Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1221/12.9BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2020
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:LIQUIDAÇÃO CORRECTIVA,
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO,
PRETERIÇÃO DO DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA.
Sumário:I. Não estamos perante uma autoliquidação quando a liquidação é emitida pela AT na sequência de correções à declaração apresentada pelo contribuinte;

II. Havendo correções aos valores inscritos na declaração de imposto apresentada pelo contribuinte que estão na origem de um ato de liquidação tributário, este deverá ser fundamentado, devendo conter, ainda que sumariamente, as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, tal como exigido no n.º 2, do art. 77.º da LGT.

III. Não estamos perante uma liquidação que se efetuou com base na declaração do contribuinte que se possa subsumir à dispensa de audição do contribuinte prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 60.º da LGT, quando a liquidação surge na sequência de correções à declaração do contribuinte;

IV. A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do ato deve ser apreciada casuisticamente pela análise das circunstâncias particulares do caso concreto, aferindo-se se a decisão do procedimento não poderia de forma alguma ser influenciada pela participação do contribuinte no procedimento.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação deduzida por S.... I.... - S..... E D......., Lda, em sequência de decisão de deferimento parcial de reclamação graciosa previamente deduzida e confirmada em sede de recurso hierárquico interposto de tal decisão, onde sindica a legalidade da liquidação adicional de IRC n.° 2010 23…… referente ao exercício de 2007, circunscrita à decisão da Administração Tributária não reconhecer a totalidade dos prejuízos fiscais declarados pela Impugnante na declaração de IRC relativa ao exercício de 2007, que se consubstancia numa diferença de 24.608,02€ entre os prejuízos declarados pela Impugnante e os reconhecidos pela Administração Tributária.

