Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 657/11.7BELSB |
Secção: | CA |
Data do Acordão: | 10/20/2021 |
Relator: | PEDRO NUNO FIGUEIREDO |
Descritores: | TRANSAÇÃO COMERCIAL ENTRE EMPRESA E ENTIDADE PÚBLICA CONTRATO NULO; REGIME DA NULIDADE DO ARTIGO 289.º DO CCIVIL RESTITUIÇÃO DO VALOR; JUROS DE MORA INTERPELAÇÃO EXTRAJUDICIAL; JUROS COMERCIAIS |
Sumário: | I. À prestação de serviços de transporte e mudanças, solicitados por instituto público e comprovadamente prestados por empresa privada nos anos de 2003 e 2004, era aplicável o Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de junho, que aprovou o regime jurídico de realização de despesas públicas e da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e serviços.
II. Uma vez que os serviços em causa foram prestados sem obediência às regras ali prescritas, designadamente sem procedimento contratual ou requisição formal daqueles serviços, com preterição de formalidades essenciais do ato de adjudicação, estamos perante contrato nulo. III. Tem aplicação ao caso o regime da nulidade dos contratos previsto no artigo 289.º do CCivil, implicando a restituição do que foi prestado ou, não sendo possível a restituição em espécie, a condenação do devedor no pagamento do valor correspondente à utilidade advinda da sua realização. IV. A falta de pagamento atempado constitui o devedor em mora e na obrigação de pagamento dos respetivos juros. V. Tendo a empresa enviado ao instituto diversas comunicações, dando conta dos serviços realizados, indicando o respetivo valor e solicitando a resolução do assunto, as mesmas configuram-se como interpelações para pagamento, definindo a primeira delas o momento da constituição em mora do devedor, nos termos do disposto no artigo 805.º, n.º 1, do CCivil. VI. Estando em causa transação comercial entre empresa e entidade pública, tem aplicação ao caso dos autos o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, nos termos do qual os juros aplicáveis aos atrasos de pagamento são os juros comerciais estabelecidos no Código Comercial, regime mantido pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, que revogou aquele diploma legal. |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: |
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Decisão Texto Integral: | * Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I. RELATÓRIO T...,Lda., instaurou ação administrativa comum contra o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P., peticionando, com fundamento em incumprimento contratual, a condenação do réu no pagamento da quantia de € 44.878,48, acrescida de juros de mora. Por sentença de 23/01/2014, o TAC de Lisboa julgou parcialmente procedente a ação e condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 23.375,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa anual de 4% e devidos desde a citação, até integral pagamento. Inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: “1. O Recorrido, para além do capital em dívida, deve ser condenado no pagamento à Recorrente de juros de mora desde, pelo menos, 1.1.2004 relativamente aos serviços prestados em 2003 (€ 2.301,00 S/IVA) e de 1.1.2005 relativamente aos serviços prestados em 2004 (€ 21.074,00 S/IVA), tudo de acordo com as taxas legais aplicáveis aos juros comerciais e não com a taxa legal para os juros civis, o qual se cifra em € 19.323,70 / (17.197,56 + 2.126,14) - valor devidamente calculado no corpo do presente recurso] ao qual acrescerão os juros vincendos à taxa comercial contados desde a data da prolação da douta sentença de primeira instância, pelo que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 635.°n.°2e 4 do CPC o recurso vai assim restringido à questão da data do início da aplicação dos juros e da respectiva taxa legal aplicável, o que nos permite indicar como valor da apelação o montante de € 19,323,70; 2. O Recorrido nunca negou que solicitou os serviços e que os mesmos foram prestados pela Recorrente, os quais até admitiu judicialmente dever (fls.12 e 13 da douta sentença e vide doc. 5 Junto à pi„ incluindo-se douta sentença proferida por tribunal cível), tendo ainda ficado provado que tais serviços eram facturados após requisição escrita que nunca foi emitida pelo Recorrido (fls. 12 e 13 da douta sentença), não se sabendo se este observou quaisquer regras relativas a procedimento prévio, que lhe caberia eventualmente desencadear e observar, para a contratação dos serviços e os valores em causa e, ainda que não as tivesse observado, os serviços não atingem os valores previstos nas diversas alíneas do n.° 1 do art. 17°do referido DL na versão aplicável à data dos factos, nem tampouco a prestação de serviços carecia de forma escrita (al. a) do art. 59.° do mesmo diploma), sem prejuízo ainda, neste particular, de todas as comunicações (máxime folhas diárias dos trabalhos assinadas) entre as partes e juntas aos autos consubstanciarem uma proposta, uma aceitação e um preço, o que, na realidade, se traduz num contrato escrito; 3. Por outro lado, o disposto no art. 15,° do mesmo diploma previa que as entidades, funcionários e agentes podiam ser responsabilizados civil, financeira e disciplinarmente pela prática de actos que violem o que no mesmo estava consignado, o que pressupõe que os direitos e interesses legítimos de terceiros, tal o caso da Recorrente, que nada tem a ver com o modo de actuação interna da administração pública, não podem ser prejudicados, não cabendo ainda à Recorrente, por outro lado, qualquer dever de fiscalização sobre os actos de gestão pública; 4. Recorrido que, aliás, refere nos pontos 44.º e 45.º da sua douta contestação que “Não conseguiu o R. apurar o autor da ordem efectiva da contratação da A. para preparação das mudanças de edifícios e após essas mudanças”; “ Pelo que foi instaurado inquérito disciplinar a fim de apurar responsabilidades nesse âmbito”, embora admita igualmente que os “....serviços foram solicitados à empresa T...,Lda, como era hábito à data fazer-se em relação a este tipo de serviços e constituía uma prática reiterada anterior, recorrendo-se a esta empresa por ser bastante disponível para fazer serviços pedidos de um dia para o outro" (ponto 41 da douta contestação); 5. Assim sendo se percebe que a definição dos serviços era feita pelo Recorrido e, quer pela via da responsabilidade contratual, quer pela via da nulidade, e com o máximo respeito pela douta decisão parcialmente sindicada, há que contabilizar juros de mora desde o momento da interpelação para o pagamento da obrigação e até ao efectivo cumprimento; 6. Ainda entendemos não existir prova de facto nos autos sobre a violação por parte do Recorrido de qualquer procedimento (formalidades essenciais do acto de adjudicação, designadamente as atinentes à consulta prévia (art. 7.