Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JOÃO CURA MARIANO | ||
Descritores: | DIREITO DE PROPRIEDADE DOMÍNIO PÚBLICO DOMÍNIO PRIVADO DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO LEI APLICÁVEL INTERESSE PÚBLICO AÇÃO POPULAR RECONVENÇÃO LEGITIMIDADE MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Data do Acordão: | 06/22/2023 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE | ||
Sumário : | I. A delimitação do domínio público hídrico efetuada nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, que fixou a estrema a 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas viva, de uma praia, vincula todas as autoridades públicas. II. Daí que o Município onde se situa essa praia não tenha o direito, mesmo enquanto autor de uma ação popular, de ver judicialmente reconhecido o domínio público sobre essa praia para além dessa estrema. III. Sobre a parte da praia, para além dessa estrema, recai uma servidão de uso público, podendo qualquer cidadão por aí circular livremente, utilizá-la como praia, aí permanecendo e aceder à água, não podendo ser praticados atos por quem se arroga titular do direito de propriedade sobre essa faixa de terreno que impeçam ou alterem a sua função de praia. IV. O Município não tem legitimidade para, nessa ação popular, ser demandado num pedido reconvencional em que se pede o reconhecimento de um direito de propriedade privada, por quem se arroga proprietário de uma parcela de terreno situada nessa praia. V. Tendo essa ação sido proposta e contestada na vigência do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, a legitimidade para contestar um pedido de reconhecimento de uma propriedade privada numa praia, pertencia ao Estado. VI. A intervenção do Ministério Público na ação popular, nas funções de zelador da legalidade, não sana a referida ilegitimidade, uma vez que essa intervenção não se destina a proteger os interesses do Estado na defesa do domínio público. | ||
Decisão Texto Integral: | * I - Relatório
O Autor intentou uma ação popular contra os dois primeiros Réus, pedindo: a) a condenação dos réus a absterem-se de praticar qualquer ato na praia do Monte Branco, em toda a zona assinalada a amarelo na planta junta como documento n.º 1 com a petição da providência cautelar apensa aos presentes autos, nomeadamente impeditivo do acesso e fruição da mesma por qualquer cidadão, nela colocando quaisquer objetos, vedando-a, impedindo a sua manutenção e arranjo pela A., realizando qualquer ato que desvirtue a utilização da mesma como praia pública e de livre acesso; b) que seja reconhecido que a zona identificada a amarelo na planta junta como documento n.º 1 com a petição da referida providência cautelar é domínio público; c) para a hipótese de assim se não entender, sempre deveria tal zona ser considerada como sujeita a uma servidão de uso público como praia, podendo qualquer cidadão por aí circular livremente, utilizá-la como praia, aí permanecendo, aceder à ria, não podendo aí exercer quaisquer atos que impeçam ou alterem a sua função de praia; d) que os réus sejam condenados, solidariamente, a pagar ao autor a quantia de € 26.227,88, a que devem acrescer juros à taxa legal contados desde a citação e até integral pagamento, respeitando € 1.277,88 ao montante despendido pelo autor para limpeza da praia, e € 25.000,00 a título de danos morais, pela lesão ao ambiente e qualidade de vida e pela lesão do património natural e cultural, que o autor destinará exclusivamente a ações de promoção de defesa do ambiente e de lazer da população. Alegou como causa dos pedidos formulados o seguinte: - Na freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, existe, desde tempos imemoriais, uma praia de areia na Beira-Ria (Ria de Aveiro) denominada de Monte Branco, junto à Casa dos Marinheiros. - Tal praia estende-se de sul para norte, iniciando-se a sul do local onde até há cerca de 15 ou mais anos esteve um bar de praia instalado num barco de pesca de arte xávega e vai até um armazém (antigo armazém da aviação naval) que existe junto à Ria para recolha de barcos e, antigamente, há mais de 40 anos, para apoio aos hidroaviões da aviação nacional, tendo a extensão e localização assinalada com a cor amarela na planta junta a folhas 7 do procedimento cautelar apenso. - Em frente à Praia e a separá-la da EN 327, no espaço compreendido entre o seu início, a sul, e sensivelmente a Casa dos Marinheiros, a norte, a Câmara Municipal da Murtosa construiu há mais de 30 anos um passeio em cimento com uma largura de 2,75 metros e, ao lado desse passeio, ainda existe uma berma, em terra batida, com cerca de três metros de largura que é utilizada para estacionamento de automóveis. - Desde tempos imemoriais que, nesse espaço, as pessoas armam barracas de praia, colocam guarda-sóis, estendem toalhas, deitam-se na areia, jogam, brincam e vão tomar banho na Ria, usam o passeio para passear e, ao sair da praia, para se sentarem e limparem a areia dos pés, tudo isto sem impedimento de qualquer pessoa e aos olhos de todos, na plena convicção de estarem a exercer um direito, convictos que estão num local público, sendo o acesso permitido à generalidade das pessoas. - A praia, na zona em que existe o passeio, estende-se desde a Ria até ao passeio, sendo que, todos os anos, durante a época balnear, o Município da Murtosa coloca, na praia, areia branca, procede à limpeza da praia, coloca caixotes de lixo e faz a respetiva recolha. - No dia 22.05.2007 a Câmara Municipal da Murtosa transportou 400 m3 de areia da praia oceânica para a praia do Monte Branco. - Quando, no dia 23.05.2007, os seus funcionários se aprestavam para espalhar a areia na praia, foram impedidos pelos Réus, tendo, ainda, no dia 24.05.2007, com o auxílio de uma máquina, arrancado os lancis dos passeios e espalhado os mesmos pela praia. - No dia 26.05.2007, espalharam pela praia ramos de acácias, outra vegetação e detritos. - Os Réus serão donos de um terreno de grande extensão aí situado, mas do lado oposto da EN 327, ou seja, a poente desta, pretendendo construir em tal terreno, tendo apresentado, na Câmara Municipal, um pedido para o efeito, pedido que ainda não lhe foi deferido. - Procurando pressionar a Câmara, desencadearam as aludidas ações, aparecendo agora a intitularem-se donos da dita praia.
Além dos dois primeiros Réus, foi também citado o Ministério Público, atento o seu papel de fiscalizador da legalidade, conforme consta do despacho que determinou a sua citação.
Contestaram os dois primeiros Réus do seguinte modo: Excecionaram: - a ilegitimidade do Réu AA, por este estar desacompanhado do seu cônjuge BB; - a ilegitimidade do Autor, por este, com a presente ação, não pretender defender o domínio público marítimo, mas reivindicar uma parte de uma propriedade privada para os seus munícipes. Impugnaram a factualidade alegada pelo Autor, defendendo que o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 532/19890908, de que são proprietários, se estende, a nascente da EN 327, até à Beira-Ria (salvaguardada a zona de 11 metros do domínio hídrico) e a norte abrange também, para além de uma parte assinalada no mapa a amarelo, todo o terreno onde se encontra edificada a casa dos marinheiros, desde a Beira-Ria até à EN 327, em espaço assinalado na aludida planta a branco e a verde. Por outro lado, ainda, invocaram o seguinte: - Esse seu imóvel fazia parte outrora dos baldios municipais que se estendiam por toda a costa da Torreira, entre a Ria e o Mar, desde Ovar a São Jacinto (artigo 43º da contestação), que esses «baldios» já antes de 1864 estavam na fruição conjunta das populações radicadas na circunscrição administrativa correspondente ao então concelho de Estarreja (artigo 44º da mesma peça), que, desses «baldios», no uso dos poderes que a CM de Estarreja detinha, foram desaforadas (isto é, transmitidas), em 1926, várias parcelas situadas na costa da Torreira, nelas se incluindo, a pedido de CC (representado por DD) um terreno «baldio» de que fazia parte o aludido prédio dos réus, terreno que veio assim, por aquele meio, a pertencer ao dito CC. - Posteriormente, por óbito deste último e dos seus herdeiros (EE e FF) veio o dito terreno a caber aos seus respetivos herdeiros, herdeiros esses que vieram, posteriormente, em 1968, a vender o prédio ora em causa ao aqui Réu AA, o qual, por sua vez, vendeu, em 1972, metade indivisa do mesmo imóvel ao seu irmão e também Réu GG. - Para efeitos do preceituado no artigo 15.º da Lei n.º 54/2005 de 15.11. (Lei que estabelece a titularidade dos recursos hídricos), o prédio de que se arrogam proprietários por mor da aquisição em 1968 e 1972 era, antes de 1864, objeto de propriedade comum e que passou a integrar, desde 1926, o domínio privado, situação em que se manteve desde essa data e até hoje por força das sucessivas transmissões antes descritas. - Daí que há mais de 30 anos que ocupam esse imóvel com a implantação e delimitação referida, usufruindo deles à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, cultivando-os com árvores de folha perene, cortando e utilizando a sua madeira, pagando os seus impostos, na convicção de serem seus proprietários. - Todos os imóveis que confrontam com o areal do Monte Branco têm como limite a nascente a Beira-Ria, apenas tendo sido divididos em duas parcelas pela construção da EN 327 em 1955. - Em razão do comportamento do Autor viram-se obrigados a interromper os trabalhos de limpeza que andavam a executar no seu prédio a nascente da EN 327 e impedidos de utilizar a totalidade do seu prédio desde a decisão proferida a 6.07.2007 na providência cautelar, o que os faz sentir humilhados e envergonhados com a desconsideração perpetrada pela atuação do Autor. Concluíram pela improcedência da ação, deduzindo reconvenção, na qual pedem a final: a) a condenação do Autor/Reconvindo a pagar aos Réus/Reconvintes, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados, importância não inferior a € 10.000,00 e, ainda, os danos patrimoniais cujo montante relegam para execução de sentença; b) que lhes seja reconhecido o seu direito de propriedade plena sobre a totalidade do prédio situado na zona do Monte Branco, ..., ..., do concelho da Murtosa, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 47981 (532/19890908) e inscrito na matriz da freguesia ..., Murtosa sob os nºs. 1428, 1429, 1425 e 1740. Peticionaram, ainda, a condenação do Autor, como litigante de má-fé, em indemnização no valor de € 5.000,00.
O Autor, em réplica, respondeu à matéria de exceção e da reconvenção, pugnando pela sua improcedência, tendo, ainda, impugnado parcialmente a factualidade alegada pelos Réus. Terminou pela improcedência das exceções e da reconvenção deduzida.
Os dois primeiros Réus, na tréplica, mantiveram o alegado na sua contestação.
O Autor foi convidado a deduzir incidente de intervenção provocada relativamente a BB, incidente que veio a ser deduzido e admitido.
A Interveniente BB veio a contestar, mantendo, no essencial, a posição já antes adotada no processo pelos demais Réus. Terminou, pedindo a condenação do Autor como litigante de má-fé, em multa e numa indemnização a pagar à Interveniente, para além da pedida pelos Réus, em importância não inferior a € 5.000,00.
Foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções de ilegitimidade ativa do Autor e passiva do Réu AA.
Procedeu-se a julgamento, findo o qual, em 7.02.2019, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e improcedente a reconvenção. O dispositivo foi, mais precisamente, o seguinte: “Julgo, nos termos e pelos fundamentos expostos, a ação parcialmente procedente e em consequência: a) condeno os RR. e a Interveniente: 1º - a absterem-se de praticar qualquer ato, na praia do Monte Branco, por esta ser do domínio público, em toda a zona assinalada a amarelo na planta junta como documento nº 1 na petição da providência cautelar apensa, que se dá por reproduzida para fazer parte desta sentença, nomeadamente impeditivo do acesso e fruição da mesma por qualquer cidadão, nela colocando quaisquer objetos, vedando-a, impedindo a sua manutenção e arranjo pelo A., realizando qualquer ato que desvirtue a utilização da mesma como praia pública e de livre acesso; 2º - a pagarem ao A. Município da Murtosa a quantia de € 1.227,88. b) Absolvo os RR. e a Interveniente do mais pedido contra eles. c) Absolvo o A. Município da Murtosa dos pedidos reconvencionais. Custas, na ação, pelos RR. e Interveniente e pelo A., na proporção de vencido, que se fixa em 2/3 para aqueles e de 1/3 para este. Custas, na reconvenção, pelos RR. e Interveniente. Não se provou que qualquer das partes tivesse litigado de má fé”[1].
Inconformados, vieram os Réus a interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto, em 04.11.2019, decretado a anulação da sentença proferida, para efeitos de ampliação da matéria de facto (artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC), conforme se reproduz: “Nestes termos, acordam os Juízes desta Relação do Porto em decretar, a título oficioso, a anulação da sentença recorrida para efeitos de ampliação da matéria de facto antes elencada a fls. 41 deste acórdão, em conformidade com o disposto no artigo 662º, n.ºs 2 al. c) do CPC, sem prejuízo do preceituado no n.º 3 al. c), do mesmo normativo”.
Tendo sido realizado novo julgamento para os efeitos assinalados no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.11.2019, foi proferida nova sentença que “manteve a sentença de 07/12/2019 nos seus precisos termos, designadamente quanto a custas”.
Inconformados, vieram os Réus interpor novo recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto, em 24.10.2022, proferido segundo Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se: “Nestes termos, acordam os Juízes desta Relação do Porto julgar parcialmente procedente a apelação interposta pelos RR/Reconvintes e, em consequência, decidem: a) – Decretar a absolvição dos RR/Reconvintes do pedido de condenação dos mesmos no pagamento à Autora da quantia de € 1.227,88. b) – Manter, em tudo o mais, a sentença recorrida. Custas em 1ª instância e quanto à acção, pelos RR e Interveniente e pela Autora, na proporção de 65% por aqueles e 35% por esta última – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC. Custas da Reconvenção pelos RR e Interveniente, pois que ficaram totalmente vencidos – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC. Custas do recurso pelos Recorrentes e pela Recorrida, na proporção de 90% por aqueles e 10% por esta última – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC. Custas do incidente pela junção indevida de documentos nesta instância, pelos Recorrentes, que lhe deram causa e nele ficaram vencidos, com taxa de justiça que se fixa em 1 UC”.