A recorrente apresentou as suas alegações e formulou as seguintes conclusões:
«A) Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que declarou procedente a Impugnação deduzida por S.... I.... - S..... E D......., Lda., contra a decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa, confirmada em sede de recurso hierárquico e apresentada contra a liquidação adicional de IRC n.° 201023……., referente ao exercício de 2007, determinando a anulação da liquidação adicional de IRC emitida sobre a ora Recorrida, com todas as consequências legais.
B) A ora Recorrida entregou a declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2007 a 06.05.2008, conforme consta do ponto 12. dos factos dados como provados, na qual declarou um lucro tributável para efeitos fiscais de 358.224,93€ e a existência de prejuízos fiscais no valor global de 349.629,22€ referentes aos anos de 2005 e 2006, da qual resultou uma matéria coletável de 8.595,71€.
C) Estamos perante, portanto, uma autoliquidação, uma liquidação cuja iniciativa pertence ao contribuinte, por disposição legal, consubstanciando-se na apresentação de uma declaração, da qual constam as operações de qualificação e quantificação necessárias para apuramento do montante de imposto a pagar ou a restituir, normalmente acompanhada do respetivo meio de pagamento.
D) Esta não é uma liquidação adicional ou oficiosa, mas tão somente uma autoliquidação, uma liquidação cuja iniciativa, como já foi supra afirmado, pertence ao contribuinte e, portanto, parece que não é dotado de sentido notificar o contribuinte, no caso a ora Recorrida de um ato que ele próprio praticou e que, por isso, do mesmo é totalmente conhecedor.
E) Não teria a ora Recorrida de receber qualquer notificação da liquidação propriamente dita como se afirma na sentença ora recorrida, uma vez que essa mesma liquidação, embora, de facto, “definidora do quantum da obrigação tributária em causa", foi fixada pela própria Recorrida quando entregou a declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2007 e declarou, nomeadamente não só o lucro tributável de 358.224,93€, como o prejuízo fiscal de 349.629,22€.
F) Uma vez que nos casos de autoliquidação, a Autoridade Tributária tem uma atuação menos interventiva, limitando-se a validar as declarações apresentadas pelos contribuintes e a emitir os respetivos documentos de cobrança do imposto autoliquidado. Neste sentido veja-se o Acórdão do TCA Sul de 22.05.2019, no âmbito do processo n.° 300/08.1BESNT, disponível em www.dgsi.pt.
G) Ora, a Autoridade Tributária notificou a ora Recorrida da liquidação adicional de IRC n.° 2010 23…… referente ao exercício de 2007 a qual determinava uma matéria coletável de 283.207,86€. Tal consta do ponto 16 dos factos dados como provados, tendo a própria Recorrida admitido tal facto, juntando à p.i. documento comprovativo da notificação (Veja-se documento n.° 5 junto com a p.i.).
Pelo que, cumpriu a Autoridade Tributária o dever de notificação da liquidação adicional, na sequência da correção que efetuou à (auto)liquidação da Recorrida, do que havia sido declarado pela Recorrida aquando da entrega da declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2007.
H) Entendeu ainda o Tribunal a quo, que a notificação da liquidação adicional de IRC n.° 2010 231…… referente ao exercício de 2007 a qual determinava uma matéria coletável de 283.207,86€, constante do ponto 16 dos factos dados como provados, não se encontra, por um lado, fundamentada e, por outro, que não foi cumprido o direito de audição prévia antes da liquidação.
I) O princípio da participação, com consagração constitucional no art.° 267.° n.° 1 e 5, visa evitar que o sujeito passivo sofra uma decisão desfavorável da administração tributária sem que tenha previamente oportunidade de expor a sua opinião.
J) Pelo que o princípio da participação nada fica prejudicado pelas exceções constantes do n.° 2 do art.° 60.° da LGT, designadamente por não poder exercer o direito de audição “no caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte” - art.° 60.°, n.° 2, alínea a), primeira parte, da LGT.
K) No entanto, a liquidação ora impugnada foi efetuada com base na realidade tributária comunicada à Administração Tributária (AT) pela ora Recorrida.
L) A liquidação ora impugnada foi resultado da entrega da declaração modelo 22 de IRC relativa aos exercícios de 2007, mas também de 2005 e 2006.
M) Pelo que, a liquidação ora impugnada não carece de audição prévia do contribuinte declarante, nos termos do n.° 2, alínea a) do art.° 60.° da LGT, uma vez que a liquidação se efetuou com base na declaração do contribuinte.
N) Aliás, a Administração Tributária e Aduaneira para a prática do ato de liquidação ora em análise não precisou de lançar mão de elementos exteriores às declarações feitas pela ora Recorrida.
O) “Pelo que, não havendo conhecimento nem factualidade nova no procedimento, que tenham sido inseridos pela administração tributária, não se justifica que os contribuintes tenham que se pronunciar acerca de uma factualidade que por eles aportada ao procedimento”.
P) Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio, ainda que se considerasse que a audição prévia não estava dispensada, ao abrigo do art.° 60.° n.° 2 alínea a) da LGT, a formalidade em causa, uma formalidade essencial, degradar-se-ia em formalidade não essencial uma vez que a audiência prévia, neste caso em concreto, não tinha a mínima possibilidade de influenciar a decisão tomada.
Q) Tendo a ora Recorrida apresentado impugnação judicial na qual se pronunciou sobre a liquidação cuja formalidade da audição prévia defende que foi preterida, e verificado que na referida impugnação não foram apresentados elementos novos relevantes, poucas dúvidas subsistem de que tal preterição não teve implicações quanto à validade do ato.
R) A liquidação ora impugnada era a única possível, algo que foi inclusive confirmado pela sentença do Tribunal a quo, na pronúncia que fez acerca da impossibilidade de dedução dos prejuízos fiscais da forma como pretendia a ora Recorrida.
S) Pelo que, não sendo a formalidade invalidante da decisão, impõe-se o aproveitamento do ato - utile per inutile non viciatur-, algo que não foi sequer equacionado pelo Tribunal a quo.
T) Acrescente-se ainda o facto da ora Recorrida ter deduzido efetivamente uma impugnação, na qual se pronunciou sobre as questões sobre as quais era necessário dar-lhe oportunidade de pronúncia, podendo, pelo exposto, considerar-se convalidado o ato, por ter sido atingida, a finalidade visada pela lei com a concessão do direito de audição prévia.
U) Além disso, anteriormente à presente impugnação judicial a ora Recorrida havia apresentado reclamação graciosa e posterior recurso hierárquico, tendo em todos de meios de reação que lançou mão descrito na perfeição o que desencadeou a liquidação ora impugnada.
V) Logo, a finalidade visada pela lei com a concessão do direito de audição prévia, o de participação do sujeito passivo na formação das decisões e deliberações que lhe digam respeito, foi plenamente atingida.
W) Pelo que, a suposta preterição da formalidade legal não teve implicações quanto à validade do ato final, por não se verificar qualquer lesão efetiva e real dos interesses ou valores protegidos pelo preceito violado.
X) O resultado que se pretende com o disposto no art.° 60.° da LGT veio a atingir-se, o de defesa contra o ato tributário.
Y) Pelo exposto, verifica-se um erro de julgamento, decorrente da circunstância de, com base na factualidade dada por provada, se ter concluído que a liquidação impugnada “está eivada do vício de falta de fundamentação, o que determinará a anulação da mesma" e que não tendo sido “(...) notificada para exercer o seu direito de audição prévia em momento anterior ao da emissão da liquidação objecto dos presentes autos - cfr. d. dos factos não provados - que in casu foi preterida formalidade essencial do procedimento tributário determinativo da anulação da liquidação ora impugnada”, não tendo sido considerado o facto de estarem verificados os pressupostos para o aproveitamento do ato, nos termos do art.° 163.° n.° 5 do Código de Procedimento Administrativo, ex vi art.° 2.° alínea d) do CPPT.
Z) Impunha-se à douta sentença recorrida, perante o probatório, fazer uma correspondência perfeita entre os factos dados como provados e o decidido, o que não aconteceu, manifestando a fundamentação jurídica da decisão uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, e por isso incorreta, o que conduziu à injusta decisão contra a ora Recorrente.
Pelo que, nestes termos se impõe a sua revogação e substituição por acórdão que, julgue procedente o presente recurso, e, consequentemente procedente a presente Impugnação Judicial, nos termos das conclusões que seguem e que V. Exas melhor suprirão, julgando legal a sobredita correção.
Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o presente recurso e revogada a douta sentença, como é de Direito e Justiça.»

