Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 1104/06.1 BEALM-A |
Secção: | CT |
Data do Acordão: | 10/19/2023 |
Relator: | ANA CRISTINA CARVALHO |
Descritores: | REVISÃO DE SENTENÇA IMPUGNAÇÃO JUDICIAL SENTENÇA PROCESSO CRIME |
Sumário: | I – Para a sua consumação do crime de fraude fiscal basta que o facto tenha sido praticado com a intenção de obter um determinado resultado, ainda que o resultado não ocorra.
II – Já em matéria de tributação, cuja declaração foi omitida, o desconhecimento do facto tributário verificado na esfera do contribuinte por efeito de procuração irrevogável por este conferida com poderes especiais para a venda de imóvel pelo preço que o mandatário entendesse não tem relevância para afastar a responsabilidade tributária.
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Indicações Eventuais: | Subsecção tributária comum |
Aditamento: |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção Comum de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul
I - RELATÓRIO
M. F. e J. M., vieram interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que indeferiu o recurso de revisão de sentença por não se verificarem os pressupostos para tal, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões: «I. Na sentença transitada em julgado, proferida a 14 de Fevereiro de 2013 no 3º Juízo Criminal de Setúbal, processo nº 34/07.4IDSTB, junta aos autos, ficou suficientemente provado que as declarações prestadas na aludida escritura não correspondem à verdade, são falsas, designadamente quanto ao preço pelo qual o recorrente e seus irmãos venderam os prédios em causa; II. Há fundamento para o pedido de revisão, por se preencherem os requisitos previstos no nº 2 do artigo 293º do CPPT; III. A decisão em revisão, para o apuramento da matéria coletável de imposto, sustentou-se nas declarações proferidas pelos procuradores dos vendedores quanto a preço na escritura de compra e venda, pelo que o valor atendido para efeitos e cálculo das mais-valias foi valor constante da escritura pública, ou seja o valor de 1.995.195,00; IV. Ficou provado na Sentença do 3º Juízo Criminal de Setúbal que o valor da alienação foi de € 1.184.645,00 e a vantagem patrimonial, isto é, a coleta exigível de € 17371,98; V. Da decisão que serviu de fundamento ao pedido de revisão podem extrair-se, com total segurança, que a impugnante nada sabia do negócio, dele não beneficiou e que fez a declaração fiscal de 2003, quanto aos rendimentos de IRS de 2002, tendo declarando a união de facto no desconhecimento de que o seu companheiro poderia ser tributado a título de mais-valias; VI. que o valor da venda dos autos foi muito inferior ao declarado pelo procuradores na escritura de 21 de Maio de 2002; foi de € 1.184.645,00 (237.500.000$00), valor que consta do contrato promessa de compra e venda celebrado em 17/9/1999; VII. que é falsa a declaração contida na escritura de 2002, prestada pelos procuradores dos vendedores e em sua representação, quando referem o preço de € 1,995.195,00 e o seu recebimento pelos vendedores; VIII. Tal falsidade não pode relevar para o apuramento da matéria coletável de imposto em sede de IRS; IX. Os recorrentes entendem efetivamente que, tendo ficado provado que as declarações proferidas na escritura pública em causa foram falsas, designadamente quanto ao preço das compras e vendas, e que o falso valor declarado serviu para o apuramento da matéria coletável e respetiva coleta, há manifesto fundamento para a revisão; X. A escritura pública não é documento autêntico quanto às declarações nela proferidas, que não são objeto da apreensão do notário, como é caso das declarações dos outorgantes quanto ao preço, vide art.º 371º nº 1 do Código Civil; XI. Não está, assim, em causa, para os recorrentes a preterição de prazo de arguição de falsidade do documento; XII. A sentença proferida no Tribunal criminal de Setúbal, constitui documento que tem a suscetibilidade de, por si só, provocar a alteração da matéria fáctica no sentido favorável aos recorrentes, quando dá como provado que o valor da alienação a atender é o de € 1.184.645,00 e que a vantagem patrimonial indevida é de € 17.371,98.” XIII. A sentença recorrida labora em manifesto erro, quando diz que na sentença do Tribunal de Setúbal "consta que os valores atendidos são os que constam do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.”; XIV. Não é isso que diz a sentença de Setúbal; o que se diz é que foi usado o critério deste Venerando Tribunal para encontrar as percentagens dos valores de