Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1271/19.4T8CSC-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
SEGURO DE GRUPO
TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS
RECLAMAÇÃO
PARTICIPAÇÃO DO SINISTRO
PRAZO DE VIGÊNCIA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
TOMADOR
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - O contrato de seguro celebrado entre a “Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas”, atual “Ordem dos Contabilistas Certificados”, e uma companhia seguros, com vista a dar cumprimento à obrigação legal de constituição de seguro de responsabilidade civil profissional estabelecida atualmente no Art. 70.º n.º 4 do Estatuto dessa Ordem é um contrato de seguro de grupo, de responsabilidade civil, que tem a natureza de seguro obrigatório, para os efeitos da aplicação do disposto nos arts. 146.º a 148.º do Regime Jurídico do Contrato (RJCS) aprovado em anexo ao Dec.Lei n.º 72/2008 de 16/4.

II - Nos termos do art. 147.º n.º 2 do RJCS, o segurador pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro, nomeadamente a cessação desse contrato.

III - Estando em causa um seguro de responsabilidade civil relativa ao risco duma atividade profissional, são lícitas as cláusulas “claim made basis”, que circunscrevem a delimitação temporal da garantia de pagamento da indemnização que seja devida tendo em atenção o momento da reclamação, independentemente do facto gerador da obrigação ter sido praticado antes do início da vigência do contrato (cfr. Art. 139.º n.º 2 do RJCS).

IV - Tendo a reclamação do sinistro, que consistiu apenas na citação das seguradoras para a presente ação, sido comprovadamente feita depois de cessada a vigência do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, e já no âmbito da vigência doutro contrato de seguro posterior, que cobre o mesmo risco, sendo que em ambos os seguros sucessivos é estabelecida uma cláusula “claim made”, a responsabilidade civil em causa ficou coberta apenas pelo seguro onde a reclamação foi feita em primeiro lugar, não se justificando a extensão da vigência temporal do seguro anterior, relativamente ao qual não foi feita qualquer reclamação oportuna.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Relatório

EUC Inovação Portugal, Lda. veio intentar a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra a AA, contabilista certificado, e a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., pedindo a condenação do 1.º R. a:

i) Proceder à entrega das declarações contabilísticas e fiscais em falta referentes ao ano de 2015, nomeadamente a declaração periódica de rendimentos (modelo 22 do IRC) e a declaração anual de informação contabilística e fiscal (IES);

ii) Pagar à A., a título de indemnização por danos diretos e lucros cessantes, a quantia de €40.802,55, acrescido dos juros de mora vincendos à taxa supletiva legal, desde a data da citação até integral pagamento;

iii) Proceder ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de pagamento da quantia que seja por esse Tribunal fixada segundo critérios de razoabilidade, mas não inferior a €100,00, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de apresentação das declarações referidas em i), tudo nos termos do disposto no artigo 829.º-A do Código Civil.

Pede ainda a condenação solidária da 2.ª R. (Allianz) a pagar à A. a indemnização devida pelo 1.º R., acrescida dos juros moratórios, à taxa supletiva aplicável, desde a citação até integral pagamento.

Alega, em termos muito sucintos, que contratou o 1.º R., para exercer as funções de contabilista certificado, ficando responsável pela regularidade da situação da A. nos campos contabilístico e fiscal desde esse momento. No entanto, aquele nunca cumpriu as suas obrigações, não tendo entregado, dentro do prazo para o efeito, que terminava em 15.05.2015, a primeira declaração de IVA, referente ao período 2015/03T. O que implicou a aplicação à A. duma coima no valor de €376,50. Subsistindo o incumprimento, em 14 de maio de 2016, a A. dirigiu carta ao 1.ª R. procedendo à revogação do mandato e solicitou a indicação de data para proceder à recolha dos seus documentos, sendo que, em 20 de maio de 2016, na sequência da revogação do contrato, a A. e o 1.º R. acabaram por celebrar um acordo designado de “Ato de restituição de documentos e pagamento de serviços profissionais”, onde se estabeleceu que 1.º R. deveria entregar toda a documentação que tivesse em sua posse referente à A. e entregar as declarações necessárias junto das autoridades competentes e que estavam em falta para regularizar a situação da A. no que respeitava ao período de exercício fiscal em que tinha sido assessorada pelo 1.º R.. No entanto, o 1.º R. não procedeu à entrega do Modelo 22 do IRC, correspondente à declaração anual de rendimentos da autora do ano de 2015, cujo prazo para entrega terminava em 31 de maio de 2016, nem à entrega da declaração anual de informação contabilística e fiscal (IES) da A. ao ano de 2015, cujo prazo de entrega terminava em 15 de julho de 2016. Assim, a A. não tem a sua situação contabilística e fiscal regularizada, o que lhe tem causado prejuízos, estimados em €40.802,55, cujo ressarcimento peticiona.