°, n.° 1 e 81° do DL 197/99, de 8 de Junho) e, mesmo concedendo em tal putativa violação, a mesma é inoponível aos direitos legítimos da Recorrente, tanto mais que o Recorrido assume os trabalhos, o modo da sua prestação, alegando apenas desconhecer quem os solicitou e que terá sido aberto um putativo processo disciplinar interno, factos que não são da lavra da Recorrente e por força dos quais não pode ser prejudicada. 7. O contrato, seguindo o raciocínio exposto na douta sentença, ainda que no âmbito de hipotética nulidade, não elimina o direito às prestações efectuadas nem, dizemos nós, à perda de capital resultante de tais prestações, a qual é consubstanciada legalmente sobre a forma de juros de mora (art. 559.°do Código Civil), devidos desde o dia da constituição em mora (art.º 806.º, nº 1 do CC), o qual se reporta ao momento em que o devedor foi judicial ou extrajudicialmente interpelado para pagar (art. 805.°do CC), revestindo a natureza de juros legais (art. 806.°, n.° 1 do CC) que podem ser civis ou comerciais, conforme o tipo de relação estabelecida entre as partes. 8. Resulta claramente dos autos sobre a forma dos instrumentos numerados como documentos n.°s 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 (não impugnados, incluindo-se uma decisão judicial) e da alegação, não contestada, inclusa no ponto 19.° da petição inicial, que existiram diversas interpelações para pagamento e, consequentemente, a contagem dos juros deve iniciar-se, peio menos, desde 1.1.2004 relativamente aos serviços prestados em 2003 (€ 2.301,00 S/IVA) e de 1.1.2005 relativamente aos serviços prestados em 2004 (€ 21074,00 S/IVA), sendo a taxa aplicável a que resulta dos diversos diplomas legais que regulam as taxas de juros de natureza comercial (devidamente indicadas no corpo do presente recurso), isto porque a Recorrente é uma empresa privada e agiu no âmbito da sua actividade comercial, (art. 2.° do Código Comercial então em vigor e art, 4.° do DL n.° 32/2003, de 17/2 na versão à altura dos factos); 9. Nos termos e para os efeitos do disposto no art, 639.° do CPC, entendemos que houve errada interpretação dos art.°s 805.°, 806.°, n.° 1 do CC, do art. 1° da Lei 3/2010 (qual se reporta ao momento em que foi judicial ou extrajudicialmente interpelado para pagar (art. 805,° do CC), do art. 2.° do Código Comercial então em vigor e do art, 4.°, n.° 1 do DL n.º 32/2003, de 11/2 na versão então vigente, sendo que a correcta interpretação e concatenação de tais preceitos implica não haver motivos para a restrição da aplicação de juros de mora apenas desde a citação e, por outro lado, tais juros a aplicar deverão ser os legalmente estabelecidos para as operações mercantis, donde, por força de tal entendimento, modesto, mas por nós pugnado, deve o Recorrido ser condenado a pagar à Recorrente não só o capital em dívida, como a quantia de € 19.323,70 devida a titulo de juros de mora devidos desde as datas já indicadas, à qual acrescerá ainda a quantia relativa aos juros de mora vincendos, à taxa comercial, desde a data em que foi proferida a douta sentença em primeira instância e até efectivo e integral pagamento.” Igualmente inconformado, o réu interpôs recurso da sentença, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: “1º Os pontos 1., 5. e 6. da Base Instrutória, correspondentes aos factos provados na douta sentença recorrida 12. e 16. foram incorrectamente julgados, face aos seguintes meios de prova: a) Testemunha A… (Cfr. Acta de 02 de Julho de 2013, com depoimento gravado conforme registo informático 000000 a 004109-horas: 10:45:23); b) Testemunha M… (Cfr. Acta de 02 de Julho de 2013, com depoimento gravado conforme registo informático 010639 a 013913 - horas: 11:57:51); c) Documentos n° 7, 8 e 10 juntos aos autos a 12 de Julho de 2013. 2º A resposta aos pontos 1 e 5. deveria, no nosso ver, atenta a causa de pedir da A. — pagamento de serviço de transportes, ter sido: “Não provado. Provado apenas que em Fevereiro de 2003, o ICNB, I.P., solicitou à A. a prestação de serviços de mudanças e arrumos de livros a que se referem os documentos constantes de fls. 44 52 dos autos, tendo o A. cedido pessoal ao ICNB, I. P..”. 3º Quanto ao ponto 6. “a resposta deveria ter sido\ “Provado que quanto aos meses de Fevereiro e Março de 2004 foi pago pelo R. à A. a quantia de 5.391,306, tendo ficado por apurar qual o valor concreto referente ao mês de Abril de 2004.”. 4º A falta do procedimento contratual e carência absoluta de forma legal, bem como o fraccionamento da despesa determinam a nulidade dos actos praticados, por preterição de formalidades essenciais, nos termos do n.° l do art. 7o do Decreto-Lei n.°197/99, de 08 de Junho, art. 133° do Código de Procedimento Administrativo, aplicável subsidiariamente à contratação pública, ex vi art. 206° do Decreto-Lei n.° 197/99, de 08 de Junho, como bem decidiu a decisão recorrida. 5º Pelo que, a sentença aqui objecto de recurso decidiu bem, quando decidiu que adjudicação e o contrato aqui em causa são nulos. 6º Mas, com todo o devido respeito, não decidiu correctamente quando decidiu condenar o R. a pagar à A. a quantia peticionada, não tendo decidido bem quando decidiu que à nulidade do contrato se aplicava o disposto no artigo 289° do Código Civil. 7º O contrato de prestação de serviços aqui em causa, é nulo, sendo que, nos termos do art. 134° do Código de Procedimento Administrativo, o acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos ab initio. 8º Contrato esse com objecto passível de acto administrativo, face ao disposto no artigo 178° n° 1 e n° 2 alínea h) do Código do Procedimento Administrativo. 9º Pelo que, tal regime do artigo 289° do Código Civil fica expressamente afastado por força do disposto no artigo 185° n° 3 alínea a) do Código do Procedimento Administrativo. 10º E estando em causa um enriquecimento ilegítimo baseado num contrato nulo, poder-se-ia, no limite, ter aplicado o instituto do enriquecimento sem causa - cfr. artigos 473° e seguintes do Código Civil, sendo que, nos termos do artigo 482° do mesmo diploma, o direito à restituição por enriquecimento já se encontra prescrita (mesmo à data da instauração da presente acção). 11° E que, a interpretação corroborada na decisão recorrida acaba por constituir uma convalidação do contrato declarado nulo, pois não obstante ter declarado a nulidade do mesmo, extrai efeitos de um contrato válido, nomeadamente, quanto ao valor a pagar. 