pela AT, antes se denotando o exercício da sua actividade dentro dos limites estritos da lei.

Nestes termos, em face da motivação e das conclusões atrás enunciadas, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se, em consequência a douta sentença ora recorrida, com as legais consequências, assim se fazendo por Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA.»


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A Recorrida, contra-alegou concluindo nos seguintes termos:

« a) Nos termos da lei (Art. 24.º, LGT), a responsabilidade subsidiária dos membros dos corpos sociais (incluindo os gerentes) é apurada, sempre, com referência ao período do exercício do seu cargo e ao momento da verificação do facto constitutivo da dívida tributária — ora, para além dos dois actos praticados pela Oponente (a assinatura da declaração de registo em sede de IVA e IRC e da declaração de alterações da sociedade em sede de IVA) serem actos isolados, sem qualquer expressão de uma gerência efectiva e de facto, tais actos foram praticados em ano fiscal anterior aos anos em que se constituiu a dívida exequenda, pelo que se deve excluir, de todo, qualquer correspondência entre o exercício do cargo de gerente (que não se aceita, como se disse e reitera) e o momento da verificação do facto constitutivo da dívida tributária;

b) Para que se verifique a responsabilidade pessoal dos gerentes, neste caso, da Oponente, é necessário que ocorra uma gerência de facto, ou seja, o exercício real e efectivo do cargo o que, como se demonstrou, não sucedeu em relação à Oponente;

c) A liquidação é ilegal, pois o respectivo direito já havia caducado, sendo tal caducidade extensível às dívidas tributárias constituídas nos anos de 1997 a 2002 — com efeito, nada consta nos Autos que comprove a liquidação dos respectivos impostos dentro do prazo legal ou qualquer facto suspensivo que tenha determinado a interrupção ou suspensão desse mesmo prazo, donde resulta, inexoravelmente, a ilegalidade da liquidação do imposto de IVA relativo aos anos 1997, 1998, 1999, 2000, 2001 e 2002 (Arts. 45º e ss. da LGT);

d) Ocorreu a prescrição das dívidas tributárias relativas aos anos de 1996, 1997 e 1998 e que integram a quantia exequenda (Arts. 48º e ss., LGT).

Nestes termos e nos mais de Direito, deverá a Oposição ser julgada procedente, por provada e, consequentemente, a Oponente deverá ser absolvida do pedido de execução fiscal, com todas as legais consequências, para que se faça Justiça»


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Foi dada vista ao Ministério Público, e neste Tribunal Central Administrativo, a Procurador–Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.


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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência para apreciação e decisão.

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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, como referimos antes, é pelas conclusões com que o recorrente extrai das suas alegações, que se determina objecto do recurso e o âmbito de intervenção deste tribunal, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas as questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Nas conclusões deve o recorrente indicar, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida, conforme resulta do disposto no artigo 639.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).

Das conclusões com que a recorrente termina as suas alegações de recurso resulta a identificação da questão a decidir que é a de saber se a sentença recorrida incorre em erro de julgamento de facto e de direito ao decidir que a Oponente não exerceu a gerência efectiva ou de facto da sociedade devedora originária, no período em que se constituíram e foram colocadas a pagamento as quantias exequendas.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

III – 1. De facto


É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida:

« 1. Correm termos no Serviço de Finanças de Lisboa 13 os PEF n°s ……e apensos, em que é executada a sociedade I……, Lda, nos quais se visa a cobrança de dívidas fiscais referentes a IVA, a juros compensatórios e a coimas - cfr. fls. 64 a 76v dos autos, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
2. Em 29 de Maio de 2007, foi elaborado projecto de decisão tendente à reversão das dívidas em cobrança no âmbito dos PEF mencionados no ponto que antecede e foi determinada a audição de M……, ora Oponente - cfr. fls. 77 a 79 dos autos, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
3. Em 14 de Junho de 2007, a Oponente exerceu o seu direito de audição prévia - cfr. fls. 80 e 80v dos autos, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
4. Em 17 de Julho de 2007, foi determinada a reversão dos PEF n.° ……e apensos contra a Oponente, no valor total de EUR 10.330,62 - cfr. fls. 82 dos autos, para a qual se remete e que se dá por integralmente reproduzida;
5. O valor referido no ponto que antecede respeita às seguintes dívidas:

