Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:368/21.5 BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:10/12/2023
Relator:FREDERICO MACEDO BRANCO
Descritores:PENA DISCIPLINAR DE DEMISSÃO
PSP
PROPORCIONALIDADE
“NE BIS IN IDEM”,
Sumário:I – No que respeita à violação do principio “ne bis in idem”, importa sublinhar que a pendência simultânea de procedimento de natureza disciplinar e criminal, não constitui violação do referido principio, pela singela razão que têm natureza, objeto e objetivos diversos.
O processo disciplinar é autónomo do processo criminal, uma vez que são diversos os fundamentos e fins das respetivas penas, bem como os pressupostos da respetiva responsabilidade, podendo ser diversas as valorações que cada uma delas faz dos mesmos factos e circunstâncias.
Assim, a existência de ilícito disciplinar não está prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser tomada em processo penal, em face do que a eventual aplicação de penas em cada um dos processos não constitui violação do princípio “ne bis idem”.”
II - A aplicabilidade da Pena de Demissão exige que a infração disciplinar inviabilize a manutenção da relação funcional.
É pacificamente entendido que o juízo de inviabilização da relação funcional não resulta ipso facto do disposto de qualquer das disposições legais do Estatuto Disciplinar aplicável aos agentes e funcionários públicos, e por isso, também em relação ao disposto no Regulamento de Disciplina da PSP, mas que resulta antes do conjunto normativo em que tal preceito se insere, alicerçado no conjunto de factos e de circunstâncias concretas conducentes à conclusão de que não é mais possível manter o vínculo jurídico-funcional existente.
O ónus de concretização circunstancial e factual incumbe à Administração, já que é sobre si que recaem os ónus de alegar e de provar os factos dos quais resulte o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, sendo, pois, insuficiente a mera referência conclusiva a essa inviabilidade.
III - Não tendo a PSP dado cumprimento ao ónus que era seu, de concretização circunstancial e factual de alegar e de provar os factos dos quais resulte o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, é insuficiente a mera referência a essa inviabilidade, tendo, assim, ficado por provar a referida inviabilidade.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I Relatório
O Ministério da Administração Interna, no âmbito do Processo Cautelar apresentado por A......, Agente da PSP, requerendo a suspensão da eficácia do Despacho do Ministro da Administração Interna, de 31/03/2021, que o sancionou com a pena de demissão, não se conformou com a Sentença proferida no TAF de Sintra que anulou o referido ato “por erro nos pressupostos de facto e de direito”.

Efetivamente, na própria Sentença de 1ª Instância, depois de ter sido facultado o contraditório às partes, foi decidido que “Verificados os pressupostos processuais de que depende a prolação de Decisão definitiva, nos termos do disposto no artº 121° do CPTA, foram as partes notificadas de Despacho proferidos nesse sentido, não tendo havido oposição.
Assim, e em conformidade com o que consta dos autos, o que cumpre decidir nos presentes autos é a causa principal e não a providência cautelar – artº 121º do CPTA.
(…)
O que importa conhecer é o pedido formulado na ação principal aqui apensa, ou seja, se o ato impugnado deve ser anulado – por violação de lei, erro sobre os pressupostos de facto e de direito e violação do princípio da proporcionalidade, da justiça, da adequação, da necessidade e da igualdade – com as devidas e legais consequências.”

O MAI, inconformado com a Sentença proferida em 4 de dezembro de 2021, veio recorrer da mesma para esta instância, tendo concluído:
“A. A Douta Sentença agora recorrida, salvo douta e melhor opinião, enferma de erro nos pressupostos de facto e de direito, não se encontrando devidamente fundamentada.
B. A Douta Sentença considera que o lapso temporal desde a prática da infração disciplinar até à prolação do despacho punitivo, desmereceria o seu sancionamento disciplinar.
No entanto, o poder disciplinar foi exercido nos termos do Regulamento Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei n.° 7/90, de 20 de fevereiro, posteriormente revogado pelo Estatuto Disciplinar da PSP, aprovado em anexo à Lei n.° 37/2019, de 30 de maio.
O procedimento disciplinar encontrou-se suspenso até à conclusão do processo crime, onde o ora recorrido foi julgado pelos mesmos factos, tendo continuado após o transito em julgado da decisão penal.
O despacho punitivo foi proferido dentro dos prazos legalmente previstos, não tendo ocorrido a prescrição do procedimento disciplinar, nos termos conjugados do n.° 2 do artigo 48.° do EDPSP e do n.° 3 do artigo 121.° do Código Penal.
Como tal, quanto ao efeito do decurso do tempo nas situações jurídicas, o despacho punitivo não padece de qualquer vício, padecendo, outrossim, a Douta Sentença de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, não estando devidamente fundamentada.
C. Depois, diz o Tribunal a quo que «não pode o Autor ser sancionado duas vezes pelo mesmo facto, sob pena de violação do Princípio Constitucional ne bis in idem consagrado no art° 29° n° 5 da CRP».
Porém, tal entendimento desconsidera os valores, os princípios, os fundamentos, as funções e os objetivos dos vários ramos de direito, conduzindo a que a Douta Sentença padeça de erro sobre os pressupostos de facto e de direito.
«A decisão penal condenatória, transitada em julgado, vincula a decisão disciplinar no que respeita à verificação da existência material dos factos e dos autores, sem prejuízo da sua valoração e enquadramento jurídico para efeitos disciplinares.»
Assim, o princípio da independência do processo disciplinar face ao processo crime deve ser concatenado com o caso julgado material e o princípio da unidade superior do Estado, através dos quais a Administração encontra-se vinculada aos factos dados como provados na sentença penal condenatória.
Por outro lado, a aplicação de uma sanção penal e uma sanção disciplinar ao ora recorrido pelos mesmos factos não viola o princípio ne bis in idem.
«I - O ilícito disciplinar (que visa preservar a capacidade funcional do serviço) e o ilícito criminal (que se destina à defesa dos bens jurídicos essenciais à vida em sociedade) são dferenciados e autónomos, como diferenciados e autónomos são os processos em que se visa apreciação e punição de cada um deles e, sendo assim, o facto de o arguido ser absolvido em processo crime não obsta, em princípio, à sua punição em processo disciplinar instaurado com base nos mesmos factos e vice versa.
II. — Sendo que os vários ramos do direito têm funções e objetivos próprios e distintos nada impede que os mesmos factos possam desencadear, cumulativamente, sem violação do princípio ne bis in idem responsabilidade disciplinar e responsabilidade penal.
III. — Nesta conformidade, e por maioria de razão, aquele princípio não será violado se os mesmos factos servirem de fundamento à instauração de procedimento disciplinar e à fixação da respetiva sanção e, juntamente com outros, fundamentarem a apreciação e valoração do mérito e competência profissionais.»
D. Por fim, a Douta Sentença menciona que a pena disciplinar aplicada mostra-se manifestamente desproporcional, não resultando dos factos a impossibilidade de manutenção da relação funcional. Porém, labora em erro.
Resulta do probatório que os factos praticados pelo ora recorrido são qualificáveis como uma infração disciplinar muito grave, atendendo aos deveres violados, ao grau de ilicitude e da culpa, bem como a todas as circunstâncias atenuantes e agravantes da responsabilidade disciplinar, conforme previsto no artigo 41.° do EDPSP.
Depois, o artigo 46.° prescreve que às infrações disciplinares muito graves são aplicáveis as penas disciplinares de aposentação compulsiva e demissão, sendo que este artigo tem caráter vinculado e não discricionário.
Ora, não tendo o Tribunal a quo procedido à alteração da qualificação jurídica da infração disciplinar, não pode, depois, anular o despacho punitivo, com fundamento na sua desproporcionalidade, porque estamos perante um poder vinculado.
E. Pelas mesmas razões soçobra a afirmação de falta de demonstração da impossibilidade de manutenção da relação funcional.
Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, este Ministério entende que um elemento da Polícia de Segurança Pública, com tudo o que isto implica, que tenha sido condenado pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos artigos 26.°, 143.°, n.° 1, 144.°, alínea c) e 145.°, n.° 1, alínea c) e n.° 2, por referência ao artigo 132.°, n.° 2, alíneas h) e m), todos do Código Penal, não reúne as condições necessárias a ser um elemento das forças de segurança, cuja principal atribuição é manter a ordem pública e assegurar a proteção de todos os cidadãos.
Por conseguinte, a impossibilidade da manutenção da relação funcional é clara e evidente, além de decorrer de um poder vinculado de aplicação da lei.
Não se vislumbra, por outro lado, que o despacho punitivo esteja ferido de erro grosseiro ou seja manifestamente desproporcional à infração praticada.
F. Por tudo o que fica exposto, este Venerando Tribunal Central, enquanto Tribunal de última instância que é, em regra, deve revogar a Douta Sentença recorrida, constituindo uma orientação correta para os tribunais de primeira instância, na apreciação destas questões.
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o Mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, por provado, e, em consequência, deverá ser revogada a Douta Sentença, ora recorrida, proferida em 3 de dezembro de 2021.”