12° Por outro lado, conforme se verificou, houve um pagamento do recorrente à recorrida relativamente a um dos meses peticionados. 13° Pelo que, não se conseguiu apurar o preço correcto. 14° E, como tal valor não se conseguiu apurar, jamais o recorrente pode ser condenado num valor que seria o correspondente ao valor das hipotéticas facturas, que seria o correspondente aos trabalhos realizados, com margem de lucro, naturalmente. 15º E tal corresponde aos efeitos de um contrato válido, com o qual não se concorda. 16° Sendo que não pode ser o R. condenado nos juros, mesmo que apenas devidos a partir da citação, pois a citação também não veio definir e concretizar a situação de modo a que o R. pudesse liquidar quaisquer valores à A.. 17° Pelo que, a nulidade do procedimento neste caso geraria a possibilidade de pagamento de indemnização por responsabilidade civil extra contratual ou por enriquecimento sem causa o que aqui se rejeitam, ambas, mas por mera cautela de patrocínio, se diz que a ser assim, as mesmas encontram-se prescritas pois já decorreram mais de três anos sobre a prestação de serviços - quer pelo Decreto- Lei n° 155/92 -artigo 34° n° 3, quer pela Lei n° 67/2007 - artigo 5o, quer pela anterior lei que foi revogada por esta - Decreto n° 48051, de 21 de Novembro de 1967 , quer pelos artigos 482° e 498° do Código Civil. 18° Violou, assim, a decisão recorrida, o disposto nos artigos 134°, 178° e 185°, todos do Código do Procedimento Administrativo, artigo 34° n° 3 do Decreto- Lei n° 155/92, artigo 5o da Lei n° 67/2007 e ainda artigos 482° e 498° do Código Civil, tendo aplicado erradamente o artigo 289° do Código Civil.” A recorrida ICNB, IP, apresentou contra-alegações, formulando as conclusões que se transcrevem: “1º A decisão recorrida não merece qualquer reparo ou censura, quanto às questões que a recorrente T...,LDA. pretende ver analisadas no seu recurso. 2º Por aplicação e conjugação do disposto nos artigos 212°, 289° e 1269°, todos do Código Civil, no caso de declaração de nulidade, o adquirente, aqui Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P., por estar de boa fé, apenas é obrigado a pagar a retribuição por serviços prestados, só se tendo constituído em mora após a citação. 3º Decorre da Lei n.º 3/2010, que dispõe no seu artigo 1.º “1 – O Estado e demais entidades públicas, incluindo as Regiões Autónomas e as autarquias locais, estão obrigados ao pagamento de juros moratórios pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pecuniária, independentemente da sua fonte. 2 – Quando outra disposição legal não determinar a aplicação de taxa diversa, aplica-se a taxa de juro referida no n.º 2 do artigo 806.º do Código Civil.” 4º Não estando o contrato de prestação de serviços especialmente regulada no Código Comercial, antes no Código Civil, deve-se aplicar o regime previsto no Código Civil, designadamente no que concerne à taxa dos juros de mora devidos pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. 5º A isto acresce referir que, embora o recorrido Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. seja uma entidade pública, não pratica actos de comércio e, neste contrato aqui em causa, actua como mero consumidor, e, por isso, o contrato celebrado está excluído do âmbito de aplicação do citado Decreto-Lei n° 32/2003, ou seja, a relação estabelecida entre as partes é, por isso, civil e assim devem ser os juros devidos 6º Nesta medida não enferma a douta sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa dos vícios que lhe são assacados, tendo o Tribunal apreciado correctamente os factos, bem assim subsumido em simultâneo de forma adequada e sagaz aos mesmos, o Direito aplicável, no que se refere às duas questões aqui em causa, e ponderando uma hipotética, mas pouco provável, improcedência do recurso instaurado pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P.” Perante as conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir: - do erro de julgamento quanto à data do início da aplicação dos juros e da respetiva taxa legal aplicável, devendo ser contabilizados juros de mora desde o momento da interpelação para o pagamento da obrigação e até ao efetivo cumprimento (recurso da autora); - do erro de julgamento de facto quanto aos pontos 12 e 16 do probatório (recurso do réu); - do erro de julgamento quanto à aplicação do artigo 289.º do Código Civil à nulidade do contrato, por força do disposto no artigo 185.º, n.º 3, al. a), do Código do Procedimento Administrativo, sendo que a responsabilidade civil extracontratual e o direito à restituição por enriquecimento já se encontram prescritos (recurso do réu); - do erro de julgamento quanto à condenação em juros (recurso do réu). Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * II. FUNDAMENTOS II.1 DECISÃO DE FACTO Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos: 1. A Autora, T...,Lda., é uma sociedade por quotas que tem por objecto o serviço de camionagem de carga e de transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros (alínea A) dos Factos Assentes). 2. Em data não determinada entre Março e Abril de 2004, o R. solicitou à A., directamente e sem qualquer procedimento contratual, os serviços para embalamento de pastas e documentos em caixotes e posteriormente à mudança a retirada desses documentos e pastas e arrumação dos mesmos nas estantes ou em locais de arquivo próprio (alínea B) dos Factos Assentes). 3. O Réu não emitiu a requisição formal dos serviços prestados pela Autora (alínea C) dos Factos Assentes). 4. As quantias em causa peticionadas pela A. não foram facturadas (alínea D) dos Factos Assentes). 5. Em 19/11/2004, foi remetido pela Autora ao Réu, o instrumento constante a fls. 18 e 19 dos autos, o qual se dá por integralmente reproduzido, onde consta o seguinte: « (...) Exmo. Senhor, Vimos por este meio informar que a empresa presta serviços quer de mudanças quer de cedência de pessoal para o vosso serviço há alguns anos, pelo que sempre atendemos aos vossos pedidos de forma imediata. Todos os trabalhos por regra são solicitados por telefone e de imediato ou para o dia seguinte será efectuada a cedência do pretendido, ficando a nossa empresa à espera da respectiva requisição para posteriormente ser facturado. O que acontece é que temos à espera de requisição alguns serviços realizados durante o ano de 2003 e 2004, conforme em baixo descrevo, na qual depois de muitos contactos telefónicos com a Da M…, não temos resolução para os mesmos.
