Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:464/08.4BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:02/25/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:IVA
FATURAÇÃO FALSA
PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE
Sumário:I-No domínio da faturação falsa, a AT não precisa de fazer prova da falsidade/simulação das faturas, mas apenas evidenciar a consistência do seu juízo, invocando factos que traduzam uma probabilidade séria de as operações constantes nas faturas serem simuladas. Cumprido esse ónus passa a competir à Impugnante, apresentar prova capaz de destruir esses indícios, demonstrando que as faturas têm subjacentes operações com materialidade.
II-A mera menção aos serviços a jusante realizados e à necessidade de recorrer à subcontratação não se afigura como suficiente para a demonstração da efetividade das operações tituladas pelas faturas postas em causa.
III-A apresentação dos meios de pagamento reveste grau de importância elevada em termos de prova da efetividade das operações.
IV-Se a Recorrente não provou a materialidade das operações constante na fatura sindicada, então a insusceptibilidade de dedução do IVA não traduz qualquer ofensa ao princípio da neutralidade do IVA, bem pelo contrário, e isto porque tal posição mais não representa que o cumprimento do regime legal vigente.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO

V….., veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, a qual julgou improcedente a impugnação judicial deduzida, contra os atos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) do ano de 2004, no valor total de € 18.006,34, sendo € 1.951,34 respeitantes a juros compensatórios.

A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

124. Considerando a matéria de facto dada como provada pelo tribunal recorrido, e aquela que se requer que seja adicional ao probatório, de acordo com a melhor interpretação que deve ser feita dos preceitos legais aplicáveis, a ora Recorrente considera que deve ser revogada a douta sentença recorrida, e substituída por outra que considere procedente a impugnação judicial contra as liquidações de IVA relativas ao ano de 2004 e respetivos juros compensatórios, pelas razões que abaixo se explicita melhor, assim concluindo:

A. O douto recurso é interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, proferida no processo de impugnação judicial n.º 464/08.4BESNT,  relativo ao ato de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado ("IVA") referente ao exercício de 2004, a qual decidiu, salvo o devido respeito, mal, no sentido da improcedência da impugnação judicial por considerar que: «(...)tendo-se considerado, por decisão transitada em julgado no processo de impugnação n.º 445/08.8BESNT, que a correção aos rendimentos apurados pela Impugnante para efeitos de IRC era válida, sendo os mesmos os fundamentos da correção efetuada em termos de IVA, não pode a presente impugnação deixar de ser improcedente, por se ter consolidado na ordem jurídica, por força do trânsito em julgado da decisão proferida no processo que era causa prejudicial em relação a este, o julgamento da legalidade das correções efetuadas no âmbito da ação inspetiva que está subjacente quer à liquidação adicional de IRC quer às inerentes liquidações adicionais de IVA, objeto dos presentes autos.»

B. Ora, salvo o devido respeito pela Mma Juiz o quo, entende a Recorrente que, a decisão recorrida se encontra inquinada de erro de julgamento, porquanto, por um lado, desconsiderou, por completo, que o IVA e o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) são dotados de características e pressupostos diferentes, sendo que um se consubstancia num imposto sobre o consumo e o outro sobre o rendimento e, por outro, baseou-se apenas nos fundamentos aduzidos no âmbito do processo n.º 445/08.8BESNT, sem que, contudo, tenha sobre os mesmos feito qualquer apreciação crítica, o mesmo tendo acontecido com toda a argumentação individualizada e autónoma apresentada neste processo e exclusivamente referente ao IVA, o que a impediu de proferir uma decisão isenta, totalmente dedicada à apreciação da legalidade do ato de liquidação em apreço.

C. Especificou a Mma Juiz a quo, os factos que constam a fls. 4 a 8 da douta sentença recorrida, como provados e com relevância para a decisão da causa, os quais se mostram insuficientes, face à prova documental produzida nos presentes autos e a testemunhal produzida, no âmbito do processo n.º 445/08.8bESNT e aproveitada nos presentes autos.

D. Com efeito, entende a Recorrente que face à prova produzida nos presentes autos, poderia e devia a Mma Juiz a quo ter dado como provado os factos enunciados nos pontos 16. e 30. das Alegações do presente Recurso, os quais se tomados em consideração e particularizados devidamente teriam levado a uma decisão no sentido oposto da que foi proferida, tudo de acordo com a melhor interpretação do artigo 74.º da LGT. Não o tendo feito, provocou na douta sentença recorrida, uma insuficiência manifesta para efeitos de aplicação do direito aos factos, acarretando um erro de julgamento que se aqui se invoca.

E. Ora, na verdade, não pode a Recorrente concordar e aceitar que a Mma Juiz o quo tenha alicerçado os fundamentos de facto e de direito dos presentes autos nos aduzidos na decisão proferida no âmbito do processo n.º 445/08.8BESNT- no qual estava em crise a liquidação de IRC de 2004 da empresa aqui Recorrente - sem qualquer ponderação crítica sobre os mesmos - crendo-se que teve como consequência, segundo a aqui Recorrente, o cometimento de um manifesto erro de julgamento, designadamente quanto à indicação e apreciação da matéria de facto dada como provada e viola o disposto nos artigos 19.º, 20.º e 21.º do Código do IVA e o artigo 74.º da LGT, porquanto,

F. ... se cingiu, apenas, à apreciação dos indícios apresentados pela AT de que estaríamos perante operações simuladas - "indícios sérios de simulação" - que correspondem apenas e tão só àqueles que constam do Relatório de Inspeção, e que, desde já adiantamos, se estreitam única e exclusivamente à empresa emitente da fatura em causa nos presentes autos - como é confirmado na douta sentença recorrida - e não à aqui Recorrente.

G. Com base única e exclusivamente nesses indícios, as Autoridades Fiscais concluíram, no seu relatório final de inspeção, que, "pese embora as notificações efectuadas ao sujeito passivo, não foram comprovadas as operações relativas às faturas" (...).» e consequentemente não aceitaram a dedução do IVA delas constante, entendendo a douta decisão recorrida que a ora Recorrente não teria logrado provar a efetiva prestação dos serviços e bens faturados.

H. Ora, a verdade, é que da leitura que se faz da decisão recorrida, é manifesto que, por um lado, considerou-se que a AT demonstrou indícios suficientes que a aqui Recorrente contabilizou na sua escrita faturas que não correspondiam a operações reais, contudo, não nega, nem deixa de negar - Mais: não chega a pronunciar-se sequer - não obstante, haver prova documental - cfr. Anexo C e I juntos com a petição inicial- que comprove que os serviços prestados pela aqui Recorrente às suas clientes-facto que deveria ter sido dado como provado - se se verificaram ou não, apenas negou que, na sua base tenham estado os serviços titulados por aquela fatura específica emitida pela empresa indicada - suspeita de emitir faturas falsas -.

I. Ora, pergunta-se com legitimidade, ao que se crê: se face à investigação que a AT levou a cabo, e que permitiu concluir, por um lado, - e a sentença recorrida, deveria ter dado como provado - que os serviços prestados pela empresa Recorrente às suas clientes foram efetivamente realizados, e por outro, conforme foi demonstrado, quer no relatório de inspeção, e que, igualmente, deveria ter sido dado como provado no âmbito do presente processo judicial, que a empresa Recorrente tinha poucos trabalhadores (5) ao seu dispor, - cfr. Doc. n.º 3 junto com a petição inicial - sendo necessário, para a conclusão dos trabalhos que lhe são adjudicados, recorrer ao serviço de subempreiteiros para a realização desses serviços, se não foi a empresa emissora da fatura considerada como falsa, que a Recorrente contabilizou na sua escrita, a prestar o serviço, quem foi, então?

J. Caso fosse outra qualquer empresa não teria a Recorrente, como faria um homem médio, pedido a essa empresa as faturas correspondentes aos serviços prestados - por forma a apresentá-las como custo (à semelhança do que fez com as faturas em causa) - e contabilizado na sua escrita?

K. Isto, porque foram -como deveria resultar provado -muitos os trabalhos que foram adjudicados à aqui Recorrente pelas suas clientes - Juntas de Freguesia - os quais só com 5 funcionários esta não os teria logrado executar e concluir em tempo útil, só os conseguiu, na verdade, terminar e concluir com a subcontratação que fez dos serviços e fornecimento de materiais ao Sr. C….., sem embargo, das particularidades deste que, infelizmente, a Recorrente não deu a devida relevância na altura - pois caso tivesse dado, não teria discutido judicialmente a liquidação de IRC e IVA referente aos exercícios de 2003 a 2005 -( o que aconteceu em relação a duas empresas do Grupo e que conduziu à apresentação de 12 impugnações judiciais).

L. Mais, questiona a Recorrente, se este facto - conclusão atempada dos diversos trabalhos que lhe foram adjudicados pelas suas clientes e a falta de mão de obra sua para o efeito, a que acresce a necessidade de subcontratar mais mão de obra e materiais - não é suficiente para deitar por terra os indícios "sérios, consistentes e seguros" da AT?

M. Ora, a verdade é que, segundo entende a Recorrente, tais indícios foram abalados e desacreditados, deixando de ter as características exigidas por Lei - da seriedade, consistência e segurança -, quanto ao ónus de prova previsto no artigo 74.º da LGT, sendo que, desta feita, tal descredibilidade obviaria a que os factos apurados pela AT se pudessem dar como provados, e consequentemente, que o ónus de prova relativamente aos mesmos inverteria para a Recorrente.