A recorrida, devidamente notificada para o efeito, apresentou as suas contra-alegações, tendo formulado as conclusões seguintes:
«1. No presente recurso jurisdicional é Recorrente AT - Autoridade Tributária e Aduaneira.
2. O presente recurso jurisdicional tem como objeto a matéria de direito considerada pela douta sentença sob recurso.
3. Mais concretamente a decisão do Tribunal de 1.° instância que julgou a presente ação totalmente procedente e, consequentemente, determinou a anulação da liquidação adicional de IRC n.° 2010 23103……., referente ao exercício de 2007, emitida sobre a Recorrida, com todas as consequências legais.
4. Refira-se que a presente ação surge na sequência do ato de indeferimento parcial da reclamação graciosa previamente deduzida e que foi confirmada em sede de recurso hierárquico interposto contra a mencionada liquidação adicional de IRC, embora circunscrita à decisão da Administração Tributária de não reconhecer a totalidade dos prejuízos fiscais declarados pela Impugnante na declaração de IRC relativa àquele exercício.
5. Nas alegações produzidas pela Recorrente começa por referir que está em causa está a definição da situação tributária da Impugnante, ora Recorrida, no ano de 2007.
6. A Recorrente começa por evidenciar que a ora Recorrida entregou a declaração modelo 22 de IRC relativa de 2007 a 06.05.2008, na qual declarou um lucro tributável para efeitos fiscais no valor de € 358,224, 93, assim como a existência de prejuízos fiscais no valor global de € 349.629 que se reportam aos anos de 2003, 2005 e 2006.
7. Assim, a Recorrida declarou uma matéria coletável no valor de € 8.595,71.
8. Com efeito, afirma a Recorrente que a apresentação da declaração modelo 22 é uma autoliquidação, isto é, uma liquidação cuja iniciativa pertence ao contribuinte por disposição legal.
9. O que, desde já, não se contesta.
10. Até porque, em princípio, a liquidação do IRC é feita, pelo próprio contribuinte, em sintonia com a importância que é conferida à sua declaração no processo de determinação da matéria coletável.
11. Designadamente no tocante à sua declaração periódica de rendimento e declaração de substituição.
12. A declaração em apreço é uma declaração periódica de rendimentos.
13. Nos termos do art. 75°, n.° 1 da LGT, a liquidação em causa beneficia da presunção e de veracidade.
14. Sucede que, tratando-se de uma presunção legal, a mesma é ilidível, através da produção, por parte da Administração Tributária, de prova em sentido contrário.
15. Designadamente quando revelar omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo.
16. Com efeito, a ora Recorrida foi notificada de que em 25.08.2010 foi emitida, pela Administração Tributária, a liquidação adicional de IRC objeto dos presentes autos.
17. Na liquidação adicional, é determinada uma matéria coletável no valor de € 283.207,86, ao invés de no valor € 8.595,71, conforme declarado pela ora Recorrida.
18. Por conseguinte, inconformada com esta liquidação, a Recorrida deduziu reclamação graciosa.
19. A Recorrida considerou, e considera, que os valores corretos eram os constantes da sua declaração e não os da declaração da Administração Tributária.
20. A referida reclamação graciosa foi objeto de deferimento parcial, tendo sido determinado, afinal, a dedução ao lucro tributável de 298.310,76 de prejuízos fiscais de exercício anteriores.
21. O não deferimento total ficou a dever-se à análise dos prejuízos incorridos em 2003 e que seriam dedutíveis em 2007, que ora Recorrida considerou serem no valor de € 40,603,14.
22. Em sentido diferente, a ora Recorrente considerou que haveria a deduzir o valor de € 24.626.36.
23. Dado que a Recorrida apresentou um lucro tributável de € 23.976,78 no exercício de 2004 (€ 48.603,14 - € 23.976,78).
24. Motivo pelo qual, pelo menos, parte dos prejuízos fiscais de 2003 deveriam ter sido, desde logo, deduzidos na declaração referente ao exercício de 2004.
25. Foi com base nesse entendimento que a Recorrente procedeu à liquidação aqui em causa.
26. Devendo-se concluir que o ato tributário ora em causa é uma liquidação adicional.
27. Pois visou corrigir uma liquidação anterior que, no entendimento da Recorrente, estava viciada por erro de facto ou de direito ou por omissões ou inexatidões praticadas na declaração prestada pela ora Recorrida.
28. A liquidação impugnada não deve ser considerada liquidação oficiosa stricto sensu, na justa medida que a correção não foi baseada em elementos de que a Recorrente dispunha oficiosamente, mas com base em elementos fornecidos pela Recorrente em declarações anteriores.
29. Assim, é desprovido de sentido todo o argumentário expendido pelo Recorrente quando alega que não se trata de uma liquidação adicional (ou oficiosa), mas tão somente uma autoliquidação.
30. A autoliquidação pressupõe um qualquer ato praticado pelo contribuinte.
31. Contudo, no caso em apreço, o ato provém da Administração Tributária.
32. Embora se perceba o motivo pelo qual a Recorrente configurar com uma autoliquidação e não como uma manifestação unilateral sua.
33. Com o devido respeito, trata-se de uma tentativa de justificar a razão de não ter assegurado à Recorrida o seu direito de defesa, no que respeita à referida liquidação adicional, como adiante melhor se abordará.
34. O certo é que a ora Recorrente violou flagrantemente o disposto no artigo 55.° da LGT, bem como todos os princípios que presidem à razão de ser desta norma, designadamente princípios fundamentais previstos na Constituição da República Portuguesa.
35. A liquidação adicional de IRC n.° 2010 23103……, referente ao exercício de 2007, não se encontra fundamentada nos termos legais aplicáveis, o que tem como consequência a anulação do apuramento efetuado.
36. A ora Recorrente foi alvo de uma notificação com a liquidação adicional de IRC n.° 2010 23103……, por parte da Direcção-Geral dos Impostos, sem que tenham sido apresentados quaisquer fundamentos para tal ato.