Invocou ainda que o 1.º R. se encontra inscrito como profissional na Ordem dos Contabilistas Certificados e, em consequência, está obrigado, nos termos do n.º 4 do Art. 70.º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, aprovado pela Lei n.º 139/2015, de 7 de setembro (“EOCC”), a subscrever um seguro de responsabilidade civil profissional de valor nunca inferior a €50.000,00 (cinquenta mil euros), sendo que a Ordem dos Contabilistas Certificados, no âmbito das suas competências, veio celebrar contrato de seguro obrigatório, atualmente com a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., através da Apólice n.º .......86 (“Apólice”), a qual estabelece um limite de indemnização de €50.000,00, por Contabilista Certificado aderente, e que define como objeto a garantia da “responsabilidade civil que, ao abrigo da legislação aplicável, seja imputável ao Segurado na sua qualidade de Contabilista Certificado.” Pretende assim exercer o direito a indemnização por responsabilidade civil contratual relativa ao 1.º R. e o acionamento da garantia de pagamento dessa indemnização relativamente à 2.ª R..

Citados, os R.R. contestaram separadamente, tendo o 1.º R. invocado a exceção da ilegitimidade e impugnado os factos, concluindo no sentido de ser “considerado parte ilegítima” e, em qualquer caso, absolvido do pedido.

A 2.ª R., Allianz, para além da prescrição, veio confirmar a celebração de contrato de seguro de grupo obrigatório com a Ordem dos Contabilistas Certificados, que se encontra em vigor desde as 00:00 horas do dia 01/04/2016, o qual foi renovado automática e anualmente a partir de 01/04/2017 e de 1/04/2018. No entanto, o «Sinistro» coberto pelo seguro corresponderia à «reclamação formal ou série de reclamações formais resultantes de um mesmo evento suscetível de fazer funcionar as garantias do contrato» - cfr. Art.º 1, alínea g), sob a epígrafe “Definições, objeto e garantias do contrato”, do Capítulo I das Condições Gerais, sendo que por «Reclamação» se entende: «- Qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra o Segurado, ou contra o Segurador, quer por exercício de ação direta, quer por exercício de direito de regresso, como suposto responsável de um dano abrangido pelas garantias da Apólice;

‐ Toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida pela primeira vez pelo Segurado e notificada oficiosamente por este ao Segurador, i) de que possa derivar eventual responsabilidade abrangida pela Apólice, ii) que possa determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento, ou iii) que possa fazer funcionar as garantias da Apólice.

Todas as reclamações resultantes de um mesmo evento, independentemente do número de reclamantes ou reclamações formuladas, serão consideradas como uma só reclamação;» - cfr. art.º 1, alínea h), sob a epígrafe “Definições, objeto e garantias do contrato”, do Capítulo I das Condições Gerais. Ora, o contrato de seguro abrange apenas e tão só «…as reclamações apresentadas pela primeira vez, ao Segurado ou diretamente ao Segurador, durante o período de vigência deste contrato ou, relativamente a erros, atos ou omissões geradores de responsabilidade, desconhecidos das partes e ocorridos durante o período de vigência do contrato, nos 24 (vinte e quatro) meses subsequentes ao seu termo, ficando, contudo, sempre excluídas as reclamações abrangidas pelo seguro anterior, nomeadamente as reclamações participadas nos 24 meses subsequentes ao termo da apólice do seguro anterior desde que o ato gerador da responsabilidade tenha ocorrido durante o período de vigência da referida apólice.» (cfr. ponto 1.1. das Condições Particulares, sob a epígrafe “Âmbito Temporal” do doc. 1).

Deste modo, como em discussão nos presentes autos está o exercício fiscal de 2015 e os alegados erros ou omissões do 1.º R. são do conhecimento da A. desde 13 de Agosto de 2015, sendo do conhecimento da A. e do 1.º R., muito antes de 1 de abril de 2016, data a partir da qual passou a vigorar a Apólice do contrato de seguro celebrado com a 2.ª R., o alegado sinistro dos autos não teria enquadramento temporal na apólice.