O aqui Recorrido/A...... veio apresentar as suas contra-alegações de Recurso em 6 de janeiro de 2022, concluindo:
“I- Salvo o devido respeito, nenhuma razão assiste ao Recorrente, porquanto, a Douta Sentença em crise, não determina, nem em parte alguma se pronuncia sobre a verificação da prescrição do procedimento disciplinar, bem como o ora Recorrido nunca alegou tal causa de extinção da responsabilidade disciplinar;
II- A Douta Sentença, nesta parte e bem, fundamentou-se em todos os elementos de prova existentes nos autos, mormente no processo administrativo e na factualidade que do mesmo resultou provada;
III- Pois que, os factos que estão na génese do (único) processo disciplinar instaurado ao Recorrido, que culminou com o ato impugnado, datam de 19.01.2011:
IV- Resultando daí que, na data da prática dos factos, o Recorrido tinha apenas 1 ano e 4 meses de polícia;
V- Ora, de acordo com o preceituado na alínea c) do n.° 1 do artigo 39.° do EDPSP: “São circunstâncias atenuantes da responsabilidade disciplinar, nomeadamente: c) o pouco tempo de serviço;”;
VI- Sucede que, tal preceito não foi sequer tido em consideração aquando da apreciação jurídico disciplinar dos factos dados como provados no Relatório Final do Sr. Instrutor do processo (cf. Documento 1 da PI do Procedimento Cautelar de Suspensão de Eficácia de Ato Administrativo - Processo n.° 368/21.5BESNT);
VII- O que bem foi assinalado pela Douta Sentença, porquanto tal inexistência de valoração - em sede de processo disciplinar - inquina o ato impugnado de vicio de violação de lei e erro manifesto sobre os pressupostos de facto e de direito que substanciaram a sanção disciplinar aplicada ao Recorrido;
VIII- Por conseguinte, a Douta Sentença recorrida não padece de qualquer erro sobre os pressupostos de facto e de direito, devendo soçobrar in totum, todos os argumentos aduzidos pelo Recorrente;
IX- Alega o Recorrente que “a douta sentença fez tábua rasa da já longa doutrina e jurisprudência constante sobre esta temática3";
X- Referindo-se o Recorrente ao princípio da independência do processo disciplinar face ao processo-crime que se encontra consagrado no artigo 6.° do EDPSP;
XI- Sucede que, o processo disciplinar - desde a instrução, passando pela fase de Defesa e até ao Relatório Final - teve, apenas e só em consideração o que resultou do processo-crime, omitindo qualquer apreciação e valoração de tudo quanto o Recorrido pretendeu (e levou) aos autos disciplinares a fim de exercer o seu direito de defesa e contraditório;
XII- À luz dos princípios da autonomia e independência entre os dois processos tem sido entendido que, do processo-crime não se poderá extrair sem mais e de forma automática uma condenação em processo disciplinar, sob pena de inconstitucionalidade, por violado o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 32.°, n.° 2, da CRP;
XIII- Donde, o processo disciplinar deve assumir e desenvolver uma fase instrutória autónoma apta a provar factualidade relevante para o procedimento disciplinar. Ainda que aceite a materialidade provada na decisão penal condenatória e a autoria da prática dos mesmos, a sua autonomia permite carrear para o procedimento outros factos que sejam relevantes para a decisão disciplinar;
XIV- Todavia, dos autos disciplinares não resulta qualquer apreciação e valoração autónoma, resumindo-se os mesmos a uma total subordinação e cópia dos autos criminais, daí resultando vício insanável do procedimento administrativo;
XV- Pois que, pese embora a Administração esteja, em sede de processo disciplinar, vinculada aos factos dados como provados na decisão penal condenatória, está igualmente obrigada a proceder a uma aturada valoração e enquadramento jurídico para efeitos disciplinares;
XVI- E tal vinculação da Administração legal e jurisprudencialmente prevista tem como principal objetivo impedir que a condenação disciplinar ocorra por mero efeito automático da condenação penal;
XVII- Contrariamente ao que pretende o Recorrente fazer crer - e tal resulta claro e evidente de toda a prova documental constante dos autos principais e cautelares - não foi efetuada a cabal apreciação dos factos dados como provados, nem tão pouco foi realizada a necessária operação de subsunção dos factos ao direito disciplinar , tendo outrossim, sido realizada uma descuidada e mera cópia dos factos dados como provados em sede de processo crime, demitindo-se a Administração de proceder à legal obrigação de valoração autónoma dos factos e da prova produzida em sede disciplinar;
XVIII- Donde resulta que o ato administrativo impugnado se encontra inquinado pelo vicio de violação de lei - tal como e bem - decidiu o tribunal a quo, decretando em consequência e, como não podia deixar de ser, a sua anulação;
XIX- Vem ainda o Recorrente imputar à Sentença recorrida um pretenso vicio de violação de lei no que respeita à parte da aludida sentença em que se lê: “a aplicação da pena de demissão mostra-se manifestamente desproporcional, atendendo a que, dos factos provados, não resulta a impossibilidade de manutenção da relação funcional (cf. N.° 16 a 19 do probatório) - pelo que, mostra-se a decisão punitiva viciada por erro nos pressupostos de facto e de direito”;
XX- Ora, salvo o devido e maior respeito, cremos que não assiste qualquer razão ao Recorrente, porquanto a Douta Sentença recorrida, fez uma irrepreensível e adequada apreciação e valoração da prova produzida, não enfermando, portanto, de qualquer vicio que a invalide;