realização que concorrem para a determinação do rendimento coletável; XV. Como só pode ser lapso a afirmação de que "nunca é referido que o valor que consta da escritura de compra e venda é falso"; XVI. A frase, “Analisada a documentação, apurou-se que o valor da alienação a atender é o de € 1.184.645,00", com o devido respeito, não poderá ter outro entendimento; XVII. A recorrente M., como resulta da Sentença de Setúbal, nada sabia do negócio com relevância para a sua declaração de rendimentos de 2002, optou pela declaração como união de facto por desconhecer os rendimentos do seu companheiro, pelo que fácil será concluir que, se o soubesse, atuaria diferentemente, como podia; XVIII. Deverá, assim, ser considerando como valor de realização para efeitos de tributação de mais-valias de IRS o valor de venda global de € 1.184.645,00 (237.500.000$00) e não o valor falsamente declarado na escritura de compra e venda e que foi o considerado na sentença; XIV. Deverá ser revogada a sentença recorrida, que viola o disposto no arts. 293º, nº 2, do CPPT, dando-se provimento ao presente recurso, com a consequente revisão de sentença requerida; Determinando-se a anulação da liquidação de IRS do ano de 2002, nº 2006 5004463493, e respetivos juros compensatórios, também na parte referente à mais-valia calculada sobre o ganho proveniente do preço declarado na escritura, devendo tal cálculo ter como valor de realização o efetivamente recebido pelo recorrente; XX. Deverá ainda ser atendida a particular situação da impugnante M. quanto ao total desconhecimento dos factos relativos às vendas e sua tributação e que foi no pressuposto de nada havia a declarar que optou pela entrega da declaração em situação de união de facto; XXI. Decidindo-se em conformidade com o pedido será feita a habitual JUSTIÇA!» * Notificada da admissão do recurso interposto, a Fazenda Pública, não apresentou contra-alegações. * O Digno Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal Central, emitiu nos termos do artigo 289.º, n.º 1 do CPPT douto parecer no sentido da improcedência do recurso. * Com dispensa dos vistos legais, dada a simplicidade da causa, vem o processo submetido à conferência para apreciação e decisão. * II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente no âmbito das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Importa assim, apreciar e decidir se o Tribunal a quo ao julgar o recurso de revisão improcedente, por não se verificam os pressupostos de revisão da sentença, incorreu em: i) erro de julgamento por errada valoração da prova, por resultar da sentença proferida em processo crime a prova de que o valor de venda dos imóveis não foi o constante da escritura, no montante de € 1.995.195,00, mas sim o valor de € 1.184.645,00, sendo de retirar a ilação de que as declarações prestadas na escritura foram falsas; ii) erro de julgamento de facto e de direito por não considerar a referida prova suficiente para concluir que a recorrente nada sabia do negócio com relevância para a declaração de rendimentos de 2002 optando assim, com base nesse desconhecimento, pela entrega da declaração no regime de unida de facto.
III - FUNDAMENTAÇÃO III – 1. De facto
É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida: «1. Em 9 de Março de 2000 o impugnante J. M. e outros co-titulares do direito de propriedade .. lavraram uma procuração, emitida também no interesse dos procuradores, a favor de J. T. e de J. R., nos termos da qual concederam a estes poderes especiais "para vender pelo preço e pelas condições que entendessem” e "conferem aos mesmos procuradores os necessários poderes para, em seu nome e representação, assinar contratos-promessa relativo aos mencionados prédios, e outorgar as respectivas escrituras públicas de compra e venda" dos seguintes prédios: * Com base no montante de € 296.161,25 (duzentos e noventa e seis mil cento e sessenta e um euros e vinte e cinco cêntimos), sendo os imóveis assinalados a "negrito" e com "sublinhado" os que concorrem para a determinação do rendimento colectável segundo o Acórdão do Tribunal Central Administrativo constante dos autos a fls, 201 e seguintes). 8) A vantagem patrimonial indevida é de € 17.371,98 (dezassete mil trezentos e setenta e um euros e noventa e oito cêntimos). 9) O arguido sabia que teria de entregar imposto resultante de mais-valias obtidas com a venda dos terrenos, mas omitiu tais rendimentos. 