N. No caso em apreço, salvo o devido respeito, entende a Recorrente que os indícios encontrados pela AT, não preenchem os requisitos suficientes, necessários e bastantes para serem considerados como "sérios, consistentes e seguros" passíveis de desacreditar as declarações da aqui Recorrente, nomeadamente, que os serviços e bens mencionados na faturas emitida pela sociedade D….., Lda, não foram prestados e adquiridos por esta à emitente de tal documento. Assim sendo, salvo o devido respeito, que é muito, entende a Recorrente que a interpretação do artigo 74.º da LGT feita pela sentença recorrida não foi a mais correta, caindo numa situação de erro de julgamento.

O. Ademais, atentando aos factos indiciários indicados pela AT - Vide ponto 65 das alegações do presente recurso, facilmente constatamos que estes nunca poderiam ter sido considerados como suficientes para colocar em crise a materialidade das operações tituladas pela fatura aqui em causa, porque não há, entre eles, um qualquer indício de simulação. O que poderá haver - e isso sim - são indícios de que o Sr. C….. poderá ter faturado serviços e bens em nome da D….., sem cumprir com as suas obrigações fiscais, comerciais ou laborais, algo que, não propriamente apurado nas diligências inspetivas e que a Mma Juiz a quo vem dar relevância com os depoimentos dos sócios da sociedade D….. - pág. 7 da douta sentença recorrida - .Mas isso, como é obvio, não é simulação. E isso, como também é óbvio, não poderá, sem mais, constituir fundamento para não aceitar a dedução de IVA de faturas correspondentes à aquisição de serviços e bens, que lhe eram efetivamente prestados/ vendidos por aquela sociedade.

P. Num Estado de Direito não cabe - ou não cabia em 2004 - a cada contribuinte que pede e recebe uma fatura questionar a sua regularidade, quer fiscal quer mesmo comercial. Nesses termos, e existindo elementos que permitem concluir pela efetiva realização das operações reais, e que foram objeto do respetivo pagamento, não pode ser a administração tributária a concluir pelo contrário. Um Estado de Direito exige o respeito por regras, nomeadamente quanto à vinculação da administração ao direito probatório material e formal.

Q. Nesta sequência, é manifesto que os indícios sérios invocados pela Administração Fiscal relativamente à aqui Recorrente são inexistentes ou encontram-se abalados e desvirtuados.

R. Em 2004, a principal preocupação da Recorrente era a execução e conclusão dos trabalhos que lhe eram adjudicados pelos seus principais clientes -Juntas de freguesia - que, por vezes, facultavam prazos muito curtos de execução dos trabalhos, assim, e não obstante, algumas particularidades do Sr. C….. (por exemplo o facto de insistir e querer os pagamentos dos serviços em numerário, entre outras - razão pela qual os movimentos a débito ocorridos na conta 2211103 - relativa à emitente da fatura - terem sido feitos por contrapartida da conta 268001 - J….. administrador da recorrente), a verdade, é que este sempre disponibilizou, em todas as operações, o material e a mão de obra necessário e suficiente para que a Recorrente concluísse os trabalhos adjudicado pelos seus clientes atempadamente.

S. Na verdade, dos autos constam contraindícios que foram totalmente desconsiderados pela Mma Juiz a quo, os quais se bastam com a conclusão dos trabalhos adjudicados pela Recorrente às suas Clientes; o n.º limitado de trabalhadores que a Recorrente tinha à sua disposição para fazer face à solicitações das suas clientes-Juntas de freguesia - cujos trabalhos tinham de ser realizados em curto prazo, contraindícios estes que se tivessem sido considerados teriam levado, com certeza a um desfecho diferente nos presentes autos, em conformidade com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores acima indicados (Vide pontos 85 a 88 das alegações do presente recurso).

T. Sem cuidar de fazer uma enunciação fastidiosa da jurisprudência, decisões subsequentes vieram ainda confirmar esta orientação correta dos nossos julgadores, que aqui não pode deixar de ser seguida.

U. Salvo o devido respeito, que é muito, constata a aqui Recorrente que a sentença recorrida fez uma aplicação insuficiente e errónea do direito, em virtude de não ter tido em consideração todos os contraindícios apresentados pela Recorrente que criaram dúvida e ambiguidade à seriedade, consistência e segurança aos indícios encontrados pela AT, sendo que a manutenção da posição aqui defendida, está em clara violação do disposto nos artigos 19.º, 20.º e 21.º, todos do CIVA, o que não se pode manter.

V. Ademais, a interpretação do artigo 74.º da LGT mais justa, correta e assertiva deverá ser no sentido de que havendo contraindícios coerentes que abalem os indícios apresentados pela AT, estes deixam de ter a força necessária para que o ónus de prova, previsto naquela norma, passe para o contribuinte.

W. Assim sendo, crê a Recorrente que a sentença recorrida, para além de enfermar de uma incorreta apreciação da matéria de facto, assenta, assim, numa errada aplicação do direito aos factos, violando o disposto nos artigos 19.º, 20.º e 21.º todos do Código do IVA, e o artigo 74.º da LGT.

X. Outro aspeto, em que a sentença recorrida claudicou, em manifesto erro de julgamento prende-se com a questão da dedutibilidade do IVA. Com efeito, alicerçando a sua fundamentação na sufragada num processo respeitante a IRC, não atendeu às características e pressupostos que cada um daqueles imposto é dotado particularmente.

Y. Na verdade, enquanto que o IVA é um imposto sobre o consumo e tem matriz comunitária, o IRC é um imposto sobre o rendimento. A matriz comunitária do IVA dá-lhe um alcance e uma abrangência diferente quando em comparação com o IRC, facto que, a Mma Juiz a quo não teve em consideração na douta sentença que proferiu, claudicando assim na apreciação devida do direito aos factos, em manifesto erro de julgamento.

Z. Nesta aceção, entende a Recorrente que os custos que a mesma teve com a fatura emitida pela D….., Lda deveriam ser tidos em consideração para efeitos de dedução do imposto por si suportado, porquanto estamos perante a realização de operações tributadas que conferem direito à dedução nos termos da Diretiva do IVA e do disposto no artigo 19.º do CIVA, devendo essa dedução ser tida em consideração para efeitos do imposto a pagar.

AA. Conforme resulta dos factos que deveriam ter sido dados como provados, por não controvertidos, a "Impugnante tem a sua contabilidade devidamente organizada", apenas, aludindo a Mma Juiz a quo, a este respeito, para sustentar a atuação da AT que esta «(...) constatou ao analisar os movimentos a débito ocorridos na conta 2211103 -relativa à emitente da factura - são feitos por contrapartida da conta 268001 -J….. administrador da recorrente - o que não sucede com os outros fornecedores.» Ora, tal constatação não é conclusiva para efeitos quer do facto de que se poderá estar perante uma situação de fatura falsas, quer de dedução do IVA suportado pela Recorrente.

BB. Na verdade, dessa "constatação da AT" o que se poderá retirar é que o Sr. J….., administrador da Recorrente, procedeu ao pagamento da fatura, em análise, emitida pela D….., Lda, em nome e por conta da sociedade aqui Recorrente, da qual era sócio gerente, nada contrariando tudo o que foi demonstrado e exposto pela Recorrente no âmbito do processo relativamente às características particulares do Sr. C….., mormente, no tocante ao custo suportado pela Recorrente.

CC. Mais, conforme resulta da douta sentença recorrida «[a]s diligências inspetivas, neste particular, não ficaram por aqui, foram ouvidos em declarações os sócios (R….. e M…..) da sociedade emitente da questionada, que declaram: «A empresa vendia material eléctrico na loja sita na sede da empresa (...)», o que significa que a empresa D….., Lda existia, efetivamente! Não se tratava de uma sociedade fantasma! Ademais, face aos serviços que prestava - transmissões de bens, ao abrigo do disposto no artigo 3.º do CIVA, segundo referem os sócios - encontrava-se sujeita e não isenta de IVA.

DD. Assim sendo, é manifesto que não só a Recorrente era sujeito passivo de IVA e dele não isento, bem como o era a sociedade D….., Lda. Condições estas que a jurisprudência comunitária defende como necessárias e bastantes à dedução do IVA.

EE. Ademais, de mencionar que a fatura emitida pela D….. não levantou problemas quanto à formalidade que deveria respeitar, as conclusões quanto à sua alegada falsidade foram, única e exclusivamente, baseadas em fatores externos, nomeadamente, relacionados com a empresa D….. (descritos no ponto 20 das presentes alegações) e com o modo como a Recorrente procedeu ao seu pagamento (ponto 21 das presentes Alegações). Nenhum outro fator foi referido pela AT ou pela Mma Juiz a quo referente à própria fatura.