XXI- Na verdade, o Recorrente limitou-se - quer na faze extrajudicial, quer na fase judicial - a referir e afirmar que existe inviabilidade da relação funcional, quando e na verdade, toda a realidade e factualidade subjacente demonstram precisamente o contrário;
XXII- Pois que não resultando suficientemente (nem insuficientemente, diga-se) justificada a inviabilização da relação funcional, determinante da aplicação da pena de Demissão, o ato impugnado padece de erro sobre os pressupostos de facto e de direito que subjazem à decisão de aplicação da pena de demissão ao Recorrido.
XXIII- Ainda no que respeita à flagrante desproporcionalidade, desnecessidade e falta de adequação da pena de demissão aplicada ao Recorrido, e salvo o devido respeito, é evidente a falta de razão que assiste ao Recorrente quando pretende sustentar que não se verificou a violação de tais princípios basilares do direito sancionatório.
XXIV- Era exigível ao Recorrente, na aplicação de uma pena expulsiva, que alegasse e provasse factos concretos dos quais se extraísse, de forma inequívoca, a inviabilidade da manutenção da relação funcional, carreando para a sua fundamentação, não apenas as infrações praticadas, mas ainda todas as circunstâncias e ocorrências relevantes para o preenchimento do conceito que é determinante da aplicação da pena de expulsão como aquela que foi aplicada, de demissão, o que claramente não fez! O que a Douta Sentença bem analisou;
XXV- Alega ainda o Recorrente que “(...) apenas pode ser sancionada com uma pena expulsiva”
XXVI- Tal argumento falece ab initio, porquanto a Administração goza de ampla margem de discricionariedade na escolha da pena a aplicar, pois que a pena está íntima e necessariamente conexionada com a valoração que aquela Administração fará dos factos em causa, bem como das suas repercussões e efeitos futuros, e como não podia deixar de ser, na aferição sobre se o elemento policial alvo de pena disciplinar reúne ou não condições para o desempenho das suas funções policiais.
XXVII- Resulta claramente à saciedade que a Administração tinha elementos objetivos para aplicar uma pena não expulsiva pois a relação funcional e a sua manutenção não se encontram, de todo, inviabilizadas, como brilhantemente decidido pela Douta Sentença recorrida.
XXVIII- Olvida ou ignora o Recorrente, que o Recorrido foi promovido a Agente Principal já na pendência dos presentes autos e dos autos cautelares, mais concretamente, em 2 de julho de 2021, promoção publicada no DR 127-2021 de 02JUL (II Série - Parte C) Promoções a Agente Principal na PSP, sem qualquer condição ou reserva (conforme documento 1 que ora se junta).
XXIX- A que acresce a informação dos seus superiores hierárquicos, datada de 28.12.2021, sobre a avaliação do desempenho pessoal e profissional do Recorrido, no período de tempo que mediou a aplicação da pena disciplinar (março de 2021) (conforme documento 2 que ora se junta).
XXX- Pelo que, bem andou a Sentença Recorrida, não podendo aliás, decidir doutra forma, ao considerar que “a aplicação da pena de demissão mostra-se manifestamente desproporcional, atendendo a que, dos factos provados, não resulta a impossibilidade de manutenção da relação funcional, (...), pelo que, mostra-se a decisão punitiva viciada por erro nos pressupostos de facto e de direito”. Sublinhado nosso.
XXXI- Por fim, e no que respeita ao pretenso “sentimento de impunidade (...) seja dentro da corporação, seja da sociedade em geral (...), “(...) o prestígio e o bom nome de uma instituição como a PSP, são fortemente abalados (...)”; crê o Recorrente que tal não se verifica;
XXXII- No mesmo sentido já se pronunciou o TCA Sul, nomeadamente no Acórdão n.° 6070/10, de 22.04.2010, no qual se defendeu o seguinte: “A depreciação da imagem e o desprestigio das forças policiais, que resultam da manutenção do agente ao serviço, são diminutas, pois, numa sociedade urbana, essencialmente anónima, caracterizada pela vivência em conjunto de milhares de pessoas, o público em geral não terá nunca conhecimento da manutenção do agente em serviço enquanto durar o processo judicial, a menos, como é evidente, que tal seja objeto de notícia nos meios de comunicação social. O conhecimento do facto será obviamente restrito ao seu círculo de amigos e agentes que com ele trabalham. Mas, mesmo neste círculo, as pessoas compreenderão que as decisões de expulsão só se tornam irreversíveis, caso sejam impugnadas em Tribunal, após decisão judicial. E hoje, graças também ao papel dos meios de comunicação social, a generalidade das pessoas tem a perceção que existem processos cautelares que podem suspender decisões da administração. Donde, o desprestigio será certamente muito diminuto. (...)”;
XXXIII- Entendimento que, com a devida vénia e reverência, acompanhamos integralmente;
XXXIV- Nesta conformidade, entende o Recorrido que a douta Sentença recorrida revelou profundo conhecimento dos factos constantes do processo disciplinar e procedeu a uma cuidada e irrepreensível aplicação do direito, devendo por isso ser mantida na ordem jurídica pelo Venerando Tribunal Central Administrativo.
Nestes termos e nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências., deverá ser julgado improcedente o presente recurso, por não se verificarem os vícios assinalados pelo Recorrente e, em consequência, deverá ser mantida na ordem jurídica a, aliás, douta Sentença de 3 de dezembro de 2021 ora recorrida, pois só assim se decidindo será cumprido o direito e feita justiça!”
O Recurso Jurisdicional apresentado veio a ser admitido por Despacho de 7 de janeiro de 2022.