37. Ao assim ter entendido, a douta sentença recorrida está inteiramente conforme com a orientação jurisprudencial seguida em casos semelhantes.
38. O termo liquidação na LGT tem duplo um sentido: o de procedimento e o de ato administrativo que culmina o procedimento.
39. Nos presentes está em análise a liquidação enquanto procedimento, isto, é com vista a fixar o fixar o an e o quantum da obrigação tributária a exigir à ora Recorrida.
40. Sendo que a notificação da Recorrida integra o procedimento de liquidação.
41. O que se verificou foi que a ora Recorrida foi somente notificada do ato administrativo da liquidação.
42. Não integra o probatório da douta sentença sob recurso que a ora Recorrida tenha sido notificada de um documento onde constem as razões de facto e de direito em que os serviços de Administração Tributária se sustentaram para retirar credibilidade à declaração por si apresentada, relativa ao exercício de 2007.
43. Também não foi dado como provado a existência de documento, elaborado em data anterior ou, pelo menos, contemporâneo da emissão da liquidação, ondem constem as razões de facto e de direito, em que a Administração Tributária se sustentou para emitir a referida declaração.
44. Posto isto, a ora Recorrida não foi informada dos fundamentos, de facto e de direito, da liquidação.
45. Ora, a total ausência de fundamentação afetou os direitos e interesses da Recorrida, nos termos previstos do art. 77.° da LGT.
46. Pois, não conhecendo os fundamentos da liquidação, a Recorrida é "condenada" a pagar um valor superior ao que expressamente a própria declarou que, portanto, tinha expetativa de pagar.
47. Neste sentido, a decisão de procedimento da liquidação adicional de imposto, deve ser sempre fundamentada por meio de sucinta exposição de factos e de direito.
48. O que, no caso em apreço, não se verificou.
49. Ora, a violação destes requisitos da decisão tem como consequência a sua anulação da liquidação objeto dos presentes autos.
50. Entendimento perfilhado na douta sentença que concluiu, bem, que tal vício formal tem como consequência a anulação do ato.
51. Refira-se, ainda, que a ora Recorrida não foi notificada para o exercício do direito de audição prévia em momento anterior à emissão da liquidação adicional.
52. O que impõe igualmente a anulação do ato praticado por omissão de uma formalidade essencial no procedimento tributário.
53. A ora Recorrida tinha o direito de participar na formação da decisão da liquidação adicional, uma vez que tal decisão lhe diz respeito.
54. O direito de audição está previsto no art. 60.° da LGT, pese embora também estejam previstas determinadas exceções que não estão verificadas no caso em apreço.
55. Tal artigo é mais do que uma transposição deste princípio da participação, consagrado constitucionalmente no art. 267.° da CRP.
56. A Recorrente faz crer que a liquidação não carecia de audição prévia da Recorrida, porquanto efetuou-se com base na sua declaração e, nesse sentido, constitui uma das exceções previstas no art. 60.° da LGT.
57. Alega a Recorrente que o princípio da participação não ficou prejudicado e que, portanto, o ato ora impugnado não padece de qualquer vício.
58. Aqui importa referir que, de facto, a liquidação ora impugnada é feita com base na declaração da Recorrida e que, portanto, constitui uma exceção ao aludido art. 60.° da LGT.
59. Ao invés do alegado pela Recorrente, é entendimento jurisprudencial que tal situação não é suficiente, por si só, para acolher o argumento invocado pela ora Recorrente, isto é, de que a liquidação decorreu da apreciação de factos fornecidos pela Recorrida.
60. Perfilha esse entendimento o acórdão do STA que se deixou aqui e na sentença indicados.
61. Por força do princípio constitucional do direito de audiência, a audição da Recorrida não poderia ser dispensada, uma vez que está em causa uma decisão em sentido divergente ao da posição do Recorrida e em sentido desfavorável em relação à mesma.
62. Posto isto, a expressão "com base na declaração do contribuinte" deve ser interpretada com o alcance de apenas dispensar a audição quando a liquidação é efetuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspetos factual e jurídico.
63. Assim, acompanhando o referido aresto, nos casos em que a liquidação seja elaborada com base nos elementos factuais constantes da declaração do contribuinte, mas com diferente enquadramento jurídico, não poderá dispensar-se a audição do contribuinte antes de efetuar a liquidação.
64. Razão pela qual audição prévia da Recorrida era obrigatória, não podendo a mesma ser dispensada.
65. Ao contrário do que faz crer a ora Recorrente, a presente impugnação não pode ser equiparada a uma oportunidade de pronúncia.
66. A impugnação não é uma decorrência do princípio dos contribuintes na formação das decisões da administração tributárias, previsto constitucionalmente, no art. 267.°, porquanto a decisão já tinha sido tomada.
67. Trata-se, antes, de um direito de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art. 20.° da CRP
68. O mesmo ser refira aos meios de reação de que a Recorrida lançou mão previamente, a saber, a reclamação graciosa e o recurso hierárquico interposto, conforme disposto no art. 268.° da CRP.
69. Nesta sede, a preterição de audição prévia da Recorrida constitui um grave atropelo à lei ocorrido durante o procedimento e praticado pela Administração Tributária, aqui Recorrida.
70. Por isso e por todo o exposto, inexiste qualquer censura a fazer à decisão recorrida, no que diz respeito à anulação do ato de liquidação, por ausência de fundamentação, bem assim como, de audição prévia.
71. Tendo o Tribunal a quo concluindo, sem qualquer reparo a fazer, pela anulação procedência da presente ação.
72. Pelo exposto, e salvo melhor entendimento, deve ser julgado improcedente o presente recurso e, consequentemente, ser confirmada a decisão recorrida.
COMO É IMPERATIVO DO DIREITO E DA JUSTIÇA!»
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O Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.