Por outro lado, a 2.ª R. esclareceu ainda que, até 31/03/2016, a Ordem dos Contabilistas Certificados mantinha em vigor idêntico contrato de seguro de responsabilidade civil com a Mapfre - Seguros Gerais, S.A., em regime de cosseguro com a AIG Europe, titulado pela apólice n.º ...........62, o qual foi celebrado pelo prazo de 12 meses, com data de início às 0:00 horas do dia 1 de Abril de 2015 e termo às 0:00 horas do dia 1 de Abril de 2016, sugerindo que a A. pudesse chamar aos autos, através do necessário incidente de intervenção principal provocada, essas seguradoras, sob pena de poder ver soçobrar a sua pretensão.

Pugnou assim pela sua absolvição da instância, por ser parte ilegítima, sem prejuízo da sua absolvição do pedido por força da procedência da correspondente exceção perentória relativa ao conhecimento dos factos geradores da responsabilidade em data anterior ao início da vigência do contrato de seguro, por consubstanciar facto impeditivo do direito da A. ao abrigo do contrato de seguro que invocou.

Também se defendeu por impugnação, concluindo no final pela procedência das exceções invocadas e pela sua absolvição da instância ou do pedido.

Por despacho de 11 de novembro de 2019 (Ref.ª n.º .......70 – p.e.), foi a A. convidada a responder às exceções alegadas pela 2.ª R. na sua contestação, o que esta veio a fazer por requerimento de 29 de novembro de 2019 (Ref.ª n.º ......58 – p.e.), sendo que quanto à questão de “exclusão do âmbito do contrato de seguro”, considerou que os factos em apreço nos presentes autos encontravam-se abrangidos pelo âmbito temporal da referida apólice, devendo improceder a referida exceção.

Entretanto, por despacho de 12 de dezembro de 2019 (Ref.ª n.º .......68 – p.e.), foi ordenado que se oficiasse à Ordem dos Contabilistas Certificados, para que informasse se o 1.º R. se encontrava inscrito nessa Ordem à data dos factos e qual o n.º da apólice de responsabilidade civil em vigor, bem como a identidade da respetiva seguradora, com vista a recolher dos necessários a uma eventual intervenção provocada da mesma.

Por Ofício de 20/12/2019 (Ref.ª n.º ......55 – p.e.), veio a Ordem dos Contabilistas Certificados informar que em 15/5/2015 estava em vigor o contrato de seguro de responsabilidade civil profissional celebrado com a Mapfre formalizado pela apólice n.º ..........62, relativa ao período de 1/4/2015 a 31/3/2016. Informação que foi reconfirmada, com maior pormenorização, por requerimento de 2/3/2020 (Ref.ª n.º ......04 – p.e.).

Na sequência do despacho de 14/9/2020 (Ref.ª n.º .......65 – p.e.), que convidou as partes a, querendo, requererem a intervenção principal provocada tida por pertinente, veio o 1.º R., por requerimento de 28/9/2020 (Ref.ª n.º ......71 – p.e.), requerer a intervenção principal provocada da Mapfre – Seguros Gerais, S.A.. O que, após cumprimento do contraditório, veio a ser deferido por despacho de 12 de março de 2021 (Ref.ª n.º .......18 – p.e.).

Citada a interveniente, Mapfre - Seguros Gerais, S.A., veio esta contestar, logo invocando a exceção da “ilegitimidade por inaplicabilidade temporal aos factos dos autos à apólice”, confirmando que entre a Chamada Mapfre, a AIG Europe e a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (entretanto designada como Ordem dos Contabilistas Certificados) foi celebrado um contrato de seguro de grupo, temporário, anual, do Ramo de responsabilidade civil, titulado pela Apólice n.º ...........62, sendo que nos termos desse contrato o “Sinistro” era constituído por «a reclamação formal ou série de reclamações formais resultantes de um mesmo evento suscetível de fazer funcionar as garantias do contrato» (cfr. al. e) do artigo 1.º das Condições Gerais), sendo entendido por “Reclamação”: «Qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra qualquer segurado, ou contra o segurador, quer por exercício de ação direta, quer por exercício de direito de regresso, como suposto responsável de um dano abrangido pelas coberturas da apólice;» bem assim como «Toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida por primeira vez pelo segurado e notificada oficiosamente por este ao segurador, de que possa: i) Derivar eventual responsabilidade abrangida pela apólice; ii) Determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento, ou iii) Fazer funcionar as coberturas da apólice» (cfr. Artigo 1.º alínea h) das “Condições Gerais”).