Ainda inconformados, os Réus interpuseram o presente recurso de revista, “nos termos dos artigos 671º (com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, nos termos do artº. 7º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) 638º, 675º nº 1, 676º, todos do CPC”. A terminar, enunciaram as seguintes conclusões: “1. É o presente recurso interposto do segmento da decisão constante do Acórdão recorrido que manteve a sentença da primeira instância ainda que assente numa matéria de facto profundamente alterada e numa fundamentação essencialmente distinta. Porém, entendemos que a resposta dada a questão de direito pelo Tribunal da Relação de Porto não foi adequada em função da factualidade que deu como provada e das normas jurídicas aplicáveis. 2. Sendo certo que nunca se poderia entender que verificaria aqui uma dupla conforme, a verdade é que o n.º 1 do artigo 7.º (Outras disposições) da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, excluí a aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, a ações instauradas antes de 1 de janeiro de 2008, o que é o caso. 3. Estamos aqui, além do demais, perante uma questão cuja apreciação se impõe face à sua relevância jurídica e para uma melhor aplicação do direito. 4. Está aqui em causa o respeito pelos direitos adquiridos dos particulares, a certeza jurídica necessária ao direito de propriedade em contraponto a uma propriedade pública das margens de águas públicas. Sendo que, neste caso, as entidades públicas, ao invés dos particulares, dispõem de diversos mecanismos para instituir a eventual afetação pública desses terrenos, tais como o direito de preferência em caso de alienação forçada ou voluntária, a expropriação e a constituição de servidões administrativas (cfr. os artigos 16.º e 21.º, da Lei n.º 54/2005). 5. Realidade jurídica que foi descurada na análise em causa pelo Tribunal a quo, que apesar da factualidade provada e claramente indiciada entendeu que caberia ainda aos RR provarem irrefutavelmente que os terrenos eram previamente a 1864 objeto de propriedade privada ou baldios. 6. O Tribunal a quo que considerou improcedente a Reconvenção apresentada pelos RR, daí se apresentar o presente recurso – não por se pretender impedir que as pessoas venham a fazer praia nos terrenos dos RR, como o A. afirma, mas sim – para que reconhecida a propriedade dos RR, o Município atue em conformidade com a legalidade para aplicar os seus planos no terreno em questão. 7. O Tribunal da Relação do Porto alterou (vide páginas 44 a 86 do douto Acórdão) os pontos 11., 19.,43. a 47. e aditou os artigos 53. a 58. à factualidade dada como provada (os quais constavam na sentença da 1ª instância das alíneas c), d), h), i) e k) do elenco dos factos não provados). 8. Sendo que há afirmações constantes do acórdão que não se compreendem, designadamente, as que procuram sustentar o agora dado como provado facto 58., onde apenas se refere a “sua arrogada qualidade de proprietário”, invocando apenas o Doc. 21 emitido pela CMM (“particulares que se dizem proprietários”), porém não menciona os documentos Docs. 23, 25, 27 e 29 juntos com a contestação apresentada pela Interveniente, também emitidos pela CM Murtosa (na sequência de insistência do JAPA), onde é expressamente reconhecida e afirmada a qualidade de proprietário do ora Réu AA. 9. Pelo que não pode deixar de se referir que ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, existem documentos dos quais resulta que o Município da Murtosa reconheceu a propriedade dos terrenos em causa e não apenas que estes se invocavam proprietários como consta do facto 58. dado como provado. 10. Em função da factualidade dada como provada nos pontos 4, 6, 7, 8, 9 e 10, e 47 a 55 e numerosos documentos identificados é indiciado de forma clara, face ao direito aplicável, que o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 47169, outrora, previamente a 1864, fazia parte dos baldios municipais que se entendiam por toda a costa da Torreira, entre a Ria e o Mar, desde Ovar a S. Jacinto. 11. As normas do artigo 15º n.ºs 2, 3 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro são inconstitucionais quando interpretadas (como no Acórdão recorrido) no sentido de impor sempre o ónus da prova aos particulares − sempre “indiscutivelmente” aos RR/Reconvintes, nas palavras constantes do acórdão recorrido − mesmo quando a propriedade dos terrenos em causa foi transmitida aos particulares por entidade pública há mais de 90 anos, sem qualquer ónus da entidade pública de ter que demonstrar que tal negócio não podia ter tido por objeto todos os terrenos em causa. 12. O Tribunal a quo não pondera sequer que a propriedade foi validamente transmitida pela CM de Estarreja em 1926 por estar em causa um terreno que previamente a 1864 era objeto de propriedade particular ou comum ou que – como sustentado pelos Réus – era um terreno estava na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa (um terreno baldio) previamente a essa data. Tendo só depois a CM de Estarreja se assenhoreado “….daqueles terrenos e concedia o seu gozo e fruição a particulares, colhendo os proventos dessa sua posição de proprietária plena, ou seja, arrecadando os foros anuais e, em caso de remissão do foro, a contrapartida a que ela própria se julgava com direito pela transmissão (aí sim) da propriedade plena para o anterior foreiro.”, daí os ter podido validamente transmitir em 1926. 13. O Tribunal a quo coloca assim sobre os particulares uma “prova diabólica”, traduzida numa exigência de difícil ou mesmo impossível cumprimento por parte dos proprietários, que assim correm sérios riscos de perderem as suas propriedades a favor do Estado. Ou seja, na posição sufragada pelo Tribunal a quo o artigo 15º n.ºs 2, 3 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, consagra uma presunção de dominialidade relativamente a certos terrenos, impondo aos interessados sempre o ónus da prova de que os mesmos lhe pertencem ou de que se encontram na sua posse desde 1864 sem prejuízo de terem sido entidades públicas que transmitiram a propriedade desses terrenos a particulares há mais de 90 anos! 14. O Tribunal a quo, apesar de reconhecer a transmissão da propriedade em 1926, pela CM de Estarreja dos terrenos que iam da Beira-Ria à Beira-Mar a CC, e que os RR adquiriram posteriormente – vide factos provados em 44, 47, 48 e 53. a 55. e 6. a 9. – faz recair sobre os particulares a prova da validade/legalidade de tal transmissão do terreno aqui em discussão sobre os RR. 15. No entendimento do Tribunal a quo era sempre aos RR que cabia provar que “…aquele terreno em concreto era, antes de 1864, propriedade particular fosse de quem fosse, ou, ainda, que fosse propriedade conjunta ou comunitária dos residentes no concelho ou no município de Estarreja à data (hoje, município da Murtosa).” 16. Sendo que para além de se dever presumir que a CM Estarreja cumpriu ao tempo a legalidade, existem vários indícios que nos permitem chegar a conclusão que efetivamente o terreno em causa seria um baldio previamente a 1864, ao contrário do que é afirmado no acórdão. 17. Não se pode aceitar as conclusões a que o Tribunal a quo retira no acórdão recorrido da afirmação que os terrenos estavam sob “…administração e fiscalização da CM de Estarreja já antes de 1864….” 18. A questão quanto à concreta natureza dos terrenos em causa previamente a 1864 não resulta diretamente da matéria de facto dada como provada, mas não se pode aceitar as conclusões de direito que o Tribunal a quo retira da matéria de facto dada como provada. 19. Não tendo o Tribunal a quo na devida conta a transmissão da propriedade em 1926 e a legislação relativa ao que era um “baldio” e a legislação aplicável ao mesmo previamente a 1864 e mesmo previamente ao Código Administrativo de 1940 e aos poderes das câmaras municipais sobre os mesmos. 20. Desde logo, como resulta do exposto supra, era natural e comum ao tempo, face ao quadro legal bem descrito na obra de Margarida Sobral Neto, que terrenos que já tivessem sido baldios previamente a 1864 e tivessem deixado entretanto de o ser e/ou continuassem a sê-lo fossem, posteriormente, objeto de alienação através de venda ou aforamento e posterior desaforamento com passagem não só do domínio útil, mas também do domínio direto, propriedade. 21. Atente-se também no Acórdão do STJ de 29/10/1968, na Lei de Lei de 28 de Agosto de 1869 aí referida, na portaria de 18 de Dezembro de 1872 e designadamente nos anteriores a Alvarás de 23 de Julho de 1766, de 7 de Novembro de 1804 e de 11 de Abril de 1815. 22. As Câmaras Municipais tinham a faculdade de alienar os terrenos baldios, faculdade essa que lhes provinha da legislação anterior e posterior a 1864 e que lhes concediam o poder de desamortização. Tendo a Câmara Municipal de Estarreja aforado sucessivas parcelas desses terrenos baldios situados na costa da Torreira e posteriormente transmitido a propriedade dos mesmos. 23. Pelo que o pressuposto subjacente ao entendimento do Tribunal da Relação do Porto de que terrenos aforados pelos municípios não poderiam ter sido previamente a 1864 baldios, não se afigura como correta. 24. Por outro lado, note-se que o terreno adjacente aos dos RR. era em 1868 e posteriormente (aquando da sua transmissão em 1904) terreno baldio municipal pelo que também o terreno que, por trato sucessivo (bem evidenciado na própria factualidade dada como provada nos pontos 48 a 52 da factualidade) chegou à propriedade dos RR o seria nessa data e anteriormente e foi enquanto tal objeto de aforamento e posteriormente de desaforamento nos termos supra expostos. 25. Sendo nos documentos mais antigos e próximos a 1864 mais comum a referência a baldios, o que é compreensível, e nos processos posteriores (como o dos RR de 1926), apesar dos terrenos terem a mesma origem já que eram contíguos, já não aparece essa expressa referência. 26. Atente-se ainda no ponto 10. da matéria dada como provada e para o constante das páginas 202 a 212 do Boletim da Comissão do Domínio Público Marítimo, nº 95, as quais foram juntas aos autos pelos RR como o doc. 1 do requerimento probatório de 23/04/2010, o qual relata o procedimento prévio em que assentou o despacho da Direcção-Geral dos Serviços de Fomento Marítimo levado ao referido ponto 10.. 27. Resulta dos referidos documentos não só a participação do ora Autor aquando da referida delimitação, como os documentos em que tal auto de delimitação se baseou para afirmar o carácter privado dos terrenos em causa, referindo que desde data anterior a 1859 a Camara Municipal de Estarreja era detentora da posse dos terrenos baldios existentes no área da costa da Torreira exercendo sobre eles não só atos administrativos mas também atos de posse privada que nunca foi contestada por pessoa alguma e que os foi aforando até 1905. 28. Sendo que o aí afirmado serve para compreender melhor a referência constante do auto de delimitação aforamentos dos terrenos da Costa da Torreira feitos pela Câmara Municipal de Estarreja no Século XIX (anteriormente a 1864) – corroborando a origem dos terrenos supra referida. 29. Maís aí se referindo que desde data anterior a 1859 a Camara Municipal de Estarreja era detentora da posse dos terrenos baldios existentes na área da costa da Torreira exercendo sobre eles não só atos administrativos mas também atos de posse privada que nunca foi contestada por pessoa alguma e que os foi aforando até 1905. 30. E foi na sequência de tais aforamentos e desaforamentos, sucessivos atos translativos (os quais relativos aos RR foram referidos e documentados supra e dados como provados nos pontos 47 a 55 e 6. a 9.) que a propriedade chegou aos RR e daí a sua intervenção no referido procedimento de delimitação. 31. Tendo sido provado que o prédio inscrito a favor dos RR abrange a norte também, para além de uma parte assinalada no mapa a amarelo, todo o terreno onde se encontra edificada a casa dos marinheiros, desde a Beira-Ria até à EN nº 327, em espaço assinalado na aludida planta a branco e a verde (cfr. factos provados 47 a 55). 32. Estando, além do demais, provado (cfr. factos provados 6. a 8 e 47. a 55.) como esse terreno chegou à propriedade dos RR e inclusive, o reconhecimento posterior da propriedade aquando da delimitação dada como provada em 10., momento em que o terreno deixou de estar delimitado pelo ulterior domínio público marítimo de 50 m e passou a estar delimitado pelo domínio público hídrico de 11 metros. 33. Tendo as Câmaras Municipais a faculdade de alienar os referidos terrenos baldios, faculdade essa que lhes provinha da legislação supra identificada tal como, alias, referido por Afonso Queiró (cfr. Parecer de Afonso Queiró emitido a 4 de Maio de 1698 para uma situação semelhante junto como doc. 31 quando da Contestação da Interveniente Principal que aqui se dá por transcrito para todos os efeitos legais) e que lhes concediam o poder de desamortização /desaforamento. 