10) Os arguidos agiram sempre de forma livre. Mais se provou que: 11) Na escritura de compra e venda outorgada no dia 21 de Maio de 2002 o arguido e os seus irmãos foram representados por um indivíduo de nome "J. R.", o qual estava munido de uma procuração que foi conferida pelo arguido e pelos irmãos deste no dia 9 de Março de 2000, documento esse que lhe permitia vender os bens supra referidos pelo preço e pelas condições que entendesse. (…)” (cfr. doc. junto a fls. 25 a 35 dos autos);»* Consta ainda da mesma sentença que «A decisão da matéria de facto com base no exame das informações e dos documentos, não impugnados, que dos autos constam, todos objecto de análise concreta, conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.DOS FACTOS NÃO PROVADOS Não ficou provado que o Impugnante J. M. e seus irmãos tenham dado posse dos terrenos aos procuradores constantes da procuração melhor identificada no ponto 1 do probatório supra. Não ficou provado que o valor de venda constante da escritura de compra e venda realizada em 21/05/2002 tivesse sido declarado falso. Não ficou provado que os Impugnantes tenham arguido a falsidade do valor constante da escritura de compra e venda realizada em 21/05/2002. Dos factos constantes da oposição, todos objectos de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.» * III – 2. Da apreciação do recurso
Antes de mais, para melhor percebermos o alcance do recurso jurisdicional que nos vem dirigido importa ter presente o âmbito da decisão proferida. Os ora recorrentes deduziram acção de impugnação na qual formularam pedido de anulação da liquidação de IRS de 2002, com fundamento em ilegitimidade da impugnante, em caducidade do direito à liquidação, em ilegalidade da incidência de imposto sobre parte dos direitos detidos sobre diversos imóveis alienados e em erro no valor a considerar para efeitos de tributação. Por sentença proferida pelo TAF de Almada no processo n.º 1104/06.1BEALM foi julgada parcialmente procedente a sua pretensão no que se refere ao valor da mais valia calculada sobre o ganho com a alienação de parte do prédio adquirido em 1986. No segmento da decisão que foi julgada improcedente, no que releva para a decisão do recurso, o Tribunal sustentou-se na seguinte fundamentação, que veio a ser sufragada pelo TCA Sul em sede de recurso: «(…) Nos termos do disposto no art. 14º do Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), as pessoas que vivam em união de facto e preencham os demais requisitos previstos na Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens. Conforme resulta do probatório no ano de 2002 os impugnantes viviam em união de facto, e em 2003, apresentaram declaração de IRS conjunta relativa a esse ano, tendo declarado que viviam em união de facto. Por conseguinte, nos termos do nº 3 do mesmo preceito, ambos os declarantes (ora impugnantes) serão responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias. Em face do exposto, não há qualquer fundamento legal para que a impugnante M. F. não seja considerada como sujeito passivo, nos termos do nº 2 do art. 13º, por remissão do nº 3 do artigo 14º, ambos do CIRS. (…) 4. Do valor a considerar para efeitos de tributação Por último, os impugnantes invocam que o ganho só poderá ser aferido tendo por base o preço de venda efectivo de 237.500.000$00 e não o valor ficcionado da escritura, que os proprietários e mandantes nunca receberam, desconhecendo a razão da sua declaração pelos mandatários. Ou seja, a questão prende-se com o valor a atender para efeitos de cálculo das mais-valias, se o valor alegadamente recebido de Esc. 237.500.000$00 ou se o valor constante da escritura pública, de € 1.995.195,00. Neste contexto os impugnantes juntaram vários documentos, que comprovam que o impugnante J. M. e seus irmãos receberam no decurso dos anos de 1999 e 2000 diversas quantias pecuniárias por conta do preço de venda dos imóveis, e que tais recebimentos ocorreram mesmo em data anterior à assinatura do contrato-promessa unilateral, e foram efectuados por diversas pessoas (pela sociedade "E., pelo procurador J. T. e por F. J. M.). Sucede que tais documentos não permitem concluir qual a quantia efectivamente recebida pelos comproprietários dos imóveis, nem sequer em função de que valor acordado. Na verdade, pese embora os comproprietários tenham prometido vender os imóveis pelo preço de Esc. 237.500.000$00 à sociedade "E.”, esta não assinou o contrato-promessa, pelo que tal contrato apenas vinculou os primeiros, e não tendo sido feita qualquer adenda a tal contrato e não tendo sido cumpridos os prazos nele constantes desconhece-se se houve ou não qualquer outro acordo