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 22 de janeiro de 2022, nada veio dizer, requerer ou Promover.

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente/MAI, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, onde se suscita, predominantemente a questão de saber se “A Sentença agora recorrida (…) enferma de erro nos pressupostos de facto e de direito, não se encontrando devidamente fundamentada.”

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade:
“1. O Requerente ingressou na PSP em 05.01.2009 como agente provisório, sendo que, apenas em 21.09.2009 efetivamente lhe foram atribuídas funções de patrulha apeada. - Conforme documento 7 que se dá por integramente reproduzido, fls. 45
2. Os factos por si alegadamente praticados e que estão na génese do (único) processo disciplinar que culminou com o ato suspendendo, datam de 19.01.2011 . resulta dos autos e do p.a.
3. Na data da prática dos factos, o Requerente tinha apenas 1 ano e 4 meses de polícia.
4. A PSP teve conhecimento dos factos que vieram a ser considerados como infração disciplinar, em 07.06.2016, aquando da receção do Ofício n.° 99579737, do DIAP de Sintra – 5ª secção, onde é comunicado o despacho final proferido no âmbito do inquérito NUIPC 113/11.3PASNT - doc. n° 1, fls. 26
5. Por despacho datado de 29.06.2016, o Comandante do Comando Metropolitano de Lisboa determinou a instauração do processo disciplinar a que foi atribuído o NUP 2016LSB00357DIS ao ora Requerente, Agente A.......
6. Em 15/10/2018 foi notificado da Acusação, apresentando defesa escrita.
7. Em 08.09.2020, é elaborado o Relatório Final subscrito pelo Instrutor do Processo Comissário C......, onde é proposto que seja aplicado ao Requerente a pena de Aposentação Compulsiva ou Demissão, de acordo com o artigo 23.°, n.° 1 e 2, alínea a), c), e) e f), artigo 30.°, n.° 1, alínea e) e f), artigo 35.°, 36.° e 46.°, todos do EDPSP - documento 1, fls. 26 e ss.
8. Em 12.11.2020, o Conselho de Deontologia e Disciplina da Polícia de Segurança Pública emitiu parecer, que por maioria, se pronunciou pela aplicação da pena disciplinar de DEMISSÃO prevista no artigo 23.°, n.° 1 e 2, alíneas a), c), e) e f), conjugado com os artigos 30.°, n.° 1, alínea f) e 36.°, todos do Estatuto Disciplinar da Polícia de Segurança Pública (EDPSP), aprovado pela Lei n.° 37/2019, de 30 de maio - doc. n° 2, fls. 31 a 35.
9. Em 20/11/2020, o DN da PSP emite Despacho, nos termos seguintes:
(…)
Nos termos e com os fundamentos do relatório do Sr. Instrutor e do parecer do Conselho de Deontologia e Disciplina, de 12 de novembro de 2020, submeta-se o Processo Disciplinar n.º 2016LSB00357DIS. em que é arguido o Agente NM/…..9, A......, do Comando Metropolitano de Lisboa, com a proposta de aplicação da pena disciplinar de DEMISSÃO.
Diretor Nacional-doc. n° 3, fls. 36
10. A Direção de Serviços de Assessoria Jurídica, Contencioso e Política Legislativa da Secretaria-Geral da Administração Interna, consultada para o efeito, emitiu o parecer n.° 728-HG/2020, de 22 de dezembro, no qual se pronuncia pela aplicação da pena disciplinar de Demissão - documento n° 4, fls. 37 a 42.
11. Em 21/03/2021 o Ministro da Administração Interna emitiu o Despacho aqui impugnado - doc. 5 e 6, fls. 43 v./44.
12. Ao requerente foi aplicada a pena disciplinar de DEMISSÃO por ter sido condenado criminalmente, por acórdão transitado em julgado, proferido pelo Juízo Central Criminal de Sintra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste e confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos artigos 26.°, 143.°, n.° 1, 144.°, alínea c) e 145.°, n.° 1, alínea c) e n.° 2, por referência ao artigo 132.°, n.° 2, alíneas h) e m), todos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período - idem e fls. 120 a 159 do p.a.
13. Condenou, ainda, o ora requerente no pagamento da quantia de €15.000, a título de indemnização a J......, solidariamente com o os demais arguidos, tendo a decisão transitado em 6/04/2018 - fls. 160 do p.a.
14. A PSP não procedeu à suspensão preventiva de funções, antes manteve o Requerente nas suas funções desde 2011, pelo menos, até à data da propositura da ação (5/05/2021) - facto admitido e resulta do p.a.
15. Em 6/06/2021 o Requerente foi notificado via e mail da apresentação da Oposição e da Resolução Fundamentada pelo requerido nos presentes autos e com a informação que teria de iniciar o cumprimento da pena - cessar as suas funções de polícia - com efeitos a 7/06/2021, tendo sido deduzida RESOLUÇÃO FUNDAMENTADA em 26 de Maio de 2021 - Doc. fls. 92 e admitido pelo Requerido e RF de fls. 74/75 dos autos que se dá como reproduzida.
16. O Requerente tem sido avaliado com "BOM" (2010 a 2016), MUITO BOM (2017 a 2020), estando colocado na classe de comportamento exemplar - doc. n° 7, fls. 45.
17. Desde 1/09/2019, o Requerente passou a exercer as funções de Graduado de Serviço - doc. n° 8, fls. 46.
18. A avaliação referente ao ano de 2020 consta do doc. n° 10, que se dá como reproduzido - fls. 49.
19. Em 23/03/2018 foi atribuída ao requerente a menção de Muito Mérito (LOUVOR), publicada na O.S. do COMETLIS, OSCML n° 58 - idem