Ora, no caso a “Reclamação” ocorreu com a citação da Chamada para a presente ação judicial, no dia 18 de março de 2021, tendo decorrido mais de 4 anos após a cessação do contrato de seguro celebrado com a chamada, que foi acordado pelo prazo de 12 meses, com data de início às 0:00 horas do dia 1 de abril de 2015 e termo às 0:00 horas do dia 1 de abril de 2016, encontrando-se desde então a responsabilidade civil decorrente da atividade profissional do 1.º R. transferida para a Allianz – Companhia de Seguros, S.A., aqui 2.ª R., motivo pelo qual entende a chamada que não pode deixar de se considerar parte ilegítima nos presentes autos, devendo ser absolvida da instância. Mas, ainda que assim não fosse, defendeu que os mesmos factos determinam também a sua ilegitimidade substantiva, por força da correspondente procedência dessa exceção perentória inominada, que levaria à sua absolvição do pedido.

Por outro lado, chamou a atenção para o facto de existir uma situação de cosseguro com a AIG Europe, sem a intervenção da qual seria parte ilegítima nos presentes autos. Defendeu-se ainda por impugnação, concluindo no final pela procedência da exceção dilatória de ilegitimidade decorrente da inaplicabilidade temporal do contrato de seguro celebrado com a Chamada e, em consequência, pela sua absolvição da instância. Mas, caso assim não se entenda, deveria ser julgada parte ilegítima nos presentes autos, por ilegitimidade substantiva, porque os autos já fornecem os factos e prova necessários para o efeito. Subsidiariamente, pediu a total improcedência da ação.

O 1.º R., AA, por requerimento de 23 de maio de 2021 (Ref.ª n.º ......94 – p.e.), em face da contestação da Mapfre, veio requerer a intervenção da AIG Europe S.A., que foi admitida liminarmente por despacho de 10 de setembro de 2021 (Ref.ª n.º .......63 – p.e.) e, após contraditório, foi deferida, por despacho de 12 de janeiro de 2022 (Ref.ª n.º .......38 – p.e.).

Citada a interveniente, AIG Europe S.A., veio a mesma contestar a ação, limitando-se a declarar que fazia seus os articulados apresentados pela Mapfre – Seguros Gerais, S.A. (cfr. “Requerimento” de 17-02-2022 – Ref.ª n.º ......91 - p.e.). A A. respondeu às contestações das chamadas (cfr. “Resposta” de 30-05- 2022 – Ref.ª n.º .......1 – p.e.), pugnando pela improcedência das exceções de ilegitimidade, processual e substancial, arguidas pelas R.R. Mapfre e AIG, terminando com o pedido de condenação das mesmas conforme se peticionado na petição inicial.

Nessa sequência é proferido o despacho de 22 de setembro de 2022 (Ref.ª n.º .......19 – p.e.), que admitiu o exercício do contraditório às contestações das chamadas e interpelou as partes para se pronunciarem sobre se algo tinham a opor à dispensa da realização de audiência prévia.

Após, em face da não oposição as partes, veio a ser proferido despacho saneador (cfr. “Despacho Saneador” de 12-12-2022 – Ref.ª n.º .......60 – p.e.), com dispensa de audiência prévia, julgando improcedente a exceção de ilegitimidade substantiva da 2.ª R. Allianz Portugal, S.A. e a exceção de ilegitimidade do 1.º R., AA. Também decidiu outras questões, mas, na parte que interessa ao presente recurso, foi aí decidido

Julgar improcedente a exceção suscitada de inaplicabilidade temporal do seguro invocada pelas chamadas.

Desta decisão interpuseram recurso as chamadas as chamadas, Mapfre e AIG que foi julgado procedente e revogou o despacho saneador na parte que julgou improcedente a exceção de inaplicabilidade temporal invocada pelas R.R. Mapfre e AIG Europe, substituindo essa decisão pela de julgar essa exceção perentória procedente e, em consequência, absolvendo as mesmas do pedido.

Desta decisão vem agora interpor recurso a ré Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. o autor e também a autora EUC INOVAÇÃO PORTUGAL, UNIPESSOAL LDA.,

A ré Allianz conclui que:

“ 1.ª A cessação do contrato que pode ser oposta ao terceiro é a que ocorra antes do sinistro, não a que tenha lugar depois de ele ter ocorrido;

2.ª Opor a cessação do contrato significa poder opor ao lesado que o contrato cessou antes do sinistro não significa retroagir os efeitos da cessação do contrato a um sinistro ocorrido na sua vigência;

3.ª As Seguradoras poderem opor ao eventual lesado que não respondem por danos reclamados mais de dois anos depois da cessação do contrato excede as premissas legais, nomeadamente as vertidas no RJCS;

4.ª As cláusulas contratuais aludidas estabelecem que as Seguradoras não respondem perante o Segurado nas circunstâncias, não estabelece que não respondem perante o lesado, ou seja, a caducidade do direito do Segurado não impõe a caducidade automática do direito do beneficiário da prestação de seguro;

5.ª Se a oponibilidade das condições contratuais implicasse a oponibilidade ao lesado das cláusulas relativas ao prazo da reclamação, alcançar-se-ia o resultado de a Seguradora poder opor ao lesado os meios de defesa derivados de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro;

6.ª Outra coisa não pode entender-se quando a Seguradora opõe ao lesado o facto imputável ao tomador do seguro de não ter reclamado tempestivamente o sinistro. Ou seja, alcançar-se-ia o resultado que a lei expressamente proíbe.

