Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1306/19.0BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:11/09/2023
Relator:PAULA FERREIRINHA LOUREIRO
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
ILEGITIMIDADE ATIVA
INTERESSE PROCESSUAL
ADJUDICAÇÃO E CELEBRAÇÃO DE AQ
DEFESA DE DIREITOS DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL
Sumário:I- Estando em discussão um procedimento de concurso público com vista à celebração de “Acordo-Quadro para Fornecimento de Medicamentos Diversos, às Instituições e Serviços do Serviço Nacional de Saúde”, e tendo sido adjudicados às ora Recorrentes os lotes n.ºs 398, 399 e 400, não se descortina qual a vantagem que as Recorrentes retiram da impugnação de um ato que lhes é francamente favorável.

II- Aliás, esta manifestação de vontade em obter a invalidação da adjudicação que lhes foi dirigida é, ela própria, incompatível com a participação das Recorrentes no procedimento concursal para a celebração do Acordo-Quadro, pois que as Recorrentes ou estão interessadas em contratar, ou não estão interessadas em contratar. Não é admissível que, num momento, manifestem a vontade de contratar e, noutro, sem que ocorra, entretanto, qualquer tipo de alteração procedimental, tentem impedir a celebração do contrato.

III- É que, a anulação do ato adjudicatório, por ilegalidade das peças concursais, arrasta, em princípio, a destruição de todo o procedimento concursal com vista à celebração do Acordo-Quadro, pelo menos quanto aos lotes em discussão. O que quer dizer que as Recorrentes, com esta impugnação, apenas obliteram a sua chance de celebrar o contrato concursado e de se habilitarem a fornecer o medicamento que comercializam.

IV- Sendo assim, não é possível identificar, por banda das Recorrentes, um interesse direto, pessoal e legítimo que advenha da impugnação do ato adjudicatório para a sua esfera jurídica, pois que desta não retiram qualquer vantagem ou efeito positivo para a sua esfera jurídica. Por isso, as Recorrentes não possuem legitimidade ativa para a impugnação das peças procedimentais e do ato adjudicatório.

V- Acrescente-se que, as peças procedimentais do concurso com vista à celebração do Acordo-Quadro para fornecimento de medicamentos- especificamente no que toca aos lotes 398, 399 e 400-, não têm a capacidade de, por si só ou diretamente, afetarem os direitos de propriedade industrial das Recorrentes.

VI- Como se sabe, o procedimento concursal destinado à celebração de um Acordo-Quadro destina-se a selecionar futuros concorrentes, de futuros procedimentos, com vista à celebração de futuros contratos, disciplinando, desde logo, uma parte essencial da regulação dos futuros procedimentos e dos futuros contratos.

VII- Por conseguinte, tanto basta para concluir que a adjudicação às Recorrentes e à Recorrida, e a subsequente celebração do Acordo-Quadro a que respeita o procedimento nos presentes autos, não implicam, em bom rigor, o fornecimento do dito medicamente, admitindo-se até a hipótese de, durante a vigência do Acordo-Quadro, não serem celebrados os contratos de fornecimento visados no Acordo-Quadro.

VIII- Quer isto significar, portanto, que as peças do procedimento concursal para a celebração do Acordo-Quadro não possuem lesividade direta dos direitos de propriedade industrial convocados pelas Recorrentes. E porque tal assim é, nenhuma vantagem se retira imediatamente da presente ação para a defesa dos interesses das Recorrentes, pois que esta ação não se apresenta necessária à tutela daqueles direitos, sendo inevitável assumir que as Recorrentes não possuem interesse em agir.