IV – Do Direito
No que ao direito concerne e no que aqui releva, discorreu-se em 1ª instância:
“(…) Em matéria disciplinar, a aplicação de sanção insere-se na discricionariedade técnica da Administração, pelo que, o Tribunal só pode apreciar a sanção disciplinar aplicada, em caso de erro nos pressupostos de facto ou de direito na sua aplicação, ou erro (grosseiro) na apreciação da prova.
É o que tem vindo a ser decidido pela jurisprudência, apresentando-se, a título de exemplo, os seguintes arestos:
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo: 01494/08.1BEPRT
Data do Acórdão: 1ª Secção - Contencioso Administrativo 16-01-2015
I - Nos procedimentos disciplinares a função de controlo judicial tem como objetivo detetar se a apreciação das provas tem uma base racional, se o seu valor foi pesado com critério lógico e justo, não enfermando de erro de facto ou erro manifesto de apreciação.
II - É através da fundamentação da decisão que se deve verificar se a valoração das provas foi corretamente efetuada. *
O juízo do órgão instrutor é absolutamente sindicável pelo órgão jurisdicional, conforme se decidiu no seguinte Acórdão
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo: 01958/08.7BEPRT
Data do Acórdão: 1ª Secção - Contencioso Administrativo 10-05-2012
I. No processo disciplinar, à semelhança do que sucede no processo penal, o ónus da prova dos factos constitutivos da infração cabe ao titular do poder disciplinar, sendo que nele o arguido assume uma posição de sujeito processual e não dum seu mero objeto.
II. No mesmo a prova da prática da infração que é exigida deve ser conclusiva e inequívoca no sentido de que o sancionado é o autor/responsável, não podendo impor-se uma sanção com base em simples indícios, presunções ou conjeturas subjetivas.
III. O instrutor não pode avaliar as provas simplesmente segundo as suas opiniões individuais, mas segundo as regras da verdade histórica e com fundamentação da decisão.
IV. O condicionamento da ampla zona de liberdade probatória pelo fim de se obter a verdade material, conduz necessariamente à revisibilidade jurisdicional do juízo efetuado pelo órgão instrutor ou decisor sobre a apreciação e valoração das provas, sendo que o tribunal não está vinculado à apreciação que esse órgão tenha feito das provas recolhidas.*
É que, "não obstante o instrutor do processo gozar de uma ampla margem de liberdade na apreciação da prova, devendo decidir em função da sua livre convicção, (...) o julgamento de facto por ele efetuado pode ser objeto de reapreciação por parte do Tribunal que seja chamado a julgar a legalidade da pena aplicada, a quem competirá proceder ao controlo e verificação da materialidade dos factos, em homenagem ao direito fundamental à tutela judicial efetiva"
A Entidade Demandada alega que o Autor, ao ter praticado um crime de ofensa à integridade física grave qualificada violou de forma grave os mais básicos deveres que sobre si recaem - porém, atente-se que os factos datam de Janeiro 2011, ou seja, quando o Autor tinha apenas um ano e 4 meses de serviço (cf. n° 2 e 3 do probatório).
Além disso, tais factos já tinham sido apreciados em sede de processo criminal, pelo que, não pode o Autor ser sancionado duas vezes pelo mesmo facto, sob pena de violação do Princípio Constitucional ne bis in idem consagrado no art° 29° n° 5 da CRP (cf. n° 12 do probatório).
Tal como se tem manifestado a jurisprudência dominante, No processo disciplinar vigora a regra da livre apreciação da prova peio julgador administrativo, sem prejuízo dos limites gerais do poder discricionário da Adm. P, citando-se a este propósito, o seguinte Acórdão do TCA Sul:
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo: 06944/10
Data do Acórdão: CA - 2.° JUÍZO 20-12-2012
1. A acusação em processo disciplinar pode conter os factos apurados no auto de notícia e outros apurados posteriormente.
2. No processo disciplinar vigora a regra da livre apreciação da prova pelo julgador administrativo, sem prejuízo dos limites gerais do poder discricionário da Adm. P.
3. O poder disciplinar é discricionário, mas com aspetos vinculados, sendo um destes o que se relaciona com a qualificação jurídica dos factos reais.
In casu, a aplicação da pena de demissão mostra-se manifestamente desproporcional, atendendo a que, dos factos provados, não resulta a impossibilidade de manutenção da relação funcional (cf. n° 16 a 19 do probatório) - pelo que, mostra-se a decisão punitiva viciada por erro nos pressupostos de facto e de direito.
Em consequência, deve ser anulada.
V - Decisão
Pelo exposto, Julga-se a presente ação procedente, e, em consequência:
Anula-se o Despacho aqui impugnado do MAI proferido em 31/03/2021, por via do qual e na sequência do processo Disciplinar NUP 2016LSB00357DIS foi aplicada ao Autor a pena disciplinar de demissão, por erro nos pressupostos de facto e de direito.”

Vejamos:
A Sentença recorrida decidiu anular o despacho proferido pelo Ministro da Administração Interna, em 31 de março de 2021, pelo qual foi aplicada ao ora recorrido a pena disciplinar de demissão, assentando no entendimento de acordo com o qual o Despacho recorrido errou nos fundamentos de facto e de direito.

Diga-se, desde já que, independentemente do sentido da decisão recorrida, a mesma mostra-se conclusiva e insuficientemente fundamentada.

Considerou, desde logo, o Tribunal a quo que «tais factos já tinham sido apreciados em sede de processo criminal, pelo que, não pode o Autor ser sancionado duas vezes pelo mesmo facto, sob pena de violação do Princípio Constitucional ne bis in idem consagrado no art° 29° n° 5 da CRP (cf n° 12 do probatório).»