verbal, sendo certo que a este respeito o depoimento das testemunhas não foram esclarecedores. Por conseguinte, agindo os procuradores em representação dos comproprietários dos imóveis, o acto transmissivo reflectiu-se na esfera jurídica destes últimos, pelo que o valor a atender para efeitos de cálculo das mais valias será sempre o valor constante da escritura pública, ou seja o valor de € 1.995.195,00, pelo que improcede nesta parte a pretensão dos impugnantes.» (sublinhados e destacados nossos). Com o pedido de revisão da sentença pretenderam os ora recorrentes que o Tribunal recorrido julgasse procedente a impugnação e anulasse o acto tributário de liquidação. Sustentaram a sua pretensão no facto de ter sido proferida sentença no processo n.º 34/07.4IDSTB, que correu termos no 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, transitada em julgado em 07/03/2013, alegando que ali ficou provado que o valor de venda dos imóveis não foi o constante da escritura. Invocam, portanto, conforme se retira do artigo 5.º da petição, a falsidade da escritura «que sustenta de modo definitivo o sentido da decisão que se pretende ver revista.» Donde extraem a ilação de que as declarações prestadas na mesma foram falsas e assim sendo, o valor de venda do imóvel a considerar não foi o de € 1.995.195,00, mas sim o valor de € 1.184.645,00, pugnando ainda pelo “afastamento” da Impugnante M. F. da tributação, atentas as circunstâncias especiais que envolveram a transacção. Vejamos. O regime da revisão da sentença nos processos tributários está previsto no artigo 293.º do CPPT. À data da apresentação da presente acção (anterior à entrada em vigor da redacção conferida pelo artigo 14.º da Lei n.º 118/2019 de 17/09), dispunha o artigo 293.º do CPPT o seguinte: «1 - A decisão transitada em julgado pode ser objecto de revisão no prazo de quatro anos, correndo o respectivo processo por apenso ao processo em que a decisão foi proferida. 2 - Apenas é admitida a revisão em caso de decisão judicial transitada em julgado declarando a falsidade do documento, ou documento novo que o interessado não tenha podido nem devia apresentar no processo e que seja suficiente para a destruição da prova feita, ou de falta ou nulidade da notificação do requerente quando tenha dado causa a que o processo corresse à sua revelia. (…)» Deste modo, a revisão de sentença pode ser requerida no prazo de quatro anos após o seu trânsito, constituindo pressupostos da sua admissão os seguintes: i) A decisão objecto de revisão dever estar transitada em julgado; ii) Existência de decisão judicial transitada em julgado declarando a falsidade do documento, ou; iii) documento novo que o interessado não tenha podido nem devia apresentar no processo e que seja suficiente para a destruição da prova feita, ou; iv) falta ou nulidade da notificação do requerente quando tenha dado causa a que o processo corresse à sua revelia. No caso dos autos, com a junção da certidão da sentença proferida no processo n.º 34/07.4IDSTB, os recorrentes alegam que a decisão revidenda manteve a matéria tributável apurada pela AT com fundamento nas declarações prestadas na escritura relativas ao preço de venda, no entanto, por força da referida sentença proferida no âmbito de processo penal, consideram demonstrada a falsidade de tais declarações. Invocaram os ora recorrentes que a escritura pública é um documento autêntico apenas no que dele resulta da apreensão do notário e, quanto ao demais, designadamente quanto às declarações dos outorgantes não verificadas pelo notário é meio de prova de que tais declarações foram proferidas. Nos termos do disposto no artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil «Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.» Assim, a escritura pública não prova a veracidade das declarações dos outorgantes, mas apenas que estes as fizeram perante o notário e que este as ouviu, presumindo-se a sua veracidade. Cabia assim, aos recorrentes o ónus de fornecer a prova de que, em sua representação, na aludida escritura foi emitida uma declaração viciada, já que estamos em presença de um facto impeditivo do direito invocado pela AT (cf. artigo 74.º da LGT). Ora, «feita ou atestada num documento uma declaração negocial ou outra declaração de vontade, a vontade através dela expressa será presumida até que se prove a divergência relevante entre a vontade e a declaração ou um vício relevante da vontade» – cfr. LEBRE DE FREITAS, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 2013, p. 43. Importa ainda ter presente que a lei não atribui relevância em processo de impugnação judicial ao caso julgado absolutório formado em processo penal. Sendo certo que o artigo 84.