FF. Nesta aceção, e em conformidade com a jurisprudência comunitária: segundo a qual «o direito de os sujeitos passivos deduzirem do IVA de que são devedores o IVA devido ou já pago sobre os bens adquiridos e os serviços que lhes foram prestados a montante constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União (Acórdão de 21 de março de 2018, Volkswagen, C-533/16, EU:C:2018:204, n.°37 e jurisprudência referida);

GG. «O regime das deduções visa liberar inteiramente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, consequentemente, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os objetivos ou os resultados dessas atividades, desde que elas próprias estejam, em princípio, sujeitas a IVA (Acórdão de 21 de março de 2018, Volkswagen, C-533/1);

HH. «29. No que se refere às condições materiais exigidas para a constituição do direito a dedução, o Tribunal declarou3 que resulta do artigo 168°, alínea a), da Diretiva IVA que os bens ou serviços invocados para basear esse direito devem ser utilizados a jusante pelo sujeito passivo, para os fins das suas operações tributadas, e que, a montante, esses bens ou serviços devem ser prestados por outro sujeito passivo.

30. Uma vez que o artigo 168° da Diretiva IVA não impõe nenhuma outra condição no que se refere à utilização pela pessoa que recebe os bens ou os serviços em causa, há que concluir que, se as duas condições enunciadas no número anterior estiverem preenchidas, um sujeito passivo tem, em princípio, direito à dedução do IVA pago a montante.

31. Esta jurisprudência aponta no sentido de que apenas é determinante o facto de a prestação ser realizada entre dois sujeitos passivos e de que o adquirente utiliza a prestação recebida para realizar operações tributáveis. O Tribunal de Justiça parece considerar que a existência de uma fatura correta é uma mera formalidade. Contudo, nessa jurisprudência, o Tribunal de Justiça pronunciou-se sempre apenas sobre a constituição do direito à dedução quanto ao seu fundamento, porque, desde o início, não estava em discussão o montante da dívida fiscal e o montante da dedução do imposto.» (Acórdão do TJUE de 12 de abril de 2018, processo C-8/17). (negrito nosso); [Despacho de 12 de janeiro de 2017, MVM (C-28/16, EU:C:2017:7, n.o 28); acórdãos de 15 de setembro de 2016, Senatex (C-518/14, EU:C:2016:691, n.o 28); de 15 de setembro de 2016, Barlis 06 - Investimentos Imobiliários e Turísticos (C-516/14, EU:C:2016:690, n.o 40); e de 22 de junho de 2016, Gemeente Woerden (C-267/15, EU:C:2016:466, n.o 34). V., neste sentido, acórdão de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp (C-277/14, EU:C:2015:719, n.o 28 e jurisprudência aí referida].

II. … entende a Recorrente que a dedução ao IVA deveria ter sido levada a cabo pela AT, e por essa razão anulada a sua liquidação pela sentença recorrida, em virtude de tal dedução ter acolhimento pelo princípio da neutralidade que caracteriza o IVA, em virtude de as condições que a jurisprudência comunitária impõe para a possibilidade de se deduzir IVA, são apenas que a operação seja efetuada entre sujeitos passivos - tal como o foram no âmbito do presente processo.

JJ. Assim sendo, tendo a Mma Juiz a quo recusado o direito à dedução, claudicou na aplicação do direito e consequentemente violou o princípio da neutralidade do IVA que exige que a dedução deste imposto a montante se prenda com o cumprimento dos requisitos materiais, que se verificam no caso em apreço.

KK. Segundo entende firmemente a ora Recorrente, deverá ser este último entendimento - que deverá ser sancionado por este Venerando Tribunal, e em consequência ser a sentença revogada em conformidade.

Em face do exposto, deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que decida no sentido da procedência total da impugnação judicial apresentada contra as liquidações de IVA referentes ao ano de 2004, e a sua, consequente, anulação, por ilegais.

Assim se fazendo a verdadeira e costumada JUSTIÇA.”


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A Recorrida devidamente notificada optou por não apresentar contra-alegações.

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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

Com relevância para a decisão do mérito da causa consideram-se provados os seguintes factos:

A) No âmbito de uma ação de inspeção tributária efetuada à ora Impugnante relativamente aos períodos de 2002 a 2005, resultaram correções à matéria coletável de IRC do exercício de 2004, de natureza meramente aritmética, no montante total de € 59.500,00, e bem assim, o apuramento de IVA em falta, no valor de € 16.055,00, relativo a fatura emitida pelo fornecedor “D….., Lda.”, que os serviços entenderam que não eram de aceitar como custos fiscais em virtude de respeitarem a operações de natureza simulada – facto não controvertido.

B) Atos impugnados: Em 18.12.2007 e 28.02.2008, e com base nas conclusões da ação de inspeção referida em A), foram emitidas as seguintes liquidações adicionais de IVA referentes ao ano de 2004 e respetiva liquidação de juros compensatórios, com data limite de pagamento voluntário em 28.02.2008:

– cfr. doc. 1 junto à petição inicial a fls. 63 a 67 do suporte físico dos autos.

C) Em 21.04.2008 foi instaurada a impugnação judicial n.º 445/08.8BESNT, em que a ora Impugnante impugnou a liquidação adicional de IRC do ano de 2004, emitida na sequência da ação de inspeção mencionada em A), tendo sido proferida sentença em 28.10.2009, que julgou improcedente a impugnação, mantendo na ordem jurídica a liquidação de IRC relativa ao exercício de 2004 e, posteriormente, em 17.03.2016, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul na sequência de recurso interposto pela ora Impugnante, que confirmou a decisão proferida em 1.ª instância, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e onde se concluiu, além do mais, o seguinte:

“[…]

Num caso como este, a jurisprudência aponta que o ónus da prova se reparte, em processo onde o contribuinte impugne a actuação da AT, desconsiderando operações consubstanciadas em determinadas facturas existentes na escrita daquele, no sentido de caber a esta (AT) a prova dos pressupostos da sua actuação e àquele (contribuinte) a prova de que as questionadas operações tiveram, efectivamente, lugar. (Entre muitos outros vide: Acórdão do STA de 30.04.2003, proferido no processo n.° 0241/03, disponível no endereço www.dgsi.pt).

Todavia, não é necessário que a AT prove os pressupostos da simulação previstos no artigo 240° do CC (a existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros), sendo bastante a prova de elementos indiciários que levem a concluir nesse sentido, isto é, de indícios sérios e objectivos, que traduzam uma probabilidade elevada de que as facturas não titulam operações reais, pois de contrário seria praticamente impossível atingir o objectivo legal de tributação do rendimento real e de combate à fraude fiscal.

E esses indícios podem colher-se não só junto da escrita e contabilidade de quem arquivou e relevou contabilisticamente os documentos em causa, como colher-se junto de elementos externos a essa contabilidade, sendo que só perante esses concretos indícios, essa elevada probabilidade, cessa a presunção de veracidade das operações constantes da escrita e dos respectivos documentos de suporte, passando a competir ao contribuinte o ónus de provar que elas efectivamente se realizaram, comprovando os custos contabilizados como o impõe o artigo 23° do CIRC.

Cabe, assim, ao contribuinte o ónus da prova da veracidade das operações, mediante a demonstração da existência dos factos que alegou como fundamento do seu direito de ver tais custos relevados negativamente na sua matéria tributável, não lhe bastando criar dúvida sobre a sua veracidade, ainda que fundada, pois neste caso o artigo 100.º do CPPT não tem aplicação.

No mesmo caminho trilha a jurisprudência do nosso tribunal superior (STA) como se pode ver, entre muitos outros, no Acórdão de 30.04.2003, proferido no processo n.° 0241/03: «(...) cabe à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, ou seja, ... da existência dos factos de que depende legalmente que ela deva agir ou possa agir em certo sentido, como factos constitutivos de tal direito, em termos daquele princípio da legalidade, segundo a sua actual compreensão, entendido não como mero limite à activídade da administração mas como fundamento de toda a sua actividade.

O que corresponde ao ensinamento de Vieira de Andrade in Justiça Administrativa, 2a edição, pág. 269: "há-de caber, em princípio à Administração, o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação. designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegalidade do acto, quando se mostrem verificados estes pressupostos.»

Assim, «(...) quando o acto da Administração se traduza na afirmação positiva da prática, pelo contribuinte, do facto tributário e da sua expressão quantitativa, é a ela que incumbe a prova da sua verificação, devendo a dúvida ser resolvida peio tribunal contra ela.» (disponível no endereço www.dqsi.pt)

Daí que seja curial rejeitar como custo uma quantia titulada por facturas quando, após averiguações, a AT conclui haver sérios indícios de que aquelas titulam operações simuladas e, consequentemente, que tais custos não são reais. É que, visando-se a tributação do lucro real, não pode consentir-se a dedução de custos fictícios, sob pena de aceitação da fraude fiscal.

Será, a esta luz que terá de analisar-se se a AT alegou elementos indiciários suficientemente consistentes e aptos a justificar e suportar a sua conclusão sobre a necessidade de alterar o rendimento declarado pela Impugnante a nível de custos fiscais.

No caso dos autos, como resulta da matéria de facto provada, a AT considerou que a factura n.º 136/04, emitida pela sociedade «D….. Lda» em 30 de Julho de 2004, no montante de € 59.500,00 contabilizada pela recorrente, não corresponde a efectiva operação com base nos seguintes "factos-índice":
ü Segundo informação sobre esta empresa que consta no sistema informático MGIT, da DCiCT:
ü A única declaração Modelo 22 entregue é a referente ao exercício de 2001;
ü  A única Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal é a referente ao exercício de 2001;
ü Tem declarações periódicas de IVA em falta desde o período 0306T, inclusive;
ü Tem doze processos de execução fiscal em tramitação.»