Não acompanhamos o referido entendimento.

Como sumariado no Acórdão deste TCAS, com idêntico Relator, nº 1287/09.9BESNT, de 20-10-2022:
“No que respeita à violação do principio “ne bis in idem”, importa sublinhar que a pendência simultânea de procedimento de natureza disciplinar e criminal, não constitui violação do referido principio, pela singela razão que têm natureza, objeto e objetivos diversos.
O processo disciplinar é autónomo do processo criminal, uma vez que são diversos os fundamentos e fins das respetivas penas, bem como os pressupostos da respetiva responsabilidade, podendo ser diversas as valorações que cada uma delas faz dos mesmos factos e circunstâncias.
Assim, a existência de ilícito disciplinar não está prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser tomada em processo penal, em face do que a eventual aplicação de penas em cada um dos processos não constitui violação do princípio “ne bis idem”.”

Decidiu-se, igualmente, no mesmo sentido, entre muitos outros, no Acórdão do TCAN nº 02156/16.1BEBRG de 06-04-2018.

Também o Acórdão do STA de 19-06-2007, Rec. 01058/06, havia já decidido que “a decisão penal condenatória, transitada em julgado, vincula a decisão disciplinar no que respeita à verificação da existência material dos factos e dos seus autores, sem prejuízo da sua valoração e enquadramento jurídico para efeitos disciplinares.”

Assim, e ainda, como se discorreu, entre outros, no acórdão de 26.06.2008, do Tribunal Central Administrativo do Sul, proferido no processo n.º 03670/09, “As questões da independência entre o processo criminal e o procedimento disciplinar, bem como a relevância, no processo disciplinar, de decisões proferidas em processo-crime que versaram sobre o mesmos factos, têm sido abundantemente discutidas na doutrina e na jurisprudência. Como já observava, o Prof Eduardo Correia, in Direito Criminal II, Coimbra 1992, p.5 e Parecer da PGR nº24/95, de 07.12.1995, “um mesmo facto pode constituir ao mesmo tempo uma falta penal e uma falta disciplinar; mas, igualmente pode acontecer que esse facto constitua uma infração penal sem ter o carácter de falta disciplinar e que, inversamente, um facto constitua uma falta disciplinar, sem reunir as condições de uma infração penal (…)”.

Com efeito, a autonomia dos campos disciplinar e penal caracteriza-se, “pela coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios”, desde logo, “só as faltas cometidas no exercício da função ou suscetíveis de comprometer a dignidade desta podem ser objeto de repressão disciplinar (…)”.

Enquanto a repressão penal é exercida no interesse e segundo as necessidades da sociedade em geral, a repressão disciplinar é-o no interesse e segundo as necessidades do serviço. A sanção penal atinge o cidadão na sua liberdade e nos seus bens, a sanção disciplinar atinge o funcionário na sua situação de carreira (…). A valoração é, assim, autónoma e independente, donde resulta, pois, que a mesma conduta pode ser apreciada simultaneamente no campo penal e no campo disciplinar, sem que isso envolva violação do princípio “ne bis in idem”, que apenas funciona no âmbito de cada específico ordenamento sancionatório”.

Em concreto, o próprio artigo 6.° do EDPSP refere que «O procedimento disciplinar é independente do procedimento criminal.»

Decorre do precedentemente referido que a Sentença Recorrida, neste aspeto, enferma de erro sobre os pressupostos de direito, o que, só por si, determinará a revogação da Sentença Recorrida.

Importa agora analisar a ausência de “impossibilidade de manutenção da relação funcional”, declarada em 1ª Instância

Efetiva e singelamente, afirmou-se em 1ª Instância que a «aplicação da pena de demissão mostra-se manifestamente desproporcional, atendendo a que, dos factos provados, não resulta a impossibilidade de manutenção da relação funcional, pelo que, mostra-se a decisão punitiva viciada por erro nos pressupostos de facto e de direito».

Se é certo que a afirmação feita em 1ª Instância se mostra meramente conclusiva, importa analisar mais profundamente o referido conceito.

A aplicabilidade da Pena de Demissão exige que a infração disciplinar inviabilize a manutenção da relação funcional.