34. É assim no uso desses poderes que a Câmara Municipal do Concelho de Estarreja em suas reuniões de 27/10/1926 e 03/11/1926, a pedido do Sr. DD, como procurador de CC, concede a este o desaforamento de um Terreno que seria era baldio previamente a 1868– sendo de presumir que, caso contrário, a Câmara Municipal não teria transmitido o terreno da Beira-Ria até à beira-mar como foi dado como provado − do qual faz parte o terreno dos RR. 35. Sendo que se a CM de Estarreja tinha poderes (Cfr. facto provado 47.) para transmitir a propriedade de tais terrenos, era porque tais terrenos não estavam incluídos nas margens de águas públicas que haviam sido objeto de declaração de dominialidade em 31/12/1864, continuando passíveis de serem incluídas no comércio jurídico privado, já que nesse momento esses terrenos seriam objeto de propriedade particular ou comum ou estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa. Situação que o Tribunal a quo não ponderou adequadamente. 36. Sem conceder, note-se que sempre resultaria da matéria de facto dada como provada e da referida documentação que o terreno em causa nos autos já estava na posse de CC pelo menos há mais de 20 anos antes do desaforamento do terreno, o qual o adquiriu a propriedade plena na sequência dos atos de desaforamento constantes das reuniões da Câmara Municipal do Concelho de Estarreja de 27/10/1926 e 03/11/1926 (cfr. facto provado 47 e 48). 37. Ora, tal atuação em 1926 – não reclamada por ninguém − revela-nos ser manifesto que a zona assinalada a amarelo na planta junta como documento nº 1 na petição da providência cautelar seriam ou terrenos baldios na posse do Município de Estarreja ou que estavam na posse de privados antes de 31/12/1864, além do demais, demonstrou-se documentalmente como esse terreno chegou à propriedade dos RR e inclusive, nos termos acabados de expor, os termos em que esse terreno deixou de estar delimitado pelo ulterior domínio público hídrico de 50 m e passou a estar delimitado pelo domínio público hídrico de 11 metros nos termos supra definidos. 38. O Tribunal a quo apesar de toda a factualidade que os Réus provaram (designadamente quanto à referida transmissão da propriedade) faz incidir sobre os Réus o ónus de comprovar “…que aquele terreno em concreto era, antes de 1864, propriedade particular fosse de quem fosse, ou, ainda, que fosse propriedade conjunta ou comunitária dos residentes no concelho ou no município de Estarreja à data (hoje, município da Murtosa).” 39. Fazendo assim recair hoje sobre os RR o ónus da prova que essa entidade pública lhe podia ter transmitido a propriedade da totalidade dos terrenos que em1926 foram transmitidos e pagos, faz recair sobre os Réus a validade de uma transmissão realizada por uma Câmara Municipal em 1926. Ao invés de se entender que a entidade pública terá atuado em conformidade com a legalidade em 1926 aquando da transmissão de tais terrenos. 40. Ora, a norma do 15. nº 2 e 3 da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, quando interpretada no sentido de impor ao particular a obrigatoriedade da prova de “…“…que aquele terreno em concreto era, antes de 1864, propriedade particular fosse de quem fosse, ou, ainda, que fosse propriedade conjunta ou comunitária dos residentes no concelho ou no município de Estarreja à data (hoje, município da Murtosa).” , apesar da transmissão de propriedade daquele terreno ter ocorrido há mais de 90 anos e ter sido efetuada pelo município de Estarreja é claramente violadora do artigo 62º da CRP, designadamente, do seu nº 2 já que estaria a transmitir novamente para o domínio público, sem qualquer indemnização ou compensação, a propriedade de um terreno adquirido há mais de 90 anos a uma entidade pública. Afetando excessivamente a posição patrimonial dos particulares garantida pelo artigo 62º da CRP. 41. Configurando uma medida demasiado verdadeiramente restritiva do âmbito de proteção do direito de propriedade em clara violação do n.º 2 do artigo 18º da CR, quando existem instrumentos jurídicos que permitiriam as entidades públicas acautelar, os interesses públicos que o regime jurídico vigente visa salvaguardar, designadamente mecanismos para instituir a eventual afetação pública desses terrenos, tais como o direito de preferência em caso de alienação forçada ou voluntária, a expropriação e a constituição de servidões administrativas (cfr. os artigos 16.º e 21.º, da Lei n.º 54/2005), com a alegada compensação dos particulares. 42. As referidas normas, tal como interpretadas pelo Tribunal a quo, resultariam numa violação do direito de propriedade (art. 62º da CRP) e numa violação do princípio do respeito pelos direitos adquiridos dos particulares e segurança jurídica subjacente a um estado de direito democrático (artigo 2º da CRP), bem como do direito de acesso ao direito e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrados no artigo 20.º, n.º 1, da CRP. 43. Ao invés, o tribunal a quo podia e devia ter interpretado as referidas normas no sentido de admitir que a entidade pública em 1926 transmitiu validamente a propriedade dos terrrenos em causa e que, como tal, se deveria presumir que estavam reunidas as condições para a transmissão desse propriedade. 44. Terrenos esses que foram objecto de trato sucessivo (cfr. factos provados 47 a 55)até que foi vendido ao R. AA o prédio descrito em F) (ponto 6 da factualidade dada como provada) dos Factos Assentes, tendo posteriormente (nos termos dos factos provados nos pontos 7 a 8 da matéria dada como provada) chegado a propriedade dos RR. 45. Os terrenos dos RR os terrenos aqui em causa não podem assim ser integrados no domínio público como se nada se tivesse passado em 1926 e posteriormente, pois caso contrário estaríamos perante um verdadeiro e inconstitucional confisco em violação do direito de propriedade privada (constitucionalmente garantido – cfr. art. 62º da CRP) registado em seu nome (com as presunções resultantes do artigo 7º da Código de Registo Predial). 46. Acresce, para além da CM de Estarreja ter em 1926 transmitido a propriedade, nos termos expostos, recorde-se, sem conceder, que como já referido supra, a sua propriedade foi também reconhecida (cfr. ponto 10 da factualidade dada como provada) em despacho da Direcção-Geral dos Serviços de Fomento Marítimo publicado no DR IIIª Série, nº 259, de 10 de Novembro de 1981, que homologou o parecer nº 4668 da Comissão do Domínio Público Marítimo sobre a delimitação com o domínio público hídrico dos terrenos sitos na praia do Monte Branco, requerida pela Câmara Municipal da Murtosa, fosse também extensiva aos terrenos à beira-ria adjacentes à dita praia e compreendidos entre os paralelos + 121 071,4 e + 120 668,9, que definem, respetivamente a norte e a sul, os pontos A e H da poligonal de delimitação, e que na delimitação fosse seguido o critério estabelecido nos aforamentos dos terrenos da Costa da Torreira feitos pela Câmara Municipal de Estarreja no século XIX (anteriormente a 1864), ou seja, com a estrema situada a 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas vivas ”. 47. Sendo que nos termos do art.º 5º, nºs 1 e 2 DL 468/71, de 5 de Novembro, consideram-se objeto de propriedade privada as parcelas dos leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis que forem objeto de desafetação ou reconhecidas como privadas nos termos deste diploma. 48. Ora, como referem José Miguel Júdice e José Miguel Figueiredo in Acção de reconhecimento da propriedade privada sobre Recursos Hídricos Almedina, 2015 2ª Edição, a propósito do II. âmbito da acção de reconhecimento, no ponto 4. Ambito Subjectivo ou relativo à titularidade a páginas 31 a 32 a propósito da “Utilidade da delimitação”: “Na verdade, antes da Lei n° 54/2005, o reconhecimento da propriedade privada era efetuado por via administrativa, nos termos do artigo 8º, do Decreto-Lei n,º 468/71. Ora, tendo já sido reconhecida a propriedade privada por força daquele mecanismo administrativo, as parcelas e terrenos em causa iá se encontram fora do âmbito da ação de reconhecimento, precisamente pelo facto de já ter sido afastada a presunção dominialidade que sobre eles incidia e de, portanto, estarmos perante parcelas de terreno que, ainda que não seja judicialmente reconhecida, a sua propriedade privada, se encontram já na titularidade de particulares. Ora, como bem se vê, o afastamento destas hipóteses do âmbito da ação de reconhecimento faz-se por referência aquele que designámos por âmbito subjetivo ou relativo à titularidade.» 49. Assim, tendo já sido reconhecido o direito de propriedade privada por via administrativa sobre o Terreno dos RR em 1981 por entidade administrativa ao abrigo do artigo 8º do Decreto-Lei 468/71 através da delimitação efetuada já tinha sido afasta a presunção de dominialidade que sobre os terrenos em causa poderia incidir. Estariam os sempre sobre parcelas do terreno já na titularidade dos Réus. 50. Ora, tal reconhecimento da propriedade em sede de delimitação ao abrigo do Decreto-Lei 468/71 que afastou a presunção de dominialidade pública (artigo º 5º, nºs 1 DL 468/71) foi completamente descurada pelo Tribunal. 51. De facto, nos termos do artigo 5.º nº 2 do DL 468/71 “Consideram-se objeto de propriedade privada, sujeitos a servidões administrativas, os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos particulares, bem como as parcelas dos leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis que forem objeto de desafetação ou reconhecidas como privadas nos termos deste diploma” 52. Normas que o Tribunal a quo em vigor aquando da delimitação constante do ponto 7. da matéria de facto dada como provada descurou por completo. 53. Seguindo o afirmado pelos referidos autores, por já ter sido reconhecida por entidade administrativa o direito de propriedade dos Réus que afastou a presunção de dominialidade, não podia agora ao abrigo de uma nova lei ser descurada, sob pena de se violar o princípio do estado de direito democrático (artigo 2º da CRP), na sua dimensão relativa à segurança jurídica, ser colocada em causa a confiança depositada nessa prévia decisão administrativa produzida há mais de 40 anos e a proibição da retroatividade restritiva de direitos liberdades e garantias prevista expressamente no artigo 18º nº 3 da CRP já que o direito de propriedade é um direito fundamental com estrutura análoga aos direitos liberdades e garantias. Pelo que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou as referidas normas legais e princípios constitucionais. 54. Sendo certo que, sem conceder, caso assim não se considerasse, sempre se deveria entender que tal decisão de delimitação, efetuada ao abrigo da lei em vigor e que nunca foi impugnada, configuraria também um ato de desafetação para efeitos do previsto na alínea a) do nº 5 do artigo 15º da Lei 54/2005 na parte em que do terreno não abrangida pelos 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas (cfr. facto provado 10). Ao assim não ter decidido o Tribunal a quo violou também a referida norma. 55. Ao contrário do decido no acórdão recorrido, os terrenos dos RR que tal como registado na Conservatório do Registo Predial e provado nos factos 6 a 8 e 48 a 52 são objeto de trato sucessivo há quase 100 anos, não podem ser, como pretendido pelo Autor, integrados automaticamente no domínio público pois estaríamos perante um verdadeiro e inconstitucional confisco em violação do direito de propriedade privada (constitucionalmente garantido – cfr. art. 62º da CRP) registado em seu nome (com as presunções resultantes do artigo 7º da Código de Registo Predial). 56. É manifesto que o acórdão recorrido ao decidir como decidiu, errou na interpretação e aplicação do direito, tendo violado frontalmente os artigos 15º nºs 2.º, 3 e 5 al. a) da Lei 54/2005 e o art. 62º da CRP devendo ser revogado”.
O Autor respondeu, sustentando a inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente, a sua improcedência.
O Ministério Público também apresentou resposta em que concluiu que não se vislumbra qualquer ilegalidade, quanto à aplicação da titularidade dos recursos hídricos, conforme o que decorre do nº.s 2, 3 e na al. a), do n.º 5, do art.º 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, em defesa do domínio público marítimo e pelo não reconhecimento do direito de propriedade de que os recorrentes se arrogam.
As partes foram notificadas para se pronunciarem sobre o mérito do pedido subsidiário de reconhecimento da existência de uma servidão administrativa e sobre a legitimidade do Autor para ser demandado, relativamente ao pedido reconvencional.
O Autor pronunciou-se no sentido de o pedido reconvencional ser admitido, mas devendo ser julgado improcedente.
Os Réus pronunciaram-se no sentido de estar assegurada a legitimidade passiva, relativamente ao pedido reconvencional, atenta a citação e intervenção nos autos do Ministério Público, tendo, relativamente ao mérito do pedido subsidiário, se limitado a invocar que o Autor pretendeu e pretende intervir na área em causa.
* II – Do objeto do recurso Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida cumpre verificar se a presunção de dominialidade pública sobre a Praia do Monte Branco se encontra ilidida. Oficiosamente será apreciada a legitimidade passiva do Município da Murtosa, relativamente ao pedido reconvencional. Caso improceda o pedido principal deduzido pelo Autor, será apreciado o pedido subsidiário por ele formulado.