º do C.P.P. apenas atribui relevância extra-processual ao caso julgado quando estão em causa decisões penais que apreciam pedidos cíveis. Deste modo, a sentença penal constitui um elemento de prova, que pode ser valorado de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 5 do CPC. Neste sentido, vide o Acórdão proferido pelo STA no processo n.º 0266/20.0BEPRT, de 02/02/2022 cujo sumário é o seguinte: «I - A responsabilidade tributária e a responsabilidade penal tributária, podendo coexistir na esfera jurídica da mesma pessoa, são títulos autónomos de responsabilidade, gerados por factos diversos, sujeitos a diversos princípios, regimes e leis e determinantes de consequências igualmente diferenciadas II - Não existe qualquer princípio ou norma legal que preveja a prevalência das decisões proferidas em sede de processos-crime sobre a decisão judicial anteriormente proferida em sede de processo judicial tributário, no caso, Impugnação Judicial, transitada em julgado.» Vejamos então se, com a sentença proferida no processo n.º 34/07.4IDSTB ficou suficientemente provado que as declarações prestadas na aludida escritura não correspondem à verdade, são falsas, designadamente quanto ao preço pelo qual o impugnante e seus irmãos venderam os prédios em causa, como pretendem os recorrentes, e se se deve concluir que está evidenciada a falsidade do documento que sustenta de modo decisivo o sentido da decisão que se pretende ver revista. Na sentença sob recurso decidiu-se o seguinte: «(…) porém, (…) as considerações constantes da sentença proferida no âmbito do processo nº 34/07.4IDSTB, que correu termos no 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, se prendem com uma análise referente ao dolo que é elemento essencial do crime de fraude fiscal, enquanto em sede de Impugnação Judicial ou da revisão de sentença proferida no âmbito do processo o julgamento se prende com critérios objectivos de enquadramento em sede de tributação. Ora, como já se havia referido em sede de Impugnação Judicial, a Impugnante ao ter procedido à entrega da sua declaração conjuntamente como o Impugnante J. M. fica enquadrada no então nº 3 do art. 13º do CIRS. Vêm ainda os Impugnantes alegar que em sede criminal ficou provado que o valor venda do imóvel não foi o que consta da escritura de compra e venda mas apenas o valor de € 1.184.645,00, e que é falsa a declaração constante da escritura de compra e venda datada de 2002. (…) tendo sido a escritura de compra venda junta aos autos com o Relatório Inspectivo, os Impugnantes, para peticionarem a revisão da decisão com base na falsidade do documento, nomeadamente por este conter um valor diferente daquele que efectivamente correspondia à venda, deveriam de o ter efectuado nos prazos estabelecidos no Código de Processo Civil, pelo que teríamos de julgar improcedente a presente revisão de sentença com base neste fundamento. No entanto, o nº 2 deste artigo 293º do CPPT, prevê ainda um outro fundamento para que possa ser a base do pedido de revisão da sentença. Ou seja, o nº 2 possibilita ainda o recurso ao pedido de revisão de sentença quando exista um novo documento que o interessado não tenha podido apresentar no processo e que seja suficiente para a destruição da prova feita. Como ensina mais uma vez Jorge Lopes de Sousa na obra citada (pág. 866) é necessário que o documento apresentado tenha a susceptibilidade de, independentemente de qualquer outra prova, provocar uma alteração da matéria fáctica num sentido favorável ao recorrente. Cumpre assim verificar se, constituindo a sentença proferida no âmbito do processo criminal, um documento novo, tem a virtualidade de, independentemente de qualquer outra prova, provocar a alteração da matéria factiva nos presentes autos. Ora, compulsada a sentença junta aos autos (vide ponto 22 do probatório supra), mais concretamente a matéria de facto aí considerada provada, não se vislumbra qualquer menção à falsidade do preço de venda constante da escritura em causa, datada de 21 de Maio de 2002. Do ponto 2 de tal factualidade consta, é certo, no ponto 6: "Analisada a documentação, apurou-se que o valor da alienação a atender é o de € 1.184,645,00". No entanto, a sentença em questão refere o seguinte: “Com base no montante de € 296.161,25 (…) sendo os imoveis assinalados a “negrito” e com “sublinhado” Os que concorrem para a determinação do rendimento