«É pacificamente entendido que o juízo de inviabilização da relação funcional não resulta ipso facto do disposto de qualquer das disposições legais do Estatuto Disciplinar aplicável aos agentes e funcionários públicos, e por isso, também em relação ao disposto no Regulamento de Disciplina da PSP, mas que resulta antes do conjunto normativo em que tal preceito se insere, alicerçado no conjunto de factos e de circunstâncias concretas conducentes à conclusão de que não é mais possível manter o vínculo jurídico-funcional existente.
No mesmo sentido, da imprescindibilidade de um juízo de prognose sobre o preenchimento do conceito indeterminado correspondente à inviabilidade da manutenção da relação funcional, decidiram, entre outros, os Acórdãos do STA de 09-07-98, proc. 040931, de 13-01-99, proc. 040060, de 02-12-2004, proc. 01038/04 e de 11-10-2006, proc. 010/06.
Assim, a aplicação de uma medida expulsiva - quer se trate de demissão, quer de aposentação compulsiva - só pode ter lugar quando a conduta do infrator atinja de tal forma o prestígio e a credibilidade da instituição de que faz parte que a sua não aplicação, não só iria contribuir para degradar a imagem de seriedade e de isenção dessa instituição, como também poderia ser considerada pela opinião pública como chocante ou escandalosa.
Por ser assim é que a aplicação daquelas penas aos agentes ou funcionários da PSP depende da prática de infrações disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional (art.º 47.º/1 do RD/PSP), isto é, de comportamentos capazes de minar de forma inapagável não só a imagem de prestígio e de credibilidade daquela Corporação como também a confiança que nelas depositam os cidadãos e que, por isso, impossibilitem a relação de confiança indispensável à manutenção do vínculo funcional.
Todavia, a aplicação de uma ou de outra dessas medidas não é arbitrária, visto o RD/PSP estabelecer que “a pena de aposentação compulsiva é especialmente aplicável nos casos em que se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício de funções” e que a pena de demissão está reservada – “é especialmente aplicável” - àqueles que tiverem cometido crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a três anos, aos que abusem dos poderes de autoridade conferidos por lei ou que pratiquem crimes contra o Estado (artigo 49º do RD/PSP; cfr. Acórdão do STA de 5-5-2011, Processo nº 0934/10).
A inviabilização da manutenção da relação funcional resultante do facto punível constitui, portanto, o critério geral para a aplicação da pena aposentação compulsiva ou da pena de demissão, e a valoração das infrações disciplinares como inviabilizadoras dessa relação “tem de assentar não só na gravidade objetiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do ato e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções” (cfr. Acórdão do STA de 01/04/2003, proc. 01228/02).
Tem-se entendido que “não se deve manter a relação funcional sempre que os factos cometidos pelo arguido, avaliados e considerados no seu contexto, impliquem, para o desempenho da função, prejuízo de tal monta que irremediavelmente comprometa o interesse público que aquele deve prosseguir, designadamente, a eficiência, a confiança, o prestígio e a idoneidade que deva merecer a ação da Administração, de tal modo que o único meio de acudir ao mal seja a ablação do elemento que lhe deu causa.” (vide Acórdão do STA de 30-11-94, proc. nº 032500).
Como se escreveu no Ac. do STA de 01-03-1991, proc. nº 028339, “a inviabilização da manutenção da relação funcional não é o facto que possa ser objeto de prova, mas uma cláusula geral a preencher por juízos de prognose efetuados com certa margem de liberdade administrativa”.
Em vários outros acórdãos do STA se esclarece que o conceito de inviabilidade da manutenção da relação funcional se concretiza através de juízos de prognose acerca da gravidade das infrações praticadas, gravidade projetada na continuação ou quebra da relação funcional (cfr., entre outros, os Acórdãos do STA de 30-11-1994, proc. 32500 e de 01-04-2003, proc.1228/03).
Para além disso, no âmbito do processo disciplinar não pode, em regra, o juiz sindicar a medida da pena, salvo nos casos de erro grosseiro ou de clara violação de princípios constitucionais vinculativos da atividade administrativa, como o princípio da proporcionalidade, pois, como ditou o Acórdão do Pleno do STA, datado de 29-03-2007, proc. nº 0412/05, ao exercer os seus poderes disciplinares em sede de graduação da culpa e de determinação da medida concreta da pena, a Administração goza de certa margem de liberdade, numa área antigamente designada de “justiça administrativa”, movendo-se a coberto da sindicância judicial, salvo se os critérios de graduação que utilizou ou o resultado que atingiu forem grosseiros ou ostensivamente inadmissíveis ou ilegais.
Porém, não se encontra o juiz impedido de sindicar a legalidade da decisão punitiva que ofenda os critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei ou que ultrapasse os limites normativo-constitucionais, aferindo se foram ou não ponderadas as circunstâncias concretas, que, pela sua gravidade, indiciariam a inviabilização da manutenção da relação funcional.
[…]
Portanto, o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à "inviabilidade da manutenção da relação funcional" constante do nº 1 do artigo 47º do RD/PSP, constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante juízos de prognose efetuados com grande margem de liberdade administrativa. Esta tarefa não é, porém, arbitrária, pois deve reger-se pelos princípios de vinculação ao fim, da imparcialidade e da proporcionalidade, que são orientadores da atividade decisória, cabendo aos tribunais administrativos a função de verificar se a Administração se moveu dentro dos aludidos parâmetros.
O ónus de concretização circunstancial e factual incumbe à Administração, já que é sobre si que recaem os ónus de alegar e de provar os factos dos quais resulte o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, sendo, pois, insuficiente a mera referência a essa inviabilidade.» (Ac. do TCAS, de 15-12-2016, rec. 12810/15).

Aqui chegados, é patente que a Administração não fez prova de factos objetivos dos quais resulte o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional.

Aliás, não é despiciente afirmar que tendo a infração que veio a determinar a aplicação da pena de demissão ocorrido em 19.01.2011, o que é facto é que o agente foi sendo mantido no serviço de patrulhamento, ao invés de lhe terem sido, por exemplo, atribuídas funções predominantemente administrativas, sendo que foi avaliado com "BOM" (2010 a 2016) e MUITO BOM (2017 a 2020), ao que acresce que desde 1/09/2019, passou a exercer as funções de Graduado de Serviço, tendo-lhe em 23/03/2018 sido atribuída a menção de Muito Mérito (LOUVOR).

Os referidos factos, mesmo na perspetiva da PSP, não parecem configurar uma situação em que estivesse inviabilizada a manutenção da relação funcional.
Como se sumariou ainda no Acórdão do TCAN nº 00227/10.7BEPRT, de 05-06-2015, aqui aplicado mutatis mutandis:
“(…) A inviabilização da manutenção da relação funcional resultante do facto punível constitui o critério geral para a aplicação da pena aposentação compulsiva e a valoração das infrações disciplinares como inviabilizadoras dessa relação tem de assentar não só na gravidade objetiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do ato e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções.
Tem-se entendido que não se deve manter a relação funcional sempre que os factos cometidos pelo arguido, avaliados e considerados no seu contexto, impliquem para o desempenho da função prejuízo de tal monta que irremediavelmente comprometa o interesse público que aquele deve prosseguir, designadamente, a eficiência, a confiança, o prestígio e a idoneidade que deva merecer a ação da Administração de tal modo que o único meio de acudir ao mal, seja a ablação do elemento que lhe deu causa.
No entanto, no âmbito do processo disciplinar não pode o tribunal sindicar a medida da pena, alterando a mesma, pois ao exercer os seus poderes disciplinares em sede de graduação da culpa e de determinação da medida concreta da pena, a Administração goza de certa margem de liberdade, numa área designada de “justiça administrativa”, movendo-se a coberto da sindicância judicial, salvo se os critérios de graduação que utilizou ou o resultado que atingiu forem grosseiros ou ostensivamente inadmissíveis.
Porém, não se encontra o tribunal impedido de sindicar a legalidade da decisão punitiva que ofenda os critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei ou que ultrapasse os limites normativos correspondentes, aferindo se foram ou não ponderadas as circunstâncias concretas, que, pela sua gravidade, indiciariam a inviabilização da manutenção da relação funcional. *