* III – Os factos Neste processo provaram-se os seguintes factos: 01. O concelho da Murtosa compreende a freguesia da Torreira. 02. Anualmente deslocam-se para a Torreira milhares de pessoas para aí passarem as suas férias. 03. A “Praia do Monte Branco” tem, na Ria, há mais de 50 anos, uma construção em cimento com prancha de saltos para ser utilizada livremente pelas pessoas. 04. Os Réus são donos de um terreno de grande extensão situado do lado poente da EN n.º 327 até à Praia do Mar. 05. E pretendem construir em tal terreno, tendo apresentado na Câmara Municipal um pedido para tal, o que ainda lhes não foi deferido, tanto mais que, no PDM, tal zona consta como zona de equipamento. 06. Por escritura pública de compra e venda lavrada, no Cartório Notarial ..., a 5 de Julho de 1968, AA declarou comprar a HH e mulher, II e mulher, JJ e mulher, CC e mulher, um terreno sito nas ..., freguesia ..., concelho da Murtosa, a confrontar, do norte, com KK e outros, sul, com DD, nascente, com Beira-Ria e, poente, com areias do domínio público marítimo, a fazer parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 47169, a fls. 162 verso, e inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo 1217. 07. Por escritura pública de compra e venda lavrada, no Cartório Notarial ..., a 30 de Março de 1972, o R. AA declarou vender a seu irmão, o R. GG, metade indivisa de um pinhal sito nas ..., freguesia ..., concelho da Murtosa, a confrontar, no todo, do norte, com KK e outros, sul, com DD, nascente, com Beira-Ria e, poente, com areias do domínio público marítimo, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo 1217 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 47981. 08. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 532/19890908 (nº 47981, do Livro 123) e aí inscrito a favor dos RR., o prédio rústico composto por pinhal, sito nas ..., freguesia ..., concelho da Murtosa, a confrontar, do norte, com LL e KK, sul, com DD e praia, e, nascente e poente, com domínio público marítimo. 09. Dessa descrição predial consta que o imóvel se encontra inscrito na respetiva matriz rústica sob os artigos 1428, 1429, 1425 e omisso. 10. Dá-se como integralmente reproduzido o Despacho da Direção-geral dos Serviços de Fomento Marítimo publicado no DR IIIª Série, nº 259, de 10 de Novembro de 1981, que homologou o parecer nº 4668 da Comissão do Domínio Público Marítimo sobre a delimitação de um terreno na praia do Monte Branco, freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, requerida pela Câmara Municipal da Murtosa, constante do seguinte (além do mais) auto de delimitação: “Aos 28 dias do mês de Agosto de 1980, na sede da Câmara Municipal da Murtosa, reuniu a comissão nomeada por portaria inscrita no Diário da República, 2ª série, nº 103, de 4 de Maio de 1977, para proceder à delimitação com o domínio público hídrico de terrenos sitos na praia do Monte Branco, ..., concelho da Murtosa, comissão constituída pelo capitão-de-mar-e-guerra (RA) MM, representante da Marinha, servindo de presidente, pelo engenheiro NN, representante da Junta Autónoma do Porto de Aveiro, e pelos interessados, Dr. OO, representante de PP, Dr. QQ, representando o Dr. KK, que, por sua vez, é o representante de RR, pela própria, LL, pela própria, SS, e pelo próprio, AA, todos servindo de vogais. A comissão, tendo estudado detidamente o assunto, tanto no gabinete como no campo, verificou que a planta em estudo abrange não só os terrenos, sitos na praia do Monte Branco, mas ainda duas extensas zonas de terreno à beira-ria e confinantes por norte e sul com aquela praia. Dessa forma, a comissão considerou que, por ser do interesse público, devia propor à Comissão do Domínio Público Marítimo que a delimitação com o domínio público hídrico dos terrenos sitos na praia do Monte Branco, requerida pela Câmara Municipal da Murtosa, fosse também extensiva aos terrenos à beira-ria adjacentes à dita praia e compreendidos entre os paralelos + 121 071,4 e + 120 668,9, que definem, respetivamente a norte e a sul, os pontos A e H da poligonal de delimitação, e que na delimitação fosse seguido o critério estabelecido nos aforamentos dos terrenos da Costa da Torreira feitos pela Câmara Municipal de Estarreja no século XIX (anteriormente a 1864), ou seja, com a estrema situada a 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas vivas” – fls. 120/121. 11. Na freguesia da Torreira existe, pelo menos, desde há cerca de 70 anos, uma zona de praia de areia na beira-ria (Ria de Aveiro), denominada de praia do Monte Branco. 12. Tal praia estende-se de sul para norte, iniciando-se a sul do local onde até há cerca de 15 ou mais anos esteve um bar de praia instalado num barco de pesca de arte xávega. 13. E vai até um armazém (antigo armazém da aviação naval) que existe junto à Ria para recolha de barcos e, antigamente, há mais de 40 anos, para apoio aos hidroaviões da aviação nacional. 14. A praia tem a extensão e localização assinalada com a cor amarela na planta junta a folhas 7 do procedimento cautelar apenso. 15. Em frente à Praia e a separá-la da EN nº 327, no espaço compreendido entre o seu início a sul e sensivelmente a Casa dos Marinheiros a norte, a Junta de Turismo da Torreira construiu, há mais de trinta anos, um passeio em cimento com uma largura de 2,75 metros. 16. Ao lado desse passeio, ainda existe uma berma em terra batida com cerca de três metros de largura que é utilizada para estacionamento de automóveis. 17. As pessoas mais velhas da freguesia sempre se recordam de ver aí a praia. 18. De a ver ser utilizada, como praia, livremente por todas as pessoas que o quiseram. 19. Desde, pelo menos, a construção da EN n.º 327 (entre 1955 e 1960), que liga a Murtosa a S. Jacinto, as pessoas utilizam indiscriminadamente a praia do Monte Branco, ali armando barracas de praia, colocando guarda-sóis, estendendo toalhas, deitando-se na areia, jogando, brincando e tomando banhos na Ria. 20. As pessoas usam o passeio para passear. 21. Tudo isto sem impedimento de qualquer pessoa e aos olhos de todos. 22. Na plena convicção de estarem a exercer um direito. 23. Convictos que estão num local público. 24. Sendo o acesso permitido à generalidade das pessoas. 25. A praia, na zona em que existe o passeio, estende-se desde a Ria até ao passeio. 26. Existiam uns pastéis tradicionais denominados “Monte Branco”, fabricados, há mais de 40 anos, por uma pastelaria da Murtosa, que eram vendidos embrulhados num papel onde se retratava a praia do Monte Branco. 27. Há postais ilustrados e prospetos turísticos que ilustram a praia do Monte Branco. 28. A praia tem servido de tema para pintores. 29. E existe há mais de 40 anos um painel de azulejos no fontanário da Praça da Varina que a retracta. 30. Nunca nenhum particular, designadamente os Réus, até Maio de 2007, impediu o acesso à praia. 31. … Ou aí colocou qualquer vedação ou placa indicando tratar-se de “propriedade privada”. 32. A Casa dos Marinheiros situa-se para poente da linha dos 11 metros da preia-mar. 33. Essa Casa foi construída, pela Marinha, há mais de quarenta anos e pertence à Junta Autónoma do Porto de Aveiro. 34. … Inicialmente, sem muros, e posteriormente, há mais de vinte anos, com muros que demarcam uma porção de terreno onde se implanta a casa e terreno envolvente. 35. Essa casa sempre foi utilizada pela Marinha Portuguesa. 36. … Tendo içada, durante muitos anos, a bandeira nacional. 37. Todos os anos, durante a época balnear, o Município da Murtosa coloca, na praia, areia branca que vai buscar à orla marítima. 38. E procede à limpeza da praia, coloca caixotes de lixo e faz a recolha respetiva. 39. No dia 22 de maio de 2007, a Câmara Municipal da Murtosa transportou 400 m3 de areia da praia oceânica para a praia do Monte Branco. 40. Quando, no dia 23 de Maio de 2007, os seus funcionários se aprestavam para espalhar a areia na praia, os Réus impediram-nos de o fazer. 41. No dia 24 de Maio de 2007, com o auxílio de uma máquina, os Réus arrancaram os lancis dos passeios e espalharam-nos pela praia. 42. E, no dia 26 de Maio de 2007, espalharam pela praia ramos de acácias, outra vegetação e detritos. 43. A CM da Murtosa procedeu à limpeza da praia e à remoção dos detritos aí colocados pelos Réus. 44. O prédio dos Réus identificado em 6 fez parte outrora de terrenos que, como outros existentes na costa da Torreira, entre o mar e a ria de Aveiro, se encontravam na posse e administração da CM de Estarreja e que a mesma, enquanto proprietária e senhoria, aforava a particulares (foreiros) mediante o pagamento de um foro anual. 45. Esses terrenos, já antes de 1864, encontravam-se na posse e sob a administração e fiscalização da CM de Estarreja, que, naquela data, abrangia a área que faz hoje parte integrante do Município da Murtosa. 46. A CM de Estarreja aforou várias parcelas de terrenos situados na costa da Torreira, designadamente a TT, “o ...“, na sua sessão ordinária de 6.08.1862, deu de aforamento um terreno maninho ou areal na costa da Torreira com 1. 400 m2, terreno esse que foi, posteriormente, demarcado por auto de 19.08.1862, mediante o foro anual de mil e trinta réis, conforme documento de fls. 1216 verso a 1229, dactilografado a 1241 a 1247, terreno que veio a ser arrematado pelo foro anual de 8. 000, 00 réis por UU, a 12.10.1862, conforme documento de fls. 1229 verso e segs. 47. No uso dos seus poderes, a CM de Estarreja, nas suas reuniões de 27.10.1926 e 3.11.1926, a pedido de DD, enquanto procurador de seu irmão, CC, concedeu a este último o desaforamento de um terreno do qual faz parte o prédio dos RR e referido em 6 e 8 dos factos provados. 48. Tendo o terreno passado para a propriedade plena de CC. 49. CC faleceu, em 1931, no Pará do Brasil, no estado de viúvo de VV, deixando como únicos e universais herdeiros seus filhos legítimos CC, casado com WW, XX, solteiro, maior, JJ, casado com YY, ZZ, solteira, maior, AAA, casado com BBB, CCC ou DDD, casada com EEE. 50. Em .../.../1957 faleceu, na cidade do Rio de Janeiro, EE, no estado de casado com FF, deixando como herdeiros legítimos os filhos FFF que também usa o nome GGG, casada com HHH, e HH, casado com III. 51. Em 1963 faleceu, na cidade do Rio de Janeiro, FF, no estado de viúva do referido EE, sucedendo-lhe como herdeiro legitimário seu filho HH. 52. Herdeiros estes que, por escritura de 5.07.1968, outorgada no Cartório Notarial ..., venderam ao Réu AA o prédio descrito em 6 dos factos provados. 53. O imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 532/19890908 estende-se, a nascente da EN nº 327, até à Beira-Ria (salvaguardada a zona do domínio hídrico). 54. O prédio inscrito em favor dos Réus e antes referido foi, com a construção da EN n.º 327, dividido em duas parcelas, uma situada a poente daquela estrada e outra situada a nascente da mesma estrada. 55. Esse prédio abrange a norte também, para além de uma parte assinalada no mapa a amarelo, todo o terreno onde se encontra edificada a casa dos marinheiros, desde a Beira-Ria até à EN nº 327, em espaço assinalado na aludida planta a branco e a verde. 56. Os Réus procederam, pelo menos, no ano de 2007, ao pagamento de impostos (IMI) atinentes ao prédio antes referido em 6 e 8. 57. Os Réus estavam (e estão) convictos de que são proprietários do terreno situado a nascente da EN n.º 327, acima referido, até à linha definida pelos 11 metros a contar da máxima da preia-mar da ria. 58. A CM da Murtosa, nomeadamente através dos seus Presidentes, teve conhecimento de que os Réus invocavam ser proprietários da parcela de terreno que constitui o objeto da sua pretensão nestes autos, tendo conhecimento dessa reclamação dos RR.
* IV – O direito aplicável 1. Da ação 1.1. Do pedido principal de reconhecimento da dominialidade pública O Município da Murtosa, através da presente ação popular pretende, como pedido principal, que seja reconhecido que a Praia do Monte Branco, com extensão e localização assinalada com a cor amarela na planta junta a folhas 7 do procedimento cautelar apenso, integra o domínio público hídrico, com a consequente condenação dos Réus a absterem-se de aí praticarem qualquer ato impeditivo do acesso e fruição da mesma por qualquer cidadão, nela colocando quaisquer objetos, vedando-a, impedindo a sua manutenção e arranjo pela Autora, realizando qualquer ato que desvirtue a utilização da mesma como praia pública e de livre acesso. O acórdão recorrido, confirmando a sentença da 1.ª instância acolheu esta pretensão, com fundamento em que os Réus não tinham logrado ilidir, através da prova de qualquer uma das situações jurídicas referidas no artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, a presunção de que essa Praia integra o domínio público hídrico. Conforme consta da matéria de facto provada a Praia do Monte Branco é um areal situado numa margem da Ria de Aveiro, sendo facto notório que a Ria de Aveiro é uma lagoa costeira navegável, sujeita à influências das marés, que se estende paralelamente ao Oceano Atlântico, desde Ovar até Mira, tendo como única comunicação com o mar um canal que corta o cordão litoral entre a Barra e S. Jacinto. A Ria de Aveiro encontra-se sob a jurisdição da Administração do Porto de Aveiro (artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 339/98, de 3 de novembro, com a redação que lhe foi conferida pelo artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 40/2002, de 28 de fevereiro). Há bens que pertencem ao domínio público por natureza e há bens que são dominiais por assim terem sido declarados por lei, não sendo, contudo, a margem de manobra legislativa absoluta. A catalogação legal de bens como pertencendo ao domínio público, para além daqueles que constam no artigo 84.º da Constituição, exige uma justificação válida à luz dos interesses constitucionalmente protegidos e do princípio da proporcionalidade. Como afirmou o Tribunal Constitucional, o domínio público está associado a um regime jurídico de direito público derrogatório da propriedade privada, o que, naturalmente, não é inócuo do ponto de vista jurídico-constitucional, sobretudo no quadro de uma economia de mercado. Assim se explica que, subjacente à sujeição legal de uma dada categoria de bens ao domínio público e à consequente afirmação da propriedade pública sobre a mesma, devam estar fundamentos que atestem a indispensabilidade ou, pelo menos, a elevada conveniência dessa subordinação à satisfação de certo interesse público, tendo em conta que o legislador dispõe de meios alternativos para a consecução desse escopo, tais como as servidões administrativas e outras restrições de utilidade pública. [2] No direito português, a menção à natureza do domínio das praias foi referida pela primeira vez num Decreto de 31 de Dezembro de 1864, cuja aprovação foi autorizada ao Governo pela Carta de Lei de 25 de junho do mesmo ano, para que este legislasse sobre vários bens do domínio público, embora na lei de autorização não se fizesse qualquer referência às praias. No artigo 2.º daquele Decreto afirmou-se, porém, que eram do domínio público, imprescritível, os portos de mar e praias, os rios navegáveis ou flutuáveis com as suas margens, os canais e valas, portos artificiais e docas existentes ou que de futuro se construam. Até aí, como noticiou AFONSO QUEIRÓ, o direito anteriormente vigente no nosso País não incluía tais terrenos no elenco das coisas públicas e consequentemente no número das coisas fora do comércio. Nem as Ordenações do Reino [3], nem qualquer lei extravagante, nem qualquer assento da casa da Suplicação, nem (que se saiba) o direito consuetudinário os considerou direta ou indiretamente extra commercium” [4]. E, apesar do disposto no Decreto de 31 de Dezembro de 1864, o Código de Seabra não incluiu na enumeração exemplificativa das coisas públicas, que fez constar do seu artigo 380.º, as praias, limitando-se a referir no ponto 2.º deste artigo as águas salgadas das costas enseadas, baías, fozes, rias e esteiros e os leitos delas, embora a doutrina logo incluísse na referência ao leito das águas salgadas, a parte das praias coberta e descoberta pelo movimento das marés [5], tendo em atenção que no corpo deste artigo se considerava que são públicas as coisas naturais ou artificiais, apropriadas ou produzidas pelo Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quais é lícito a todos individual ou coletivamente utilizar-se, com as restrições impostas pela lei ou pelos regulamentos administrativos. No entanto, diplomas posteriores vieram a incluir, sistematicamente, uma referência expressa a uma zona de 50 metros de largura, a contar da linha da máxima preamar das águas vivas, ou mesmo às praias, enquanto bens sujeitos ao domínio público, como aconteceu, por exemplo, com o Decreto n.º 8, de 1 de dezembro de 1892 (artigo 1.º), o Decreto de 18 de Abril de 1895 (artigos 1.º e 2.º), o Decreto n.º 952, de 15 de outubro de 1914, autorizado pela Lei n.