As diligências inspectivas, neste particular, não ficaram por aqui, foram ouvidos em declarações os sócios (R….. e M…..) da sociedade emitente da questionada, que declaram: «A empresa vendia material eléctrico na loja sita na sede da empresa, eventualmente em casos pontuais era pedido material pelo telefone e iam posteriormente a fazer a entrega; Nunca trabalhamos na construção civil. Até ao dia 18 de Novembro de 2004 nunca foi realizada qualquer venda.» (fls 466 do p.a.t), sendo estas confrontadas com o teor do descritivo da factura em causa, na qual pode ler-se: «Serviços de calçada e pilares em ruas de Lisboa e Mira Sintra, incluindo mão de obra e materiais.» (fls 466 do p.a.t.).

É, certo que os apontados indícios não deixam de ser estranhos à recorrente e nenhum deles, mesmo analisado em concatenação com os demais, é suficiente para que se possa ter por indiciado que a factura que aquela contabilizou não corresponde a serviços prestados pelo seu emitente.

Todavia, existe um facto atinente à própria recorrente que não pode deixar de ser tido em conta.

Vejamos de perto, do que falamos.

A AT constatou ao analisar os movimentos a débito ocorridos na conta 2211103 - relativa à emitente da factura - são feitos por contrapartida da conta 268001- J….. administrador da recorrente -, o que não sucede com os outros fornecedores.

Ora, um dos primeiros e essenciais pressupostos à presunção da veracidade da contabilidade é que os movimentos e operações que ela ateste sejam evidenciados de molde a apurar da realidade acontecida.

Por isso, como temos por evidente, que a actuação da recorrente nos moldes em que o foi é, por si só, adequado para afastar a credibilidade que a contabilidade por princípio goza.

Donde, serem os indícios recolhidos pela AT (recolhidos junto da emitente da facturas e da análise á contabilidade da Recorrente) suficientes e objectivos para abalar a credibilidade da contabilidade da recorrente e, portanto, a AT cumpriu o dever que sobre si recaía de recolher indícios sérios e credíveis de que os serviços em questão não foram prestados.

E, como a recorrente não fez prova da veracidade das operações em causa, de modo que, só podemos apontar e aceitar que não cumpriu com o ónus de afastar os indícios ponderosos da simulação da factura, recolhidos pela AT, como aliás, decidiu o Mm° Juiz do TAF de Sintra.

Assim, e em síntese conclusiva, naufragando as conclusões da recorrente terá o recurso que improceder, sendo de confirmar a decisão recorrida.” – cf. fls. 437 a 447 do suporte físico dos presentes autos.

D) A presente Impugnação Judicial foi apresentada em 22.04.2008 – cf. fls. 3 dos autos.


***

A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Não resultam dos autos outros factos, com relevo para a decisão do mérito da causa, que importe dar como provados ou não provados.


***

A sentença consignou como motivação da matéria de facto o seguinte:

 “A decisão da matéria de facto provada efetuou-se com base no exame dos documentos, não impugnados, que constam dos autos, referenciados em cada uma das alíneas do probatório.”


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Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade:

E) A 10 de dezembro de 2007, foi emitido o Relatório de Inspeção Tributária, no âmbito da ação de inspeção externa à sociedade “V….., Lda”, em sede de IRC e IVA, referente aos exercícios de 2002, 2003, 2004 e 2005, identificado em A), cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido e que se extrata, na parte que para os autos releva, designadamente, o seguinte:
     

(…)

(…)

 

F) O Relatório de Inspeção Tributária mencionado na alínea antecedente contém sete anexos (cfr. fls. 511 a 858 do PA, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);

G) No ano de 2004, a sociedade “D….., lda”, emitiu a fatura nº 136/04, endereçada à sociedade “V….., Lda”, com o seguinte descritivo “Serviços de Calçada e Pilaretes em Ruas de Lisboa e Mira Sintra, incluindo mão de obra e materiais”, no valor global de €70.805,00 (cfr. fls. 155 dos autos, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);


***

III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IVA, do ano de 2004, no valor total de €18.006,34.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Face ao exposto, as questões sob recurso e que importa decidir são as que infra se enumeram:
¾  Se a Recorrente procedeu à impugnação da matéria de facto cumprindo os requisitos consignados na lei, e em caso afirmativo, se existe deficit ou erro de julgamento na valoração da matéria de facto que careça de aditamento, ou supressão;
¾ Estabilizada a matéria de facto, cumpre avaliar se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de direito por:
· Ter fundado a sua decisão em Aresto referente ao IRC, e já transitado em julgado;
· Ter concluído que os indícios apurados pela Administração Tributária são suficientes, traduzindo uma probabilidade séria de as operações constantes nas faturas serem simuladas;
· Ter ajuizado que a Recorrente não logrou provar a efetividade das operações constantes nas faturas visadas, donde que inexiste qualquer erro sobre os pressupostos de facto e de direito que inquine as liquidações.
· A posição do Tribunal a quo, e a manutenção do ato de liquidação traduz uma violação do princípio da neutralidade.

Vejamos, ora, se foi impugnada a matéria de facto.

Para o efeito importa, desde já, convocar o teor do artigo 640.º do CPC, aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de primeira Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Tem, por isso, de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida ou o aditamento de novos factos ao acervo probatório dos autos[1].

No concernente à observância dos requisitos constantes do citado normativo relativamente à prova testemunhal , após posições divergentes na Jurisprudência, mormente, na Jurisdição Comum o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que “[e]nquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.” [2]

Note-se que, a indicação exata das passagens de gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo, naturalmente, do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, conforme decorre do artigo 662.º do CPC[3], aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Dir-se-á, portanto, que o que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do artigo 640.º do CPC[4].

A Recorrente requer o aditamento da factualidade que infra se discrimina:
i. A inspeção levada a cabo pela AT foi desencadeada pelo conhecimento da existência de Processo de Inquérito n.9 4/03.1IDACB (Secção BRICCEF) da Polícia Judiciária de Leiria - Departamento de Investigação Criminal, no qual se investiga a prática reiterada de fraudes fiscais e burlas tributárias a nível nacional, através da emissão de faturas falsas; - cfr. processo administrativo;
ii. Entre as suspeitas de emissão de faturas falsas constam as sociedades "N….., Lda", "E….., Lda", "S….., Lda" " D….., Lda"- cfr. processo administrativo -;
iii. Todas as sociedades referidas em ii. supra têm um sócio-gerente comum: C….. - NIF …..; - cfr. processo administrativo -;
iv. A Impugnante exerce a sua atividade desde 1998, tendo, em 2004, ao seu serviço cerca de 5 trabalhadores, sendo que apenas 1 calceteiro, prestando serviços fundamentalmente para autarquias locais, com especial destaque para as juntas de freguesia - cfr. Doc. n.º  3 junto com a petição inicial e depoimento das testemunhas C….. e J….. -
v. Fruto do reduzido número de trabalhadores (5) e apenas 1 (um) devidamente habilitado (calceteiro) para este tipo de trabalho, especificidades do tipo de clientes e períodos de execução de obras, a Impugnante teve necessidade de recorrer à subempreitada, contratando para os serviços de calçada e afins a sociedade "D….., Lda"; - depoimento das testemunhas C…..;
vi. A Impugnante não tinha estrutura para, por si só, prestar os serviços que prestou durante o ano de 2004, pelo que teve que contratar subempreitadas e adquirir a matéria prima necessária para executar esses serviços, - acordo das partes;
vii. Fundamentalmente, no que diz respeito à colocação de calçada portuguesa, em 2004, foram aplicados aproximadamente 9.100 m2, pela Impugnante, face à subcontratação de pessoal, o que seria impossível de fazer com apenas 1 calceteiro. - cfr. Anexo B, C e I junto com a petição inicial
viii. A Impugnante realizou serviços para as Juntas de Freguesia dos Prazeres, de S. Cristóvão e S. Lourenço, S. Sebastião da Pedreira, das Mercês e de S. Mamede que consistiram na reparação e manutenção de calçadas, (9.100 m2) onde se incluem todos os serviços relativos aos arranjos de passeios e ruas, tais como reparações de calçadas, lancis, pilaretes, etc - cfr. Anexo B, C e 1 juntos com a petição inicial e depoimento das testemunhas C….. e J…..;
ix. Muitos destes serviços são solicitados para serem realizados de imediato ou num curto espaço de tempo, não tendo a impugnante um leque alargado de trabalhadores permanentes, prontos à imediata execução dessas tarefas - depoimento das testemunhas C….. e J…..;
x. O calceteiro, e os seus dois serventes, que trabalhavam para a Impugnante aplicaram ainda 262 pilaretes e 167 metros de lancil e ainda tiveram tempo para construírem rampas e corrimões e ainda redes de rega, além de outros pequenos serviços, -matéria não controvertida;
xi. Relativamente ao trabalho desenvolvido pela empresa contribuinte durante o exercício de 2004, podemos resumi-lo da seguinte forma:
- metros quadrados totais de calçada aplicada durante o ano de 2004 = 9.100 m2
- metros lineares de lancil aplicado durante o ano de 2004 = 167 m2
- n.º de pilaretes aplicados em 2004 = 262 unidades
- outros serviços não relacionados
- n.º de funcionários com conhecimentos para calçada = 1 - matéria não controvertida;
xii. A empresa Impugnante, para execução dos trabalhos que lhe foram adjudicados, necessitou de mais mão-de-obra e teve também necessidade, óbvia, de adquirir matéria prima. - depoimento das testemunhas C….. e J…..;
xiii. A empresa Impugnante chegou ao contacto com o Sr. C….. por intermédio de um encarregado de obra que o conhecia.
xiv. Após os primeiros contactos, os primeiros serviços foram prestados e a colaboração foi aumentando, adquirindo níveis quase regulares, face à versatilidade do dito Sr. C….., bem como, à facilidade daquele na obtenção dos materiais que a empresa aqui Impugnante necessitava, bem como da disponibilização da mão-de-obra imprescindível para as diversas obras em curso junto das Juntas de freguesia, as quais tinham um prazo limitado para a sua execução.
xv. A administração fiscal constatou, por via da informação facultada pela Polícia Judiciária, que estas empresas tinham um sócio gerente comum - C….. - NIF …..- cfr. processo administrativo;
xvi. A empresa Impugnante sempre teve a sua contabilidade devidamente organizada - cfr. processo administrativo; -
xvii. Refere o Relatório ter-se constatado que um dos utilizadores da faturação é a V….., Lda, aqui Impugnante - cfr. processo administrativo;
xviii. Conforme resulta também do relatório, a referida empresa"... são não declarantes e estão indiciadas como emitentes da faturação falsa" impunha-se "... averiguar da veracidade da faturação emitida para o sujeito passivo...", razão pela qual foi iniciada ação de inspeção que conduziu à liquidação aqui impugnada - cfr. processo administrativo;
xix. E o Relatório da administração fiscal acaba por concluir, no que ao IVA diz respeito, que:"[p]elo sócios atrás descritos e ainda pelo facto de o sujeito passivo não ter comprovado a imprescindibilidade dos custos em causa, a dedução do IVA efectuada por via da contabilização das facturas descritas nos pontos III - 3.1 a 3.4, com o valor total de 7.932,50 em 2003,16.055,00 em 2004 e 31.626,00 em 2005, não obedece aos requisitos previstos nos artigos 19º, 20º, 26º e 35º do CIVA - Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 394-B/84, de 26 de Dezembro, pelo que tal dedução de imposto não é aceite para efeitos fiscais, pelo que irá ser corrigida." - cfr. processo administrativo;
xx. Posteriormente, a empresa foi notificada do Projeto de Correções do Relatório de Inspeção, e para exercer, querendo, o direito de audição, relativamente ao previsto no artº. 60º. da Lei Geral Tributária (LGT) e do artº. 60º. do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT), referente ao exercício de 2004, em sede de IVA (Proc. da Direção Geral dos Impostos, Serviços de Inspeção Tributária, Direção de Serviços de Inspeção Tributária, Div. 6, equipa eq 60), que apontava para correções aritméticas do ano de 2004, no montante de €16.055,00- cfr. processo administrativo;
xxi. Direito esse de audição que a Impugnante exerceu - cfr. processo administrativo;
xxii. Após o exercício do direito de audição, a Impugnante foi notificada do "Relatório de Inspeção Tributária", efetuada nos termos do arts. 77º. da LGT e do artº. 62º. do RCPIT, dando conta do teor do despacho que recaiu sobre as Conclusões do Relatório de Inspeção, tendo a administração fiscal entendido manter a integralidade do teor do projeto do Relatório, o qual se tornou assim definitivo, nomeadamente, quanto às correções à base tributável do IVA de natureza meramente aritmética, que conduziram ao cálculo de imposto no montante de €16.055,00- cfr. processo administrativo;