7.ª Ora, o artigo 147º do RJCS é claro ao estabelecer a previsão do seu n.º 2 como subsidiária da do n. 1, a que se reporta e que exemplifica: para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado …;

8.ª Nem se invoque em sentido contrário a liberdade contratual e a sua consagração no artigo 11.º do RJCS.

9.ª Desde logo porque a liberdade contratual não existe para quem não contrata, como acontece com o lesado.

10.ª Mas, sobretudo, porque ao afirmar a liberdade contratual, o artigo 11.º alude de imediato às suas restrições, particularmente importantes nos seguros obrigatórios (desde logo a de contratar ou não) e previstas dos artigos 12.º e 13.º como resultantes da imperatividade absoluta e relativa, respetivamente, de normas que elencam, caracterizando-se esta última por poder ser afastada por regime mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário da prestação de seguro.

12.ª Uma das normas que não podem ser afastadas por regimes menos favoráveis ao beneficiário da prestação do seguro (imperatividade relativa, como decorre do artigo 13.º, n.º 1) é a do artigo 147.º que acima interpretámos;

13.ª Acresce a necessidade de harmonia do sistema jurídico a que o legislador vincula o intérprete (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), proporção que é acolhida pelo legislador, entre outros, no artigo 101.º, n.º 4, do RJCS

14.ª Regime em tudo idêntico ao que entendemos decorrer dos artigos 106.º, 108.º e do mesmo diploma, para situação similar.

15.ª Tenha-se ainda em consideração que uma das características fundamentais do regime de seguro obrigatório é a possibilidade de o lesado demandar diretamente a seguradora – artigo 146.º, n.º 1, do RJCS;

16.ª Sendo que, dispondo o terceiro de ação contra a seguradora, deverá esta indemnizar baseada na reclamação de terceiro. O que se encontra em consonância com o regime de oponibilidade estabelecido na lei;

17.ª Entendimento seguido, entre outros, por doutos Acórdãos igualmente muito recentes da mesma Relação de Lisboa, tirados por unanimidade, no âmbito dos processos 6864/18.4T8ALM.L1 (6.ª Secção) e 6854/18.7T8ALM.L1 (6.ª Secção), ambos de 23 de março de 2023.

18.ª Donde, ao decidir como decidiu o Acórdão recorrido fez errada interpretação ou não aplicou devidamente o disposto nos artigos 10º, 11, 12º, 13º, n.º 1, 101º, n.º 4, 106º, n.º 1, 108º, n.º 1 e 2, 137º a 145º, 146º, n.º 1, 147º, n.º 1 e 2, e 148º, todos do RJCS, bem como os art.ºs 9º, n.º 1 e 405º do C.Civil e ainda os n.º 1 e 11 do artigo 4.º da Directiva 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, e o artigo 23.º, n.º 1, da mesma Directiva.

Termos em o recurso deve ser julgado de acordo com a presente minuta, revogando-se o Acórdão recorrido e mantendo-se na lide as congéneres da apelante, Mapfre – Seguros Gerais, S.A. e AIG Europe, S.A. por manifesta legitimidade.

A autora conclui que:

“ i. O Réu contabilista começou a prestar serviços de contabilidade para a Autora no início do ano de 2015;

ii. O réu contabilista não apresentou a declaração periódica de IVA até ao dia 15.05.2015, conforme era o seu dever e a sua obrigação, o que levou a que a Autora fosse notificada para pagar uma coima no valor de €376.50 (trezentos e setenta e seis euros e cinquenta cêntimos);

iii. A Declaração periódica de IVA foi apresentada no dia 15.06.2015, fora do prazo, o que era do conhecimento do réu contabilista;

iv. No ano em que ocorreu esta falha por parte do contabilista estava em vigor o contrato de seguro de responsabilidade civil profissional celebrado entre a Ordem dos Contabilistas Certificados e a MAPFRE – Seguros Gerais S.A. titulado pela apólice nº ...........62, com data de início às 0:00 horas do dia 01.04.2015 e termo às 0:00 horas do dia 1 de abril de 2016.