6. A Oponente recebeu a carta com vista à sua citação, por reversão, em 20 de Julho de 2007 - cfr. fls. 83v dos autos, para a qual se remete e que se dá por integralmente reproduzida;
7. A sociedade referida no ponto 1 foi constituída em 7 de Setembro de 1994, nela figurando como sócios a ora Oponente e I……, cujas quotas perfaziam 50% cada - cfr. fls. 17 a 19 dos autos, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
8. Na data referida no ponto que antecede, foram nomeados como gerentes da sociedade a ora Oponente, I…… e R…… - cfr., novamente, fls. 17 a 19 dos autos;
9. A forma de obrigar a sociedade consistia na aposição conjunta das assinaturas de dois gerentes - cfr., novamente, fls. 17 a 19 dos autos;
10. A sociedade em apreço explorava um estabelecimento de pastelaria - cfr. depoimentos de P……, O……, M…… e I……;
11. Em 2 de Agosto de 1994, a Oponente assinou e entregou junto da Administração Tributária a Declaração de Inscrição no Registo/Início de Actividade, em sede de IVA e de IRC, relativamente à sociedade supra mencionada - cfr. fls. 60 a 61 v dos autos, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
12. Em 24 de Maio de 1996, a Oponente assinou e entregou junto da Administração Tributária uma Declaração de Alterações, relativamente à sociedade supra referida, na qual foi comunicada a alteração da sede da respectiva sociedade - cfr. fls. 62 a 63v dos autos, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
13. Desde o início de funcionamento do estabelecimento comercial explorado pela sociedade supra mencionada até cerca de final do ano de 1997, a Oponente desempenhou funções de atendimento de clientes - cfr. depoimentos de P……, O…… e M……;
14. Em 30 de Janeiro de 1998, a Oponente foi internada nos serviços de cirurgia vascular do Hospital Garcia de Orta, por claudicação intermitente incapacitante - cfr. fls. 20 dos autos, para a qual se remete e que se dá por integralmente reproduzida;
15. Em 9 de Fevereiro de 1998, a Oponente foi submetida a intervenção cirúrgica, tendo efectuado “bypass aorto bi-femoral com prótese de Dacron 14- 7” - cfr., novamente, fls. 20 dos autos;
16. A Oponente ficou internada no Hospital Garcia de Orta até 16 de Fevereiro de 1998 - cfr., novamente, fls. 20 dos autos;
17. A Oponente ficou sujeita a medicação com antiagregantes, abstenção tabágica e vigilância médica - cfr., novamente, fís. 20 dos autos;
18. Por força dos problemas de saúde referidos nos pontos que antecedem, à Oponente foi concedida uma pensão de invalidez a título vitalício, em regime da Segurança Social - cfr. fls. 21 e 22 dos autos, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas, bem como o depoimento de O……;
19. Por força dos problemas de saúde referidos nos pontos que antecedem, desde cerca do fim do ano de 1997, a Oponente deixou de ter contacto com a actividade da sociedade comercial referida no ponto 1 - cfr. depoimentos de P……, O……, M…… e I……;
20. I…… e R…… assinavam os documentos atinentes à sociedade comercial referida no ponto 1 - cfr. depoimentos de P……, O……, M…… e I……;
21. I…… e R…… contactavam e pagavam a fornecedores da sociedade comercial referida no ponto 1 - cfr. depoimentos de P……, O……, M…… e I……;
22. I…… e R…… asseguravam a contabilidade da sociedade comercial referida no ponto 1 e o cumprimento das respectivas obrigações fiscais - cfr. depoimentos de P……, O……, M…… e I……;
23. Em 7 de Abril de 2005, a Oponente enviou uma carta registada com aviso de recepção, dirigida a I……, na qualidade de gerente da sociedade I……, Lda subordinada ao assunto “Renúncia à Gerência", com o seguinte teor:
Ex.ma Senhora,
Tal como é do conhecimento de V. Exª, por causa da doença grave e incapacitante que se manifestou na minha pessoa e do acompanhamento médico e hospitalar que a mesma obrigou (incluindo a sujeição a intervenção cirúrgica), desde o final do ano de 1997 deixei de ter qualquer contacto., fosse por que via fosse, com os assuntos, a gestão e a actividade da sociedade I……, LDA.
Aliás, em virtude da gravidade da doença das incapacidades que a mesma provoca, sem possibilidade de recuperação, estou impossibilitada, desde essa data de exercer qualquer actividade. Tendo-me sido atribuída, pensão de invalides, a titulo vitalício.
É meu entendimento que, por via da incapacidade permanente para o exercício do qualquer actividade, o meu vínculo, enquanto gerente da sociedade, caducou., pelo menos, no dia 30/01/1998, data em que fui submetida a intervenção cirúrgica.
Em todo o caso e à cautela, venho pela presente e noa termos do disposto nos Arts. 258º n.º 1 e 260º, n.º 5, ambos do Código das Sociedades Comerciais, renunciar à gerência, cujos efeitos retroagem à data anteriormente referida.
- cfr. fls. 23 e 24 dos autos, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
24. A presente oposição à execução foi apresentada em 18 de Setembro de 2007 - cfr. data a fls. 7 e seguintes dos autos.»