In casu, face às considerações de direito supra expendidas, extrai-se, com clareza, do teor das alegações recursivas e suas conclusões, que a Recorrente só, em parte, cumpriu o ónus a que se encontrava adstrita, mormente, só relativamente aos factos enumerados em iv), vi), vii), viii), x) e xi).

Ab initio, importa relevar que, in casu, e contrariamente ao aduzido pela Recorrente não houve lugar ao aproveitamento da prova testemunhal, conforme dimana do despacho prolatado a fls. 458 dos autos, de todo o modo, face ao supra aludido e em ordem ao consignado supra quanto à densificação dos respetivos requisitos nunca os mesmos se poderiam considerar satisfeitos no caso vertente.

Mais importa sublinhar que é insuscetível de cumprir os aludidos requisitos a remissão genérica para o PA. Note-se que, não são permitidos recursos genéricos contra a matéria de facto assente pelo tribunal recorrido: o recurso não pode ser genérico atacando a matéria de facto no seu conjunto sem precisar os pontos concretos, nem pode ser genérico apontando para a prova em geral produzida no processo[5].

Vejamos, então, se lhe assiste razão quanto à aludida impugnação.

Quanto ao aditamento atinente a acordo das partes, importa, desde já, tecer as seguintes considerações.

Preceitua o artigo 110.º, nº6, do CPPT que “a falta de contestação não representa a confissão dos factos articulados pelo impugnante”, acrescentando, por seu turno, o seu nº7, que: “o juiz aprecia livremente a falta de contestação especificada dos factos.”

Significa, nessa medida, que não obstante os factos alegados pela Impugnante, ora, Recorrente, não terem sido, expressamente, contestados pela Autoridade Tributária (AT), tal, per se, não implica a sua imediata assunção como facto provado, carecendo de, casuística, ponderação atinente à sua relevância para a lide em apreço, conjugado, natural e necessariamente, com todos os meios de prova ao seu dispor, e norteado pelo princípio da livre apreciação da prova.

Mais importa relevar, neste particular, que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito. Por outro lado, cumpre distinguir entre factos provados e meios de prova, sendo que uns não se confundem com os outros.

Tecidos estes considerandos, regressemos ao caso dos autos.

No caso, a Recorrente requer o aditamento dos factos vi), x), xi), com base no aludido acordo das partes, sendo que só o elencado em vi), face ao teor do Relatório de Inspeção Tributária, e bem assim ao teor da contestação se assumirá como facto relevante para integrar o probatório, ainda que, como veremos, com outra roupagem, porquanto os demais factos, face ao seu teor, careciam, por um lado, não só de outro meio probatório atinente ao efeito, mormente, prova documental que não é indicada como suporte para o aditamento da matéria de facto, como, p0r outro lado- e conforme veremos, com o devido pormenor e em sede própria- não assumem relevância para a presente lide, porquanto o que importa provar nos presentes autos é que os trabalhos evidenciados nas faturas colocadas em crise foram, efetivamente, realizados pela empresa “D….., lda”, indiciada como emitente de faturação falsa.

Assim, quanto ao facto elencado em vi), tendo presente o teor da factualidade alegada pela Recorrente na sua petição inicial, coadjuvada com o teor da contestação e com o Relatório Inspetivo e anexos dele constantes, o Tribunal ad quem, na sequência do requerido pela Recorrente e expurgados os juízos conclusivos e valorativos, adita o seguinte facto:

A sociedade “V….., Lda”, encontra-se inscrita, desde o ano de 1998, para o exercício da atividade de construção e engenharia civil, dispondo, no ano de 2004, de cinco trabalhadores, prestando serviços, maioritariamente, a Juntas de Freguesias, e com recurso à subcontratação de pessoal.

No concernente ao facto elencado em iv), face ao teor da factualidade supra aditada, e suprimidos todos os juízos valorativos e conclusivos, entende-se que não carece de qualquer autonomização, porquanto já integrado no facto cujo aditamento realizámos supra. De salientar, neste particular, que em nada releva, para a presente lide, a especificação de que apenas um era calceteiro.

O mesmo sucede quanto ao facto evidenciado em vii), porquanto carece de relevância, a expressa alusão e densificação da colocação de calçada portuguesa, sendo no demais conclusivo, opinativo e coadunado com o thema decidendum, donde insuscetível de integrar o acervo enquanto factualidade.

No respeitante ao facto elencado em viii), o Tribunal ad quem, face aos meios probatórios nele elencados e à factualidade alegada na p.i., defere o aditamento nos moldes peticionados, expurgado, face a todo o já expendido, a especificação da metragem nele constante, e os juízos que sejam conclusivos e opinativos.

Assim, defere-se o aditamento conforme infra se refere:

A sociedade “V….., Lda”, realizou, no ano de 2004, serviços para as Juntas de Freguesia dos Prazeres, de S. Cristóvão, S. Lourenço, S. Sebastião da Pedreira, das Mercês e de S. Mamede, que consistiram na reparação e manutenção de calçadas, onde se incluem, designadamente, arranjos de passeios e ruas, tais como reparações de calçadas, lancis e pilaretes.

Assim, face a todo o exposto, defere-se a impugnação nos moldes supra evidenciados, aditando-se a seguinte factualidade:

H) A sociedade “V….., Lda”, encontra-se inscrita, desde o ano de 1998, para o exercício da atividade de construção e engenharia civil, dispondo, no ano de 2004, de cinco trabalhadores, prestando serviços, maioritariamente, a Juntas de Freguesias, e com recurso à subcontratação de pessoal.

I) A sociedade “V….., Lda”, realizou, no ano de 2004, serviços para as Juntas de Freguesia dos Prazeres, de S. Cristóvão, S. Lourenço, S. Sebastião da Pedreira, das Mercês e de S. Mamede que consistiram na reparação e manutenção de calçadas, onde se incluem, designadamente, arranjos de passeios e ruas, tais como reparações de calçadas, lancis e pilaretes.