colectável segundo o Acórdão do Tribunal Central Administrativo constante dos auto(…)” Ou seja, não apenas nunca é referido que o valor que consta da escritura de compra e venda é falso, como ainda consta que os valores atendidos são os que constam do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul . Conclui-se assim que o valor a que o 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal atendeu foi o valor da liquidação expurgado do montante considerado pelo TAF de Almada como não sujeito a IRS em sede de categoria “G”. Nunca nenhuma referência é efectuada à falsidade do preço constante da escritura, aliás nem poderia ter sido feita, como já explicaremos. De facto, para que se colocasse em causa que o valor que constava da escritura era falso tinha de ter sido declarada a falsidade do documento, através de processo próprio, como já se referiu acima, e isso não foi feito pelos Impugnantes. Concluímos, pois, não ter sido provado nos autos o pressuposto legal declaração de falsidade do documento de que depende a revisão em casos, como o presente, de decisão judicial transitada em julgado.» Vejamos, então. Começando pela conclusão V e XVII em que os recorrentes alegam que «da sentença penal que serviu de fundamento ao pedido de revisão podem extrair-se, com total segurança, que a impugnante nada sabia do negócio, dele não beneficiou e que fez a declaração fiscal de 2003, quanto aos rendimentos de IRS de 2002, tendo declarando a união de facto no desconhecimento de que o seu companheiro poderia ser tributado a título de mais-valias.» O desconhecimento do negócio e da tributação associada não constitui facto relevante para efeitos tributários, como se refere na decisão proferida no processo de impugnação. A tributação conjunta decorre da entrega da declaração conjunta decorrente do regime da união de facto. Ora, sendo no caso, a declaração conjunta facultativa, a sua apresentação constitui uma declaração de aceitação da tributação enquanto sujeito passivo do agregado familiar. E nessa medida, o desconhecimento da situação tributária em causa em nada releva para evitar a tributação. Só assim não seria caso fosse apresentada declaração de substituição. Já assim não é, em sede criminal. E compreende-se a diferença. Enquanto para efeitos tributários está em causa a tributação do rendimento, para efeitos penais, avalia-se se a arguida agiu com dolo, sendo relevante o desconhecimento dos factos para afastar a responsabilidade criminal. No crime de fraude fiscal previsto e punido pelo artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), por constituir um crime de perigo, a intenção revelada pelo agente é questão central para determinar a responsabilidade penal. Neste sentido, v.g. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo n.º 214/17.4IDFAR.E1 datado de 17/12/2020 «1 - No crime de fraude fiscal nem se exige um dolo específico (intenção de causar prejuízo ao Estado) nem um resultado da conduta (um efectivo prejuízo), não estando nós perante um crime de resultado. Bem ao invés, estamos perante um crime de perigo e de mera actividade. 2 - Para a sua consumação basta que o facto tenha sido praticado com a intenção de obter um determinado resultado, ainda que o resultado não ocorra.» Por se ter provado no processo crime que a ora recorrente desconhecia os factos que deram origem à tributação, cuja declaração foi omitida, é que foi absolvida. No entanto, tal desconhecimento não tem relevância para afastar a responsabilidade tributária, na medida em que o elemento desconhecimento não integra os pressupostos da tributação. O que releva é a verificação do facto tributário, isto é, a mais valia realizada com a alienação de imóveis. E assim sendo, improcede o recurso nesta parte, sendo de manter a sentença recorrida no correspondente segmento. Nas restantes conclusões alegam os recorrentes que o apuramento da matéria colectável de imposto sustentou-se nas declarações proferidas pelos procuradores dos vendedores no que se refere ao preço na escritura de compra e venda. No entanto, consideram que ficou provado na sentença proferida no 3º Juízo Criminal que o valor da alienação foi de € 1.184.645,00 e a vantagem patrimonial, isto é, a colecta exigível é de € 17371,98. Alegam que a frase «Analisada a documentação, apurou-se que o valor da alienação a atender é o de € 1.184.645,00» tem o sentido de que o valor que consta da escritura de compra e venda é falso incorrendo a sentença recorrida em erro de julgamento ao julgar que na referida afirmação "nunca é