Consta ainda da mesma sentença que «Conforme individualmente especificado, os factos provados foram dados como assentes com base no exame dos documentos constantes dos autos e com base nos depoimentos, elucidativos e coincidentes, prestados pelas testemunhas inquiridas, as quais depuseram com conhecimento directo sobre os factos e sobre a situação da Oponente à data.
Nada mais foi provado com interesse para a decisão em apreço.»

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III – 2. De direito

A sentença recorrida julgou procedente a acção de oposição deduzida pela recorrida, na qualidade de revertida, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 1 alínea b) da LGT por ter concluído que dos autos não resultava a prova do efectivo exercício das funções de gerência pela recorrida, e assim sendo, julgou-a parte ilegítima para os termos da execução.

Tal conclusão suportou-se na apreciação e valoração dos factos, no entendimento de que, apesar de resultar da prova adquirida, nos pontos 11 e 12 da matéria de facto que, em 2/8/1994 a oponente, ora recorrida, entregou junto da Administração Tributária, em nome e em representação da sociedade devedora originária, a Declaração de Inscrição no Registo/Início de Actividade, em sede de IVA e IRC e que, em 24/5/1996 apresentou uma Declaração de alterações, na qual comunicava a alteração da sede da sociedade, «ambos respeitam a um período anterior ao da constituição das dívidas em cobrança coerciva nos PEF em apreço».

Mais se afirma na sentença recorrida que, «dos demais meios de prova recolhidos, nenhum indicia que a Oponente tenha praticado actos de gerência efectiva da sociedade devedora originária».

A Fazenda Pública não se conforma com o assim decidido, por considerar que, da prova produzida não se podem extrair as conclusões que determinaram a ilegitimidade da oponente consubstanciada na ausência de prova pela Fazenda Pública, da gerência de facto.

Compulsadas as conclusões das alegações de recurso, podemos constatar que a recorrente cita, em abono da sua tese, doutrina e jurisprudência (que não se referem a matéria fiscal, ou não reflectem o actual estádio de desenvolvimento da jurisprudência no contencioso tributário), no sentido de sustentar que impende sobre o gerente de direito o dever de praticar actos, e que a gerência de facto não decorre necessariamente de uma actuação contínua, podendo resultar de actuação esporádica, como a que resulta dos pontos 11 e 12 dos factos provados. Pretendendo ainda, extrair do envio pela recorrida, em 1/4/2005, de uma carta registada com aviso de recepção dirigida a I……, na qualidade de gerente da sociedade I……, Lda, renunciando à gerência, a prova de uma intervenção activa de vinculação da sociedade, donde considera emergir o exercício de facto das funções de gerente.

A recorrente considera que os referidos documentos, não são demonstrativos apenas da gerência de direito, como também demonstrativos do exercício da gerência de facto, pretendendo ainda extrair deles, uma atitude passiva, marcada por uma conduta omissiva e pouco zelosa.

Contudo, não lhe assiste razão.

Não vem questionado o regime da reversão aplicado na sentença, nem as partes questionam que, nos termos do artigo 13.º do CPT, bem como do artigo 24.º da LGT, a responsabilidade subsidiária de gerentes de sociedades depende do exercício de facto da gerência.

Também não constitui controvérsia, no que se refere às regras do ónus da prova, relativamente ao exercício de facto de funções de administração ou gestão, que em ambos os regimes citados, compete à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária, devendo contra si ser valorada a falta de prova sobre o efectivo exercício da gerência. Em consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão do Pleno do CT proferido no processo n.º 01132/06, datado de 28/02/2007, entendimento reiterado posteriormente, pelo Acórdão prolatado no processo n.º 0861/08, de 10/12/2008 e pelo Acórdão do Pleno do CT de 21/11/2012, processo n.º 0474/12.