Indicações Eventuais:Subsecção de CONTRATOS PÚBLICOS
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. RELATÓRIO
B………..-M……… …………… Company e B ………………. farmacêutica Portuguesa, S.A. (Recorrentes) vêm, na presente ação urgente de contencioso pré-contratual proposta contra SPMS- Serviços Partilhados do Ministério da saúde, E.P.E. e contra a contrainteressada S…………… Farmacêutica, Ld.ª (Recorridas), interpor recurso jurisdicional da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra em 16/01/2020, que em sede de despacho-saneador absolveu as Recorridas da instância por julgar procedentes as exceções de ilegitimidade ativa e de falta de interesse em agir.
Inconformadas, as Recorrentes interpuseram recurso, que culmina com as seguintes conclusões:
«A. Na medida em que a apreciação do Tribunal a quo se circunscreveu ao conhecimento das exceções dilatórias de ilegitimidade processual ativa e de falta de interesse em agir, constata-se que só por lapso, que aqui é manifesto, se redigiu, na parte da Decisão da Sentença recorrida, “absolve-se a Entidade Demandada e a Contra Interessada de todos os pedidos”, em vez de “absolve-se a Entidade Demandada e a Contra Interessada da instância”, como se impunha, nos termos do disposto no artigo 89.º/2 do CPTA;
B. Assim, e sem prejuízo do recurso de apelação que ora se apresenta, deverá a Sentença recorrida ser retificada nos termos supra enunciados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 614.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA;
C. Ao remeter, sem mais, para a figura do abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprio, na apreciação do pressuposto processual da legitimidade processual ativa, incorre a Sentença em crise numa falta de fundamentação que a inquina de nulidade nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º/1, alínea b), do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA;
D. Neste quadro, questionam-se as Recorrentes se, em algum momento no CP 2019/61 ou nos presentes autos, agiram em venire contra factum proprio; e se, não agindo, teria o Tribunal a quo concluído pela legitimidade processual ativa das Recorrentes. Pois que, nos termos do disposto no artigo 334.º do CC, o abuso de direito, de que a figura do venire contra factum proprio é manifestação, obsta ao exercício legítimo do direito em causa;
E. Não tivessem os Recorrentes agido, supostamente, em venire contra factum proprio, e já teriam legitimidade processual ativa para pedir a impugnação do ato de adjudicação e das Peças do Procedimento lesivas dos respetivos direitos de propriedade industrial e, como tal, ilegais? A subsistência destas dúvidas só demonstra a falta de fundamentação de que a Sentença padece, que impede o interprete de compreender o iter lógico que levou à conclusão a que se chegou – de suposta falta de legitimidade processual ativa das Recorrentes;
F. Donde se conclui que, por não fundamentada neste ponto, deverá a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser anulada, nos termos do 615.º/1, alínea b), do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA;
G. Na apreciação do pressuposto processual da legitimidade processual ativa – que, nos termos do disposto no artigo 55.º/1, alínea a), do CPTA, aplicável ex vi do artigo 101.º do mesmo Código, pressupõe um interesse direto e pessoal da parte, designadamente, por ter sido lesada pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos – há que ter presente que, no caso sub judice, e já nesta fase, as Recorrentes se sentem prejudicadas nos seus direitos de propriedade industrial pelo ato de adjudicação e Peças do Procedimento impugnados;
H. A apresentação de proposta ao Acordo-Quadro e a celebração do mesmo objeto do procedimento CP 2019/61 implica, por si e sem necessidade de atos ulteriores, a violação dos direitos de propriedade industrial associados à Patente LMC, de que as Recorrentes são titular e licenciada;
I. As Peças do Procedimento aqui em causa têm em vista a posterior adjudicação de contratos de fornecimento de Dasatinib, sem separar ou distinguir as indicações em cujo tratamento o Dasatinib fornecido será utilizado – sem separar designadamente, o Dasatinib para uso no tratamento da indicação LMC que é protegida por patente, por um lado, e o Dasatinib para uso no tratamento de outras indicações terapêuticas não protegidas por patente, por outro;
J. Na ausência desta separação, a adjudicação de contratos celebrados ao abrigo do Acordo Quadro e de acordo com as condições no mesmo previstas conduzirá, necessariamente, à compra e utilização de medicamentos distintos do Sprycel para utilização no tratamento de LMC, o que ilicitamente importa a violação da Patente LMC e viola, do mesmo passo, o SiNATS; o que as Recorrentes, titular e licenciada da Patente LMC, não podem consentir;
K. Mesmo que os efetivos fornecimentos e utilização do medicamento Dasatinib só venha a ocorrer posteriormente, com a adjudicação dos contratos de fornecimento ao abrigo do Acordo Quadro, a violação dos direitos de propriedade industrial é atual, tendo em conta a limitação às alterações das condições consagradas nos Acordos Quadro pelos contratos celebrados ao seu abrigo prevista pelo artigo 257.º, n.º 2 do CCP;
L. Uma limitação ulterior de certos contratos de fornecimento de Dasatinib, a celebrar ao abrigo do Acordo Quadro, ao tratamento de patologias abrangidas por patente, seria, como facilmente se compreende, uma alteração substancial – e, por isso, uma alteração proibida – do Acordo Quadro agora adjudicado: (i) primeiro, porque o Caderno de Encargos não admite, em lado algum, essa especificação de quantidades divididas por indicação terapêutica; (ii) segundo, porque implicaria, em princípio, que se cindissem lotes de dosagens de Dasatinib por indicação terapêutica, quando o Caderno de Encargos admite a constituição de lotes que agrupem mais do que uma substância ativa ou dosagem (vd. Cláusula 17.ª, n.º 3, al. d) e e)), mas não a divisão, por indicação terapêutica, de lotes que agrupem determinada substância ativa e dosagem; e (iii) terceiro, porque, se essa alteração constasse do Caderno de Encargos, ela alteraria a ordenação das propostas (pois apenas a BMS se qualificaria para fornecer Dasatinib para uso no tratamento de LMC nesse cenário);
M. Em suma, esta divisão posterior não seria legal, porque violaria o artigo 257.º, n.º 2, do CCP;
N. Porém, não se procedendo à referida divisão, saem lesados os direitos de propriedade industrial das Recorrentes;
O. A circunstância de as Recorrentes terem sido, também, adjudicatárias do Acordo Quadro em apreço não torna o ato de adjudicação, ou as Peças do Procedimento que estão na sua base, inteiramente favoráveis aos Recorrentes;
P. O ato de adjudicação representa, para as Recorrentes, um ato favorável, mas também desfavorável, lesivo de direitos e interesses legalmente protegidos das Recorrentes. O argumento que apenas vê, no ato de adjudicação praticado no presente procedimento, um ato favorável às Recorrentes, é falacioso, por assentar na presunção de que o único direito ou interesse legalmente protegido suscetível de ser lesado num procedimento pré-contratual é o interesse económico dos concorrentes preteridos;
Q. Apesar de adjudicatária do presente Acordo Quadro, a BMS é-o a par da Contrainteressada e Recorrida S......, que, por fornecer genéricos de Dasatinib, se perfilha para fornecer, nos procedimentos ao abrigo do Acordo Quadro, Dasatinib para uso em indicações protegidas pela Patente LMC, e Dasatinib para uso em indicações que não constam do Resumo de Caraterísticas do Medicamento (“RCM”) de Dasatinib S...... – e tudo por causa da forma como as peças do procedimento vêm configuradas, avalizadas pelo ato de adjudicação;
R. O venire contra factum proprio, enquanto modalidade do abuso de direito, sanciona o exercício contraditório do Direito. São seus pressupostos, firmados na doutrina e na jurisprudência dos tribunais superiores: (i) a existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; (ii) a imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; (iii) a boa fé do lesado (confiante); (iv) a existência de um “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium; e (v) o nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou;
S. No caso sub judice, não se descortina, todavia, qual foi o comportamento, supostamente contraditório, das Recorrentes que pudesse obstar ao exercício dos respetivos direitos da presente ação;
T. Pelo contrário. A postura da BMS ao longo de todo o procedimento pré-contratual foi o de defesa intransigente dos respetivos direitos de propriedade industrial;
U. A recondução do caso sub judice a um venire contra factum proprio, além de não fundamentada, como se viu, só demonstra uma errónea perceção do objeto do litígio, do que está realmente em causa – assegurar que os procedimentos de contratação pública, em particular o Procedimento CP 2019/61, estão organizados de uma forma que reconheça e permita o cabal exercício dos direitos conferidos pela Patente LMC;
V. Tendo em consideração o objeto do presente litígio, é, assim, evidente que as Recorrentes têm um interesse direto e pessoal no mesmo, o que é explicado pela flagrante violação dos respetivos direitos de propriedade industrial. Donde, se conclui que andou mal o Tribunal a quo, ao negar a legitimidade processual ativa das Recorrentes na presente ação;
W. A respeito do pressuposto processual do interesse em agir, tão pouco pode proceder a tese, vertida na Sentença em crise, que a circunstância de o direito de patente estar a ser discutido em sede arbitral esvaziaria a presente ação de contencioso pré-contratual de utilidade para as Recorrentes;
X. A presente ação de contencioso pré-contratual consiste, não na declaração do direito de propriedade industrial das Recorrentes ou na apreciação da conformidade do medicamento genérico da S...... com o direito de patente das Recorrentes, mas, sim, na apreciação da legalidade de dois instrumentos jurídicos da lavra da SMPS;
Y. Portanto, está em causa, nos presentes autos, tão-somente, a apreciação da legalidade das peças do procedimento e do ato administrativo de adjudicação inseridos no procedimento pré-contratual lançado pela SPMS, na qualidade de entidade adjudicante, para a seleção de cocontratantes para o Acordo Quadro que permitirá o fornecimento de medicamentos diversos às instituições e serviços do Serviço Nacional de Saúde;
Z. A presente ação de contencioso pré-contratual não tem o propósito de obrigar outros concorrentes, designadamente a S......, a respeitar a Patente LMC;
AA. O seu propósito é assegurar que a SPMS conduz os seus procedimentos de aquisição de modo a que estes sejam sensíveis à indicação terapêutica LMC, protegida por patente, a Patente LMC: deste modo, a Patente LMC seria protegida nesses procedimentos, e a adjudicação de contratos de fornecimento, bem como o fornecimento e a prescrição de Dasatinib, seriam coerentes com o direito fundamental conferido pela Patente LMC;
BB. Isto, independentemente de qual venha a ser o desfeche na ação arbitral – até porque, como facilmente se compreende, a Recorrida SPMS não é parte no referido processo de arbitragem, pelo que nunca poderia ser alvo de qualquer condenação, designadamente, de retificação/reformulação das Peças do Procedimento, no acórdão arbitral que venha a ser proferido;
CC. A utilidade da presente ação, para as Recorrentes, é assegurar que as compras de Dasatinib do SNS são congruentes com os direitos de propriedade industrial e com as indicações terapêuticas consagradas no RCM dos medicamentos;
DD. De tal modo que só a BMS possa licitamente fornecer Dasatinib para uso na indicação LMC, proteção essa que é assegurada pela patente LMC, e apenas consta do RCM de Sprycel, o medicamento contendo Dasatinib da BMS;
EE. Ao contrário do que tem sustentado a SPMS, a separação dos contratos por indicação terapêutica em sede de execução do Acordo Quadro – nos procedimentos para adjudicação 30 de contratos ao seu abrigo – seria mesmo, como se viu, uma alteração substancial e, por isso, proibida, do Acordo Quadro;
FF. O interesse em agir das Recorrentes não pode ser aferido no pressuposto de que a lei não será cumprida – designadamente, através de uma alteração substancial do Acordo Quadro –, ou de que algo vai mudar;
GG. O interesse deve ser aferido no pressuposto, mais plausível e consistente com a lei, de que os contratos de fornecimento a adjudicar ao abrigo do Acordo Quadro vão refletir os termos e condições que ele predeterminou
HH. Neste pressuposto, as Recorrentes têm interesse em impedir que tais termos e condições se consolidem, na medida em que essa consolidação resultará, inequivocamente, na violação da patente LMC, e do SiNATS;
II. Por tudo quanto ficou exposto, é inequívoca a utilidade da demanda no caso concreto: sem ela, não podem as Recorrentes evitar prejuízos de maior com a violação de vinculações legais e a violação do seu direito de patente, que, neste momento, é real e efetiva;
JJ. Obrigar as Recorrentes a aguardar por uma situação de facto consumado, de produção de prejuízos de difícil reparação, para poderem fazer valer os seus direitos de propriedade industrial, consubstanciaria um verdadeiro atentado ao direto à tutela jurisdicional efetiva que é pedra toque num Estado de Direito;
KK. Por tudo quanto ficou exposto, conclui-se que, também relativamente à apreciação do pressuposto processual do interesse em agir, andou mal o Tribunal a quo, não restando dúvidas quanto à utilidade da presente ação de contencioso pré-contratual para as Recorrentes, justificativa do respetivo interesse em agir.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão:
a) Deve o erro de escrita da Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser relevado, procedendo-se à respetiva retificação nos termos supra descritos;
b) Deve a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser anulada, por falta de fundamentação;
c) Deve o presente recurso de apelação ser julgado totalmente procedente, sendo a Sentença proferida pelo Tribunal a quo revogada e substituída por outra que julgue as exceções invocadas, de ilegitimidade processual ativa e interesse em agir, julgadas improcedentes, por não provadas, e conheça do mérito da ação.».
A Recorrida SPMS- Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E. (doravante, apenas SPMS) contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«A. Não é verdade que a sentença recorrida remeta, sem mais, para a figura do abuso de direito, donde a decisão judicial em apreço não se encontra ferida de nulidade, por falta de fundamentação.
B. Bem ao invés, a sentença recorrida explicita, de modo claro, que a ausência do pressuposto processual da legitimidade ativa advém do facto de a proposta de uma das Recorrentes ter sido adjudicada.
C. Não faz qualquer sentido sindicar a legalidade de um ato e de umas peças do procedimento que não lesam os interesses das Recorrentes.
D. A este propósito, o Tribunal a quo acrescenta que, no limite, as Recorrentes poderão impugnar os contratos que se venham a celebrar ao abrigo do Acordo-Quadro, porquanto só aí será efetivamente adquirido o Dasatinib.
E. Precisamente neste contexto, o julgador da causa refere que se a presente ação fosse apreciada e julgada procedente, o Tribunal estaria a legitimar uma situação de autêntico abuso de direito.
F. Nesse caso, as Recorrentes seriam beneficiadas por impugnar um ato que lhes é favorável, bem como umas peças que em nada afetam a sua esfera jurídica, com o único propósito de prejudicar a Recorrida (S......), e de a final obterem um procedimento reformulado à sua medida.
G. Ora, compreende-se perfeitamente o paralelismo entre exercer o direito de ação a coberto de uma pretensa, mas inexistente lesão, para o efeito obter um resultado mais favorável, mas ilegítimo, e o exercício abusivo de um direito.
H. Em qualquer caso, ainda que se concluísse que o abuso de direito não tem aqui aplicação, o desfecho do presente litígio seria exatamente o mesmo.
I. O presente procedimento pré-contratual visa a celebração de um acordo-quadro, tendo as propostas de uma das Recorrentes e da Recorrida (S......) sido adjudicadas.
J. Assim, conforme referido, as Recorrentes encontram-se a sindicar um ato que lhes é integramente favorável.
K. E nem se diga, como afirmam as Recorrentes, que o ato de adjudicação é lesivo no segmento em que adjudicou a proposta da Recorrida (S......).
L. Um acordo-quadro visa apenas selecionar os eventuais futuros fornecedores, bem como disciplinar as relações contratuais daí resultantes.
M. A escolha por si só de um fornecedor não afeta a esfera jurídica das Recorrentes, quando, sublinhe-se, a sua proposta também foi adjudicada.
N. Não é por mero efeito da existência das peças do procedimento, nem do próprio acordo-quadro que será adquirido qualquer medicamento.
O. Assim, a circunstância das peças do procedimento não distinguirem as várias utilizações de Dasatinib não representa em si mesmo uma violação dos direitos de propriedade industrial das Recorrentes.
P. O mesmo é dizer que as peças do procedimento também não são suscetíveis de afetar a posição jurídica das Recorrentes.
Q. Ao invés, é somente no âmbito de um potencial procedimento futuro tendente à aquisição de Dasatinib que poderia ocorrer uma violação dos direitos de propriedade industrial das Recorrentes.
R. Do que antecede, flui que não faz sentido discutir a legalidade de futuras aquisições nesta sede (isto é, no decurso do procedimento relativo à outorga do Acordo-Quadro).
S. As Recorrentes não são, assim, titulares de nenhum interesse atual e efetivo na obtenção de uma decisão favorável neste processo e, por conseguinte, não têm legitimidade para intervir nestes autos.
T. De igual modo, as Recorrentes não têm qualquer necessidade de recorrer, neste momento, à via judicial e, portanto, não têm interesse em agir.
U. Em todo o caso, os prospetivos procedimentos desencadeados com base o Acordo-Quadro não serão inevitavelmente ilegais.
V. É assim, desde logo, porque tais procedimentos aquisitivos não têm, necessariamente, de especificar a utilização que será dada ao medicamento a adquirir.
W. Significa isto que no momento da adjudicação é irrelevante apurar a indicação terapêutica do medicamento, que apenas deverá ser tida em conta aquando da sua aplicação pelos médicos prescritores.
X. Para além disso, atendendo à circunstância de o acordo em apreço configurar um acordo-quadro incompleto, nada impede que uma entidade adquirente lance um procedimento com o propósito específico – expresso nas peças do procedimento – de (apenas) adquirir Dasatinib para o tratamento de patologias abrangidas pela Patente LMC.
Y. Essa seria uma especificidade perfeitamente enquadrável no art. 259º, n.º 4, alínea a). do CCP e, por conseguinte, não representaria, de todo, uma alteração substancial ao Acordo-Quadro.
Z. Nesse caso, a Recorrida (S......) não só não estará vinculada a apresentar proposta, como, na realidade, estará impedida de o fazer.
AA. Com efeito, o art. 255º, n.º 1 do CCP e a Cláusula 5ª, alínea a) do Caderno de Encargos devem ser interpretados no sentido de que devem apenas ser consultados os cocontratantes com capacidade para executar o contrato em questão.
BB. Por último, não é linear que as entidades adquirentes se encontrem forçosamente vinculadas a realizar as suas aquisições ao abrigo do Acordo-Quadro.
Termos em que, com o doutro suprimento de V. Exas., Deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se inalterada a decisão judicial ínsita na sentença recorrida, por não merecer qualquer censura.».