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As questões invocadas pela Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir consiste em aferir do erro de julgamento de facto e de direito imputado a sentença recorrida com os seguintes fundamentos:

_ a liquidação impugnada é uma autoliquidação, e não uma liquidação adicional ou oficiosa;
_ não se verifica a preterição do direito de audição de audição.


II. FUNDAMENTAÇÃO

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

“1. Em 31/07/2005 a Impugnante entregou a declaração de IRC modelo 22 referente ao exercício de 2005 - cfr. doc. 2 junto com a petição inicial a fls. 20 a 22 dos presentes autos.

2. Na declaração referida em 1. a Impugnante declarou um prejuízo para efeitos fiscais de 48.603,14€ - cfr. doc. 2 junto com a petição inicial a fls. 20 a 22 dos presentes autos.

3. Em 01/08/2005 a Impugnante entregou a declaração de IRC modelo 22 referente ao exercício de 2004 - cfr. fls. 20 a 22 do processo de reclamação graciosa junto aos presentes autos.

4. Na declaração referida em 2. a Impugnante declarou um lucro tributável para efeitos fiscais de 23.976,78€ - cfr. fls. 20 a 22 do processo de reclamação graciosa junto aos presentes autos.

5. Em 02/04/2007, a Impugnante entregou a declaração modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2005 - cfr. fls. 24 a a 27 do processo de reclamação graciosa junto aos presentes autos.

6. Na declaração referida em 5. a Impugnante declarou um prejuízo para efeitos fiscais de 271.896,83€ - cfr. fls. 24 a 27 do processo de reclamação graciosa junto aos presentes autos.

7. Em 04/04/2007 a Impugnante apresentou nova declaração modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2005 - cfr. doc. 3 junto com a petição inicial a fls. 23 a 26 dos presentes autos.

8. Na declaração referida em 7. a Impugnante declarou um prejuízo para feitos fiscais de 307.238,51€ - cfr. doc. 3 junto com a petição inicial a fls. 23 a 26 dos presentes autos.

9. As declarações referidas em 5. e 7. foram recebidas pelos serviços da Administração Tributária - cfr. fls. 23 do processo de reclamação graciosa junto aos presentes autos.

10. Em 11/05/2007 a Impugnante entregou a declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2006 - cfr. doc. 4 junto com a petição inicia a fls. 27 a 30 dos presentes autos.

11. Na declaração referida em 10. a Impugnante declarou um prejuízo para efeitos fiscais de 1.787,57€ - cfr. doc. 4 junto com a petição inicial a fls. 27 a 30 dos presentes autos.

12. Em 06/05/2008 a Impugnante entregou a declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2007 - cfr. doc. 1 junto com a petição inicial a fls. 16 a 19 dos presentes autos.

13. Na declaração referida em 12. a Impugnante declarou um lucro tributável para efeitos fiscais de 358.224,93€ - cfr. doc. 1 junto com os presentes autos a fls. 16 a 19 dos presentes autos.

14. Na declaração referida em 12. a Impugnante deduziu os prejuízos fiscais declarados nas declarações referidas em 2., somente 40.603,14€, 8. e 11., no valor global de 349.629,22€ - cfr. doc. 1 junto com a petição inicial a fls. 16 a 19 dos presentes autos.

15. Da conjugação dos montantes referidos em 13. e 14. resultou uma matéria colectável de 8.595,71€ relativa a IRC do exercício de 2007 - cfr. doc. 1 junto com a petição inicial a fls. 16 a 19 dos presentes autos.

16. A Impugnante recebeu notificação a qual dava conta que em 25/08/2010 foi emitida pela Administração Tributária sobre a Impugnante a liquidação adicional de IRC n.° 2010 2... referente ao exercício de 2007 a qual determinava uma matéria colectável de 283.207,86€ - cfr. doc. 5 junto com a petição inicial a fls. 31 dos presentes autos.

17. Da liquidação referida em 16. a Impugnante apresentou reclamação graciosa - cfr. fls. 2 do processo de reclamação graciosa junto aos presentes autos.

18. Na reclamação referida em 16. a Impugnante sustentava que os valores correctos da liquidação de IRC do exercício de 2007, matéria tributável apurada e prejuízos deduzidos, eram os constantes da declaração que apresentou, referidos em 10. a 13. - cfr. fls. 2 e 37 a 40 e 46 a 50 do processo de reclamação graciosa junto aos presentes autos.