º 275, de 8 de agosto do mesmo ano, que corrigiu a Lei n.º 211, de 29 de junho, (artigo 5.º, § 1.º), a Lei das Águas, aprovada pelo Decreto n.º 5.787-IIII, de 18 de maio de 1919 (artigo 1.º, ponto 1.º), o Decreto n.º 5703, de 18 de maio de 2019 (artigo 3.º, § 3), e o Decreto n.º 12.445, de 8 de Outubro de 1926 (artigo 14.º, n.º 3). Foi perante este cenário legislativo disperso que começou progressivamente a formar-se uma corrente interpretativa, com origem nos Pareceres da Comissão do Domínio Público Marítimo [6], segundo a qual pertence ao domínio público desde a aprovação do Decreto de 31 de dezembro de 1864, não só o leito do mar até ao colo da máxima preamar e uma faixa adjacente de terreno com a largura mínima de 50 metros [7], como também, todo o terreno integrante das praias, enquanto terreno constituído por areias soltas contíguo ao mar, com pouca ou nenhuma vegetação, em toda a sua largura, qualquer que ela seja, uma vez que, pela sua natureza, tais terrenos eram potencialmente destinados a usos públicos marítimos [8]. A fundamentação jurídica desta linha de raciocínio teve o seu expoente no estudo acima referido de AFONSO QUEIRÓ, publicado em 1964 na Revista de Legislação e Jurisprudência, onde se lê: “Como é doutrina indisputada, o Código Civil, no seu artigo 380.º, não fez uma enumeração taxativa das coisas públicas. Forneceu um critério ou conceito delas e exemplificou com algumas. Todas aquelas que coubessem dentro do critério geral traçado no corpo desse artigo 380.º deveriam considerar-se públicas, incorporando-se em semelhante categoria e sujeitando-se ao competente regime, pela forma específica porque as várias espécies de coisas entram a fazer parte do domínio público. Assim, sendo geralmente as praias, na parte não coberta pelas águas marítimas, coisas da propriedade do Estado, encontrando-se debaixo da sua administração, e estando afetas a vários tipos de usos públicos (podendo todos individual ou coletivamente utilizar-se delas, com as restrições impostas pela lei ou pelos regulamentos administrativos), preenchem-se, em relação a elas, todos os requisitos de que o corpo do mencionado artigo 380.º fez depender a qualificação das coisas naturais como públicas. O facto de ele não mencionar esses terrenos como coisas públicas, na exemplificação que delas fez, não pode impressionar o intérprete e convencer no sentido de que eles não sejam realmente públicos, ante o mesmo preceito – como aliás já o eram ante o artigo 2.º do Decreto de 31 de Dezembro de 1864 ... A verdade ... é que a praia descoberta pelas águas se destina, por natureza, sempre ao gozo de todos – e pertence por isso sempre ao domínio público do Estado (ressalvada a eventualidade de haver parcelas desafetadas e incorporadas no património do Estado, e salvo ainda o caso dos terrenos que, em data anterior à entrada em vigor do Decreto de 31 de Dezembro de 1864, tenham entrado no domínio privado de qualquer pessoa ou entidade). No que respeita à eficácia temporal da delimitação da faixa mínima de terreno após a linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais que integra o domínio público efetuada pela legislação do final do século XIX, princípios do século XX, acima referida, e que se fixou nos 50 metros, disse aquele Professor: A eficácia temporal desta declaração legislativa da presença dos requisitos da dominialidade em tais terrenos, na largura mínima de 50 metros, é naturalmente a que teriam os atos concretos da Administração que verificassem a presença deles em cada caso. Estes atos administrativos concretos declarariam que cada determinado terreno adjacente ao mar, cuja dominialidade foi instituída ou estabelecida em 1864-68, reveste os requisitos de facto que estiveram na base da atribuição do estatuto dominial por aquela altura, numa extensão variável de caso para caso. A declaração da presença de tais requisitos, feita por via legislativa, tem o mesmo alcance, referido, porém a uma faixa mínima de 50 metros. Tudo se passa, portanto, como se a declaração tivesse sido feita no próprio momento em que a integração legislativa dessas coisas naturais no domínio público se verificou. A declaração, o ato declarativo em geral, seja administrativo ou legislativo, define e clarifica um estado objetivo preexistente – na hipótese, um estado de facto preexistente – removendo uma dúvida ou uma incerteza; diz-nos afinal, quod fuit in praeteritum. Esta doutrina veio a ser acolhida pelo Decreto-lei n.º 468/71, de 5 de novembro [9], o qual visou definir os limites e regular o regime dos terrenos públicos conexos com o domínio público hídrico, face a uma legislação anterior que nos seus dizeres preambulares era muito antiquada e muita dispersa, constituindo uma autêntica manta de retalhos. Este diploma considerou que integrava o domínio público do Estado, os leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis(artigo 5.º, n.º 1), nelas se incluindo as lagoas (artigo 1.º), como a Ria de Aveiro, estabelecendo que o leito das águas do mar e demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais, sendo esta linha definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no caso do mar, e das cheias médias no caso das demais águas sujeitas à influência das marés (artigo 2.º, n.º 2) e que, sendo a margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, esta tinha a largura de 50 metros, embora quando tivesse a natureza de praia em extensão superior aos 50 metros, a margem estender-se-ia até onde o terreno apresentasse tal natureza (artigo 3.º, n.º 1, 2 e 5). No entanto, em nome da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, era possível aos particulares obter o reconhecimento da existência de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens situadas dentro daqueles limites, desde que demonstrassem, documentalmente, que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum, ou que estivessem na posse de particulares, ou ainda que tivessem sido objeto de um ato de desafetação, antes de 31 de dezembro de 1864 (artigo 8.º), ou seja antes da aprovação do Decreto que nesta data se considerava que havia integrado, pela primeira vez, esses terrenos no domínio público, adotando-se, assim, a solução que já tinha sido exigida pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1935 [10], e aventada pela doutrina. Como escreveu Marcelo Caetano [11], no momento em que determinada lei vem dispor que certas categorias de coisas são dominiais, quando elas até aí não o eram, o preceito legal não pode ter eficácia de fazer automaticamente incluir no domínio do Estado todas as coisas enquadráveis naquelas categorias: se elas já pertenciam ao património do Estado, integram-se automaticamente no seu domínio público; mas se eram propriedade particular, como tal têm de continuar, enquanto não forem expropriadas mediante a adequada indemnização, pois o contrário equivaleria pura e simplesmente a um confisco. Assim, na definição do alcance do domínio público marítimo, no que respeita às margens do mar e de outras águas navegáveis, o Decreto-Lei n.º 468/71 de 5 de novembro assumiu a natureza de uma lei interpretativa, uma vez que, implicitamente, revelou a sua intenção de determinar o sentido de leis precedentes, para estas serem aplicadas em conformidade com a sua leitura [12]. Ao admitir apenas o reconhecimento de propriedades privadas nas margens dessas águas, com a delimitação por si definida que já existissem anteriormente a 31 de Dezembro de 1864, revelou inequivocamente que entendia que o conteúdo do Decreto aprovado nessa data, quanto à integração das praias no domínio público, que vinha sendo perfilhada pela Comissão do Domínio Público Marítimo, segundo a qual pertence ao domínio público desde a aprovação do Decreto de 31 de dezembro de 1864, não só o leito do mar e de águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à influência das marés até ao colo da máxima preamar e uma faixa adjacente de terreno com a largura mínima de 50 metros, como também, todo o terreno integrante das praias, enquanto terrenos constituídos por areias soltas contíguos ao mar, em toda a sua largura. Estava, pois, subjacente à solução adotada pelo Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, a leitura que o Decreto de 31 de dezembro de 1864 havia integrado as praias no domínio público, pelo que só eram possíveis de serem objeto de propriedade privada, aquelas que já o eram anteriormente a esta data, conferindo esta interpretação à simples menção às praias no domínio público feita por esse diploma. Relativamente ao meio procedimental como poderia ser feito o reconhecimento da existência de uma propriedade privada sobre terrenos situados nas margens dessas águas, dispôs o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro: 1. A delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza compete ao Estado, que a ela procederá oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados. 2. Das comissões de delimitação farão sempre parte representantes dos proprietários dos terrenos confinantes com os leitos ou margens dominiais a delimitar. 3. Sempre que às comissões de delimitação se depararem questões de índole jurídica que elas não estejam em condições de decidir por si, poderão os respetivos presidentes requerer a colaboração ou solicitar o parecer do delegado do procurador da República da comarca onde se situem os terrenos a delimitar. 4. A delimitação, uma vez homologada pelos Ministros da Justiça e da Marinha, será publicada no Diário do Governo. Note-se, em primeiro lugar, que a redação deste preceito corrigiu a redação do artigo 49.º da Constituição de 1933 que, no § 3.º, dizia que o Estado procedia à delimitação dos terrenos que, constituindo propriedade particular, confinem com bens do domínio público, uma vez que só tem sentido competir ao Estado a delimitação do domínio público e não o da propriedade dos particulares [13]. Em segundo lugar, evidencia-se a atribuição da competência para decidir sobre a titularidade de direitos de propriedade, excecionalmente, a comissões ad hoc, constituídas maioritariamente por representantes do Estado, através de atos de delimitação do domínio público. Apesar da participação dos particulares nas Comissões que eram constituídas pela Comissão do Domínio Público Marítimo, as delimitações efetuadas por essas Comissões ad hoc, posteriormente homologados por despachos governamentais, constituíam atos da Administração Pública e não atos negociais entre o Estado e os particulares [14]. Mas, consciente desta distorção na atribuição da competência para dirimir conflitos de propriedade, o legislador, não só esclareceu que essa delimitação, efetuada por via administrativa, não precludia a competência dos tribunais comuns para decidir tais conflitos, além da possibilidade de ser interposto recurso contencioso de anulação nos tribunais administrativos, invocando-se a exigência de qualquer vício na formação daquele ato administrativo (artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro), como previu a possibilidade dessas comissões requererem a colaboração ou parecer do Ministério Público na resolução de questões de índole jurídica, intervindo estes magistrados na defesa da legalidade e obrigou à sua publicação no jornal oficial, num sucedâneo das funções do registo predial [15]. Esta delimitação seria efetuada pelas referidas comissões, não só tendo em consideração os limites presuntivos do domínio público hídrico estabelecidos no artigo 1.º a 5.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, mas também ajuizando da possibilidade de existirem propriedades privadas constituídas e provadas, nos termos do artigo 8.º do mesmo diploma, dentro desses limites [16]. Com refere ANA RAQUEL MONIZ [17], atento o disposto neste artigo 8.º, conjugado com o artigo 10.º do mesmo diploma, aquele ato administrativo de delimitação, na medida em que delucidava os limites do domínio público, encontrava-se habilitado a constatar a subsistência de propriedade privada sobre margens ou leitos e, como tal, a certificar que a parcela submetida ao domínio público hídrico não teria as dimensões previstas pelo legislador, ficando aquém delas, por se haver provado que uma parte dela estava sujeita a propriedade privada. Relativamente a esta delimitação administrativa há que fazer notar dois aspetos. Primeiro, que ela tem uma natureza meramente declarativa, limitando-se a reconhecer uma situação jurídica pré-existente e não a constituir uma nova situação dominial ou a modificar um ordenamento pré-existente. A delimitação não cria, nem extingue direitos, em relação à Administração ou aos particulares: apenas os reconhece [18]. Segundo, dela não resulta o reconhecimento de qualquer direito de propriedade, em concreto, de um particular. Ela apenas define onde termina o domínio público hídrico. A legitimidade para acionar essa delimitação administrativa tanto poderia caber ao Estado para defesa dos terrenos situados nas margens das águas públicas, como aos particulares que invocassem serem proprietários de terrenos aí localizados; e a intervenção dos tribunais (comuns e administrativos), deveria ocorrer como reação dos particulares à delimitação administrativa efetuada por aquelas comissões [19], não sendo, no entanto, de excluir a possibilidade dos particulares poderem interpor uma ação de reivindicação, com fundamento no seu direito de propriedade, a qual é imprescritível [20], com fundamento na demonstração da constituição do seu direito de propriedade particular, provando a ocorrência de alguma das situações previstas no artigo 8.º do Decreto-lei n.º 468/71, de 5 de novembro. Quanto ao Estado, uma vez que a delimitação, após ter sido realizada por um um órgão extraordinário da administração (nomeado ad hoc), era homologada por um órgão da administração central, aos quais a lei atribuía competência para a prática daqueles atos, ela vinculava o Estado e todas as autoridades públicas se não fosse anulada por erro de facto ou de direito [21]. Em 2005, aquando da aprovação de uma lei de enquadramento da gestão das águas que transpusesse a Diretiva n.º 2000/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, entendeu-se que era preferível, previamente, aprovar autonomamente uma nova lei sobre a titularidade dos recursos hídricos, “clarificando e estabilizando o regime vigente...num diploma coerente”, sem que se deixasse de reconhecer que o Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, então em vigor era um diploma de elevada qualidade técnica, não se pretendendo “introduzir modificações profundas no regime atual [22]. Foi então aprovada a Lei n.º 54/2005, de 5 de Novembro, que, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 78/2013, de 21 de novembro, 34/2014, de 24 de junho e 31/2016, de 23 de agosto, manteve a presunção de domínio público sobre as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés (alínea e), do artigo 3.º), entendendo-se por margem das águas do mar, bem como das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção Geral da Autoridade Marítima, uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas com a largura de 50m, ou quando tiver natureza de praia em extensão superior até onde o terreno apresentar tal natureza (artigo 11.º, n.º 1, 2 e 5). Igualmente se manteve a possibilidade de os particulares demonstrarem que são proprietários de terrenos situados nessas margens, desde que comprovem em ação própria interposta nos tribunais comuns a ocorrência de qualquer uma das situações previstas no artigo 15.º dessa Lei, o qual dispôs: 1 - Compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio. 2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar, ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864... 3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa. 4 - Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas. 5 - O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que: a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei; b) Ocupem as margens dos cursos de água previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, não sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias; c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado. 6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, compete às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira regulamentar, por diploma das respetivas Assembleias Legislativas o processo de reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, nos respetivos territórios. Este diploma manteve também a possibilidade de se proceder a uma delimitação do domínio público hídrico em termos similares aos previstos no Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, mas com finalidades e âmbito distintos, como iremos infra revelar, tendo disposto no artigo 17.