A Recorrida contrainteressada S...... Farmacêutica, Lda.ª (doravante, apenas Recorrida S......) também apresentou contra-alegações, que findam com as seguintes conclusões:
«A. A sentença padece de um lapso de escrita o qual deverá ser corrigido, absolvendo a Ré e Contrainteressada da instância.
B. Só a absoluta falta de fundamentação – e não apenas a sua insuficiência – poderá dar lugar a uma possível nulidade.
C. O Tribunal a quo justificou o abuso de direito das Recorrentes, tendo para o efeito explicitado os motivos que levaram a tal conclusão, isto é a impugnação de um concurso que foi adjudicado às próprias Recorrentes, pelo que a nulidade arguida deverá improceder.
D. Dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo resulta o seguinte: i) As Recorrentes foram umas das empresas a quem foi adjudicado o Acordo Quadro; ii) A proposta da Contrainteressada preencheu os requisitos do caderno de encargos quanto aos referidos lotes; iii) Ainda não foram celebrados os contratos para aquisição do medicamento dasatinib; iv) Encontra-se pendente um processo arbitral necessário, iniciado pelas Recorrentes contra a contrainteressada, para o exercício dos direitos decorrentes da EP1610780
E. Não resultou provado que: i) Os direitos de propriedade industrial invocados pelas Recorrentes, isto é a EP 1610780, são válidos; ii) Existe qualquer infração ou risco de infração dos direitos invocados pelas Recorrentes por parte da Contrainteressada
F. Nas primeiras 18 páginas do seu recurso as Recorrentes repetidamente referem que os presentes autos têm como intuito apreciar uma violação dos seus direitos de propriedade industrial, e na página 19 negam tudo quanto foi alegado até àquele momento, o que revela uma contradição de argumentos que afeta as conclusões das Recorrentes
G. As Recorrentes foram diretamente beneficiadas pelo resultado do Acordo Quadro, na medida em que a sua proposta foi adjudicada naquele Concurso.
H. Os atos de lançamento de um concurso público e concessão de um Acordo Quadro não pode, ao abrigo da legislação portuguesa (nomeadamente do artigo 102º, n.º 2 do CPI), constituir um ato de infração de direitos de propriedade industrial.
I. O Acordo-Quadro não permite, em si mesmo, a aquisição ou utilização de qualquer medicamento.
J. A aquisição dos medicamentos será, necessariamente, objeto de procedimentos futuros para tal aquisição e a putativa infração dos direitos das Recorrentes apenas ocorreria quando os medicamentos fossem indicados, por médicos, para a indicação terapêutica indicada na EP1610780.
K. A especificação da indicação terapêutica do medicamento dasatinib no contrato a executar em nada contradiz o caderno de encargos, constituindo outrossim uma especificação do contrato a celebrar.
L. O interesse em agir é designado pela indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para a satisfação da sua pretensão.
M. A causa de pedir e pedidos formulados pelas Recorrentes assentam exclusivamente numa eventual, hipotética e condicional violação de direitos de propriedade industrial.
N. A ocorrer alguma violação de um direito de propriedade industrial, essa violação não ocorrerá no momento da adjudicação do concurso público, nem sequer no momento da aquisição do medicamento, mas sim apenas quando o medicamento for utilizado no Hospital.
O. Analisado o caso em apreço, não se verifica demonstrada a necessidade da presente ação administrativa porquanto: (i) não está demonstrada a violação dos direitos de propriedade industrial das Recorrentes; e (ii) não está demonstrada a impossibilidade das Recorrentes em fazer valer tais direitos de propriedade industrial no âmbito da ação arbitral pendente entre as Recorrentes e a Contrainteressada.
P. Se os pedidos formulados pelas Recorrentes no processo arbitral fossem julgados provados, os direitos de propriedade industrial ficariam certamente protegidos e tal decisão produziria inevitavelmente efeitos nos procedimentos de contratação.
Q. O abuso de direito tem como intuito impedir os abusos possibilitados por habilidosas montagens de "engenharia jurídica", que exatamente aquilo que se verifica nos presentes autos.
R. Tendo-lhe sido adjudicado o Acordo Quadro às Recorrentes, a impugnação dessa mesma decisão – que lhe foi favorável – constitui uma conduta inconciliável com as condutas das Recorrentes anteriores.
S. As Recorrentes peticionam que este Douto Tribunal conheça do mérito da ação.
T. De forma a este Douto Tribunal decidir do mérito da ação sempre seria necessária a produção da prova relativamente a vários factos, nomeadamente dos factos referentes à não infração da EP1610780 e ainda os factos referentes à nulidade e inoponibilidade daquela patente à Ré e Contrainteressada.
Termos em que deve o recurso interposto pelas Recorrentes ser julgado totalmente improcedente.».
Por despacho proferido em 04/03/2020, foi a decisão emitida em 16/01/2020 retificada, por forma a que da mesma passasse a constar «absolve-se a Entidade Demandada e a Contra Interessada da instância», ao invés do que inicialmente constava- «absolve-se a Entidade Demandada e a Contra Interessada de todos os pedidos».
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, notificado para tanto, não emitiu parecer.
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Já após a interposição do recurso jurisdicional, da apresentação de contra-alegações e da subida do vertente recurso a este Tribunal de Apelação, as Recorrentes, por requerimento apresentado em 07/05/2020, vieram apresentar relativamente a factos supervenientes à prolação da decisão recorrida e que entendem serem relevantes, bem como requerer a junção aos autos de quatro documentos.