19. A reclamação referida em 16. foi objecto de decisão de deferimento parcial, a qual determinou a dedução ao lucro tributável do exercício de 2007 da Impugnante o valor de 298.310,76€ de prejuízos fiscais de exercícios anteriores - cfr. fls. 45 a 50 do processo de reclamação graciosa junto aos presentes autos.

20. Da decisão de deferimento parcial referida em 19. a Impugnante apresentou recurso hierárquico - cfr. fls. 7 a 16 do processo de recurso hierárquico junto aos presentes autos.

21. No recurso referido em 20. a Impugnante pedia o reconhecimento da dedução na íntegra dos prejuízos fiscais declarados na declaração referida em 10., no valor global de 349.629,22€ - cfr. fls. 7 a 16 do processo de recurso hierárquico junto aos presentes autos.

22. O recurso hierárquico referido em 20. e 21. foi objecto de decisão de indeferimento proferida em 07/12/2011 - cfr. fls. 115 e seguintes do processo de recurso hierárquico junto aos presentes autos.

23. A decisão referida em 23. foi comunicada à Impugnante através de carta registada com aviso de recepção dirigida ao mandatário da mesma, tendo o respectivo aviso de recepção sido assinado em 12/01/2012 - cfr. últimas fls. não numeradas do processo de recurso hierárquico junto aos presentes autos.

24. A presente acção foi apresentada em 11/04/21012.

Factos não provados.

Com relevância para a pronúncia a emitir nos presentes autos, dão-se como não provados os seguintes factos:
a. Existe documento onde constem as razões de facto e de direito em que os serviços da Administração Tributária se sustentaram para retirar credibilidade à declaração apresentada pela Impugnante referida em 10. dos factos provados.
b. Existe documento elaborado em data anterior à ou contemporâneo da emissão da liquidação referida em 14. dos factos provados onde constem as razões de facto e de direito em que a Administração Tributária se sustentou para emitir a referida liquidação.
c. Foi remetido à Impugnante documento onde constem as razões de facto e de direito em que a Administração Tributária se sustentou para emitir a liquidação referida em 14. dos factos provados.
d. A Impugnante foi chamada pelos serviços da Administração Tributária para em momento anterior à emissão da liquidação referida em 14. Dos factos provados se pronunciar sobre a intenção da Administração Tributária emitir a mesma.

Motivação da decisão sobre a matéria de facto.

A decisão da matéria de facto, consonante ao que acima ficou exposto, efectuou-se com base nos documentos e informações constantes dos autos e no processo administrativo apenso, referidos em cada uma das alíneas do elenco dos factos provados, os quais não foram impugnados, merecendo a credibilidade do tribunal, em conjugação com o princípio da livre apreciação da prova.

Quanto aos factos não provados os mesmos assim se deram em virtude da total ausência de prova sobre a realidade da sua verificação.»

*

Conforme resulta dos autos, com base na matéria de facto supra transcrita o Meritíssimo Juiz do TT Lisboa julgou procedente a impugnação, com base em dois fundamentos: a falta de fundamentos de facto e de direito que sustentassem a liquidação adicional impugnada, e a preterição do direito de audição prévia (art. 60.º da LGT).

Antes de mais, e para conhecimento das questões suscitadas no presente recurso, adita-se oficiosamente à matéria de facto dada como provada ao abrigo do art. 660.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT, a seguinte factualidade:

25) Na decisão de reclamação graciosa referida no ponto 17 da matéria de facto, consta, para além do mais, a seguinte fundamentação: “(…) Em 06/05/2008 a ora reclamante entregou a declaração mod. 22, referente ao exercício de 2007, na qual declarou o montante total de 349.629,22€ a título de prejuízos fiscais deduzidos (…) Da dedução dos prejuízos fiscais supra mencionados resultou o apuramento de uma matéria colectável no valor de 8.595,71€. Verifica-se, no entanto que a mesma declaração ficou no sistema informático da DGCI com a indicação de “DOC. Não Liquidável (Prej. Declarados)”, tendo em consequência, sido despoletado pelo sistema um “DCO”, no qual apenas foi considerado o montante de 75.017,07€ a título de prejuízos fiscais deduzidos, donde resultou o apuramento da matéria colectável no valor de 283.207,86€, de que o sujeito passivo vem reclamar.” (cf. decisão da reclamação graciosa a fls. 36 e ss do processo administrativo em apenso, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido).

Estabilizada a matéria de facto provada e não provada, vejamos, então dos fundamentos do recurso.

A Recorrente Fazenda Pública invoca, desde logo, erro de julgamento de facto e de direito porquanto a liquidação impugnada é uma autoliquidação, e não uma liquidação adicional ou oficiosa, e nessa medida, a Impugnante é conhecedora do ato que a própria praticou, limitando-se a AT a validar as declarações apresentadas e a emitir os respetivos documentos de cobrança.

Contudo, face à matéria de facto dada como provada, não há dúvidas que a liquidação impugnada surge na sequência de uma declaração de IRC (modelo 22) entregue pelo Impugnante, mas cujos valores declarados foram corrigidos pela AT. Assim sendo, não estamos perante uma autoliquidação de imposto, porquanto a liquidação não se funda exclusivamente nos valores declarados pelo contribuinte, mas sim perante uma liquidação correctiva, i.e. que assenta em correções efetuadas pela AT aos valores declarados pelo contribuinte, e da qual resultou imposto adicional a pagar.