***

Aqui chegados, uma vez estabilizada a matéria de facto, vejamos, então, se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.

A Recorrente começa por defender que a decisão recorrida encontra-se inquinada de erro de julgamento, porquanto, por um lado, desconsiderou as diferenças atinentes ao IVA e ao IRC, os quais são impostos dotados de características e pressupostos diferentes, consubstanciando-se um sobre o consumo e o outro sobre o rendimento e, por outro lado, baseou-se apenas nos fundamentos aduzidos no âmbito do processo n.º 445/08.8BESNT, sem , contudo, ter feito qualquer apreciação crítica, o que implica um erro de julgamento, no tocante à apreciação da prova e bem assim a violação do disposto nos artigos 19.º, 20.º e 21.º todos do CIVA e o artigo 74.º da LGT.

Mais aduz que, os indícios em que se fundou são estritamente relacionados com os fornecedores, donde, sem possibilidade de traduzir indícios seguros nesse e para esse efeito.

Ademais, da prova documental carreada aos autos, dimana que a Recorrente prestou serviços às suas clientes, que apenas tinha ao seu dispor cinco trabalhadores, razão pela qual recorria à subcontratação, logo não se percebe como não aceitar as faturas colocadas em crise.

Até porque, não se pode descurar que a principal preocupação da Recorrente, no ano de 2004, era a execução e conclusão dos trabalhos que lhe eram adjudicados pelos seus principais clientes, não podendo rejeitar a exigência dos pagamentos em numerário, e que levou aos movimentos a débito ocorridos na conta 2211103 - relativa à emitente da fatura - terem sido feitos por contrapartida da conta 268001 - J….. administrador da, ora, Recorrente.

Conclui, dizendo que a sentença recorrida claudicou, em manifesto erro de julgamento inerente à dedutibilidade do IVA,  porquanto estamos perante a realização de operações tributadas que conferem direito à dedução nos termos da Diretiva do IVA e do disposto no artigo 19.º do CIVA, devendo essa dedução ser tida em consideração para efeitos do imposto a pagar, sob pena de violação do princípio da neutralidade do IVA que exige que a dedução deste imposto a montante, se prenda com o cumprimento dos requisitos materiais, que se verificam no caso em apreço.

Vejamos, então.

Como visto, a primeira alegação da Recorrente prende-se com a insusceptibilidade de se convocar o processo respeitante ao IRC de 2004, e com a transposição do nele dirimido e já transitado em julgado, para os presentes autos.

Importa, desde já, relevar que atentando no teor da petição inicial da Recorrente não se perceciona o alcance desta alegação, até porque, como veremos, foi a própria que requereu a necessidade de se atender à lide de IRC, invocando a existência de uma causa prejudicial e requerendo, inclusive, a suspensão da instância.

Com efeito, como resulta expresso do teor do seu articulado inicial é a própria que defende que “a alteração da matéria colectável em sede de IRC no exercício de 2004, resultou de correções, que conduziram inevitavelmente à alteração da base tributável em sede de IVA”.

Mais sublinhando que, a decisão a ser proferida no processo de impugnação judicial de IRC constitui “[q]uestão prejudicial” para a presente lide, porquanto “não faz sentido que seja fixada uma outra matéria colectável em sede de IRC, e essa decisão não tenha reflexos em sede de IVA.”, requerendo, por conseguinte, “a suspensão do presente processo, até decisão com trânsito em julgado da impugnação judicial referente à liquidação de IRC do exercício de 2004”.

Ora, como é bom de ver, foi a própria que evidenciou a necessidade de convergência de decisões, face à total identidade fática de situações, tendo, inclusive, o Tribunal decretado a suspensão da instância, em conformidade com o peticionado, a qual só foi levantada com a prolação do Acórdão e seu trânsito em julgado, portanto sob esse prisma, a questão convocada não tem qualquer fundamento.

Com efeito, se foi requerida a suspensão da instância peticionada pela Impugnante, ora Recorrente, e se a mesma foi decretada, então o Juiz do Tribunal a quo ao convocar o julgado inerente ao IRC, limitou-se a retirar as consequências daí dimanantes.

Questão diferente, e também colocada, é se as aludidas consequências foram adequada e acertadamente retiradas.

E, nesse concreto particular, atentando na decisão recorrida não se afigura que a mesma tenha feita a correta interpretação, e isto porque independentemente de a questão dever ser entendida ou não como uma verdadeira causa prejudicial, no sentido de impor que a lide fique suspensa até ao desfecho da denominada causa principal, a verdade é que tal não o habilita a convocar o caso julgado, quer na sua dimensão negativa, ou mesmo positiva, nos moldes em que o fez.

Com efeito, compulsado o seu teor verifica-se que a decisão recorrida não procede a uma competente apreciação crítica da prova, limitando-se a convocar o processo nº 445/08 e a concluir, sem mais, que “[a] correção aos rendimentos apurados pela Impugnante para efeitos de IRC era válida, sendo os mesmos os fundamentos da correção efetuada em termos de IVA, não pode a impugnação deixar de improceder por se ter consolidado na ordem jurídica, por força do trânsito em julgado da decisão proferida que era causa prejudicial (…)”.

Note-se que quanto ao alcance do caso julgado, diz o artigo 621.º do CPC que: “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.

Sublinhando ainda TEIXEIRA DE SOUSA que “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”[6].

É certo que não obstante as diferenças que subjazem, necessariamente, aos aludidos impostos, as razões atinentes à não aceitação dos custos, em sede de IRC, são as mesmas que subjazem à falta de dedução do IVA-emissão de faturas de favor, porquanto, como referido pela Recorrente, não foram convocadas questões atinentes aos requisitos formais das faturas e próprios do CIVA, e portanto podia e devia ter-se socorrido do já dirimido na outra lide mas não com o alcance que lhe foi dado e da forma que feita.

Ora, tendo presente o conteúdo da decisão recorrida, em que inexistiu qualquer apreciação crítica da prova, limitando-se a remeter, conclusivamente, para o aludido Acórdão sem a competente e pertinente apreciação fática e mesmo jurídica, visto que nunca são, como alegado pela Recorrente, chamados à colação os normativos atinentes à dedução do IVA, mormente, os artigos 19.º, 20.º e 21.º todos do CIVA, ter-se-á de concluir que a decisão recorrida padece de nulidade (cfr. artigo 125.º do CPPT e 615.º, nº1, alínea b), do CPC).

Note-se que a suficiência do exame crítico da prova é aferida sob a perspetiva de a decisão exteriorizar o percurso cognitivo percorrido pelo julgador, e a verdade é que, in casu, não é percetível a exteriorização desse mesmo juízo de valoração.

A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do artigo 607.º, nº 3 do CPC, que impõe ao juiz não só o dever de discriminar os factos que considera provados, como também de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.

É certo que a Recorrente convocou essa falta de apreciação crítica da prova enquanto erro de julgamento, mas tal não obsta a que, face ao teor das suas alegações, o Tribunal ad quem, a requalifique enquanto tal, porquanto não está vinculado à qualificação jurídica e conhecimento oficioso do direito (cfr. artigo 5.º, nº3 do CPC).

Conforme se doutrina no Aresto do STJ, proferido no processo nº 842/10.9.P2.S1 TBPNF, com data de 07 de abril de 2016: “[o] que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado”.

Face ao supra aludido, julga-se verificada a aludida nulidade, e em consequência, por os autos reunirem todos os elementos atinentes para o efeito, -tendo o Tribunal ad quem ao abrigo dos seus poderes de cognição aditado factualidade pertinente para o efeito e deferido a impugnação da matéria de facto nos moldes já expendidos- passa-se a conhecer, em substituição.

Vejamos, então.

Neste concreto particular, impõe-se começar por aquilatar se a AT reuniu os indícios atinentes para o efeito de legitimar as correções respeitantes ao IVA, e em caso afirmativo se a Recorrente logrou provar a materialidade das operações.

Comecemos por aquilatar a natureza e a mecânica do IVA.

O IVA é um imposto plurifásico, que assenta numa estrutura de entrega e respetiva dedução, pelos vários intervenientes na cadeia, até ao consumidor final, que o suporta, sem o poder deduzir.

Na verdade, o IVA funciona pelo método indireto subtrativo, de acordo com o qual o sujeito passivo deduz, ao imposto liquidado nos seus outputs, o imposto liquidado nos respetivos inputs.

O objetivo de neutralidade vertido na Diretiva IVA 2006/112 (Diretiva IVA) determina que:“Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço” (vide 2.º parágrafo, do n.º 2, do artigo 1.º).

O direito à dedução é um princípio fundamental do sistema comum do IVA que não pode, em princípio, ser limitado e que é exercido imediatamente para a totalidade dos impostos que oneraram as operações efetuadas a montante (vide neste sentido, designadamente, Acórdãos TJUE Mahagében e Dávid, C 80/11 e C 142/11; Bonik, C 285/11; e Petroma Transports C 271/12, e demais jurisprudência aí citada, todos disponíveis em http://curia.europa.eu).