Ambas as Recorridas emitiram pronúncia, peticionando o desentranhamento do requerimento e dos documentos em questão.
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Foram dispensados os vistos dos Venerandos Adjuntos, atenta a natureza urgente dos presentes autos.


II. DA ADMISSIBILIDADE DO REQUERIMENTO APRESENTADO PELAS RECORRENTES EM 07/05/2020 E DA JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
As Recorrentes, após a interposição do seu recurso e da produção de contra-alegações de recurso, bem como após a subida do presente recurso a este Tribunal de Apelação, vieram apresentar requerimento em 07/05/2020, no qual dão notícia de um conjunto de factos ocorridos após a prolação da decisão recorrida e da interposição do recurso jurisdicional e que, no seu entender, são relevantes para a demonstração da bondade da tese das Recorrentes no que concerne à subsistência de legitimidade ativa e de interesse em agir para os termos da vertente ação de contencioso pré-contratual. Requerem, ainda, a junção aos autos de quatro documentos para demonstração da factualidade de que vêm dar notícia.
Por seu turno, as Recorridas atacam o requerimento apresentado e os documentos que o acompanham, sustentando que os mesmos são inadmissíveis face ao momento processual em que são apresentados.
Ora, e desde já se adianta que assiste razão às Recorridas.
É que, atento o disposto nos art.ºs 651.º, 425.º, 423.º e 410.º, do CPC, ex vi artigo 1.º do CPTA, os documentos que, por definição, são meios de prova de factos que configuram os fundamentos da acção ou da defesa e que deles carecem, depois do encerramento da discussão e em caso de recurso, só a título excecional pode ser admitida a sua junção com as alegações e exclusivamente aqueles cuja apresentação não tenha sido possível anteriormente ou quando a sua junção se tenha tornado necessária por causa do julgamento proferido em 1.ª instância.
O mesmo é dizer que não basta fazer menção numa das alegações a um documento junto, exigindo-se ao recorrente que invoque e prove o interesse processual que tem nessa junção ao abrigo de uma das situações elencadas no mencionado n.º 1 do art.º 651.º do CPC.
Sucede que, as Recorrentes não cumpriram o ónus de demonstrar o interesse processual do documento junto nesta oportunidade e, muito menos, explicitando o cumprimento do requisito elencado no art.º 425.º do CPC.
É que, ainda que seja evidente a superveniência objetiva dos factos de que as Recorrentes vêm dar conta, bem como dos documentos cuja junção é requerida, a verdade é que aquela superveniência ocorre por referência à própria decisão recorrida e subsequente interposição do recurso jurisdicional. O que significa que, o requerimento em causa acaba por revelar-se como sendo mais um instrumento de mero reforço da tese das Recorrentes, já exposta nas respetivas alegações de recurso.
Adicionalmente, e na medida em que os factos referidos no mencionado requerimento, bem como os documentos que os atestam, ocorreram já após a interposição do recurso jurisdicional, e não sendo determinantes, nem necessários, para a apreciação do recurso, não pode este Tribunal de Apelação tomá-los em consideração.
E, seja como for, tais factos não concernem diretamente ao acordo-quadro a que respeita o presente litígio, mas sim aos procedimentos e contratos celebrados ao abrigo desse acordo-quadro. Pelo que, também por esta razão, este Tribunal de Apelação não pode levar em conta tal factualidade.
Finalmente, esclareça-se que o art.º 651.º, n.º 1 do CPC contém implícito um prazo preclusivo para, após o encerramento da discussão em 1.ª instância, a apresentação de documentos destinados a comprovar os fundamentos factuais da ação, e que é o do próprio prazo para interposição de recurso, ou de apresentação de alegações.
Sendo assim, não deve ser admitida a junção de documentos após a apresentação das alegações de recurso.
Cite-se, a este propósito, a Jurispudência emitida pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão proferido em 12/09/2019, no processo 1238/14.9TVLSB.L1.S2:
«I- A faculdade de junção de documentos em fase de recurso é de natureza excecional e não é possível depois da apresentação das alegações, por a lei não admitir a prorrogação do prazo constante do art. 651º, nº 1 do CPC.
II- A junção em momento posterior não pode ser permitida ao abrigo do art. 6º, nº 1 do mesmo diploma – dever de gestão processual a cargo do juiz – por este visar uma tramitação expedita dentro dos mecanismos previstos na lei, e não a realização de atos não permitidos por lei.»

Por conseguinte, não pode admitir-se o requerimento apresentado pelas Recorrentes em 07/05/2020, nem os documentos juntos com o mesmo, por razões, respetivamente, de impertinência e desnecessidade, bem como por extemporaneidade (no caso dos documentos) face ao disposto nos art.ºs 651.º, n.º 1 e 425.º do CPC, devendo o referenciado requerimento e documentos serem desentranhados e devolvidos aos respetivos apresentantes.


III. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
As questões suscitadas pelas Recorrentes, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, bem como pelas contra-alegações das Recorridas, atento o disposto no n.º 4 do art.º 635.º e nos n.ºs 1 a 3 do art.º 639.º, do CPC ex vi n.º 3 do art.º 140.º do CPTA, consistem, no essencial, em saber se a decisão proferida em 16/01/202 padece de nulidade por falta de fundamentação, nos termos prescritos no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, bem como se a ocorre erro de julgamento, por as Recorrentes possuírem um efetivo interesse direto e pessoal na impugnação das peças concursais e do ato adjudicatório.


IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO
As Recorrentes vieram, na presente ação de contencioso pré-contratual, impugnar as peças concursais e o ato de adjudicação, nos termos do qual foi adjudicado a uma das Recorrentes e à Recorrida S...... a celebração do Acordo-Quadro a que se refere o Concurso Público n.º 2019/61, com vista ao fornecimento de medicamentos diversos às instituições e serviços do Serviço Nacional de Saúde, nos lotes 398, 399 e 400, que respeitam à aquisição de Dasatinib.
Concretamente, as Recorrentes formularam, na sua petição inicial, os seguintes pedidos:
«a) Seja declarada a Ilegalidade do acto de adjudicação do Concurso Público Nº 2019/61, para a celebração de Acordo Quadro para fornecimento de Medicamentos Diversos às Instituições e Serviços do Serviço Nacional de Saúde, nos lotes 398, 399 e 400, que respeitam à aquisição do Dasatinib;
b) Seja declarada a Ilegalidade das Peças do Procedimento do Concurso Público Nº 2019/61, para a celebração de Acordo Quadro para fornecimento de Medicamentos Diversos às Instituições e Serviços do Serviço Nacional de Saúde, nos lotes 398, 399 e 400,que respeitam à aquisição do Dasatinib, e, em consequência, serem anuladas as referidas Peças do Procedimento e o próprio procedimento quanto a esses lotes;
c) Seja a Entidade Demandada condenada a abster-se de celebrar o Acordo Quadro objeto do presente procedimento nos lotes relevantes ou, se o mesmo vier a ser celebrado no decurso da presente acção, se proceda à sua anulação;
d) Seja a Entidade Demandada condenada a rever as Peças do Procedimento e a substituílas por outras que aprovem lotes separados, em cada dosagem, para a aquisição de (I) Dasatinib, para tratamento das indicações LMC e (II) Dasatinib para outras indicações.»
Em despacho saneador proferido em 16/01/2020, o Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra julgou procedentes as exceções de ilegitimidade ativa e de falta de interesse em agir, absolvendo as Recorridas da instância.
Discordam as Recorrentes do assim julgado, imputando diversas patologias à decisão agora sob escrutínio, a saber: nulidade, nos termos descritos no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, e erro de julgamento no tocante ao direito aplicado.
Escrutinemos, então, a decisão recorrida.

a) Da nulidade
As Recorrentes vêm, nas conclusões C a F do seu recurso, assacar nulidade à decisão em apreciação, originada pela a ausência de fundamentos de facto e de direito que estribem a conclusão exposta pelo Tribunal recorrido, de que as Recorrentes não possuem legitimidade ativa para os termos da presente causa. Entendem, por isso, que a decisão encontra-se inquinada de nulidade pela patologia a que se refere a al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
Mais concretamente, alegam as Recorrentes não ser percetível as razões pelas quais o Tribunal recorrido apelou à figura do abuso de direito e à proibição de venire contra factum proprium, e à relação dessas figuras com a decisão de procedência da exceção de ilegitimidade processual ativa.
Mas não têm razão as Recorrentes.
Com efeito, examinada a decisão recorrida, facilmente se perceciona que o Tribunal a quo fundou a procedência das exceções de ilegitimidade ativa e de falta de interesse em agir nas circunstâncias de (i) as Recorrentes terem participado no procedimento concursal e de lhes ter sido adjudicada a celebração do acordo-quadro (doravante, apenas AQ); (ii) de poderem impugnar os contratos que se realizarão ao abrigo desse AQ «se se sentirem prejudicadas nos seus direitos de propriedade industrial»; e (iii) de a proteção dos seus direitos industriais já estarem a ser assegurados na ação arbitral proposta para o efeito.
Do mesmo modo, também é percetível que a alusão, realizada na decisão recorrida, às figuras do abuso de direito e à situação de venire contra factum proprium, o foram meramente a título de reforço argumentativo relativamente à conclusão que já decorrida da restante argumentação, e que era, claramente, a falta de verificação dos referidos pressupostos processuais.
É certo que não pode deixar de se reconhecer o simplismo subsistente na fundamentação da decisão recorrida, e que claramente prejudica a sua melhor compreensão e, principalmente, aceitação.
Não há dúvida, pois, que melhor seria se a sentença recorrida tivesse explicitado de modo crítico e preciso o iter que conduziu à menção das figuras do abuso de direito e à situação de venire contra factum proprium. No entanto, a circunstância de não o ter feito dessa maneira não arrasta a conclusão de que tal sentença é despida de fundamentação fáctica e jurídica.
É que, como é consabido, apenas a ausência total de fundamentação é que consubstancia a patologia descrita na al. b) do art.º 615, n.º 1 do CPC, sendo que a fundamentação insuficiente- de facto e/ou de direito-, ou a errada apreciação da prova e/ou do direito corporizam, apenas, erros de julgamento.
Assim, a circunstância da sentença ora recorrida se caracterizar por grande simplicidade e singeleza no que concerne à subsunção jurídica operada relativamente à questão da falta dos pressupostos processuais em discussão não acarreta a nulidade da mesma por falta de fundamentação, dado que, como já se explicou, somente a ausência total de fundamentos factuais e jurídicos é que é apta a materializar aquela nulidade.
Por outro lado, a verdade é que a sentença recorrida, não obstante a assinalada simplicidade e singeleza, aporta a factualidade provada necessária para ancorar a conclusão de inverificação dos pressupostos atinentes à legitimidade ativa e interesse em agir.
A questão de saber se tal factualidade provada é ou não suficiente para suportar a conclusão que o Tribunal recorrido retirou da mesma é já problemática que pode consubstanciar um erro de julgamento, mas, definitivamente, não a nulidade da sentença.
Sendo assim, não ocorre falta de fundamentação na sentença recorrida.

Pelo que, atento o expendido, soçobra o recurso no que tange à imputação de nulidades à sentença sob escrutínio, pois que não se verificam as nulidades previstas no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC.


b) Matéria de Facto considerada provada na decisão recorrida
A sentença recorrida considerou provados os factos que se enumeram de seguida:
«1. Por Despacho de 26 de junho de 2019, foi promovido o procedimento por concurso público CP 2019/61, para fornecimento de medicamentos diversos às Instituições e Serviços do SNS - Documento 7 junto com a petição inicial, fls. 367 e ss.
2. O anúncio do procedimento foi publicado no Diário da República no dia 1 de julho de 2019 – doc. nº 6 junto com a p.i., fls. 364 e ss. e DR no CD.
3. O procedimento estava divido por lotes, respeitando os lotes 398, 399 e 400 aos seguintes produtos:
- Lote 398 para fornecimento de Dasatinib na dose 50mg (cápsula ou comprimido);
- Lote 399 para fornecimento de Dasatinib na dose de 100mg (cápsula ou comprimido);
- Lote 400 para fornecimento de Dasatinib na dose de 20mg (cápsula ou comprimido) – doc. nº 7, fls. 367 e ss.
4. Durante o prazo para a apresentação das propostas, o Júri prestou esclarecimentos e retificou as peças do procedimento – idem, Documento nº 7
5. No âmbito do acima mencionado CP 2019/61 a S...... apresentou a sua proposta no dia 20 de agosto de 2019 – fls. 630 e ss.
6. A proposta da S...... quanto aos referidos lotes 398, 399 e 400 respeitou ao medicamento Dasatinib, nas dosagens indicadas no caderno de encargos – idem.
7. No dia 26 de setembro de 2019, foi emitido o relatório preliminar nos termos do qual a BMS e a S...... apresentaram propostas para os medicamentos Dasatinib, tendo ambas sido selecionadas enquanto contratantes no Acordo Quadro - Documento 10 junto com a Petição Inicial, fls. 430 e ss.
8. No dia 4 de outubro de 2019, a BMS apresentou a sua pronúncia em sede de audiência prévia, no qual peticionou que: i) a S...... fosse excluída do concurso público referente ao dasatinib, de forma a permitir que a BMS seja o fornecedor exclusivo de dasatinib para o tratamento oral de LMC; ii) alternativa, que a S...... retifique a sua proposta no sentido de identificar e reconhecer a patente LMC; iii) a proposta da S...... seja totalmente excluída do concurso, mantendo-se a BMS como única fornecedora de dasatinib para o tratamento de LMC e seja lançado novo procedimento; iv) seja revogada a decisão de contratar relativamente ao dasatinib - Documento 12 junto com a Petição Inicial, fls. 549 e ss.
9. No dia 17 de outubro de 2019, foi aprovado o relatório final no qual a SPMS confirmou a adjudicação das propostas apresentadas pela BMS e S...... - Documento 4 junto com a Petição Inicial, fls. 246 e ss.
10. Nesse relatório final o SPMS esclareceu, quanto às pretensões da BMS que “o Júri entende que, a possibilidade de violação de normas de propriedade industrial jamais poderá ocorrer num procedimento que visa a seleção de fornecedores para um Acordo-Quadro, uma vez que, em bom rigor, não estamos perante qualquer aquisição firma. Acresce, ainda, que também não será na fase de aquisição dos medicamentos que tal violação poderá ocorrer, mas, tão somente, na concreta aplicação a terapêuticas reservadas a determinados agentes económicos”. E, nesta sequência o Júri negou a pretensão da BMS. - Documento 4 junto com a Petição Inicial, fls. 255
11. No dia 25 de outubro de 2019, a BMS apresentou impugnação administrativa do relatório final na qual peticionou que a proposta da S...... fosse excluída ou que a S...... fosse impedida de fornecer o seu medicamento para uso no tratamento de indicações não protegidas pela patente - Documento 13 junto com a Petição Inicial, fls. 562 e ss.
12. No dia 12 de novembro de 2019, a Direção de Compras de Bens e Serviços de Saúde da SPMS pronunciou-se sobre os pedidos da BMS, nos termos do qual explicou que:
- Em primeiro lugar cumpre às entidades adjudicantes utilizarem os procedimentos contratuais adequados para a aquisição de medicamentos que estejam protegidos por direitos de propriedade industrial
- Em segundo lugar, a violação de um direito de propriedade industrial que proteja uma indicação terapêutica apenas poderá ocorrer quando o medicamento é utilizado, e não no momento da apresentação da proposta no âmbito de um Acordo-Quadro
- Não existe qualquer violação do SINATS porque, nem a SPMS abriu lotes à concorrência para aquisição do Dasatinib para o tratamento de LMC, nem a S...... apresentou uma proposta para a utilização daquela substância no tratamento da indicação protegida
- doc. nº 14, fls. 575 e ss.
13. Em 10 de Maio de 2017, a BMS tinha iniciado um processo arbitral contra a S......, processo esse que tem a natureza de arbitragem necessária e ainda se encontra pendente – fls. 660 e ss.»