Efetivamente, resulta dos autos que a Impugnante apresentou a declaração modelo 22 do exercício de 2007 (cf. ponto 12 da matéria de facto), na qual deduziu prejuízos fiscais de exercícios anteriores no valor de 349.629,22€ (cf. ponto 21 da matéria de facto). Porém, do montante total deduzido na declaração a título de prejuízos fiscais, a AT apenas aceitou o montante de 75.017,07€ (cf. ponto 25 da matéria de facto aditada), ou seja, não aceitou a totalidade dos montantes deduzidos na declaração apresentada pelo Impugnante.

É neste contexto que surge a liquidação impugnada, na sequência de correções efetuadas pela AT aos montantes de prejuízos fiscais deduzidos na declaração de IRC do exercício de 2007 que havia sido apresentada pelo contribuinte.

Assim sendo, é manifesto que a liquidação impugnada não é uma autoliquidação, desde logo porque não resulta dos montantes declarados pelo contribuinte, houve uma intervenção corretiva dos valores declarados levada a cabo pela AT que os alterou. In casu, estamos perante uma liquidação correctiva emitida pela AT, e que tem por base uma declaração apresentada pelo contribuinte (declaração modelo 22), porém, corrigida.

Havendo correções aos valores inscritos na declaração de imposto apresentada pelo contribuinte que estão na origem de um ato de liquidação tributário, este deverá ser fundamentado, devendo conter, ainda que sumariamente, “as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.” – cf. n.º 2, do art. 77.º da LGT.

In casu, o ato tributário de liquidação impugnado não assenta em qualquer enunciação de disposições legais, nem qualquer qualificação dos factos tributários.

Na verdade, apenas na reclamação graciosa ficou evidenciado que a liquidação tem origem na correção da dedução de prejuízos fiscais pelo contribuinte (cf. 25 ponto da matéria de facto aditada).

Contudo, por um lado, esse exteriorizar dos motivos da liquidação exarados na reclamação graciosa não poderá ser considerado uma fundamentação do ato tributário, porque não é contemporânea à prática do ato, trata-se antes, da fundamentação da reclamação graciosa. Ou seja, estamos perante uma fundamentação da decisão de um procedimento impugnatório gracioso que não se confunde, nem substitui, a fundamentação exigível para a prática do acto tributário.

Com efeito, como se sumariou no acórdão do STA de 02/12/2015, proc. n.º Processo n.º 454/15-30: “A Administração Tributária não pode reunir elementos na pendência de uma reclamação graciosa apresentada contra um acto de liquidação, para fundamentar esse acto de liquidação, pese embora possa vir a obter elementos para fundamentar um acto de liquidação a elaborar futuramente.”

Por outro lado, importa sublinhar que em documento algum junto aos autos ou ao processo administrativo se encontra “as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.”, exigido pelo n.º 2, do art. 77.º da LGT.

Por outras palavras, a AT não provou a existência de uma fundamentação do ato tributário de liquidação, não existindo junto aos autos ou ao processo administrativo qualquer documento que exteriorize as razões que conduziram à correção dos prejuízos fiscais na declaração modelo 22 do contribuinte, nem tão pouco, as normas jurídicas em que tal correção assentou, pelo que efetivamente foi violado o disposto no n.º 2, do art. 77.º da LGT, sendo de confirmar a sentença recorrida que nesta parte assim decidiu.

Pelo exposto, quanto a estes fundamentos improcede o recurso.

Invoca ainda a Recorrente contra a sentença recorrida erro de julgamento de facto e de direito porque não se verifica a preterição do direito de audição prévia na medida em que se tratando de uma autoliquidação não há que ouvir previamente o contribuinte nos termos do disposto da alínea a), do n.º 2, do art. 60.º da LGT. Subsidiariamente, considera que ainda que se entenda que a audição não se encontrava dispensada, ainda assim, degradar-se-ia em não essencial, e conduzia ao aproveitamento do ato nos termos do art. 163.º, n.º 5 do CPA, uma vez que no caso concreto o contribuinte não teria a mínima possibilidade de influenciar a decisão, e por outro lado, na reclamação graciosa e no recurso hierárquico que precederam a impugnação pode ser ouvida, não havendo qualquer lesão efetiva de direitos e interesses, tendo sido atingida a finalidade pretendida com o art. 60.º da LGT.

Vejamos.

Efetivamente, o disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 60.º da LGT dispensa a audição do contribuinte no caso “de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável”.

Sucede que, conforme supra exposto, não estamos perante uma liquidação que se efetuou com base na declaração do contribuinte, mas antes perante liquidação efetuada com base em correções à declaração do contribuinte, o que é substancialmente diferente, e, portanto, não estamos no âmbito de aplicação da alínea a) do n.º 2 do art. 60.º da LGT, e assim sendo, o contribuinte deveria ter sido ouvido antes da liquidação nos termos da alínea a) do n.º 1, daquele mesmo preceito legal.

Assim sendo, como facilmente se compreenderá, havendo correções aos valores declarados e inscritos em declaração de rendimentos, o contribuinte tem o direito de se pronunciar sobre elas, o que não aconteceu no caso dos autos, violando-se o disposto na alínea a) do n.º 1, do art. 60.º da LGT, tal como se decidiu em 1.ª instância.