Todos estes trabalhos efectuados em 2003 têm o conhecimento da Dra M…. Quanto aos trabalhos efectuados em 2004, foram solicitados por a Dra A… e teve lugar à cedência de 2 homens para trabalhos nas instalações de 1-04-2004 a 30-10-2004, pelo que até esta data ainda não temos conhecimento da requisição para posterior facturação, atendendo que temos 7 meses de trabalho para facturar, a nossa empresa não consegue suportar tal, daí os vários contactos quer com a Da A… quer com a Da m…, mas sem êxito, pois a resposta é sempre que o assunto está no Departamento Financeiro e que não há ordem para passar requisição. Face ao exposto e à antiguidade dos trabalhos em questão pedimos a Exm. Senhor uma resolução para este assunto (...)»; (alínea E) dos Factos Assentes). 6. Em 11/07/2005, foi enviado pela Autora ao Réu, o instrumento constante a fls. 20 a 22 dos autos, o qual se dá por integralmente reproduzido, onde consta o seguinte: «(...) «Imagem no original» (...)»; (alínea F) dos Factos Assentes).7. Em 14/12/2005, foi remetido pela Autora ao Réu, o instrumento constante a fls. 23 a 25 dos autos, o qual se dá por integralmente reproduzido, e onde constam os serviços prestados pela Autora ao Réu em 2003 e 2004 (alínea G) dos Factos Assentes). 8. Em 14/12/2005, a A. dirigiu ao Presidente do ICNB, I.P, o instrumento constante a fls. 26 a 30 dos autos, o qual se dá por integralmente reproduzido, e onde constam os serviços prestados pela Autora ao Réu em 2003 e 2004 (alínea H) dos Factos Assentes). 9. Em 03/07/2006, foi remetido pela Autora ao Réu, o instrumento constante a fls. 31 a 32 dos autos, o qual se dá por integralmente reproduzido, e onde consta o seguinte: «(...) Exmo. Senhor, Vimos por este meio, mais uma vez, visto que as cartas anteriormente enviadas não tiveram qualquer resposta e os telefonemas efectuados não surtiram nenhum efeito, dar conhecimento a V.Exa da nossa situação perante o organismo que V.Exa preside. Prestamos serviço ao ICN há uma larga dezena de anos e sempre nos deparamos com algumas demoras na emissão das requisições, no entanto, de há uns anos para cá a situação tem vindo a agravar-se. Estamos em 2006 e ainda temos por facturar, serviços prestados em 2003 e 2004. (...) Serviços prestados no ano de 2003 (solicitados por o Sr. R… e pela Dra M…)
Serviços prestados no ano de 2004 (solicitados e acompanhados por a Dra A…)
(alínea I) dos Factos Assentes). 10. Em 09/03/2007, o Réu remeteu a C…, na qualidade de mandatários da A., o instrumento constante a fls. 38 dos autos, o qual se dá por integralmente reproduzido, onde consta o seguinte: «(...) Em resposta a V/ solicitação de pagamento a V/ Cliente identificado em assunto por alegadas dívidas no âmbito de uma sua prestação de serviços que terá tido lugar em 2003 e 2004 somos a informar de que não poderemos dar lugar a quaisquer pagamentos por serviços prestados sem adequada prévia identificação do contrato em causa e facturação dos créditos dele decorrentes. Uma vez que até à data não nos foi entregue qualquer documento nesse sentido, solicitamos a Vas Exas queiram providenciar junto da V/ Cliente pela obtenção de elementos, os quais, após darem entrada nos N/Serviços, obterão o tratamento e resposta impostos por lei. (...)»; (alínea J) dos Factos Assentes). 11. . Dão-se por integralmente reproduzidos os documentos constantes a fls. 44 a 127 dos autos, emitidos pelo Réu, que indicam o dia, o número de homens, a duração dos trabalhos e o local do mesmos, dos quais constam as assinaturas de “C…”, “R…”, “A…”, “M…” e “M…” (alínea K) dos Factos Assentes). 12. Em Fevereiro de 2003, o ICNB, I.P., solicitou à A. a prestação de serviços a que se referem os documentos constantes a fls. 44-52 dos autos (resposta ao facto l.°). 13. Os serviços referidos em 12) foram solicitados pelos seguintes funcionários do Réu, Sr. R…, e Sra. Dra. M…, e acompanhados pelo Sr. C…, igualmente funcionário do R. (resposta ao facto 2.°). 14. E tiveram lugar na Rua F…, n.° 29 em Lisboa (resposta ao facto 3.°). 15. valor dos serviços prestados pela A. ao R. em 2003 ascendeu ao montante de 2.301,00€, acrescido de IVA (resposta ao facto 4.°). 16. valor dos serviços referidos em B) e K) ascendeu ao montante de 21.074,006, acrescido de IVA. (resposta aos factos 5.° e 6.°). 17. Os serviços prestados eram facturados após requisição escrita por parte do R. (resposta ao facto 7.°).” * II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO Conforme supra enunciado, as questões a decidir cingem-se a saber se: - ocorre erro de julgamento quanto à data do início da aplicação dos juros e da respetiva taxa legal aplicável, devendo ser contabilizados juros de mora desde o momento da interpelação para o pagamento da obrigação e até ao efetivo cumprimento (recurso da autora); - ocorre erro de julgamento de facto quanto aos pontos 1, 5 e 6 da Base Instrutória, correspondentes aos factos 12 e 16 do probatório (recurso do réu); - ocorre erro de julgamento quanto à aplicação do artigo 289.º do Código Civil à nulidade do contrato, por força do disposto no artigo 185.º, n.º 3, al. a), do Código do Procedimento Administrativo, sendo que a responsabilidade civil extracontratual e o direito à restituição por enriquecimento já se encontram prescritos (recurso do réu); - ocorre erro de julgamento quanto à condenação em juros (recurso do réu). Por precedência lógica, passar-se-á a conhecer do erro de julgamento de facto (recurso do réu) do erro de julgamento quanto à aplicação do artigo 289.º do Código Civil à nulidade do contrato (recurso do réu) e dos erros de julgamento quanto à condenação em juros (recurso do réu) e data do início da aplicação dos juros e da respetiva taxa legal aplicável (recurso da autora). a) do erro de julgamento de facto (recurso do réu) Nesta sede, sustenta a recorrente o seguinte: Os pontos 1, 5 e 6 da Base Instrutória, correspondentes aos factos provados 12 e 16 da sentença recorrida, foram incorretamente julgados, face aos depoimentos das testemunhas A… e M…, e aos documentos 7, 8 e 10 juntos aos autos a 12/07/2013, nos seguintes termos: - a resposta aos pontos 1 e 5 deve ser ‘Não provado. Provado apenas que em fevereiro de 2003, o ICNB, I.P., solicitou à A. a prestação de serviços de mudanças e arrumos de livros a que se referem os documentos constantes de fls. 44/52 dos autos, tendo o A. cedido pessoal ao ICNB, I. P.’; - a resposta ao ponto 6 deve ser ‘provado que quanto aos meses de fevereiro e março de 2004 foi pago pelo R. à A. a quantia de 5.391,306, tendo ficado por apurar qual o valor concreto referente ao mês