c) Do erro de julgamento
As Recorrentes propuseram no Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra a presente ação de contencioso pré-contratual, clamando pela ilegalidade da peças concursais, bem como do ato de adjudicação, e peticionando que
«a) Seja declarada a Ilegalidade do acto de adjudicação do Concurso Público Nº 2019/61, para a celebração de Acordo Quadro para fornecimento de Medicamentos Diversos às Instituições e Serviços do Serviço Nacional de Saúde, nos lotes 398, 399 e 400, que respeitam à aquisição do Dasatinib;
b) Seja declarada a Ilegalidade das Peças do Procedimento do Concurso Público Nº 2019/61, para a celebração de Acordo Quadro para fornecimento de Medicamentos Diversos às Instituições e Serviços do Serviço Nacional de Saúde, nos lotes 398, 399 e 400,que respeitam à aquisição do Dasatinib, e, em consequência, serem anuladas as referidas Peças do Procedimento e o próprio procedimento quanto a esses lotes;
c) Seja a Entidade Demandada condenada a abster-se de celebrar o Acordo Quadro objeto do presente procedimento nos lotes relevantes ou, se o mesmo vier a ser celebrado no decurso da presente acção, se proceda à sua anulação;
d) Seja a Entidade Demandada condenada a rever as Peças do Procedimento e a substituí-las por outras que aprovem lotes separados, em cada dosagem, para a aquisição de (I) Dasatinib, para tratamento das indicações LMC e (II) Dasatinib para outras indicações.»
As Recorrentes fundamentam as suas pretensões, em suma, na necessidade de proteção dos seus direitos de propriedade industrial e, simultaneamente, na defesa da legalidade do procedimento, quanto ao Sistema Nacional de Avaliação de Tecnologias de Saúde (o Decreto-Lei nº 97/2015, de 1 de Junho, “ SINATS”).
Esclareça-se que, a Recorrida SPMS abriu um concurso público- CP 2019/61- com vista à celebração de “Acordo-Quadro para Fornecimento de Medicamentos Diversos, às Instituições e Serviços do Serviço Nacional de Saúde”, sendo que quanto aos lotes 398, 399 e 400, em que está em causa o fornecimento de medicamento com a substância ativa Dasatinib nas dosagens de 20 mg, 50 mg e 100 mg, a adjudicação foi feita às ora Recorrentes e à Recorrida S......, que assim celebrarão o citado Acordo Quadro.
Sucede, todavia, que as Recorrentes pretendem obter a declaração de ilegalidade das peças concursais e a anulação da decisão de adjudicação relativas aos ditos lotes 398, 399 e 400 do concurso público em questão- CP 2019/61- por entenderem que o mesmo viola os seus direitos de propriedade industrial, decorrentes e protegidos por uma patente.
Com efeito, explicam as Recorrentes que comercializam Dasatinib nas dosagens acima referidas sob a marca “Sprycel”, que está aprovado para o tratamento da leucemia mielogénica (ou mielógena) crónica (“LMC”) e da leucemia linfoblástica aguda (“LLA”), sendo certo que a utilização de Dasatinib para utilização no tratamento oral de LMC está protegida por patente, o que quer dizer que, por força da proteção conferida pela referida patente, nenhum medicamento com substância ativa Dasatinib, para além do Sprycel, pode ser fornecido, legalmente, para uso no tratamento de LMC.
Porém, as peças procedimentais postas em crise apenas se propõem a adjudicar contratos de fornecimento de Dasatinib, sem separar ou distinguir as indicações em cujo tratamento o Dasatinib será utilizado - sem separar designadamente, o Dasatinib para uso no tratamento da indicação LMC que é protegido por patente, por um lado, e o Dasatinib para uso no tratamento de outras indicações terapêuticas não protegidas por patente, por outro.
Sendo assim, na ausência desta separação, a adjudicação de contratos celebrados ao abrigo do AQ e de acordo com as condições no mesmo previstas conduzirá, necessariamente, à compra e utilização de medicamentos distintos do Sprycel para utilização no tratamento de LMC, o que acarreta a violação da Patente LMC, e viola, do mesmo passo, o SINATS. E estas violações arrastam também a violação do Código dos Contratos Públicos pelas peças do procedimento e pela adjudicação que delas resultou.
Por conseguinte, na visão das Recorrentes, o procedimento CP 2019/61 e os respetivos documentos conformadores, bem como a decisão de adjudicação que deles emergiu, devem ser declarados ilegais e, por isso, anulados quanto aos lotes 398, 399 e 340, devendo também lançar-se um novo procedimento, onde se imponha a necessária separação, em lotes distintos, entre a indicação LMC, protegida por patente, e as outras indicações terapêuticas, não protegidas por patente, e constantes do RCM de todos os medicamentos contendo Dasatinib como substância ativa.
Por decisão promanada em 16/01/2020, o Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra proferiu despacho saneador, nos termos do qual, e para além do demais decidido, julgou procedentes as exceções de ilegitimidade ativa e de falta de interesse em agir das agora Recorrentes e, em consequência, absolveu da instância as Recorridas SPMS e S.......
Discordam as Recorrentes do julgado na Instância a quo, imputando erro de julgamento à decisão impetrada, por, na sua ótica, entenderem que possuem legitimidade e interesse em agir em virtude de, grosso modo, os futuros contratos de fornecimento a celebrar ao abrigo do AQ agora em causa permitirem a aquisição e utilização do Dasatinib para o tratamento da LMC. Defendem as Recorrentes que o facto de não haver, nas peças do AQ, qualquer separação da compra deste medicamento tendo em atenção o tratamento a que se destina vai permitir que, nos futuros contratos, seja usado Dasatinib, sem ser o Sprycel, no tratamento da LMC, o que viola a patente das Recorrentes. E, adicionalmente, argumentam as Recorrentes que os futuros contratos serão celebrados ao abrigo de procedimentos que não permitirão a separação da aquisição dos ditos medicamentos, por deverem cumprir escrupulosamente os termos definidos nas peças do AQ.