Com efeito, o regime das deduções visa libertar integralmente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados dessas atividades, na condição de as referidas atividades estarem, em princípio, elas próprias sujeitas ao IVA (para o efeito, atente-se, designadamente, nos Acórdãos Dankowski, C 438/09; Tóth, C 324/11; Petroma, C-271/12, Senatex, C‑518/14, Paper Consult, C‑101/16, e jurisprudência aí referida disponíveis em http://curia.europa.eu).

O direito à dedução do IVA está, porém, sujeito ao cumprimento de requisitos de cariz substantiva e formal (Paper Consult, C‑101/16).

No concernente à definição, âmbito e abrangência do direito à dedução, importa chamar à colação o teor do Aresto do STA, proferido no processo nº 01148/11, com data de 03 de julho de 2013, no qual é feita uma análise bastante aprofundada e minuciosa sobre esta questão, e a cuja fundamentação se adere.

Os mecanismos de dedução do IVA, estão consagrados nos artigos 19.º a 25.º do CIVA.

Nos termos do artigo 19.º, do CIVA, especificamente do seu n.º 1, al. a), decorre que os sujeitos passivos de IVA podem deduzir, ao imposto incidente sobre as suas operações tributáveis, o imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos de IVA.

Porém, também de acordo com o artigo 19.º do CIVA, desta feita o seu n.º 3, dimana que:
“Não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura ou documento equivalente.”.

Por seu turno, o artigo 20.º, n.º 1, al. a), do mesmo código, determina igualmente que só é dedutível o imposto suportado relativo a bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados para a transmissão de bens e prestações de serviços sujeitas a IVA e dele não isentas.

Chegados aqui e resumindo, da leitura destas normas retira-se que só o imposto que tenha, efetivamente, incidido sobre bens adquiridos para a realização de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas, pode ser deduzido o IVA incidente sobre as operações tributáveis.

Sendo certo que, para efetivar o ónus da prova em sede de direito à dedução do IVA, é jurisprudência assente que basta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar a respetiva dedução de imposto, factualidade essa que tem de ser suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte, passando ulteriormente a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de exercer o direito à dedução do IVA, provando, assim, que as operações se realizaram efetivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o seu direito àquela dedução.

Para o efeito, atente-se no teor do Aresto proferido pelo STA, em Plenário, no âmbito do processo nº 0591/15, datado de 17 de fevereiro de 2016, integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt, cujo sumário se extrata na parte que os autos releva:
“II - Para que a AT, ao abrigo do disposto no nº 3 do art. 19.º do CIVA, obste à dedução do IVA mencionado em facturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efectivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. art. 240º do CCivil) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende.
III - Basta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar a respectiva dedução de imposto, factualidade essa que tem de ser susceptível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito à dedução do IVA) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efectivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o seu direito àquela dedução.”.

Vistos os conceitos de direito que relevam para o caso dos autos e densificada a questão do ónus da prova, importa transpor o direito para o caso em apreço, competindo aferir se a AT reuniu ou não os elementos necessários para legitimar a sua atuação, ou seja, se foram recolhidos indícios bastantes que permitam concluir pela dedução indevida de IVA.

Do teor do Relatório de Inspeção Tributária resulta que os indícios apurados são os seguintes:

De acordo com elementos obtidos no sistema informático MGIT, da DCICT, apurou-se o seguinte:

- A única declaração Modelo 22 entregue é a referente ao exercício de 2001;

- A única Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal é a referente ao exercício de 2001;

- Tem declarações periódicas de IVA em falta desde o período 0306T, inclusive;

- Tem doze processos de execução fiscal em tramitação.

-Foram ouvidos em declarações os sócios R….. e M….., da sociedade emitente da questionada, tendo estes expressamente declarado que a empresa vendia material elétrico na loja sita na sede da empresa, eventualmente em casos pontuais era pedido material pelo telefone e iam posteriormente a fazer a entrega. Esclarecendo que nunca trabalharam na construção civil. E que até ao dia 18 de novembro de 2004 nunca foi realizada qualquer venda com a Recorrente.

-Da análise aos movimentos a débito ocorridos na conta 2211103 - relativa à emitente da fatura - são feitos por contrapartida da conta 268001- J….. administrador da Recorrente -, o que não sucede com os outros fornecedores.

Ora, atentando nos aludidos indícios, e contrariamente ao defendido pela Recorrente entende-se que os mesmos são de molde a justificar e desconsiderar a efetividade dos serviços contemplados na fatura emitida pela aludida sociedade.

Com efeito, transpondo as regras do ónus da prova para o caso dos autos, concluímos que a AT reuniu diversos factos, que fez constar do Relatório de Inspeção Tributária e que, no seu conjunto, permitem sustentar um juízo de forte probabilidade no sentido de que as referidas operações seriam fictícias, o que a levou a desconsiderar os custos, alegadamente, incorridos e, necessariamente, o IVA suportado.

É certo que a Recorrente aduz que os aludidos indícios são todos eles exógenos, mas a verdade é que atentando no supra expendido, resulta inequívoco que não procede a aludida alegação, e isto porque foram ponderados indicadores relacionados com a própria Recorrente e que subjazem a um vetor de primacial importância e que se concatena com os meios de pagamento, sendo que a sua comprovação reveste grau de importância elevada em termos de prova da efetividade das operações[7].

Neste particular, chamemos à colação o Aresto proferido no processo nº 445/08, e que aponta, exatamente, nesse sentido, a cuja fundamentação jurídica se adere e do qual se extrai no que para os autos, releva, designadamente, o seguinte:

É, certo que os apontados indícios não deixam de ser estranhos à recorrente e nenhum deles, mesmo analisado em concatenação com os demais, é suficiente para que se possa ter por indiciado que a factura que aquela contabilizou não corresponde a serviços prestados pelo seu emitente.

Todavia, existe um facto atinente à própria recorrente que não pode deixar de ser tido em conta.

Vejamos de perto, do que falamos.

A AT constatou ao analisar os movimentos a débito ocorridos na conta 2211103 - relativa à emitente da factura - são feitos por contrapartida da conta 268001- J….. administrador da recorrente -, o que não sucede com os outros fornecedores.

Ora, um dos primeiros e essenciais pressupostos à presunção da veracidade da contabilidade é que os movimentos e operações que ela ateste sejam evidenciados de molde a apurar da realidade acontecida.

Por isso, como temos por evidente, que a actuação da recorrente nos moldes em que o foi é, por si só, adequado para afastar a credibilidade que a contabilidade por princípio goza.”

Concluindo, assim, que:

“Donde, serem os indícios recolhidos pela AT (recolhidos junto da emitente da facturas e da análise á contabilidade da Recorrente) suficientes e objectivos para abalar a credibilidade da contabilidade da recorrente e, portanto, a AT cumpriu o dever que sobre si recaía de recolher indícios sérios e credíveis de que os serviços em questão não foram prestados”.

Face a todo o expendido anteriormente conclui-se que a AT demonstrou, de forma razoável e suficiente, que as operações controvertidas eram simuladas, mostrando-se, por esse prisma, legitimada a situação impeditiva do exercício do direito à dedução do IVA, em ordem ao consignado no artigo 19.º, nº3 do CIVA.

Aqui chegados, compete à Recorrente, como visto, a demonstração da efetividade das operações.

Relevando, desde já, que face à prova produzida a mesma não é de molde a concluir-se no sentido da materialidade das operações.

É certo que a Recorrente impugnou a matéria de facto, pedindo o aditamento de determinadas realidades de facto que reputava relevantes, tendo o Tribunal ad quem, deferido as evidenciadas em H) e I) supra, entre as quais aquelas que se concatenavam com o número de trabalhadores afetos à empresa, com a realização de obras para as Juntas de Freguesias, e com o recurso à subcontratação, daí retirando que as mesmas permitem comprovar a materialidade das operações sindicadas.

Mas a verdade é que, de tal factualidade não se retira a aludida materialidade, mas, tão-só, que foram adjudicadas um conjunto de obras e prestação de serviços à Recorrente, mormente, com as Juntas de Freguesia indicadas em I), e que para o desenvolvimento da sua atividade tem de recorrer à subcontratação, em nada permitindo inferir que para a realização dessas obras recorreu, em concreto, aquela empresa[8].

E isto porque, “a mera menção aos serviços a jusante realizados e à necessidade de recorrer a subempreiteiros não se afigura como suficiente para a demonstração da efetividade das operações tituladas pelas faturas postas em causa[9].”

Note-se, ademais, que a Recorrente não alega que tal empresa é a única fornecedora, não resultando, inclusive, tal asserção do Relatório de Inspeção Tributária, bem pelo contrário.

Assim, face ao supra aludido conclui-se que a aludida factualidade aditada não tem o alcance e a potencialidade almejada pela Recorrente, não se retirando que para a realização dessas obras tenha sido utilizada mão de obra da sociedade “D….., lda”, que, como visto, era a prova que relevava para a presente lide.

Mais importa relevar, em sede de prova da materialidade das operações que, não obstante o expendido em AA) e BB), a verdade é que ficaram por explicar os movimentos a débito, cuja prova se circunscrevia na sua esfera jurídica, sendo, como visto, um ponto de curial relevância para efeitos da materialidade das operações.

De sublinhar, outrossim, que não se afigura como contraindício o afirmado quanto ao facto de os procedimentos quanto aos demais fornecedores serem diferentes em virtude de as emitentes das faturas serem das maiores fornecedoras, porquanto tal não afasta a atipicidade e opacidade do circuito financeiro.