v. Seguidamente, o réu contabilista não entregou o Modelo 22 do IRC, correspondente ao exercício de 2025 e também não entregou a declaração de Informação Empresarial Simplificada (“IES”) também referente ao exercício de 2015, o gerou incidências fiscais para a Autora, justificando o pedido de lucros cessantes.

vi. O nosso ordenamento jurídico português permite a validade existência das cláusulas de delimitação temporal “claims made basis”, mas tal cláusula não pode ser aplicada ou interpretada de modo a limitar ou restringir os direitos de terceiro lesado, in casu, a Autora.

vii. Se acordo com o nº 4 do artigo 101 do RJCS: “O disposto nos n.os 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efetuar, com os limites referidos naqueles números.”

viii. A falta de participação do sinistro por parte do segurado dentro do prazo legal não é oponível ao terceiro lesado nos casos de seguro obrigatório de responsabilidade civil.

ix. A MAFRE não pode invocar a exclusão da cobertura da apólice nos casos em que estamos perante lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil.

x. Existem vários contratos de seguro celebrados com a OCC e por esse motivo existe sucessão de seguradoras.

xi. Os factos que constituem a causa de pedir ocorreram entre os anos 2015 a 2019 e por essa razão devem todas as seguradoras chamadas continuar no polo passivo desta lide.

xii. A causa de pedir é o ato ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (legalmente idóneo para o condicionar ou produzir).

xiii. O acórdão recorrido fez uma errada aplicação ou não aplicou os artigos 10º, 11, 12º, 13º, n.º 1, 101º, n.º 4, 106º, n.º 1, 108º, n.º 1 e 2, 137º a 145º, 146º, n.º 1, 147º, n.º 1 e 2, e 148º, todos do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL n.º 72/2008, de 16 de Abril), bem como os artigos 9º, n.º 1 e 405º do Código Civil e ainda os n.º 1 e 11 do artigo 4.º da Diretiva 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, e o artigo 23.º, n.º 1, da mesma Directiva.

Nestes termos e nos mais de direito, deverá o presente recurso de revista ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido e mantendo-se na lide as sociedades MAPFRE – SEGUROS GERAIS S.A. e AIG EUROPE S.A. por serem partes legítimas na presente ação

O réu conclui que:

“ I. As seguradoras MAPFRE, AIG e ALLIANZ no caso em apreço podem hipoteticamente responder perante o lesado a não ser que o contrato tem cessado antes do sinistro ocorrer.

II. O que não é o caso.

III. Deste modo deve improceder a exceção perentória de inaplicabilidade temporal invocada pela MAPFRE e AIG e decidida pelos Venerandos Juízes Desembargadores no

Douto Acórdão recorrido.

IV. Porque violou nomeadamente (vide artigos 147º nº 1 e 2, 146º, 101º nº 4, 101º e 10ª e seguintes nomeadamente 13º nº 1, 9º nº 1 do RJCS).

V. Ao decidir com a decisão do Douto Acórdão violou nomeadamente as mesmas legais atrás citadas em 3.

VI. Logo devem todas as seguradoras permanecerem no processo.

Nestes termos e nas melhoras de direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Exas. Colendos Juízes Conselheiros se pede que seja revogado o Douto Acórdão recorrido com as legais consequências, mantendo-se no processo as Seguradoras agora recorridas ou seja todas as seguradoras.

As recorridas contra alegaram defendendo a confirmação da decisão recorrida.

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver na presente Revista e suscitada em todos os recursos, consiste em saber se a exceção perentória de inaplicabilidade temporal do contrato de seguro celebrado com as intervenientes Mapfre e AIG deveria ser julgada por procedente.

… …

A autora propôs a presente ação pedindo a condenação do réu AA por este, enquanto contabilista certificado, ter incumprido obrigações profissionais decorrentes de um contrato de prestação de serviços de contabilidade, celebrado entre ambos (ainda que os termos convencionados e tempo de vigência efetiva são impugnados por esse réu). Tais incumprimentos consistiram na falta de entrega da declaração de IVA, cujo prazo terminava a 15 de maio de 2015 (cfr. artigo 7.º da petição inicial); na falta de entrega do Modelo 22 do IRC, correspondente à declaração anual de rendimentos da autora do ano de 2015, cujo prazo terminava em 31 de maio de 2016 (cfr. artigo 19.º da petição inicial); e na falta de entrega da declaração anual de informação contabilística e fiscal (IES) da A. ao ano de 2015, cujo prazo terminava em de 15 de julho de 2016.