Ora, desde já se adianta que não têm razão as Recorrentes, uma vez que, examinando os autos e ponderando o termos do dissídio posto, é nosso entendimento que da vertente ação de impugnação pré-contratual nenhuma vantagem atual e direta ou indireta sobrevém para as agora Recorrentes.
Acompanhamos, pois, a decisão recorrida no que tange à conclusão de que as Recorrentes não possuem legitimidade ativa, nem interesse e agir e, por essa razão, deve manter-se a decisão em escrutínio, em virtude do disposto nos art.ºs 9.º, n.º 1, 101.º e 55.º, n.º 1, al. a) do CPTA.
A asserção vinda de assentar decorre naturalmente da especial modelação dos conceitos de legitimidade processual e de interesse processual no contencioso administrativo que, como explica FRANCISCO PAES MARQUES (A legitimidade processual activa no Contencioso Administrativo, in Comentários à Legislação Processual Administrativa, Volume I, 5.ª edição, agosto 2020, AAFDL Editora, pp. 715 a 749), são determinados por «(…) uma individualização subjectiva numa causa que, dizendo respeito ao exercício do poder público, pode, tendencialmente, coincidir com o interesse de todos os cidadãos de uma comunidade política» (idem, pp. 723 e 724).
Aliás, a tensão permanente entre os princípios da separação de poderes e a tutela jurisdicional efetiva desenha a geografia aplicável aos conceitos de legitimidade e de interesse processual no contencioso administrativo, sendo de destacar, ainda de acordo com aquele Autor, específicas funções desempenhadas pela legitimidade processual administrativa: função de proteção de direitos fundamentais, função de eficiência processual, função sistémico-funcional e função de estabilização intersubjetiva (idem, pp. 724 e 725).
No que tange ao interesse processual, o mesmo «consiste no interesse já não no objeto do processo mas no próprio processo em si, tendo o requerente de invocar não só um direito mas de achar-se o seu direito e situação tal que necessite do processo para sua tutela. (…) [O] interesse processual visa controlar a necessidade e a adequação do uso dos meios jurisdicionais pelo sujeito carecido de tutela. O recurso aos tribunais deixou de ser aferido em função da violação ou ameaça de um direito (até porque poderia bastar a incerteza de uma relação jurídica), passando a ser compreendido a partir da compatibilidade, segundo juízos objectivos, entre a tutela requerida e os fins do processo, ou entre aquela e os meios utilizados pelo requerente. Esta dimensão encerra ainda um carácter prospectivo, ou seja, o interesse processual pressupõe um juízo comparativo sobre a situação em que a parte se encontrava antes da propositura da acção com aquela que existirá se a tutela for concedida» (idem, pp. 725 e 726). (negro nosso)
E continua o insigne Autor: «[p]ode afirmar-se existir no Contencioso Administrativo uma relativa indistinção entre a legitimidade processual e o interesse em agir quando este último instituto processual é concebido de acordo com a primeira componente referida- a lesão de posições jurídicas que justifica a carência de tutela jurisdicional-, pelo que a respectiva autonomia, neste sector, subsiste essencialmente na acepção que lhe é conferida pela segunda componente: a necessidade de recurso à tutela jurisdicional. Por conseguinte, a ablação de direitos subjectivos, no Processo Administrativo, tem de ser entendido num duplo sentido que obnubila a destrinça que neste ramo do Direito tem de fazer-se entre legitimidade processual e interesse processual. Isto é, não pode confundir-se a afectação enquanto pressuposto semi-constitutivo da posição jurídico-subjectiva do particular, e que suporta a legitimidade processual (i), com a multiformidade e variabilidade gradativa da lesão susceptível de eliminação jurisdicional, que se apresenta como o objeto de aferição do interesse processual (ii). (…) Uma coisa é o direito subjectivo no plano substantivo, que emergirá na sua plenitude quando um determinado facto (a conduta administrativa lesiva-activa ou omissiva) preencher uma determinada previsão normativa. Outra coisa é o direito de acção no plano processual, que decorrerá da violação do direito substantivo e apenas existe se a lesão em causa for de molde a ser erradicada através de uma medida de carácter jurisdicional (idem, pp. 727 e 728).
Por seu turno, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativo, Tomo I, 4.ª edição, reimpressão, março 2020, Almedina, pp. 373 e 374) clarificam a noção de interesse pessoal e direto, presente no art.º 55.º, n.º 1, al. a) do CPTA, conceito este que, em bom rigor, respeita ao conceito de interesse processual e não, propriamente, ao conceito de legitimidade ativa, muito embora o legislador o tenha consagrado nesta sede, dando azo a alguma incerteza e confusão entre as fronteiras dos sobreditos institutos. Seja como for, os citados Autores indicam que «o interesse pessoal traduz-se na utilidade, benefício ou vantagem, de natureza patrimonial ou meramente moral, que poderá advir da anulação do ato impugnado», sendo que «o interesse direto, por sua vez, pressupõe que o demandante tem um interesse atual e efetivo na anulação ou declaração de nulidade do ato administrativo, permitindo excluir as situações em que o interesse invocado é reflexo, indireto, eventual ou meramente hipotético».
Coligidos os considerandos doutrinais relevantes, expliquemos então porque se revela acertado o sentido final da decisão recorrida.