No que diz respeito ao fundamento de que a Impugnante foi ouvida no procedimento de reclamação graciosa e de recurso hierárquico, não havendo qualquer lesão efetiva de direitos e interesses, tendo sido atingida a finalidade pretendida com o art. 60.º da LGT, é manifesto que não assiste razão à recorrente Fazenda Pública.

Efetivamente, a audição do contribuinte tem de ser antes da liquidação - cf. alínea a) do n.º 1, do art. 60.º da LGT. Ora, o procedimento de reclamação graciosa e de recurso hierárquico são posteriores ao ato de liquidação, pelo que não se encontra cumprida a exigência daquele preceito legal, sendo certo que as situações excecionais de dispensa de audição do contribuinte se encontram expressamente previstas no n.º 2 e 3 daquele preceito legal, nas quais não se inclui a situação ora aventada pela Recorrente, pelo que sem mais considerações por desnecessárias, também nesta parte não lhe assiste razão.

Finalmente, quanto à invocada aplicação do princípio do aproveitamento do ato nos termos do art. 163.º, n.º 5 do CPA, também aqui não assiste razão à Recorrente.

Vejamos.

Há muito que a jurisprudência do STA tem adotado o princípio do aproveitamento do ato administrativo, que com a entrada em vigor do DL 4/2015, de 07 de Janeiro que aprovou o Novo Código de Procedimento Administrativo encontra consagração legal no art. 163.º, n.º 5 do CPA (aplicável ao procedimento tributário ex vi art. 2.º, alínea c) da LGT, e alínea d) do art. 2.º do CPPT) dispondo-se que “5 - Não se produz o efeito anulatório quando: a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível; b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via; c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.”

Com efeito, o Supremo Tribunal Administrativo tem reiteradamente afirmado que a omissão da audição do contribuinte constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do ato administrativo, seja manifesto que a decisão tributária em abstrato, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento (cf. por todos, Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22/01/2014).

Ao abrigo deste princípio, o Tribunal tem o poder de não anular um ato inválido quando a decisão administrativa não pode ser outra, uma vez que em execução do efeito repristinatório da sentença não existe “alternativa juridicamente válida” que não seja a de renovar o ato inválido, embora sem o vício que determinou a anulação (cf. Acórdão do STA de 31/01/2012, Proc. n.º 017/12).

Mas como se salienta no Ac. do STA de 24/10/2012, proc. n.º 0548/12 “[o] princípio do aproveitamento do ato administrativo apenas é admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insuscetível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de atividade administrativa vinculada, não se vislumbrando a mínima possibilidade de a audição poder ter influência sobre o conteúdo da decisão.”.

É hoje pacificamente aceite na jurisprudência que “a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do ato – utile per inutile non viciatur.” (Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22/01/2014, Proc. n.º 0441/13).

A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do ato deve ser apreciada casuisticamente através da análise das circunstâncias particulares do caso concreto. Deste modo, há que aferir se, no caso sob análise, a decisão do procedimento não poderia de forma alguma ser influenciada pela participação do contribuinte no procedimento.

Atento ao supra exposto, há que concluir que, para que se possa aplicar o princípio do aproveitamento do ato administrativo, há que aferir se, in casu, a audição do contribuinte no procedimento não tinha a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e só nesse caso é que o juiz poderá não anular o ato, aproveitando-o ao abrigo daquele princípio.

Ora, no caso dos autos não é seguro que a audição do contribuinte em momento anterior ao da liquidação pudesse influenciar no montante de imposto liquidado, aliás, nem é possível ter tal segurança, porque, conforme supra exposto, se desconhece qual a fundamentação das correções aos prejuízos fiscais. A falta de fundamentação do ato tributário impede que se possa formular o juízo necessário para aventar da possibilidade do aproveitamento do ato, e, portanto, in casu, não é possível aplicar o disposto no 163.º, n.º 5 do CPA.

Em suma, in casu, a intervenção do interessado no procedimento tributário não é inequivocamente insuscetível de influenciar a decisão final, pelo que improcede a totalidade do recurso.

Em matéria de custas o artigo 527.º do CPC consagra o princípio da causalidade, de acordo com o qual paga custas a parte que lhes deu causa. Vencida na presente causa a Recorrente, esta deu causa às custas do presente processo (n.º 2), e, portanto, deve ser condenada nas respetivas custas (n.º 1, 1.ª parte).

Sumário (art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. Não estamos perante uma autoliquidação quando a liquidação é emitida pela AT na sequência de correções à declaração apresentada pelo contribuinte;

II. Havendo correções aos valores inscritos na declaração de imposto apresentada pelo contribuinte que estão na origem de um ato de liquidação tributário, este deverá ser fundamentado, devendo conter, ainda que sumariamente, as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, tal como exigido no n.º 2, do art. 77.º da LGT.

III. Não estamos perante uma liquidação que se efetuou com base na declaração do contribuinte que se possa subsumir à dispensa de audição do contribuinte prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 60.º da LGT, quando a liquidação surge na sequência de correções à declaração do contribuinte;

IV. A possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do ato deve ser apreciada casuisticamente pela análise das circunstâncias particulares do caso concreto, aferindo-se se a decisão do procedimento não poderia de forma alguma ser influenciada pela participação do contribuinte no procedimento.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente.
D.n.
Lisboa, 30 de setembro de 2020.

Cristina Flora

Tânia Meireles da Cunha

António Patkoczy