Estando reconhecido que réu AA celebrou um contrato com a autora no início do trimestre de 2015, pelo qual aceitou prestar serviços de contabilidade para esta, contra o pagamento de determinado montante, não sofreu contestação que esse réu é um contabilista certificado, inscrito na Ordem dos Contabilistas Certificados - reconhecido pela própria Ordem em causa (cfr. “Ofício” de 20/12/2019 - Ref.ª n.º ......55 – p.e.; e “Requerimento” de 2/3/2020 - Ref.ª n.º ......04 – p.e.) - estando sujeito à obrigação legal de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil profissional de valor não inferior a €50.000,00 - conforme decorre do art. 70.º n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, aprovado pela Lei n.º 139/2015, de 7 de setembro.

No caso, foi a Ordem dos Contabilistas Certificados quem assumiu o ónus do cumprimento dessa obrigação de contratação do seguro obrigatório de responsabilidade civil profissional, garantindo a responsabilidade civil dos contabilistas certificados – antes, técnicos oficiais de contas – nela obrigatoriamente inscritos para poderem exercer a sua atividade, em regime de exclusividade (cfr. arts. 9.º e 10.º do Estatuto das Ordem dos Contabilistas Certificados). Tal contrato de seguro do ramo de responsabilidade civil pelo exercício da atividade profissional de “Contabilista Certificado” foi celebrado e titulado pela apólice n.º ...........62/0 (cfr. doc. de fls. 27 verso a 36), em regime de cosseguro (cfr. arts. 62.º e ss. do RJCS), no qual a Mapfre – Seguros Gerais, S.A., é a seguradora líder, sendo cosseguradora a AIG Europe, respondendo cada uma destas pelo pagamento das indemnizações devidas às pessoas seguras por essa apólice, na proporção de 60% e 40%, respetivamente (cfr. cit. doc. a fls. 28). E por força deste contrato, as seguradoras assumiram a obrigação de cobrir o risco do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar uma determinada prestação em caso de ocorrência de um evento aleatório previsto no contrato, ficando a tomadora do seguro obrigada a pagar o prémio correspondente.

O seguro de responsabilidade civil garante ao segurado o pagamento ou reembolso das quantias que lhe forem impostas judicialmente em ações indemnizatórias por danos ou prejuízos financeiros causados a terceiro ou por acordo extrajudicial desde aprovado pela seguradora, sendo tais contratos estruturados de acordo com a natureza, tipo de negócio e limites referentes à atividade do segurado. Com tal configuração e quanto à forma de o segurado acionar o seguro na ocorrência de um sinistro, perspetivam-se dois os tipos de apólices com “ base na ocorrência” ou por “reclamação”. Sendo em ambas o objeto do seguro definido com o pagamento ou reembolso das quantias devidas ou pagas a terceiros, pelo segurado, a título de reparação de danos, estipuladas por tribunal civil ou por acordo aprovado pela seguradora, no seguro “a base de ocorrência” os danos precisam ocorrer durante a vigência da apólice ou durante o período de retroatividade, e o terceiro apresentar a reclamação ao segurado também durante a vigência do seguro ou durante o prazo complementar ou suplementar quando aplicável. Diferentemente, no seguro por “reclamação” os danos são cobertos se forem reclamados durante o período de vigência da apólice ou nos prazos prescricionais em vigor.

A apólice à base de reclamação, também conhecida como “claims made asis” foi concebida em meados da década de 1980, nos Estados Unidos da América, na sequência de inúmeras ações indemnizatórias (por conta da contaminação por amianto, intoxicação por dioxina, falhas em produtos, como as próteses de silicone e sinistros ambientais) que levaram os tribunais a condenar os respetivos responsáveis pelos danos causados. Porque as apólices à data tinham por base a ocorrência “ocurrence losses basis”, a impossibilidade de determinar a data exata em que os danos haviam sido causados conduziu então os tribunais a fixarem a responsabilidade de seguradoras por apólices que haviam terminado muitos anos antes com base no que foi chamado de risco de latência prolongada. Para fazer face a estas eventualidades (que tiveram como consequência a falência de diversas seguradoras) a apólice à base de reclamação, nasceu da necessidade de garantir riscos marcados por um longo período oculto, ou seja, portadores de uma latência entre o fato ou ato e sua eclosão, desconsiderando em grande parte a data da ocorrência do evento produtor dos danos em favor da data da reclamação do terceiro prejudicado como condição do mecanismo de cobertura. E esta tendência foi, depois, seguida na Europa tendo contemplação legal em Portugal no DL 72/08 - art. 139 nº 2 e 3.