Note-se, inclusive, que em termos de declarações dos responsáveis da empresa emitente da fatura em contenda, foi atestado, de forma perentória, que nunca trabalharam na construção civil, e que até 18 de novembro de 2004 não realizaram qualquer serviço à Recorrente.

Logo, tal prova, per se, e sem o suplemento de outra prova fidedigna, mormente, pagamentos das faturas não permite inferir pela materialidade das operações, o que comporta a não dedutibilidade do IVA respetivo.

A enfatizar, igualmente, que no caso vertente, não se verifica qualquer dúvida relativamente ao facto tributário ou à sua quantificação, uma vez que da prova produzida em juízo e dos elementos carreados para os autos não resulta que tenha sido cometida qualquer ilegalidade pela AT.

Destarte, conclui-se que a AT cumpriu o ónus probatório que sobre si impendia, e mais, ainda, que competia à Impugnante, ora Recorrente, ter apresentado prova capaz de destruir esses indícios, demonstrando que as operações constantes na fatura em contenda, são reais, ou seja, que aquela fatura tem subjacente operações com materialidade, o que, como visto, não logrou fazê-lo.

Assim, contrariamente ao expendido pela Recorrente, inexiste qualquer violação dos normativos 19.º, 20.º e 21.º do CIVA, e bem assim do artigo 74.º da LGT, visto que, conforme expressamente preceitua o artigo 19.º, nº 3, do CIVA “Não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura ou documento equivalente”.

In fine, importa relevar que não assiste, outrossim, razão à Recorrente quando propugna que a manutenção do ato de liquidação de IVA acarreta a violação do princípio da neutralidade fiscal.

Senão vejamos.

O princípio da neutralidade, é apontado tanto pela doutrina como pela jurisprudência como um princípio estruturante, doutrinando, neste particular, Sérgio Vasques, “se quisermos concretizar o sentido da neutralidade, podemos dizer que imposto neutro é aquele que não interfere nas decisões dos agentes económicos deixando a produtores a liberdade de escolher o que produzir e como produzi-lo (neutralidade do produtor), ao mesmo tempo que deixa a consumidores a liberdade de escolher o que consumir sem os afastar da sua inclinação natural (neutralidade no consumidor).[10]

Mais esclarecendo, contudo, que “Se o princípio da neutralidade exige que o imposto incidente sobre os inputs de qualquer actividade económica tributável seja inteiramente dedutível, é certo que o sistema do IVA continua a admitir variadas restrições à dedutibilidade do IVA, relativas não apenas à natureza dos gastos que permitem a dedução como também à forma e ao momento em que este se concretiza[11].”

Ora, tendo presente a suprarreferida densificação e face à realidade fática em contenda, ajuíza-se que a interpretação sufragada não traduz qualquer ofensa ao princípio da neutralidade do IVA, como aduz a Recorrente, bem pelo contrário. Com efeito, a posição sustentada mais não representa que o cumprimento do regime legal vigente, porquanto, como visto, não se tendo provado a materialidade das operações constante na fatura sindicada-em nada relevando, de per se, o cumprimento dos requisitos formais que, de resto, nunca foram colocados em causa- promana do visado princípio da neutralidade, a insusceptibilidade de dedução do IVA.

Como já aduzido e, ora se reitera, da interpretação conjugada dos artigos 19.º, nº 3, e 20.º, nº1, alínea a), ambos do CIVA, retira-se que só o imposto que tenha, efetivamente, incidido sobre bens adquiridos para a realização de transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas, pode ser deduzido o IVA incidente sobre as operações tributáveis.

Neste particular, importa, outrossim, ter em consideração o doutrinado no Acórdão do STA, proferido no processo nº 0807/15, de 27.01.2016, o qual convocando doutrina que reputa aplicáveis sustenta, designadamente, o seguinte:

“Dispõe a al. c) do nº 1 do art. 2º do CIVA que são sujeitos passivos do imposto, «as pessoas singulares ou colectivas que, em factura ou documento equivalente, mencionem indevidamente IVA».

Assim, de acordo com esta disposição legal, a simples menção do IVA nos referenciados documentos, mesmo que porventura descabida, por não haver lugar ao mesmo, origina obrigação de imposto.

E como se sublinha, entre outros, nos acórdãos deste Supremo Tribunal, de 26/9/2012 e de 24/4/2002, respectivamente nos procs. n.ºs 0555/12 e 26636, «este resultado deriva tanto do carácter rígido e formalista do IVA como do facto de o sujeito passivo destinatário da factura ter o direito de dedução respectivo.

Nas palavras de XAVIER DE BASTO (Cfr. “A harmonização Fiscal na CEE”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 362, p. 44), cada factura com menção de imposto, constitui “um cheque sobre o tesouro, pois atribui ao destinatário que seja sujeito passivo o direito de deduzir o IVA nela contido. Por isso, (...) a simples menção do IVA em factura (mesmo que porventura descabida, por não haver lugar a imposto naquele caso, por qualquer razão) origine obrigação de pagar, independentemente da qualidade do emissor, isto é, seja ele ou não um sujeito passivo. Tornar-se-á, pelo simples facto da menção, um “devedor de imposto”. Só assim se consegue que ao direito à dedução, que a factura atribui ao destinatário sujeito passivo, corresponda sempre uma obrigação de pagar. Assim se assegura o funcionamento regular do sistema de pagamentos fraccionados.»

Na verdade, esta disposição constante da al. c) do nº 1 do art. 2º do CIVA, «visa garantir que existe uma correspondência entre a obrigação de pagamento do imposto e o direito à dedução, que resulta da condição de sujeito passivo», sendo que em matéria de imposto indevidamente mencionado e repercutido também a jurisprudência comunitária tem acentuado que «a pessoa que mencione indevidamente IVA numa factura converte-se em sujeito passivo de imposto [artigo 2°, n.º 1, alínea c)] e consequentemente em devedor do montante em causa. Se tiver actuado de boa fé, deve poder regularizar o montante de imposto indevidamente facturado, procedendo à devolução do montante de imposto em causa. Aquele que suporte um IVA indevido não pode, em qualquer caso, exercer o direito à dedução.»(Patrícia Noiret Cunha, Imposto sobre o Valor Acrescentado: Anotações ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e ao Regime do IVA nas Transacções Intracomunitária, Lisboa, ISG, 2004, pp. 458-459, nota 3 ao artigo 71º.)

Trata-se, portanto, de cautelas assumidas pelo legislador, decorrentes da circunstância de nesses casos se estar «a dar início à cadeia da liquidação e dedução do imposto, com os efeitos daí subjacentes». (Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2005, p. 66.)” (destaques e sublinhados nossos).

Assim, face a todo exposto, tudo visto e ponderado e sem necessidade de outras considerações, conclui-se que a AT fez prova dos indícios da existência de simulação das operações, pelo que se impunha que a Recorrente tivesse provado que, pese embora aqueles indícios, os serviços descritos nas faturas se tinham efetivamente concretizado, o que, manifestamente, não sucedeu no caso vertente[12].

E por assim ser, não fazendo prova da existência e dimensão dos factos tributários que a Recorrida alegou como fundamento do seu direito à dedução, em sede IVA, as correções sindicadas não padecem das ilegalidades sindicadas, devendo, por isso, as liquidações impugnadas serem mantidas.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO, julgar nula a decisão recorrida, e em substituição, julgar improcedente a impugnação judicial, com a consequente manutenção dos atos de liquidação impugnados.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.


Lisboa, 25 de fevereiro de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires

______________________
[1] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.
[2] Ac. STJ de 01.10.2015, P. 824/11.3TTLRS.L1.S1; Ac. STJ de 14.01.2016, P. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1; Ac. STJ de 11.02.2016, P. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, P. nº 299/05; Ac. STJ de 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção; Ac. STJ, datado de 29/09/2015, P. nº 233/09; Acórdão de 31.5.2016, 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, 449/410; Acórdão do STJ de 27.1.2015,  1060/07.
[3] Vide, designadamente, Acórdão do STJ datado de 19/02/2015, proferido no processo nº 299/05.06TBMGD.P2.S1.
[4] Conforme doutrina o Ac. STJ. de 03/03/2016, no processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S.
[5] Vide Acórdão do TCA Norte, proferido no processo nº 02324/04.9 BEPRT, datado de 31 de maio de 2012 e bem assim Aresto do TCA Sul, proferido no processo nº 618/10.3 BELRS de 07 de junho de 2018.
[6] in Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 578-579
[7] Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº1095/12, de 31.10.2019 e 08666/15, de 25.05.2017 e processo nº 236/08, de 07.05.2020.
[8] Vide Acórdão deste Tribunal proferido no âmbito do processo nº 236/08, datado de 07.05.2020,, também, relatado pela presente Relatora.
[9] Vide Acórdão deste Tribunal proferido no âmbito do processo nº 463/08, de 11.07.2019.
[10] Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, Almedina: reimpressão, fevereiro 2020, p.105.
[11] In ob. cit.p.109.
[12] Neste âmbito, vide, igualmente, os Arestos proferidos no âmbito dos processos nº 446/08, de 09.02.2017, 406/18, de 06.12.2018 e o já citado 463/08, de 11.07.2019, com identidade fática.