º: 1 - A delimitação do domínio público hídrico é o procedimento administrativo pelo qual são fixados os limites dos leitos e das margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza. 2 - A delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza compete ao Estado ou às regiões autónomas, que a ela procedem oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados. 3 - As comissões de delimitação são constituídas por iniciativa dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do ambiente, da agricultura e do mar, no âmbito das respetivas competências, e integram representantes dos ministérios com atribuições em matéria de defesa nacional, agricultura e, no caso do domínio público marítimo, mar, bem como representantes das administrações portuárias e dos municípios afetados e, ainda, representantes dos proprietários dos terrenos confinantes com os leitos ou margens dominiais a delimitar. 4 - Sempre que às comissões de delimitação se depararem questões de índole jurídica que não estejam em condições de decidir por si, podem os respetivos presidentes requerer a colaboração ou solicitar o parecer do delegado do procurador da República da comarca onde se situem os terrenos a delimitar. 5 - O procedimento de delimitação do domínio público hídrico, bem como a composição e funcionamento das comissões de delimitação são estabelecidos em diploma próprio. 6 - A delimitação, uma vez homologada por resolução de Conselho de Ministros, e no caso das regiões autónomas por resolução do Conselho de Governo Regional, é publicada no Diário da República ou no Jornal Oficial das regiões autónomas, respetivamente. 7 - A delimitação a que se proceder por via administrativa não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas. 8 - Se, porém, o interessado pretender arguir o ato de delimitação de quaisquer vícios próprios deste que se não traduzam numa questão de propriedade ou posse, deve instaurar a respetiva ação especial de anulação. 9 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, o processo de delimitação dos leitos e margens dominiais e as comissões de delimitação que lhe são inerentes constituem uma competência dos respetivos Governos Regionais e são regulamentados por diploma próprio das Assembleias Legislativas daquelas regiões autónomas. O diploma previsto no n.º 5 acima transcrito foi o Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de outubro, constando do seu artigo 2.º: 1 - A delimitação do domínio público hídrico é o procedimento administrativo pelo qual é fixada a linha que define a estrema dos leitos e margens do domínio público hídrico confinantes com terrenos de outra natureza. 2 - A abertura de um procedimento de delimitação apenas ocorre quando haja dúvidas fundadas na aplicação dos critérios legais à definição no terreno dos limites do domínio público hídrico, devendo ser tidos ainda em consideração os recursos disponíveis e o interesse público da delimitação. E do seu artigo 11.º: 1 - A homologação da proposta de delimitação quando publicada no Diário da República é vinculativa para todas as autoridades públicas, sem prejuízo de decisão judicial que venha a ser proferida que vincule o Estado nos termos do número seguinte ou que anule o ato de delimitação nos termos do n.º 3 do presente artigo. 2 - A delimitação administrativa realizada nos termos do presente decreto-lei não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da demarcação das propriedades ou da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas, nos termos da lei processual civil. 3 - A impugnação judicial do ato de delimitação com fundamento em vícios próprios do ato que se não traduzam numa questão de propriedade ou posse realiza-se nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Comparando o disposto no Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, com os termos da Lei n.º 54/2005, de 5 de Novembro, e do Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de Outubro, ressalta que algo mudou quanto ao âmbito e finalidades da delimitação administrativa e sua articulação com as ações judiciais de reconhecimento do direito de propriedade particular em terrenos presuntivamente do domínio público hídrico. Da conjugação do n.º 1, do artigo 2.º, do Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de Outubro, com o disposto no artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 5 de novembro, conclui-se que a possibilidade de ter em consideração a existência de propriedades privadas, atentos os requisitos exigidos nesse preceito legal, sobre parcelas de leitos e margens de águas presuntivamente públicas, deixou de caber à Administração, através do procedimento administrativo da delimitação, passando esse papel a competir exclusivamente aos tribunais, em ações intentadas pelos particulares para esse efeito, assim se retirando alcance aos atos de delimitação administrativa. Contrariamente ao que sucedia nas delimitações efetuadas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, nas delimitações efetuadas nos termos do artigo 17.º da Lei n.º 54/2005, de 5 de novembro, e do Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de Outubro, deixou de se poder ponderar nessa delimitação a eventual existência de propriedades particulares validamente constituídas em zonas que presuntivamente pertencem ao domínio público hídrico, devendo a delimitação do domínio público efetuar-se apenas de acordo com o estritamente disposto quanto a esses limites pelo legislador nos artigos 1.º a 14.º, da Lei n.º 54/2005, de 5 de Novembro [23]. A delimitação a efetuar passou apenas a atender aos limites presuntivos legais. Esta diferença quanto às finalidades e âmbito das delimitações administrativas, encontra-se bem patente no Despacho Normativo n.º 32/2008, de 20 de junho, que, ao regulamentar o disposto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de Outubro, que determinou que as delimitações que se encontrassem em curso aquando da aprovação deste último diploma deveriam prosseguir de acordo com o disposto no Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, previu a possibilidade de se ter em consideração a constituição de eventuais direitos de propriedade de particulares em terrenos situados no domínio público hídrico legalmente definido. No presente caso, encontra-se provado que foi proferido Despacho da Direção-Geral dos Serviços de Fomento Marítimo, publicado no DR IIIª Série, nº 259, de 10 de Novembro de 1981, que homologou o parecer nº 4668 da Comissão do Domínio Público Marítimo sobre a delimitação de um terreno na praia do Monte Branco, freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, requerida pela Câmara Municipal da Murtosa, constante do seguinte (além do mais) auto de delimitação: Aos 28 dias do mês de Agosto de 1980, na sede da Câmara Municipal da Murtosa, reuniu a comissão nomeada por portaria inscrita no Diário da República, 2ª série, nº 103, de 4 de Maio de 1977, para proceder à delimitação com o domínio público hídrico de terrenos sitos na praia do Monte Branco, Torreira, concelho da Murtosa, comissão constituída pelo capitão-de-mar-e-guerra (RA) MM, representante da Marinha, servindo de presidente, pelo engenheiro NN, representante da Junta Autónoma do Porto de Aveiro, e pelos interessados, Dr. OO, representante de PP, Dr. QQ, representando o Dr. KK, que, por sua vez, é o representante de RR, pela própria, LL, pela própria, SS, e pelo próprio, AA, todos servindo de vogais. A comissão, tendo estudado detidamente o assunto, tanto no gabinete como no campo, verificou que a planta em estudo abrange não só os terrenos, sitos na praia do Monte Branco, mas ainda duas extensas zonas de terreno à beira-ria e confinantes por norte e sul com aquela praia. Dessa forma, a comissão considerou que, por ser do interesse público, devia propor à Comissão do Domínio Público Marítimo que a delimitação com o domínio público hídrico dos terrenos sitos na praia do Monte Branco, requerida pela Câmara Municipal da Murtosa, fosse também extensiva aos terrenos à beira-ria adjacentes à dita praia e compreendidos entre os paralelos + 121 071,4 e + 120 668,9, que definem, respetivamente a norte e a sul, os pontos A e H da poligonal de delimitação, e que na delimitação fosse seguido o critério estabelecido nos aforamentos dos terrenos da Costa da Torreira feitos pela Câmara Municipal de Estarreja no século XIX (anteriormente a 1864), ou seja, com a estrema situada a 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas vivas. Como se constata da leitura deste auto homologado, a delimitação efetuada, de acordo com o regime do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, então em vigor, não se limitou a aplicar os critérios que abstratamente definem os limites presuntivos do domínio público hídrico, na altura estabelecidos no artigo 1.º a 5.º daquele diploma, tendo seguido o critério estabelecido nos aforamentos dos terrenos da Costa da Torreira feitos pela Câmara Municipal de Estarreja no século XIX (anteriormente a 1864), ou seja, com a estrema situada a 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas vivas, ou seja, fixando a linha limítrofe do domínio público mais perto da linha dos máximos preia-mares de águas vivas do que aquela que resultaria da aplicação dos critérios legais, por ter entendido que se encontrava demonstrado, cumprindo as exigências daquele diploma, que os terrenos situados para além da referida linha de 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas vivas eram propriedade privada desde data anterior a 1864. Ora, o mesmo Município da Murtosa, cuja Câmara Municipal havia requerido a realização daquela delimitação, pretende agora, com esta ação popular, em nome da defesa dos interesses coletivos dos seus residentes, respeitantes ao domínio público, que judicialmente se reconheça que a praia do Monte Branco, em toda a sua largura, integre o domínio público hídrico. Conforme é evidenciado pela solução do referido Despacho Normativo n.º 32/2008, de 20 de junho, que determinou que as delimitações iniciadas no período em que ainda se encontrava em vigor o Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, deveriam ser concluídas segundo os termos deste diploma, apesar da sua conclusão ocorrer quando já se encontrasse em vigor a Lei n.º 54/2005, de 5 de novembro, isto é, devendo ser consideradas nessas delimitações as propriedades particulares validamente constituídas em margens que presuntivamente pertenciam ao domínio público hídrico, as delimitações realizadas e homologadas na vigência do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, que tomaram em consideração a existência desses direitos de propriedade privada, como sucedeu na delimitação em causa, continuaram a vincular todas as autoridades públicas. Foi já reconhecida neste processo, por decisão transitada em julgado, que o Município da Murtosa, que é uma pessoa coletiva pública territorial (artigo 235.º, n.º 2 e 236.º, n.º 1, da Constituição), tem legitimidade para interpor a presente ação popular, agindo em representação dos cidadãos que residem na área da sua circunscrição. Apesar de se encontrar nessa veste representativa, visando a sua pretensão o reconhecimento de que a praia do Monte Branco integra o domínio público hídrico, ou seja a defesa de um interesse público, tal como sucederia com qualquer um que se apresentasse a litigar na defesa exclusiva desse interesse, não deixa o Município da Murtosa de estar vinculado à delimitação administrativa efetuada e homologada pelas entidades competentes, a qual permanece válida e eficaz. Se assim não se entendesse, estava descoberto o expediente para, através da legitimidade ampliada conferida para a propositura de uma ação popular, ser possível escapar a essa vinculação e colocar em causa a legítima confiança conferida aos particulares pela delimitação administrativa validamente efetuada, na qual foram atendidos os direitos de propriedade destes últimos. Atenta a vinculação à delimitação administrativa efetuada no início dos anos 80 do século passado, não tem o Município da Murtosa direito a que seja reconhecido que todo o areal da Praia do Monte Branco integra o domínio público, dado que o reconhecimento deste direito, com essa extensão, desrespeitaria a delimitação efetuada no início dos anos 80 do século passado, por comissão nomeada para o efeito e homologada Direção-Geral dos Serviços de Fomento Marítimo, na qual se definiu que apenas os 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas vivas integravam o domínio público, pelo que nesta parte, o recurso interposto deve proceder, absolvendo-se os Réus do pedido de reconhecimento do domínio público sobre toda a praia do Monte Branco.
1.2. Do pedido subsidiário de reconhecimento da servidão administrativa O Autor formulou, no entanto, pedido subsidiário de reconhecimento que a área de terreno em causa está sujeita a uma servidão de uso público como praia, podendo qualquer cidadão por aí circular livremente, utilizá-la como praia, aí permanecendo, aceder à ria, não podendo os Réus aí exercer quaisquer atos que impeçam ou alterem a sua função de praia. Dispõe o artigo 21.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 5 de novembro, que todas as parcelas privadas de leitos ou margens de águas públicas estão sujeitas às servidões estabelecidas por lei e nomeadamente a uma servidão de uso público, no interesse geral de acesso às águas e de passagem ao longo das águas da pesca, da navegação e da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis, e ainda da fiscalização e policiamento das águas pelas entidades competentes. Conforme relatámos, quando apreciámos o mérito do pedido principal formulado pelo Autor na presente ação, ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro, foi homologado por despacho proferido pela Direção-Geral dos Serviços de Fomento Marítimo, publicado no DR IIIª Série, nº 259, de 10 de Novembro de 1981, um parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo que delimitou o domínio público terrenos sitos praia do Monte Branco, com a estrema situada a 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas vivas. Como essa delimitação vincula todas as entidades públicas, a área dos terrenos que se situem para além da referida estrema, mantendo-se em zona presuntivamente pertencente ao domínio público, como sucede com toda a Praia do Monte Branco, atento o disposto no artigo 11.º, n.º 5, da Lei n.º 54/2005, de 5 de novembro, estão também sujeitas ao disposto no transcrito n.º 1, do artigo 21.º, deste mesmo diploma, pelo que sobre elas incide uma servidão de uso público, no interesse geral de acesso às águas. Pode, pois, dizer-se que a Praia do Monte Branco, enquanto terreno constituído por areias soltas contíguo ao mar, em toda a sua largura, nos 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas vivas, pertence ao domínio público, incidindo sobre a parte restante da praia uma servidão de uso público no interesse geral de acesso às águas da Ria de Aveiro. Estamos perante a constituição de uma servidão administrativa de margem, por disposição legal, em proveito da utilidade pública das praias como zonas de desfrute das águas públicas, nomeadamente para fins balneares, como sucede no caso da Praia do Monte Branco há muitos anos, como resulta da matéria de facto provada. A constituição deste tipo de servidão já remonta ao artigo 124.º da Lei das Águas de 1919 e manteve-se, anteriormente ao disposto no artigo 21.º, n.º 1, da Lei n.º 54/2005, de 5 de novembro, no artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de novembro [24]. Apesar da lei referir que o interesse geral que se pretende satisfazer com a imposição desta servidão é o acesso a águas públicas, a servidão administrativa abrange as margens dessas águas em toda a sua extensão e largura que a lei presuntivamente considere integrada no domínio público [25], o que no caso das praias, abrange toda a sua área, porque, como vimos, toda ela pertence, presuntivamente, ao domínio público (artigo 11.º, n.º 5, da Lei n.º 54/2005, de 5 de novembro), ficando por isso, indiretamente proibida a existência de “praias privadas” [26]. A utilização de uma praia, enquanto margem de águas públicas, para fins públicos balneares, traduz-se não somente na utilização da praia como um espaço de acesso à água, mas também como um espaço de permanência junto a esta, suscetível, de utilização por todos os cidadãos para diversificados fins terapêuticos, sociais ou recreativos, cuja utilização pública se generalizou no século XIX, pelo que deve ser julgado procedente o pedido subsidiário formulado pela Autora, no sentido de se reconhecer que a área da Praia do Monte Branco, para além daquela que integra o domínio público, segundo delimitação administrativa efetuada, está sujeita a uma servidão de uso público como praia, podendo qualquer cidadão por aí circular livremente, utilizá-la como praia, aí permanecendo, aceder à ria, não podendo os Réus aí exercer quaisquer atos que impeçam ou alterem a sua função de praia.