referido que o valor que consta da escritura de compra e venda é falso". Compulsados os autos verificamos que, a referida frase integra o ponto 6) da matéria de facto dada por provada. Não obstante a sua suficiência para efeitos penais, para o efeito que aqui importa, o referido ponto está redigido em termos conclusivos, não permitindo uma resposta unívoca, pelo que há que lançar mão da decisão para a sua cabal interpretação. Na apreciação do direito e do seu enquadramento jurídico penal, afirma-se na aludida sentença o seguinte: «Quanto ao arguido, é do conhecimento comum a obrigatoriedade de pagamento de impostos referentes mais-valias conseguidas com a venda de imóveis e disto é de crer que teria conhecimento. Contudo, também o mesmo não terá sabido exactamente da data em que foi outorgada a escritura de compra e venda que teve lugar no ano 2002. Note-se que o respectivo procurador terá feito o negócio por um valor muito distinto do que era do conhecimento do arguido e dos seus irmãos (o que leva a crer estes foram colocados “à margem” de tal negócio) e que, assim sendo, não se logrou apurar que o arguido tinha conhecimento das circunstâncias temporais em que teria de cumprir a obrigação de declarar as correspondentes mais-valias, ao que acresce a descrita actuação do irmão mais velho do arguido, que terá induzido em erro a sua irmã inquirida na audiência como testemunha, não podendo pois ser afastada com a necessária segurança a hipótese de e mesmo ter sucedido com o arguido e de este (cujas condições psíquicas ter-se-ão já deteriorado profundamente, nomeadamente desde o primeiro acidente vascular cerebral sofrido pelo mesmo, acidente este ocorrido antes de, no dia 17 de Dezembro de 2005, o arguido ter sido notificado para proceder à regularização da omissão detectada) ter agido desconhecendo ser proibido o seu comportamento e desconhecendo que a situação fiscal não se encontrava ainda regularizada pelo procurador nem por qualquer dos seus irmãos. (…) Assim sendo, o crime só se consuma quando a declaração fiscal que dá conhecimento incorrecto de factos tributários entra na esfera de domínio das autoridades fiscais (até então existirá uma tentativa ou um acto preparatório, como é o caso de facturas falsas que não saíram da posse de quem as fabricou, não tendo sido lançadas na contabilidade nem utilizadas como suporte de qualquer pedido de reembolso de IVA), pois só então ela se revela apta a diminuir as receitas tributárias em virtude do erro em que induz relativamente à situação tributária do contribuinte (SUSANA AIRES DE SOUSA, ob. citada, páginas 85 e ss). A nível subjectivo exige-se dolo do tipo, ou seja que o agente conheça e tenha vontade de praticar os elementos objectivos do tipo, o que significa que deverá adoptar as condutas acima elencadas, representando a idoneidade das mesmas para diminuir as receitas tributárias (querendo ou pelo menos conformando-se com tal resultado) - (neste sentido SUSANA AIRES DE SOUSA, ob. citada, páginas 93 e ss, com a qual ora se concorda, no sentido de que o elemento típico “que visem” trata-se de uma aptidão objectiva que deve ser abarcada pelo dolo do tipo e não um elemento subjectivo especifico). E do n.° 2 do indicado artigo resultava que os factos previstos no número anterior não são puníveis se a vantagem patrimonial indevida for inferior a € 7500 (sete mil e quinhentos euros), resultando actualmente (na sequência da alteração introduzida pela Lei n.° 60- A/2005, de 30 de Dezembro) que tais factos deixaram de ser puníveis se a vantagem patrimonial indevida for inferior a € 15.000 (quinze mil euros). Ora, face à factualidade provada é notório que não pode sustentar-se que qualquer dos arguidos agiu com vontade de praticar os elementos do tipo de crime e, portanto, dolosamente. E tal é quanto basta para que se conclua (aliás em consonância com as doutas alegações finais proferidas pela Digna Magistrada do Ministério Público junto deste tribunal e pelo Ilustre Mandatário dos arguidos) que ambos os arguidos deverão ser absolvidos, o que se decide.» (sublinhados nossos). Ora, o que resulta da sentença absolutória é que não se provou que o arguido, aqui recorrente, teve conhecimento do momento em que se celebrou o negócio, corporizado pela escritura pública, já que se refere que «o respectivo procurador terá feito o negócio por um valor muito distinto do que era do conhecimento do arguido e dos seus irmãos (o que leva a crer estes foram colocados “à margem” de tal negócio) e que, assim sendo, não se logrou apurar que o