de Abril de 2004’. Dispõe como segue o artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe ‘ónus a cargo da recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto’: “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve a recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe aa recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões da recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”. Daqui decorre que, ao impugnar a matéria de facto em sede de recurso, recai sobre a recorrente o ónus de indicar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e (ii) os concretos meios probatórios que impõem decisão distinta, mais devendo identificar precisa e separadamente os depoimentos caso se trate de meios probatórios gravados. E cabe-lhe alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também porque motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem se considere provado determinado facto. Há que ter ainda em consideração que é em função da definição do objeto do processo e das questões a resolver nos autos que deve ser apreciada a relevância da matéria fáctica alegada pelas partes. Assim, nem toda a matéria fáctica que se possa considerar provada deve ser levada, sem mais, ao probatório. E como é consabido, os factos respeitam à ocorrência de acontecimentos históricos, afastando-se de tal qualificação os juízos de natureza valorativa, que comportam antes conclusões sobre factos. Outrossim, deve ter-se em consideração que no novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, se optou por reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, incrementados os respetivos poderes e deveres, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material, conforme consta da exposição dos motivos e se consagra no atual artigo 662.º, n.º 1, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Isto sem que, nesta reapreciação, especificamente quando se trate de analisar a gravação dos depoimentos prestados em audiência, como ocorre no caso, se olvide a livre apreciação da prova obtida em primeira instância, assente nos princípios da imediação e da oralidade, cf. artigos 396.º do Código Civil e 607.º, n.º 5, do CPC. Perante as alegações de recurso, afigura-se que a recorrente cumpriu os ónus que sobre si impendiam. No que concerne aos pontos 1 e 5 da base instrutória, deu-se como assente o seguinte: - provado que em fevereiro de 2003, o ICNB, I.P., solicitou à A. a prestação de serviços de mudanças e arrumos de livros a que se referem os documentos constantes de fls. 44/52 dos autos; - provado o que consta dos pontos B) e K) dos factos assentes. Consta destes pontos o seguinte: - em data não determinada entre março e abril de 2004, o R. solicitou à A., diretamente e sem qualquer procedimento contratual, os serviços para embalamento de pastas e documentos em caixotes e posteriormente à mudança a retirada desses documentos e pastas e arrumação dos mesmos nas estantes ou em locais de arquivo próprio; - dão-se por integralmente reproduzidos os documentos constantes a fls. 44 a 127 dos autos, emitidos pelo Réu, que indicam o dia, o número de homens, a duração dos trabalhos e o local dos mesmos, dos quais constam as assinaturas de “C…”, “R…”, “A…”, “M…” e “M…”. Como é bom de ver, as indicadas passagens dos depoimentos das testemunhas A… e M… em nada contraditam os apontados factos dados como assentes, sendo que a pretendida precisão relativa à cedência de pessoal se encontra naturalmente consumida pelo que se dá como assente quanto ao número de homens, duração dos trabalhos e local dos mesmos, constante dos documentos dados como integralmente reproduzidos. Vejamos então o que consta do ponto 6 da base instrutória o seguinte: - provado que o valor destes serviços ascendeu ao montante de € 21,074,00, acrescido de IVA. Ora, os documentos 7, 8 e 10 juntos aos autos a 12/07/2013 claramente não permitem infirmar esta realidade, antes retratam apenas uma parte dela. Conforme consta da motivação expendida no despacho saneador, a prova do citado facto assenta na conjugação dos depoimentos das testemunhas A… e M… com os documentos de fls. 53/127, permitindo apurar o número de horas de trabalho prestadas, por cada trabalhador, em cada dia, sendo que o documento de fls. 383 permitiu aferir o valor do custo/hora de cada trabalhador, assim se chegando ao valor daqueles serviços. É, pois, patente a falta de razão do réu, pelo que tem de improceder a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. b) do erro de julgamento quanto à aplicação do artigo 289.º do Código Civil à nulidade do contrato (recurso do réu) Quanto à presente questão, consta da sentença recorrida o seguinte discurso fundamentador: “Aos contratos de prestação de serviços celebrados ao abrigo do Decreto-Lei n.° 197/99, de 8 de Junho, como contratos de direito privado que são, embora sujeitos a procedimentos pré-contratuais, por imposição de normas comunitárias, é-lhes aplicável o regime de invalidade do negócio jurídico previsto no Código Civil - cfr. artigo 185.°, n.° 3, alínea b) do Código do Procedimento Administrativo (CPA). No caso foram preteridas formalidades essenciais do acto de adjudicação, designadamente, as atinentes à consulta prévia - cfr. artigos 7.°, n.° 1 e 81.° do DL 197/99, de 8 de Junho, como a concorrência, transparência e a publicidade, pelo que, atento o estabelecido no artigo 133.°, n.° 1 do CPA, estamos em face de um contrato nulo, por preterição de formalidades essenciais precedentes do acto de adjudicação, que se transmitem ao contrato. Concluindo-se, assim, que, com fundamento na nulidade da adjudicação o contrato em causa é também nulo, sendo-lhe consequentemente aplicável o regime jurídico da nulidade. Nulidade essa que tem as consequências assinaladas no artigo 289.°, n.° 1 do Código Civil, ou seja, a declaração de nulidade do negócio jurídico tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Como se decidiu no acórdão do STA, proc. n.° 0397/07, de 30/10/2007, www.dgsi.pt., «Todavia, os contratos nulos de execução continuada, nos quais uma das partes beneficie do gozo de uma coisa ou de um serviço, como é o caso dos autos, “apresentam-se com algumas especificidades que não podem deixar de ponderar-se à luz do regime do art.° 289.° n.° 1 do C. Civil”, como se faz notar no ac. deste STA de 24.10.06, p.° 732/05, na mesma linha também do acórdão do STJ de 11.7.2002, p.° 03B484, aí citado, e que, na parte considerada relevante, transcreve. Escreve-se, com efeito, no referido acórdão deste STA, de 24.10.06, de 24.10.06, p.