Discorre-se ainda no discurso fundamentador do referido Acórdão:
«[C]omo resulta do acórdão recorrido, se é certo que estamos a falar de um agente policial, de quem se espera que dê o exemplo e tenha uma conduta imaculada, não deixa de ter de se considerar desproporcionada a aplicação de uma pena de Aposentação compulsiva a um agente sem antecedentes disciplinares e que tentou furtar um “CD” num Hipermercado.
Atente-se ainda na circunstância do agente policial aqui Recorrido, ao longo da sua carreira ter sido louvado duas vezes, elogiado uma, tendo ainda recebido a medalha de cobre e prata por bom comportamento […] ao que acresce a circunstância descrita em relatório médico junto aos autos, dando conta da potencial verificação de “comportamentos desviantes” resultantes da medicação à data tomada pelo mesmo.
Se é certo que a conduta do agente policial violou gravemente os deveres decorrentes da função policial, mostrando-se indigna de um agente da autoridade, potencialmente lesiva da imagem da PSP, tal não poderá significar que de imediato, e sem quaisquer antecedentes de natureza disciplinar, tenha de determinar automaticamente, sem mais, a inviabilização da manutenção da relação funcional.
(…)
Revertendo todo o expendido para o caso configurado em juízo é de entender que, no caso, não terão sido, adequada e suficientemente, ponderadas as circunstâncias concretas determinantes da concluída inviabilização da manutenção da relação funcional do agente policial.
[…]
Na verdade, «as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis às infrações disciplinares muito graves» (art.º 46.º do RD-PSP 2019). E muito graves são «os comportamentos dos polícias que violem um ou mais deveres a que se encontram sujeitos, cometidos com negligência grosseira ou dolo, quando deles resultem danos ou prejuízos elevados para o serviço ou para terceiros e que ponham gravemente em causa o prestígio e o bom nome da instituição, inviabilizando, dessa forma, a manutenção da relação funcional» (art.º 23.º do RD-PSP 2019). Esta inviabilização ocorre, no que ora importa, com a prática, «no exercício de funções ou fora delas, [de] crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, que, pela sua natureza, comprometa a confiança necessária ao exercício da função» (art.º 23.º, n.º 2, com sublinhado nosso).
(…)
Não se pode considerar inviabilizada a manutenção da relação funcional, seja ao abrigo do RD-PSP 1990, seja ao abrigo do RD-PSP 2019 (se for a lei em concreto e globalmente mais favorável – art.º 29.º, n.º 4, da CRP, aplicável ao direito sancionatório).
O ato impugnado padece, assim, de violação de lei, por erro nos pressupostos de Direito, vício gerador de anulabilidade (art.º 163.º do CPA).
Não se pode, pois, manter o ato impugnado, devendo ser anulado.”

Correspondentemente, em função de tudo quanto precedentemente se expendeu, não tendo a PSP dado cumprimento ao ónus que era seu, de concretização circunstancial e factual de alegar e de provar os factos dos quais resulte o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, sendo, pois, insuficiente a mera referência a essa inviabilidade, ficou por provar a referida inviabilidade.

Resulta do n.º 1 do artigo 47º do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, Lei n.º 7/90 de 20 de fevereiro que “As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infrações disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional.”

Entende-se que o descrito se adequa à questão aqui controvertida.

Em qualquer caso, sempre se dirá acrescidamente que o preenchimento do conceito indeterminado exige um juízo de prognose a efetuar, no caso, pela PSP, no sentido de demonstrar a inviabilidade da relação funcional.

O referido juízo de prognose, deve ser realizado não só considerando os factos no momento da prática da ação, mas também aos factos posteriores ao momento da prática do facto, nomeadamente o percurso profissional do autor, sendo que tem de assentar não só na gravidade objetiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do ato e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções, o que ficou disciplinarmente por provar.

É certo que o tribunal não se encontra impedido de sindicar a legalidade da decisão punitiva que ofenda os critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei ou que ultrapasse os limites normativo-constitucionais, aferindo se foram ou não ponderadas as circunstâncias concretas, que, pela sua gravidade, indiciariam a inviabilização da manutenção da relação funcional, sendo que o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional constante do nº 1 do artigo 47º do RD/PSP, constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante juízos de prognose efetuados com grande margem de liberdade administrativa. Esta tarefa não é, porém, arbitrária, pois deve reger-se pelos princípios de vinculação ao fim, da imparcialidade e da proporcionalidade, que são orientadores da atividade decisória, cabendo aos tribunais administrativos a função de verificar se a Administração se moveu dentro dos aludidos parâmetros.

Não basta ao MAI indicar e explanar a violação de princípios e deveres consignados do RD/PSP, importando ainda mais provar que essa violação preenche o conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, o que não logrou alcançar.
Como se disse já, se é certo que a conduta do agente policial violou gravemente os deveres decorrentes da função policial, mostrando-se indigna de um agente da autoridade, potencialmente lesiva da imagem da PSP, tal não poderá significar que de imediato, e sem quaisquer antecedentes de natureza disciplinar, tenha de determinar automaticamente, sem mais, a inviabilização da manutenção da relação funcional.

Como resulta demonstrado, ficou por provar que a prática da infração imputada ao Recorrido tenha inviabilizado a manutenção da relação funcional.

É patente que a Administração, fruto da sua intenção de penalizar o prevaricador, tornando-o num exemplo para a corporação, não cuidou de avaliar, ponderadamente todos os factos conexos com a prática da infração, o que determinou a aplicação de uma pena manifestamente desproporcional à infração praticada, pois que na escolha da pena terá sempre de ser dada preferência àquela que se mostre adequada e suficiente às finalidades da punição.

Aqui chegados, reitera-se que não é possível afirmar que o MAI tenha preenchido o conceito indeterminado tendente a concluir pela “inviabilidade da manutenção relação funcional” do agente da PSP aqui em causa.

Não se pode pois considerar inviabilizada a manutenção da relação funcional, seja ao abrigo do RD-PSP 1990, seja ao abrigo do RD-PSP 2019, enquanto regime sancionatório globalmente mais favorável – art.º 29.º, n.º 4, da CRP.

O ato objeto de impugnação está, assim, ferido do vicio de violação de lei, por erro nos pressupostos de Direito, gerador de anulabilidade.

* * *
Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, embora com fundamentação acrescida e nem sempre coincidente, confirmar o sentido da Sentença objeto de Recurso.

Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 12 de outubro de 2023
Frederico de Frias Macedo Branco

Rui Pereira

Carlos Araújo