arguido tinha conhecimento das circunstâncias temporais em que teria de cumprir a obrigação de declarar as correspondentes mais-valias.» Mais, a absolvição dos recorrentes teve lugar, não com base na falsidade da escritura ou das declarações nela prestadas, mas antes por não ser possível sustentar-se, face à prova produzida, que qualquer um dos ali arguidos tivesse agido com vontade de praticar os elementos do tipo do crime e, portanto, dolosamente. Dito de outro modo. Nada se retira da sentença absolutória penal que a escritura é falsa ou que nela foram prestadas falsas declarações. O que se retira da referida sentença é que os procuradores munidos da procuração terão aparentemente efectuado o negócio «por um valor muito distinto do que era do conhecimento do arguido e dos seus irmãos (o que leva a crer estes foram colocados “à margem” de tal negócio)». A sentença não coloca em causa a veracidade do valor declarado na escritura, o que coloca em causa é que se tenha efectuado a prova de que os arguidos tenham tido conhecimento desse facto e assim sendo, impunha-se, tal como sucedeu, dar como não verificado o elemento subjectivo do tipo penal de que dependia a punição ou condenação por fraude fiscal – a intenção de defraudar a AT e em consequência, deu-se a sua absolvição. Ora, a sentença proferida no processo de impugnação judicial sustentou a sua fundamentação no seguinte: «agindo os procuradores em representação dos comproprietários dos imóveis, o acto transmissivo reflectiu-se na esfera jurídica destes últimos, pelo que o valor a atender para efeitos de cálculo das mais valias será sempre o valor constante da escritura pública, ou seja o valor de € 1.995.195,00, pelo que improcede nesta parte a pretensão dos impugnantes.» Do que se deixou dito podemos concluir que a absolvição em processo crime não pode ter os efeitos pretendidos pelos recorrentes, uma vez que a tributação das mais valias se deu por se verificarem na esfera jurídica dos recorrentes os factos tributários previstos nas normas de incidência, tal como entendeu a AT plasmando-o na liquidação do imposto. entendimento sufragado na sentença revidenda, por efeito do mandato e dos precisos termos em que o mesmo foi conferido (cf. procuração emitida também no interesse dos procuradores, concedendo poderes especiais para vender pelo preço e pelas condições que entendessem, bem como para, em seu nome e representação, assinar contratos-promessa relativo aos mencionados prédios, e outorgar as respectivas escrituras públicas de compra e venda - cf. ponto 1) da matéria de facto provada). Assim sendo, como já antes dissemos, no caso concreto, as normas de incidência do imposto em causa, ao contrário da norma penal, não dão relevância ao desconhecimento pelos mandantes dos termos em que o negócio se efectuou, constituindo tal matéria do domínio das relações jurídicas contratuais entre as partes, em nada se reflectindo na (i)legalidade do imposto. Deste modo, impõe-se concluir como na sentença, que não estão verificados os pressupostos necessários à revisão da sentença, já que a sentença proferida no âmbito do processo criminal, não tem a virtualidade de, independentemente de qualquer outra prova, provocar a alteração da matéria factiva nos presentes autos e assim sendo improcede o recurso. * No que se refere às custas, o artigo 527.º do CPC consagra o princípio da causalidade, de acordo com o qual custas são pagas pela parte que lhes deu causa. Atendendo à improcedência do recurso, considera-se que foram os recorrentes que deram causa às custas do presente processo (cf. n.º 2), e, portanto, devem ser condenados nas custas (cf. n.º 1, 1.ª parte). * IV – CONCLUSÕES
I – Para a sua consumação do crime de fraude fiscal basta que o facto tenha sido praticado com a intenção de obter um determinado resultado, ainda que o resultado não ocorra. II – Já em matéria de tributação, cuja declaração foi omitida, o desconhecimento do facto tributário verificado na esfera do contribuinte por efeito de procuração irrevogável por este conferida com poderes especiais para a venda de imóvel pelo preço que o mandatário entendesse não tem relevância para afastar a responsabilidade tributária.
V – DECISÃO
Termos em que, acordam as juízas da subsecção do Contencioso Tributário Comum do TCA Sul em negar provimento ao recurso jurisdicional, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes. Lisboa, 19 de Outubro de 2023. Ana Cristina Carvalho - Relatora Maria Cardoso – 1ª Adjunta Jorge Alexandre Trindade Cardoso Cortês – 2º Adjunto |