° 732/05: “O mesmo é dizer que o mecanismo do art. 289°/l do C. Civil, com eficácia ex tunc, na sua radicalidade, se não se neutralizarem os efeitos da nulidade em relação às prestações já efectuadas, não assegura a restituição de tudo o que foi prestado. Resultado este que não cumpre a teleologia do próprio preceito e que se aliado à inaplicação do instituto de enriquecimento sem causa, é de uma injustiça flagrante e impele o intérprete a procurar outra via para realizar a maior justiça possível (vide Karl Larenz, “Metodologia da Ciência do Direito”, p. 398). E é nessa busca da melhor solução que se enquadra a abordagem feita pelo acórdão do STJ de 2002.07.11, tirado num caso, com algumas semelhanças, por ser, também do domínio das relações obrigacionais duradouras e cuja argumentação, passamos a transcrever: (...) Poder-se-ia argumentar que pela eficácia retroactiva da declaração de nulidade (artigo 289.°, n° 1) tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado, ou produzido quaisquer efeitos, nessa medida se impondo inelutavelmente a restituição das aludidas importâncias solvidas em sua execução. Todavia, a nulidade, conquanto tipicizada pelos mais drásticos predicados de neutralização do negócio operando efeitos interactivos ex tunc, nem assim pode autorizar a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido. A celebração do negócio revela-o existente como evento e por isso não está ao alcance da ordem jurídica tratar o acto realizado como se este não houvesse realmente ocorrido, mas apenas recusar-lhe a produção de efeitos jurídicos que lhe vão implicados. Não é, por conseguinte, exacta a ideia de que, mercê da nulidade, tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés porque o contrato é algo que na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes. Pode na verdade suceder que os contraentes tenham efectuado prestações com fundamento no contrato nulo, ou posto em execução uma relação obrigacional duradoura, dando lugar à abertura de uma vocacionada composição inter-relacionai dos interesses respectivos - v. g., a sociedade desenvolveu normalmente as suas actividades comerciais, agindo e comportando-se os fundadores como sócios por determinado período de tempo, não obstante a nulidade do contrato social; sendo nulo o contrato de trabalho, todavia o trabalhador prestara efectivamente os seus serviços à entidade patronal. Neste conspecto - e ademais quando se pretenda estar vedado no domínio específico das invalidades o recurso aos princípios do enriquecimento sem causa pelo carácter subsidiário do instituto - observa-se estar hoje generalizado o entendimento segundo o qual deve o contrato nulo ser valorado, em semelhante circunstancialismo, e no que respeita ao desenvolvimento ulterior da aludida composição entre as partes (...) como «relação contratual de facto» susceptível de fundamentar os efeitos em causa (v. g., a remuneração do trabalho prestado no quadro do contrato laborai nulo por incapacidade negociai do trabalhador), encarados agora, não como efeitos jurídico- negociais de contrato inválido, mas na dimensão de efeitos (ex lege) do acto na realidade praticado. E, assim, tratando-se de relações obrigacionais duradouras, no domínio das quais, desde que em curso de execução, encontra em princípio aplicação a figura do «contrato de facto» - «contrato imperfeito» noutra terminologia; de «errada perfeição» (...) tudo se passará, nos aspectos considerados, como se a nulidade do negócio jurídico apenas para o futuro (ex nunc) operasse os seus efeitos.” Este entendimento converge, no essencial, com as posições de Rui Alarcão (in “A Confirmação dos Negócios Anuláveis”, I, Coimbra, 1971, pág. 76, nota 101) autor que considera que «a chamada restituição em valor virá, por vezes, a traduzir-se no respeito pela execução, entretanto ocorrida, do negócio» e de António Meneses Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, p. 874) que, a propósito, escreve: “Nos contratos de execução continuada em que uma das partes beneficia do gozo de uma coisa - como no arrendamento - ou de serviços - como na empreitada, no mandato ou no depósito - a restituição em espécie não é, evidentemente, possível. Nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. Isto é: sendo um arrendamento declarado nulo, deve o “senhorio” restituir as rendas recebidas e o “inquilino” o valor relativo ao gozo de que desfrutou e que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações restituitórias se extinguem, então, por compensação, tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroactiva, nestes casos.” Concordamos, inteiramente, com a ideia de que a eficácia ex nunc é a melhor solução. Na verdade, pelas razões expostas, a regra do art. 289.º do C. Civil, que como vimos, se aplicada com efeitos ex tunc no domínio dos contratos de execução continuada de serviços se mostra inadequada à sua própria teleologia, carece de uma restrição que permita tratar desigualmente o que é desigual, isto é, deve ser objecto de redução teleológica, (cfr. Karl Larenz, ob. cit, pp. 450/457) de molde a que, nos contratos de execução continuada em que uma das partes beneficie do gozo de serviços cuja restituição em espécie não é possível, a nulidade não abranja as prestações já efectuadas, produzindo o contrato os seus efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual esteve em execução, a exemplo do que, como afloramento da mesma ideia, está expressamente consagrado na nulidade, por equiparação, resultante da resolução dos contratos de execução continuada ou periódica (arts. 433.° e 434.72 C. Civil) e na nulidade do contrato de trabalho (art. 115.71 do Código do Trabalho).”. Concorda-se inteiramente com esta solução, pelo que, no caso em apreciação não vemos razão para divergir deste entendimento, devendo, assim, o Réu ser compelido a entregar à Autora a quantia de (€ 2.301,00+ € 21.074,00) = € 23.375 (vinte e três mil trezentos e setenta e cinco euros). Não obstante a Autora ter configurado a prestação de serviços em causa nestes autos, como uma situação de responsabilidade civil, regulada pelas disposições sobre o contrato de mandato nos artigos 1157.° e ss do Código Civil, não está o tribunal impedido de qualificar os factos de forma diferente e de julgar a pretensão por diferente fundamento jurídico1. Assim, com fundamento na nulidade do contrato em causa e não na responsabilidade civil, a obrigação de restituir configura-se nos estritos limites da restituição do que tenha sido prestado. Não tendo a Autora logrado provar que efectuou o pagamento do IVA, não está o Réu obrigado a restituir à Autora tal quantia peticionada a este título.” Ao que contrapõe a recorrente, em síntese: - o contrato de prestação de serviços é nulo e não produz quaisquer efeitos jurídicos, cf. artigo 134.