A controvérsia reside na valoração da prova adquirida, adiantando-se desde já que não assiste razão à recorrente.

Como bem se refere na sentença, os dois documentos existentes nos autos demonstrativos de actuação da recorrida em representação da devedora originária, respeitam a um período anterior ao período aqui em causa, e ainda assim, nunca poderiam constituir prova, só por si, sem a existência doutros factos índice por constituírem actos isolados que não demonstra uma actuação consistente em representação da sociedade.

A carta remetida pela recorrida em 1/4/2005 comunicando que renunciava à gerência, que a recorrente configura como a prova de uma intervenção activa de vinculação da sociedade, não constitui mais do que um acto de declaração pessoal dirigido à gerente da sociedade, cumprindo a formalidade legalmente prevista de comunicação desse facto à sociedade e não um acto em representação da sociedade.

Relativamente à imprestabilidade de actos isolados como prova da gerência de facto, decidiu este Tribunal Central em inúmeros Acórdãos, entre os quais se destacam os seguintes: Acórdão proferido no processo n.º 3118/12.3BELRS datado de 07/05/2020:

«III. Da assinatura de um único requerimento de pagamento em prestações, não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que o Oponente exerceu, de facto, a gerência da dita sociedade.» e acórdão proferido no processo n.º 1044/11.2BELRS datado de 16/12/2020:

«(…) o facto de ter resultado provado que o oponente assinou um ou outro documento relativo à devedora originária, não altera a conclusão extraída na sentença recorrida porque a assinatura pontual de um ou outro documento não revela de per si e atenta a demais factualidade provada que tenha havido exercício efectivo de funções, exercício esse que, como mencionado, pressupõe a prática reiterada e com carácter de continuidade de actos de administração

Recorde-se que a devedora principal tinha por objecto a exploração de um estabelecimento de pastelaria. Da apreciação da prova testemunhal, dela emerge o desempenho pela recorrida de funções de atendimento ao público e que era a sócia gerente I…… juntamente com o gerente, não sócio, R…… quem assinavam os documentos atinentes à sociedade, conforme confessado pela própria I…… (cf. pontos 10, 13 e 20 da matéria de facto).

Compaginando a referida apreciação, com a prova documental que demonstra à saciedade a situação clinica e de saúda da recorrida que culminou com a sua passagem à situação de reforma por invalidez. Bem como da verificação de que a forma de obrigar sociedade devedora principal consistia na aposição conjunta das assinaturas de dois gerentes, tendo sido nomeados três gerentes, é verosímil concluir que a sociedade podia funcionar sem a assinatura da oponente/recorrida.

Tudo visto, impõe-se a conclusão de que, à luz das regras da experiência comum, a gerência da recorrida era apenas nominal ou de direito, sem que a recorrente tenha feito prova alguma do exercício da gerência de facto pela recorrida.

Assim sendo, competindo à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efectivo exercício da gerência, como sucedeu na sentença recorrida, donde se conclui pela total improcedência do recurso.

Em matéria de determinação da responsabilidade pelas custas vigora o princípio da causalidade, conforme resulta do disposto no artigo 527.º do CPC, nos termos do qual as custas recaem sobre quem lhe tiver dado causa.

No caso dos autos, a responsabilidade pelas custas deve ser imputada ao recorrente, em resultado do total decaimento no recurso.

Conclusões:

iv) A responsabilidade subsidiária dos gerentes, por dívidas da executada principal, tem por pressuposto o exercício efectivo do cargo de gerente não se satisfazendo com a mera gerência nominal ou de direito;

v) Da assinatura de um ou dois documentos, não contemporâneos da constituição das dívidas em cobrança coerciva, não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que a Oponente exerceu, de facto, a gerência da sociedade;

vi) Recaindo o ónus da prova de tal pressuposto sobre a exequente, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efetivo exercício da gerência.

IV – DECISÃO

Termos em que, acordam em conferência os juízes da 1ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo da Recorrente.

Lisboa, 11 de fevereiro de 2021.


A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01/05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão as restantes Desembargadoras integrantes da formação de julgamento, as Desembargadoras Ana Pinhol e Isabel Fernandes