Ora, emerge da factualidade conduzida ao probatório que os lotes n.ºs 398, 399 e 400 foram adjudicados também às agora Recorrentes. O que conduz a que não se descortine qual a vantagem que as Recorrentes retiram da impugnação de um ato que lhes é francamente favorável.
Aliás, esta manifestação de vontade em obter a invalidação da adjudicação que lhes foi dirigida é, ela própria, incompatível com a participação das Recorrentes no procedimento concursal para a celebração do AQ, pois que as Recorrentes ou estão interessadas em contratar, ou não estão interessadas em contratar. O que não é admissível é que, num momento, manifestem a vontade de contratar e, noutro, sem que ocorra entretanto qualquer tipo de alteração procedimental, tentem impedir a celebração do contrato.
Por conseguinte, bem se percebe o argumento usado pelo Tribunal recorrido, quanto à favorabilidade do ato de adjudicação para as Recorrentes, para concluir que as mesmas não possuem legitimidade ativa.
Reiteramos, na verdade, este argumento, acrescentando que, face ao que se expôs, não é possível identificar, por banda das Recorrentes, um interesse direto, pessoal e legítimo que advenha da impugnação do ato adjudicatório para a sua esfera jurídica.
É que, a anulação do ato adjudicatório, por ilegalidade das peças concursais, arrasta, em princípio, a destruição de todo o procedimento concursal com vista à celebração do AQ, pelo menos quanto aos lotes em discussão. O que quer dizer que as Recorrentes, com esta impugnação, apenas obliteram a sua chance de celebrar o contrato concursado e de se habilitarem a fornecer o medicamento que comercializam, o Sprycel.
Sendo assim, é forçoso assumir que as Recorrentes não retiram da impugnação do ato de adjudicação qualquer vantagem ou efeito positivo para a sua esfera jurídica.
E mesmo que as Recorrentes entendam que ocorre prejuízo para os seus direitos- mormente, os de propriedade industrial decorrentes e protegidos pela patente- com a adjudicação do AQ também à Recorrida S......-, então o que deveriam era empreender a invalidação do ato de adjudicação quanto a esta Recorrida por a mesma dever ser excluída do procedimento.
De todo o modo, e ainda que não cumpra, nesta sede, qualquer pronúncia sobre tal matéria, a verdade é que o afastamento da Recorrida do procedimento concursal, apenas por efeito da proteção dos direitos de propriedade industrial das Recorrentes, assoma, pelo menos numa primeira leitura, como violadora do princípio da concorrência, visto que o que está em causa não é apenas a aquisição do medicamento para o tratamento de LMC- caso em que apenas pode ser usado o medicamento Sprycel-, mas de medicamentos com a substância ativa Dasatinib para tratamento de diversas doenças, incluindo a LMC.
Seja como for, é importante não olvidar que entre as Recorrentes e a Recorrida S...... corre termos um processo arbitral relativamente aos direitos de propriedade industrial, foro este que é o adequado a fazer valer os direitos de propriedade das Recorrentes.
Adicionalmente, é ainda de considerar que, contrariamente à tese das Recorrentes, as peças procedimentais do concurso com vista à celebração do AQ para fornecimento de medicamentos- especificamente no que toca aos lotes 398, 399 e 400-, não têm a capacidade de, por si só ou diretamente, afetarem os direitos de propriedade industrial das Recorrentes.
Como se sabe, o procedimento concursal destinado à celebração de um AQ destina-se a selecionar futuros concorrentes, de futuros procedimentos, com vista à celebração de futuros contratos, disciplinando, desde logo, uma parte essencial da regulação dos futuros procedimentos e dos futuros contratos.
Por conseguinte, tanto basta para concluir que a adjudicação às Recorrentes e à Recorrida S......, e a subsequente celebração do AQ a que respeita o procedimento nos presentes autos, não implicam, em bom rigor, o fornecimento do dito medicamente, admitindo-se até a hipótese de, durante a vigência do AQ, não serem celebrados os contratos de fornecimento visados no AQ.
Acrescente-se que, não subsistem dúvidas quanto a esta problemática, considerando até a pronúncia deste Tribunal de Apelação no Acórdão proferido em 04/10/2017, no processo 288/17.8BESNT, a propósito também de um litígio que envolvia um procedimento concursal para a celebração de um AQ para aquisição de um tipo de medicamento, e em que se exarou, além do mais, o seguinte:
«(…)
A questão central no âmbito da ação e que constitui o motivo do presente recurso jurisdicional, respeita a saber se errou a sentença recorrida, quanto à interpretação e aplicação do Direito, no sentido de apurar se as Peças do Procedimento ao não separarem o Imatinib a utilizar no tratamento das Indicações GIST, do Imatinib para tratamento de outras indicações não protegidas, determinam a violação da Patente GIST e por via dela, do disposto do artigo 101.º do Código de Propriedade Industrial (CPI), assim como se o Acordo Quadro a celebrar violará a Patente GIST e o artigo 26.º, n.º 2 do SiNAST, com isso incorrendo as Peças do Procedimento na violação dos artigos 24.º, n.º 1, al. e) e do artigo 70.º, n.º 1, al. f), ambos do Código dos Contratos Públicos (CCP).
(…)
Reconhecendo-se que as Peças do Procedimento não distinguem as várias utilizações possíveis do Imatinib, para o tratamento das Indicações GIST e para o tratamento de outras indicações não protegidas, tal não constitui em si mesma uma violação dos direitos de propriedade industrial da Recorrente titulados pela Patente GIST e por via dela, do disposto do artigo 101.º do CPI, pois não conduz a que por mero efeito das peças do procedimento do presente procedimento pré-contratual exista a aquisição do Imatinib.
Relembrando aquele que é o objeto do procedimento pré-contratual cujas peças do procedimento são impugnadas, destina-se à celebração de um contrato referente a um Acordo Quadro para fornecimento de medicamentos de várias áreas terapêuticas às instituições e serviços do Serviço Nacional de Saúde, não podendo ser atribuído a um procedimento tendente à formação de um Acordo Quadro o objeto imediato de realização de quaisquer aquisições de bens.
O procedimento pré-contratual tendente à formação de um Acordo Quadro não pode legalmente culminar com a celebração de qualquer contrato de fornecimento, mas tão só com a celebração de um Acordo Quadro.
Neste sentido estabelece o disposto no artigo 251.º do CCP, segundo o qual “Acordo quadro é o contrato celebrado entre uma ou várias entidades adjudicantes e uma ou mais entidades, com vista a disciplinar relações contratuais futuras a estabelecer ao longo de um determinado período de tempo, mediante a fixação antecipada dos respectivos termos”.
Assim, a circunstância de as peças do procedimento impugnadas não procederam à distinção das várias utilizações do Imatinib não pode acarretar a violação dos direitos de propriedade intelectual da Recorrente, pois terá ainda de ser promovido um novo procedimento pré-contratual com o objeto de aquisição do Imatinib.
Apenas no âmbito do novo e autónomo procedimento pré-contratual que vier a ser celebrado no âmbito do Acordo Quadro poderá existir a aquisição do Imatinib e nesse caso, a eventual violação dos direitos de propriedade industrial da Recorrente.
Por outro lado, extrai-se do disposto no n.º 2 do artigo 255.º do CCP, que salvo disposição em contrário constante do caderno de encargos relativo ao acordo quadro, as entidades adjudicantes não são obrigadas a celebrar contratos ao seu abrigo, pelo que, pelo menos, por ora, não existe a obrigação de celebração de contratos ao abrigo do Acordo Quadro em causa nos autos.
Donde, apenas quando o Imatinib for adquirido no âmbito de um procedimento pré-contratual diferente daquele a que respeitam os autos, se poderá dar o caso de existir a violação dos direitos de propriedade industrial decorrente da Patente para o tratamento de GIST, e não por mero efeito das cláusulas previstas nas peças do procedimento pré-contratual destinado à celebração do Acordo Quadro.
Daí que por mero efeito das peças do procedimento não haja a possibilidade legal de aquisição do Imatinib, ou seja, da sua compra e utilização.
(…)
Pelo que, não é consequência do clausulado das peças do procedimento ora impugnadas não fazerem a distinção quanto ao tipo de tratamentos, que existe a violação dos direitos de propriedade industrial invocados pela Recorrente.
(…)»
Quer isto significar, portanto, que as peças do procedimento concursal para a celebração do AQ não possuem lesividade direta dos direitos de propriedade industrial convocados pelas Recorrentes. E porque tal assim é, nenhuma vantagem se retira imediatamente da presente ação para a defesa dos interesses das Recorrentes, pois que esta ação não se apresenta necessária à tutela daqueles direitos.
E, sendo assim, é inevitável assumir que as Recorrentes não possuem interesse em agir.
Derradeiramente, impõe-se uma nota quanto à possibilidade de conformação do conteúdo, ou de parte do conteúdo dos procedimentos e contratos subsequentes à celebração do AQ.
É que, as Recorrentes afirmam, reiteradamente, que uma vez firmado o AQ, os seus direitos de propriedade industrial serão irremediável e impreterivelmente violados porque os procedimentos e contratos subsequentes ao AQ não permitirão qualquer cisão na aquisição do medicamento Dasatinib, por forma a que apenas seja comprado Sprycel para utilizar no tratamento de LMC.
Ora, a verdade é que, nem sempre, o AQ vincula ou determina, em toda a amplitude, a regulação dos procedimentos e contratos celebrados ao abrigo desse mesmo AQ. Realmente, como afirmou já este Tribunal de Apelação no Acórdão proferido em 06/06/2019, no processo 2878/16.7BELSB, «a subsistência de um acordo-quadro não castra, por si só e absolutamente, a possibilidade de conformação do conteúdo dos contratos a celebrar ao abrigo de procedimentos abertos na vigência desse acordo-quadro, ocorrendo a hipótese, no caso de acordos-quadro plurais e incompletos, de se registarem aspetos não submetidos à concorrência, suscetíveis de conferir uma margem negocial às partes contratuais». O que quer dizer que, estando em causa um AQ incompleto, ou aberto, subsiste margem para conformação de alguns aspetos dos procedimentos e contratos subsequentes.
O que é certo é que as Recorrentes limitam-se a sustentar a fatalidade da violação dos seus direitos de propriedade industrial, mas sem nunca cuidar de demonstrar que os procedimentos e contratos subsequentes inviabilizam totalmente a contratação diferenciada do medicamento Dasatinib.
Sendo assim, não resta outra alternativa que não a de concluir que as Recorrentes não estão dotadas de legitimidade ativa, nem de interesse em agir para a presente ação.

Por conseguinte, a decisão impetrada revela-se correta quanto ao seu decisório final, ainda que a fundamentação que se convoca seja a ora exposta.
Pelo que, em conformidade, terá de negar-se provimento ao recurso e confirmar a decisão a quo no segmento correspondente.


V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em Conferência, os Juízes da Subsecção de Contratos Públicos deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
I. Não admitir o requerimento e a junção dos documentos requerida pelas Recorrentes e ordenar o respetivo desentranhamento;
II. Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, ainda que com a presente fundamentação.


Custas pelo incidente relativo ao desentranhamento a cargo das Recorrentes, que se fixa em 1 UC.
Custas pelo recurso a cargo das Recorrentes, nos termos do disposto no art.º 527.º do CPC.

Registe e Notifique.
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Lisboa, 9 de novembro de 2023,

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Paula Cristina Oliveira Lopes de Ferreirinha Loureiro- Relatora

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Jorge Martins Pelicano

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Ana Cristina Lameira