º do CPA; - o disposto nos artigos 178.º, n.os 1 e 2, al. h), 185.º, n.º 3, al. a), do CPA, afasta a aplicação do regime do artigo 289.º do CCivil; - o direito à restituição por enriquecimento já se encontra prescrito; - não se apurando o valor em dívida, não pode ser condenado no valor das hipotéticas faturas, o que corresponderia aos efeitos de um contrato válido. Vejamos se lhe assiste razão. Por via da factualidade dada como assente sabemos que: - em fevereiro de 2003, o réu solicitou à autora a prestação de serviços a que se referem os documentos constantes a fls. 44/52 dos autos; - em data não determinada entre março e abril de 2004, o réu solicitou novos serviços à autora, diretamente e sem procedimento contratual ou requisição formal daqueles serviços; - foram juntos documentos emitidos pelo réu, dos quais conta o número de homens, a duração dos trabalhos e o local do mesmos, com assinaturas dos trabalhadores; - o valor dos serviços prestados pela autora ao réu em 2003 ascendeu ao montante de € 2.301,00, a que acresce IVA; - o valor dos serviços prestados pela autora ao réu em 2004 ascendeu ao montante de € 21.074,006, a que acresce IVA; - as quantias em causa não foram faturadas; - os serviços prestados eram faturados após requisição escrita por parte do réu; - em 19/11/2004, 11/07/2005, 14/12/2005 e 03/07/2006, a autora enviou comunicações ao réu, dando conta de serviços realizados em 2003 e 2004, indicando o respetivo valor e solicitando a resolução do assunto; - em 09/03/2007, o réu comunicou à autora que não podia pagar por serviços prestados sem adequada prévia identificação do contrato em causa e faturação dos créditos; Tal como se reconhece na decisão objeto de recurso, sem dissídio nesta parte do réu, aqui recorrente, aos serviços por este solicitados e comprovadamente prestados pela autora, era aplicável o Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de junho, que aprovou o regime jurídico de realização de despesas públicas e da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e serviços. E flui do exposto que os serviços em causa foram prestados sem obediência às regras ali prescritas, designadamente sem procedimento contratual ou requisição formal daqueles serviços. Assim, como não vem controvertido, foram preteridas formalidades essenciais do ato de adjudicação, designadamente a consulta prévia prevista nos artigos 7.º, n.º, 1, e 81.º do referido diploma legal, em violação da concorrência, da transparência e da publicidade a que estes procedimentos se encontram adstritos, pelo que estamos perante contrato nulo. O que desde logo igualmente decorria do disposto nos artigos 184.º do CPA/1991, na redação originária, e 220.º do CCivil. Sustenta o recorrente estarmos perante contrato administrativo com objeto passível de ato administrativo pelo que, por força do que então dispunha o artigo 185.º, n.º 3, al. a), do CPA/1991 (na redação do Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de janeiro), quedaria afastada a aplicação do regime do artigo 289.º do CCivil. Não lhe assiste razão. O pretérito regime de invalidade dos contratos distinguia efetivamente os contratos administrativos com objeto passível de ato administrativo e os contratos administrativos com objeto passível de contrato de direito privado. Sucede que os contratos de prestação de serviços celebrados ao abrigo do regime jurídico de realização de despesas públicas e da contratação pública configuravam-se como contratos de direito privado, não obstante serem sujeitos a procedimentos pré-contratuais, por imposição de normas comunitárias, como se reconhece na sentença recorrida. Porque assim é, tem aplicação ao caso o regime de invalidade do negócio jurídico previsto no Código Civil, por se enquadrar a presente situação na al. b) do citado artigo 185.º, n.º 3, e não na al. a). Tem, pois, inequívoca aplicação ao caso dos autos o regime da nulidade dos contratos previsto no artigo 289.º do CCivil. Ademais, trata-se de posição sustentada em jurisprudência consolidada do STA, veja-se o acórdão do Pleno de 18/02/2010 (proc. n.º 0379/07, disponível em www.dgsi.pt), do qual se respigam as seguintes conclusões: - no domínio da nulidade do contrato e do seu regime especial de restituição de tudo o que tiver sido prestado (art. 289º, nº 1 do C. Civil), está vedado o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste. - a declaração de nulidade do negócio jurídico tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado. (art.º 289.º, n.º 1 do C. Civil). - não sendo possível nos contratos de execução continuada a restituição da obra feita, a restituição em espécie, haverá, então, que condenar o réu no pagamento do valor correspondente à utilidade advinda da sua realização. E mais recentemente no acórdão proferido em formação alargada do STA de 04/05/2017 (proc. n.º 01209/16, disponível em www.dgsi.pt), com as seguintes conclusões, que para aqui relevam: - quem adere a um serviço, que sabe estar inscrito num tipo contratual definido ex lege como oneroso, não pode, em simultâneo, beneficiar dele e recusar a contrapartida pecuniária desse seu benefício. - face à primitiva redação do artigo 184.º do CPA era nulo o contrato administrativo não reduzido a escrito (artigo 220.º do CCivil); - à luz do artigo 289.º do CCivil, o beneficiário de um serviço já prestado, e não restituível, em execução de um contrato nulo deverá entregar à outra parte contratante o valor objetivo do serviço recebido; - esta solução é alheia ao teor de quaisquer princípios administrativos, bem como às regras ligadas à autonomia dos municípios ou ao cabimento orçamental. Posição igualmente seguida nos acórdãos deste TCAS de 02/04/2014, proferido no proc. n.º 07541/11, e de 28/02/2018, proferido no proc. n.º 6/14.2BEFUN (disponíveis em www.dgsi.pt). Não merece, pois, qualquer censura a aplicação ao caso dos autos do regime da nulidade dos contratos vertido no artigo 289.º do CCivil, com a restituição de tudo o que foi prestado ou, não sendo possível a restituição em espécie, o valor correspondente. c) do erro de julgamento quanto aos juros de mora (recursos da autora e do réu) Conforme já enunciado, entende a autora, ora recorrente, que se verifica erro de julgamento quanto à data do início da aplicação dos juros e da respetiva taxa legal aplicável, devendo ser contabilizados juros de mora desde o momento da interpelação para o pagamento da obrigação e até ao efetivo cumprimento. E isto porque resulta dos autos que existiram diversas interpelações para pagamento, implicando errada interpretação dos artigos 805.