2. Do pedido reconvencional Os dois primeiros Réus, na contestação apresentada, deduziram pedido reconvencional no sentido que lhes seja reconhecido o seu direito de propriedade plena sobre a totalidade do prédio situado na zona de Monte Branco, ..., ..., do concelho da Murtosa, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 47981 (532/19890908) e inscrito na matriz da freguesia ..., Murtosa sob os nºs. 1428, 1429, 1425 e 1740. Parte desse prédio é aquela que a Autora reclamou como pertencendo ao domínio público nesta mesma ação e que corresponde a uma parcela da praia do Monte Branco, a qual, enquanto praia, integra zona do domínio público hídrico legalmente presumido, nos termos do artigo 11.º, n.º 5, da Lei n.º 54/2005, de 5 de novembro. Este pedido foi formulado em reconvenção deduzida contra o Autor, o Município da Murtosa. No despacho saneador conheceu-se concretamente da legitimidade ativa da Autora, mas não se apreciou a sua legitimidade passiva, relativamente ao pedido reconvencional. O reconhecimento judicial de direitos de propriedade particular sobre terrenos que se inserem em área abrangida pelo domínio público hídrico, nos termos em que se encontra presuntivamente definido pela Lei n.º 54/2005, de 5 de Novembro, deve ser efetuado através da ação prevista no artigo 15.º deste diploma. Conforme atualmente se dispõe o n.º 1, deste preceito legal, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 34/2014, de 19 de junho, essa ação deve ser contestada pelo Ministério Público, em nome próprio, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, como sucede no presente caso. Conforme se explicou no Projeto-Lei n.º 557/XII/3 que esteve na origem das alterações introduzidas pela Lei n.º 34/2014, de 19 de junho, visou-se a clarificação da qualidade em que intervém o Ministério Público no âmbito das ações judiciais de reconhecimento de propriedade privada intentadas ao abrigo do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, atribuindo-lhe diretamente a competência para contestar tais ações, uma vez que o que aí está verdadeiramente em causa é a defesa dos interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais. No entanto, quando este pedido reconvencional foi formulado, em 24.09.2007, esta alteração na definição da legitimidade passiva para contestar este tipo de pretensões ainda não tinha ocorrido, encontrando-se vigente a Lei n.º 54/2005, de 5 de Novembro, na sua redação original Nessa redação, o referido artigo não indicava quem tinha legitimidade para ser demandado neste tipo de ações, entendendo-se que essa legitimidade incidia sobre o Estado, representado pelo Ministério Público (artigo 3.º, n.º 1, a) do Estatuto do Ministério Público então em vigôr, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro), quando era posto em causa o domínio público marítimo, lacustre ou fluvial, uma vez que o Estado era o titular do respetivo direito (artigos 4.º e 6.º, da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro) [27]. A legitimidade para ser demandado pelo pedido reconvencional formulado pelos Réus pertencia, pois, ao Estado, representado pelo Ministério Público. Ora, não foi o Estado, representado pelo Ministério Público que foi demandado no pedido reconvencional, mas sim o Município da Murtosa, o qual carece de legitimidade para contestar uma ação em que se pretenda o reconhecimento de uma propriedade privada em área que a lei considera integrar presuntivamente o domínio público hídrico. Note-se que, se é verdade que o Ministério Público foi inicialmente citado para a presente ação (não tendo, contudo, sido sequer notificado da dedução do pedido reconvencional), foi-o conforme consta do despacho que determinou essa citação, não como representante do Estado, mas sim na veste de fiscal da observância da legalidade, em sentido amplo, função que na altura lhe era genericamente atribuída na alínea f), do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro e que assumia nas ações populares, como a presente, em que nos termos do artigo 16.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, na sua redação original, vigente no momento da propositura da ação e citação do Ministério Público, exceto se, sendo partes na causa, o Estado, algum incapaz ou ausente, os deveria representar, o que não ocorre na presente ação. Ora, no exercício da competência de fiscal da legalidade, o Ministério Público não está incumbido de defender o domínio público de que o Estado é titular, desempenhando antes o papel de amicus curiae, competindo-lhe vigiar e contribuir para a observância da legalidade democrática na decisão a proferir nas ações populares, pautando a sua atuação processual por critérios de objetividade e imparcialidade, os quais não são necessariamente coincidentes com os adotados na defesa do domínio público, pelo que a sua intervenção neste processo não se traduziu numa representação do Estado que não era parte na causa, nem na defesa dos seus interesses. Acresce que nem sequer seria possível, neste processo, fazer intervir o Ministério Público, em representação do Estado, para contestar o pedido reconvencional, uma vez que a intervenção de terceiros para se oporem à dedução de um pedido reconvencional só poderia ocorrer, em situações de litisconsórcio com o Autor reconvindo (artigo 226.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), o que neste caso não sucede, uma vez que o Município da Murtosa, não é co-titular do domínio público sobre as margens da ria de Aveiro, sendo essa titularidade exclusiva do Estado. Não tendo o Município da Murtosa legitimidade para ser demandado, relativamente ao pedido reconvencional formulado pelos Réus, deve a ausência deste pressuposto processual ser conhecida oficiosamente (artigos 577.º, e), e 578.º do Código de Processo Civil), absolvendo-se o Autor da instância (artigo 576.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), ficando, por isso prejudicado o conhecimento do mérito do recurso quanto à procedência do pedido reconvencional.
* Decisão Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que julgou procedente o pedido principal deduzido pelo Autor na petição inicial e improcedente o pedido reconvencional de reconhecimento de direito de propriedade, deduzido pelos dois primeiros Réus, decidindo-se o seguinte: - julga-se improcedente o pedido deduzido pelo Autor de condenação dos Réus a absterem-se de praticar qualquer ato, na praia do Monte Branco, por esta ser do domínio público, em toda a zona assinalada a amarelo na planta junta como documento nº 1 na petição da providência cautelar apensa, que se dá por reproduzida para fazer parte desta sentença, nomeadamente impeditivo do acesso e fruição da mesma por qualquer cidadão, nela colocando quaisquer objetos, vedando-a, impedindo a sua manutenção e arranjo pelo A., realizando qualquer ato que desvirtue a utilização da mesma como praia pública e de livre acesso; - julga-se procedente o pedido subsidiário deduzido pelo Autor na petição inicial e, em consequência, reconhece-se que a área da Praia do Monte Branco identificada a amarelo na planta junta na providência cautelar apensa aos presentes autos, está sujeita a uma servidão de uso público como praia, podendo qualquer cidadão por aí circular livremente, utilizá-la como praia, aí permanecendo e aceder à Ria, não podendo os Réus aí exercer quaisquer atos que impeçam ou alterem a sua função de praia. - por ilegitimidade passiva do Autor, absolve-se o mesmo da instância, relativamente ao pedido reconvencional de reconhecimento de direito de propriedade deduzido pelos dois primeiros Réus. - mantém-se o demais decidido.
* Custas do recurso e nas instâncias em igual proporção pelo Autor e pelos Réus.
* Notifique.
* Lisboa, 22 de junho de 2023
João Cura Mariano (relator, por vencimento)
Fernando Baptista
Catarina Serra (com declaração de voto de vencida)
Declaração de voto 1. Como Relatora inicial do processo, apresentei projecto de decisão em que se negava provimento à revista e se confirmava o Acórdão recorrido. 2. A fundamentação deste projecto era, na parte relevante, a seguinte: “A situação convoca, indiscutivelmente, a interpretação da Lei n.º 54/2005, de 15.11, que foi rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 4/2006, de 11.01 e alterada pela Lei n.º 78/2013, de 21.11, pela Lei n.º 34/2014, de 19.06, e pela Lei n.º 31/2016, de 23.08[1]. Na sequência e em linha de continuidade com o DL n.º 468/71, de 5.11[2] [3], esta Lei visa estabelecer a titularidade dos recursos hídricos, resultando do artigo 12.º, n.º 1, al. a), in fine, uma presunção de dominialidade pública dos leitos e margens de águas do mar e de águas navegáveis e flutuáveis[4]. Compreende-se, de forma quase intuitiva, esta opção legislativa. Estando em causa, em particular, uma zona de praia, é de notar que, de acordo com Afonso Queiró, apreciando o Decreto Real de 31 de Dezembro de 1864 “[o] legislador terá sido levado a incorporar as praias (hoc sensu) no domínio público pelo facto de esses terrenos serem actual ou virtualmente objecto de utilizações ordinárias do público, quer gerais quer especiais, convindo por isso subtraí-los à possibilidade de apropriação privada que, segundo o direito positivo imediatamente anterior, sempre podia operar-se em relação a eles. Na verdade, o direito anteriormente vigente no nosso País [anteriormente ao Decreto de 31 de Dezembro de 1864] não incluía tais terrenos no elenco das coisas públicas e consequentemente no número das coisas fora do comércio”[5]. Em reforço da propensão natural das zonas de praia, em particular para o desempenho de uma função pública, acrescenta o autor adiante: “A verdade, porém, é que a praia descoberta pelas águas se destina, por natureza, sempre ao gozo de todos — e pertence por isso sempre ao domínio público do Estado (ressalvada a eventualidade de haver parcelas desafectadas e incorporadas no património do Estado, e salvo ainda o caso dos terrenos que, em data anterior à entrada era vigor do Decreto de 31 de Dezembro de 1864, tenham entrado no domínio privado de qualquer pessoa ou entidade)”[6]. De facto, aquela presunção de dominialidade é relativa ou juris tantum. Não obsta, portanto, a que sejam reconhecidos direitos de natureza privada ou adquiridos por particulares. Mas é preciso que se verifiquem determinados requisitos – no quadro normativo vigente, é preciso que se verifique uma das situações previstas no artigo 15.º da Lei n.º 54/2005. Dispõe-se, actualmente, naquela norma[7]: “1 - Compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio. 2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868. 3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa. 4 - Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas. 5 - O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que: a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei; b) Ocupem as margens dos cursos de água previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, não sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias; c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado. 6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, compete às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira regulamentar, por diploma das respetivas Assembleias Legislativas o processo de reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, nos respetivos territórios. Tendo presente este quadro normativo, analise-se a factualidade apurada. Em primeiro lugar, no que respeita ao n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, é ponto assente que os recorrentes, pretendendo obter o reconhecimento da propriedade daquela zona de praia, estavam adstritos “[à] necessidade de oferecer prova documental de tal direito, ou prova da posse privada dos bens em causa, em momento anterior a 31 de dezembro de 1864”[8] [9]. Com relevância para a interpretação desta norma, deve chamar-se à colação o Acórdão deste Supremo Tribunal de 30.11.2021 (Proc. 2960/14.5TBSXL.L1.S1), em cujo sumário pode ler-se: “No âmbito do regime previsto no artigo 15º, nº 2, da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro (que estabelece a titularidade dos recursos hídricos), na redação atual dada pela Lei nº 34/2014, de 19 de junho, pretendendo o interessado obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de demonstrar, além da sua titularidade, que aqueles terrenos eram objeto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas, por título legítimo (à luz do Código Civil de Seabra), não sendo necessária a prova de toda a história de transmissões do bem e do reatamento do trato sucessivo até ao momento presentei”. Esclarecido qual o sentido que deve dar-se ao disposto no n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, logo se conclui que não foi produzida prova documental a que se refere esta norma, ou seja, que não ficou provado por meio de documento que aquela zona de praia era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864[10]. Na verdade, e como se aponta no Acórdão recorrido, da factualidade provada apenas resulta que, em 1926, a CM de Estarreja concedeu a CC o desaforamento de um terreno do qual faz parte o prédio dos réus, tendo o terreno passado, depois, para a propriedade plena de CC (cfr. factos provados 47 e 48). Mas isto não supre a falta de prova documental de que o terreno era, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864. É visível, em segundo lugar, que não foi produzida a prova prevista no n.º 3 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005[11], ou seja, não está demonstrado, por qualquer meio de prova admissível[12], que antes de 1864 o terreno estivesse na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa. Aquilo que se apurou, diversamente, é que o prédio dos réus fez parte outrora de terrenos que, como outros existentes na costa da Torreira, entre o mar e a ria de Aveiro, se encontravam na posse e administração da CM de Estarreja e que a mesma, enquanto proprietária e senhoria, aforava a particulares (foreiros) mediante o pagamento de um foro anual e que esses terrenos, já antes de 1864, se encontravam na posse e sob a administração e fiscalização da CM de Estarreja, que, naquela data, abrangia a área que faz hoje parte integrante do Município da Murtosa (cfr. factos provados 44 e 45). Estes factos ilustram que CM de Estarreja detinha a propriedade e a posse em nome próprio do terreno e, consequentemente, enfraquecem ou mesmo infirmam a tese de que o terreno estava na posse em nome próprio de particulares ou em situação de fruição conjunta da população. Tão-pouco é possível dizer que se verifique a hipótese prevista na al. a) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005. Relembre-se que esta disposição admite que o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis ocorra por mera prova de que o terreno foi objecto de um acto de desafectação do domínio público hídrico, nos termos da lei. Mas, como bem sublinhou o Tribunal recorrido, o acto de desafetação do domínio público hídrico deve ter sido realizado “nos termos da lei” , o que, in casu, não ocorreu. Basta ver que o artigo 19.º da Lei n.º 54/2005 determina: “Pode, mediante diploma legal, ser desafectada do domínio público qualquer parcela do leito ou da margem que deva deixar de ser afecto exclusivamente ao interesse público do uso das águas que serve, passando a mesma, por esse facto, a integrar o património do ente público a que estava afecto”. Como explicou o Tribunal recorrido, “de acordo com o artigo 19º da Lei n.