º, 806.º, n.º 1 do CC, e 1.º da Lei n.º 3/2010, e os juros a aplicar deverão ser os legalmente estabelecidos para as operações mercantis. Ao passo que o réu entende não haver lugar ao pagamento de juros, mesmo que apenas devidos a partir da citação, pois a citação também não veio definir e concretizar a situação de modo a que o réu pudesse liquidar quaisquer valores à autora. Vejamos então. Sabemos que a autora prestou serviços ao réu, por este previamente solicitados. Sabemos também que este não os pagou. Em conformidade com as conclusões dos recorrentes, a primeira questão é se dão devidos juros de mora. A segunda, em caso de resposta afirmativa à primeira, é desde quando. E a terceira é a da natureza dos juros devidos. Quanto à primeira questão, já aqui se concluiu que tem aplicação ao caso dos autos o regime da nulidade dos contratos vertido no artigo 289.º do CCivil, com a necessária restituição por parte da autora de tudo o que foi prestado ou, não sendo possível a restituição em espécie, o valor correspondente. Pelo que tem a autora de restituir ao réu o valor dos trabalhos por este realizados. Enquanto devedor, considera-se a autora constituída em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido, cf. artigo 804.º, n.º 2, do CCivil. Posto que, parafraseando o exposto no acórdão do STA de 17/12/2008, proc. n.º 301/08 (disponível em www.dgsi.pt), apreciando caso com evidentes semelhanças ao presente, concluídos os trabalhos, “é legal e justo que, ao abrigo da relação contratual de facto, se constitua, pelas mesmas razões, em favor de quem a executou a obrigação ao recebimento de quantias correspondentes a juros de mora a calcular como se estivéssemos perante um formal contrato”. São, pois, devidos juros de mora. Nada há aqui a apontar ao decidido na sentença sob recurso. Quanto à segunda questão, sabemos ainda que em 19/11/2004, 11/07/2005, 14/12/2005 e 03/07/2006, a autora enviou comunicações ao réu, dando conta dos serviços realizados, indicando o respetivo valor e solicitando a resolução do assunto. Comunicações que o réu, ora recorrido, não disputa ter recebido. Ora, indisputavelmente, tais comunicações configuram interpelações para pagamento, pelo que a primeira delas define o momento da constituição em mora do devedor, nos termos do disposto no artigo 805.º, n.º 1, do CCivil. Pelo que aqui haverá que revogar o decidido, devendo o réu ser condenado no pagamento dos montantes em dívida, acrescido de juros a contar da interpelação, nos termos do citado normativo legal. Já no tocante à terceira questão, temos que nos termos do artigo 559.º do CCivil, os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo são os fixados em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e das Finanças e do Plano – n.º 1. E a estipulação de juros a taxa superior à fixada nos termos do número anterior deve ser feita por escrito, sob pena de serem apenas devidos na medida dos juros legais – n.º 2. E quanto às obrigações pecuniárias, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, artigo 806.º, n.º 1, sendo os juros devidos os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal, artigo 806.º, n.º 2, do CCivil. Atenta a data dos factos aqui em causa, tem aplicação ao caso dos autos o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, que estabeleceu o regime especial relativo aos atrasos de pagamento em transações comerciais, transpondo a Diretiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de julho. Tal regime veio a ser alterado pela Lei n.º 107/2005, de 1 de julho, e pela Lei n.º 3/2010, de 27 de abril, e finalmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, que estabeleceu medidas contra os atrasos no pagamento de transações comerciais, transpondo a Diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011. Todavia, sem alteração quanto à natureza da taxa de juros devida. O artigo 3.º, al. a), do D-L n.º 32/2003, define transação comercial como qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respetiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração. E de acordo com o respetivo n.º 4, os juros aplicáveis aos atrasos de pagamento das transações previstas neste diploma são os estabelecidos no Código Comercial. A Lei n.º 3/2010 veio prever no seu artigo 1.º o pagamento de juros de mora civis pelo atraso no cumprimento de quaisquer obrigações pecuniárias, mas apenas para as situações que não envolvessem transações comerciais, pelo que não tem aplicação ao caso. Igualmente já se notou que o D-L n.º 32/2003 veio a ser revogado pelo D-L n.º 62/2013, mas sem alteração quanto à taxa aplicável, prevendo o respetivo artigo 5.º, n.º 5, que os juros de mora legais aplicáveis aos atrasos de pagamentos das transações comerciais entre empresas e entidades públicas são os estabelecidos no Código Comercial. Nesta medida, estando em causa transação comercial entre empresa e entidade pública os juros a aplicar são os juros comerciais estabelecidos no Código Comercial. Neste sentido podem ver-se os acórdãos do STA de 05/04/2005, proc. n.º 09/04, de 18/10/2012, proc. n.º 0634/12, e de 13/09/2012, n.º 0753/12, e deste TCAS de 04/07/2019, n.º 437/14.8BELSB, de 19/01/2017, n.º 117/13.1BEFUN, e de 18/06/2020, proc. n.º 215/16.0BELLE (disponíveis em www.dgsi.pt). Será, pois, de conceder provimento ao recurso da autora, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o réu no pagamento de juros de mora contados à taxa anual de 4% e devidos desde a citação, e determinar a condenação do réu a pagar à autora a quantia de € 23.375,00, acrescida de juros de mora à taxa comercial e devidos desde 19/11/2004, até integral pagamento. E será de negar provimento ao recurso do réu. * III. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em: - conceder provimento ao recurso da autora, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o réu no pagamento de juros de mora contados à taxa anual de 4% e devidos desde a citação, e determinar a condenação do réu a pagar à autora a quantia de € 23.375,00, acrescida de juros de mora à taxa comercial e devidos desde 19/11/2004, até integral pagamento; - negar provimento ao recurso do réu. Custas do recurso da autora a cargo do recorrido. Custas do recurso do réu a cargo do recorrente. Lisboa, 20 de outubro de 2021 (Pedro Nuno Figueiredo) (Ana Cristina Lameira) (Catarina Vasconcelos) |