º 54/2005, existe uma reserva de lei em matéria de desafectação de bens do domínio público hídrico, não sendo admissível que tal operação seja promovida mediante acto administrativo ou, por maioria de razão, por mero efeito de um contrato de alienação”. Talvez para fazer face à precisão e à exigência desta norma, os recorrentes convocam o regime revogado dos artigos 5.º e 8.º do DL n.º 468/71, de 5.11[13], dizendo que ocorreu uma desafectação, nos termos de tais normas[14]. Dizem os recorrentes, mais precisamente: “47. Sendo que nos termos do art.º 5º, nºs 1 e 2 DL 468/71, de 5 de Novembro, consideram-se objecto de propriedade privada as parcelas dos leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis que forem objecto de desafectação ou reconhecidas como privadas nos termos deste diploma. 48. Ora, como referem José Miguel Júdice e José Miguel Figueiredo in Acção de reconhecimento da propriedade privada sobre Recursos Hídricos Almedina, 2015 2ª Edição, a propósito do II. âmbito da acção de reconhecimento, no ponto 4. Ambito Subjectivo ou relativo à titularidade a páginas 31 a 32 a propósito da “Utilidade da delimitação”: “Na verdade, antes da Lei n° 54/2005, o reconhecimento da propriedade privada era efectuado por via administrativa, nos termos do artigo 8º, do Decreto-Lei n,º 468/71. Ora, tendo já sido reconhecida a propriedade privada por força daquele mecanismo administrativo, as parcelas a e terrenos em causa iá se encontram fora do âmbito da acção de reconhecimento, precisamente pelo facto de já ter sido afastada a presunção dominialidade que sobre eles incidia e de, portanto, estarmos perante parcelas de terreno que, ainda que não seja judicialmente reconhecida, a sua propriedade privada, se encontram já na titularidade de particulares. Ora, como bem se vê, o afastamento destas hipóteses do âmbito da acção de reconhecimento faz-se por referência aquele que designámos por âmbito subjectivo ou relativo à titularidade.» 49. Assim, tendo já sido reconhecido o direito de propriedade privada por via administrativa sobre o Terreno dos RR em 1981 por entidade administrativa ao abrigo do artigo 8º do Decreto-Lei 468/71 através da delimitação efectuada já tinha sido afasta a presunção de dominialidade que sobre os terrenos em causa poderia incidir. Estariam os sempre sobre parcelas do terreno já na titularidade dos Réus. 50. Ora, tal reconhecimento da propriedade em sede de delimitação ao abrigo do Decreto-Lei 468/71 que afastou a presunção de dominialidade pública (artigo º 5º, nºs 1 DL 468/71) foi completamente descurada pelo Tribunal. 51. De facto, nos termos do artigo 5.º nº 2 do DL 468/71 “Consideram-se objecto de propriedade privada, sujeitos a servidões administrativas, os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos particulares, bem como as parcelas dos leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis que forem objecto de desafectação ou reconhecidas como privadas nos termos deste diploma”. 52. Normas que o Tribunal a quo em vigor aquando da delimitação constante do ponto 7. da matéria de facto dada como provada descurou por completo 53. Seguindo o afirmado pelos referidos autores, por já ter sido reconhecida por entidade administrativa o direito de propriedade dos Réus que afastou a presunção de dominialidade, não podia agora ao abrigo de uma nova lei ser descurada, sob pena de se violar o princípio do estado de direito democrático (artigo 2º da CRP), na sua dimensão relativa à segurança jurídica, ser colocada em causa a confiança depositada nessa prévia decisão administrativa produzida há mais de 40 anos e a proibição da retroactividade restritiva de direitos liberdades e garantias prevista expressamente no artigo 18º nº 3 da CRP já que o direito de propriedade é um direito fundamental com estrutura análoga aos direitos liberdades e garantias. Pelo que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou as referidas normas legais e princípios constitucionais. 54. Sendo certo que, sem conceder, caso assim não se considerasse, sempre se deveria entender que tal decisão de delimitação, efectuada ao abrigo da lei em vigor e que nunca foi impugnada, configuraria também um acto de desafectação para efeitos do previsto na alínea a) do nº 5 do artigo 15º da Lei 54/2005 na parte em que do terreno não abrangida pelos 11 metros de distância da linha dos máximos preia-mares de águas (cfr. facto provado 10). Ao assim não ter decidido o Tribunal a quo violou também a referida norma”. Quer dizer: reconhecendo, implicitamente, que as normas invocadas estão revogadas / foram revogadas pela Lei n.º 54/2005 (cfr. artigo 29.º), os recorrentes pretendem seja que a delimitação efectuada em 1972, constante do facto provado 7, seja que a delimitação efectuada em 1981, constante do facto provado 10, correspondem à desafectação a que se refere a parte final do artigo 5.º, n.º 2, do DL n.º 468/71[15], afastando, definitivamente, a presunção de dominialidade pública do terreno. Não é possível, contudo, reconhecer razão aos recorrentes. Dispunha-se no referido artigo 5.º, n.º 2, do DL n.º 468/71: “Consideram-se objecto de propriedade privada, sujeitos a servidões administrativas, os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos particulares, bem como as parcelas dos leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis que forem objecto de desafectação ou reconhecidas como privadas nos termos deste diploma”[16]. Esclarece-se no Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 17.01.2008 (Parecer P000102006) que “os meios pelos quais os particulares poderiam, nos termos do n.º 2 deste preceito, obter o reconhecimento desse direito de propriedade privada, foram previstos pelo artigo 8.º; na linha já anteriormente preconizada pela Comissão do Domínio Público, foi estabelecida uma presunção juris tantum de propriedade pública relativamente aos terrenos que constituíam os leitos e margens das águas dominiais, permitindo-se aos particulares ilidirem essa presunção através de meios de prova especificamente determinados”. Os recorrentes pretendem que se dê atenção, em especial, n.º 4 deste artigo 8.º do DL n.º 468/71, dispondo o seguinte: “Não ficam sujeitos ao regime de prova estabelecido nos números anteriores os terrenos que, nos termos da lei, hajam sido objecto de um acto de desafectação” [17]. Note-se que em ambas as disposições se exige que a desafectação seja efectuada “nos termos deste diploma / nos termos da lei”. E, embora não se encontre aí norma que esclareça com precisão em que consiste esta desafectação, é razoavelmente evidente que ela não seria passível de resultar de um qualquer acto praticado por uma qualquer pessoa – não seria passível, designadamente, de resultar de um mero acto da vontade de sujeitos privados, que configurasse o simples exercício da autonomia privada ou da liberdade contratual, mesmo que revistindo forma pública. Isto porque a desafectação implica sempre uma “desdominialização”, ou seja, uma deslocação da coisa da esfera jurídica pública para a esfera jurídica privada, que, logicamente, só pode resultar da iniciativa – de uma certa iniciativa – ou da actividade – de uma certa actividade – dos entes públicos. O que bem se compreende dado que a desafectação pressupõe que a coisa deixou de desempenhar ou é passível de deixar de desempenhar a função (pública) que foi determinante para o seu carácter dominial. A propósito da cessação da dominialidade / desafectação no quadro do DL n.º 468/71, explicava Marcello Caetano: “A dominialidade cessa por virtude do desaparecimento das coisas, ou em consequência do desaparecimento da utilidade pública que as coisas prestavam ou de surgir um fim de interesse geral que seja mais convenientemente preenchido noutro regime. No primeiro caso, a dominialidade cessa porque o direito de propriedade pública se extinguiu à falta de objecto sobre que se exerça. Assim sucede quando arde a biblioteca ou o museu, o terramoto arraza a fortaleza ou o palácio nacional, o tempo os arruina ou o próprio uso provoca a destruição ou demolição (como sucede com o domínio militar na guerra). Mas nem sempre há desaparecimento violento das coisas: às vezes é um facto natural que modifica o seu carácter, como acontece quando seca um rio navegável ou flutuável. No segundo caso as coisas continuam a existir mas, por decisão expressa da Administração ou com o seu consentimento tácito, deixam de ter utilidade pública ou perdem o carácter dominial: há, então, desafectação. A desafectação expressa pode resultar: 1) de lei que tire o carácter dominial a toda uma categoria de bens, v. g. que, declare alienáveis os palácios nacionais (desafectação genérica); 2) de lei ou acto administrativo que declare não dominial, ou sem utilidade pública, a certa e determinada coisa (desafectação singular)”[18]. Seguindo esta interpretação, concluía-se no Acórdão deste Supremo Tribunal de 5.06.2018 (Proc. 1339/16.9T8FAR.E1.S2): “[a desafectação], implicando a cessação da dominialidade pública, pressuporia que, por lei, se determinasse que os terrenos públicos em causa teriam deixado de possuir tal carácter dominial ou de estarem afectos a uma utilidade pública”. A verdade é que nem o contrato de compra e venda outorgado em 1972 nem o despacho homologatório do parecer da Comissão do Domínio Público Marítimo publicado no DR em 1981 consubstanciam uma lei ou um acto administrativo que declare não dominial ou sem utilidade pública o terreno ou equivalem ao reconhecimento, por via administrativa, do direito de propriedade privada dos recorrentes sobre o terreno nos termos legalmente exigidos e para o efeito do artigo 8.º do DL n.º 468/71. Assim, em conclusão, nem pela via do DL n.º 486/71 seria possível acolher a pretensão dos recorrentes de que houve uma desafectação nos termos exigidos pela lei, permitindo o reconhecimento da sua propriedade privada. Quanto às hipóteses previstas no n.º 4 e n.º 5, als. b) e c) do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, elas não foram, simplesmente, alegadas (podendo, em obter dictum, aventar-se a hipótese de elas não terem sido alegadas porque elas não se verificariam). Em síntese, não se encontrando cumpridas as exigências de qualquer das hipóteses legalmente previstas para o reconhecimento do direito dos recorrentes, não é possível acolher a sua pretensão. Para terminar, são devidas algumas palavras em resposta às repetidas alegações de inconstitucionalidade da interpretação do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005 propugnada no Acórdão recorrido e aqui perfilhada (cfr. conclusões 11, 40 a 42, 45, 53 a 56), nomeadamente, a de que esta interpretação viola o disposto no artigo 62.º da CRP. Diz-se no já referido Acórdão deste Supremo Tribunal de 30.11.2021 (Proc. 2960/14.5TBSXL.L1.S1): “A compreensão do exato sentido e alcance do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005 reclama o recurso ao elemento histórico, retirado da exposição de motivos anexa à Proposta de Lei n.º 19/X. Aí se esclarece que, em matéria de reconhecimento de propriedade privada, a intenção legislativa foi a de impedir que a proteção dos direitos privados pudesse gerar a «instabilidade permanente da base dominial», para que não se permitisse indefinidamente a invocação de direitos privados anteriores a 1864 ou 1867, estabelecendo-se, por conseguinte, que as ações dos privados deviam ser interpostas até 1 de janeiro de 2014, parecendo este limite temporal razoável para a reivindicação de tais direitos, tendo em conta que a possibilidade de reconhecimento constava já do Decreto-Lei n.º 468/71”. Também a propósito da Lei n.º 54/2005 (na redacção da Lei n.º 78/2013, de 21.11) diz-se no (já referido) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2015 de 23.07 “[e]ste regime jurídico persegue, como se perceciona, um equilíbrio entre, por um lado, o princípio do respeito pelos direitos adquiridos dos particulares, e, por outro, a conveniência de que as margens de águas públicas, por condicionarem a utilização dessas águas, integrem o domínio público, ou seja, estejam sujeitas um regime especial de direito público caracterizado por um reforço das medidas de proteção das coisas que o integram”. Julgou-se neste Acórdão não inconstitucional a norma do artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, al. a) da Lei n.º 54/2005, quando interpretada no sentido de a obrigatoriedade da prova a efetuar pelos autores se reportar a data anterior a 31 de Dezembro de 864. Foi apreciada a conformidade constitucional daquela interpretação sobretudo no confronto com o artigo 62.º da CRP, tendo-se concluído que a jurisprudência constitucional em matéria de distribuição do ónus da prova (cfr. o Acórdão n.º 596/09), dizendo-se que “ela exige que tal ónus seja alocado à parte que se encontra em melhores condições para antecipadamente poder lançar mão dos meios ou instrumentos materiais aptos à prova dos factos. Ora, não é contestável que o particular é, à partida, quem preenche melhor – ou, pelo menos, menos mal - esta exigência”. Entende-se que estas considerações se mantêm válidas para as restantes disposições da norma do artigo 15.º na versão actual da Lei n.º 54/2005, o que significa, por outras palavras, que não se acompanha os recorrentes na alegação de inconstitucionalidade daquela interpretação”. 3. Sem prejuízo do estudo em que assenta o Acórdão que agora faz vencimento, não posso acompanhar as respectivas fundamentação e decisão, sucintamente, pelas seguintes razões: 1.º) Ao negar-se o reconhecimento do domínio público com fundamento em que o reconhecimento do domínio público “desrespeitaria a delimitação” descrita no facto provado 10, está a atribuir-se à delimitação os efeitos de uma desafectação / está a equiparar-se a delimitação a uma desafectação, o que não é, no meu entender, correcto (esta implica uma “desdominialização” que aquela não é apta a produzir / esta é, aliás, pressuposto daquela). 2.º) Ao negar-se o reconhecimento do domínio público com fundamento em que o reconhecimento do domínio público “desrespeitaria a delimitação” e ao reconhecer-se que a área da Praia do Monte Branco está sujeita a uma servidão de uso público, está a reconhecer-se que aquela área é propriedade dos réus / particulares ou, pelo menos, que aquela área está excluída do domínio público [quem é (só) titular de uma servidão não é (não pode ser) proprietário]. Logo, não é, a meu ver, coerente: a) decidir-se que o autor “carece de legitimidade para defender os interesses públicos que estão subjacentes à dominialidade desse tipo de terrenos” (foi-lhe reconhecida legitimidade, para este mesmo efeito, na acção); e b) decidir-se absolver o autor da instância, por ilegitimidade passiva, relativamente ao pedido reconvencional (a questão aí suscitada é a mesma: o domínio público ou privado da área da Praia do Monte Branco).
Catarina Serra ______ Notas de rodapé referentes ao Acórdão: [1] Após a retificação da sentença, efetuada, por despacho de 25.03.2019, ao abrigo do disposto nos artigos 613.º, n.º 2, e 614.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Notas de rodapé referentes à declaração de voto da Sra Conselheira Catarina Serra: [1] No Supremo Tribunal de Justiça encontram-se várias decisões proferidas no âmbito de acções de reconhecimento de direitos privados sobre parcelas do domínio público marítimo ao abrigo desta Lei, quais sejam os Acórdãos de 4.06.2013 (Proc. 6584/06.2TBVNG.P1.S1), de 5.06.2018 (Proc. 1339/16.9T8FAR.E1.S2), de 4.06.2020 (Proc. 108/14.5T8PTS.L2), de 9.06.2021 (Proc. 1784/13.1TBSCR.L1.S1), de 14.07.2021 (Proc. 569/10.1TBVRS.E2.S1), de 30.11.2021 (Proc. 2960/14.5TBSXL.L1.S1), de 27.01.2022 (Proc. 225/16.7T8FAR.E2.S1) e de 15.09.2022 (Proc. 225/16.7T8FAR.E2.S2). |