No caso presente, o contrato de seguro celebrado com a Mapfre e a AIG foi estabelecido pelo prazo de 12 meses, com início às 00h00 dos dia 1 de abril de 2015 e termo às 00h00 do dia 1 de abril de 2016 (cfr. apólice a fls. 27 verso), sendo que, logo a seguir, entrou em vigor um outro contrato de seguro, titulado por apólice acordada com a 2.ª R. da ação, a Companhia de Seguros Allianz, S.A., e que no essencial tem o mesmo tipo de regulamentação contratual, sem divergências significativas. Assim, dos alegados incumprimentos imputáveis ao segurado, 1º réu na ação, existe apenas um facto que ocorreu no âmbito da vigência temporal do contrato de seguro celebrado com as Chamadas, Mapfre e AIG. Mais concretamente a falta de entrega da declaração de IVA, cujo prazo terminava a 15 de maio de 2015 (cfr. artigo 7.º da petição inicial). Todos os restantes incumprimentos já ocorreram no quadro temporal da vigência do contrato celebrado com a 2.ª R., Allianz, mesmo que se refiram ao exercício fiscal do ano de 2015.

Na definição relevante e temporal dos incumprimentos verificamos que as alegações dos autores e da ré Allianz confundem a sua delimitação porquanto:

- A recorrente Allianz alega que “ Em discussão nos presentes autos está, de modo muito sumário e para a boa decisão do presente recurso de revista, segundo a Autora, alegados erros cometidos por Contabilista e reportados ao exercício fiscal de 2015.”

- A autora EUC Inovação Portugal , Unipessoal Lda. alega que “ os factos em questão nestes autos – erros, omissões e ações – levadas a cabo pelo réu contabilista AA, geradores de responsabilidade civil, iniciaram-se no ano de 2015, ano que estava em vigor o contrato de seguro entre a OCC e a MAFRE.”

- E o réu AA alega que “os alegados e hipotéticos factos (alegados erros e omissões) que lhe são imputados pela A ocorreram em 2015 e 2016.

Quando nesses períodos estavam em vigor os seguros R. Civil profissional da OCC (ordem dos Contabilistas Certificados) com ambas as seguradoras MAPFRE, AIG até 01/04/2016 e a partir com a Allianz”.

Em todas estas alegações existe um erro que é denunciado na decisão quando adverte que existem três alegados incumprimentos e não apenas um ou um continuado identificando-se como aquele que terá ocorrido até 1 de abril de 2016 (âmbito de vigência do primeiro contrato) e referente à falta de entrega do IVA e os restantes, que só se terão verificado em momento posterior a abril de 2016 ( e já no âmbito de vigência do segundo contrato). Assim, quanto a estes últimos incumprimentos subscrevemos sem reserva o acórdão recorrido quanto afirma que “as chamadas, Mapfre e AIG, não podem responder pela obrigação de indemnização por danos relativos a factos ocorridos já depois da cessação da vigência do contrato de seguro que as vinculavam à cobertura da correspondente obrigação do segurado.

Isso que resulta, desde logo, do art. 147.º n.º 2 “in fine” do RJCS, quando aí se estabelece que o segurador pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro, nomeadamente os relativos à cessação de vigência do próprio contrato, tendo em conta que a regra geral é que a garantia de cobertura da responsabilidade civil do segurado, através de contrato de seguro, abrange apenas os factos geradores de responsabilidade ocorridos no período de vigência do contrato, sem prejuízo de ser admissível estipulação em contrário (cfr. art. 139.º n.º 1 do RJCS). Estas razões jurídicas são complementadas pelo facto de, tendo o Ordem dos Contabilistas Certificados acordado com a 2.ª R. um outro seguro que cobria precisamente os mesmos riscos a partir das 00h00 do dia 1 de abril de 2016, seria no âmbito da vigência dessa outra apólice de seguro que o sinistro deveria ser reclamado.

Finalmente, nos termos do artigo 4.º n.º 4 das condições gerais do contrato celebrado com a Mapfre e AIG, “Estando o risco coberto por um contrato de seguro posterior, não serão aceites pela MAPFRE as reclamações previstas nos números 2 e 3 do presente artigo, apresentadas após a data de cessação do presente contrato” (cfr. doc. de fls. 31). O que se afigura exceção perfeitamente legítima, nos termos do Art. 147.º n.º 2 do RJCS, considerando que, apesar de estarmos perante um seguro de responsabilidade civil obrigatório, se o risco fica coberto por outro contrato de seguro, é normal que as coberturas previstas no contrato anterior deixem de estar vigentes, para mais quando, quer os eventos que obrigam à reparação, quer as respetivas reclamações, serão sempre necessariamente posteriores ao termo do seu prazo de vigência.”

No que se refere ao incumprimento do 1º réu relativo à falta de entrega da declaração de IVA observamos que o prazo terminava a 15 de maio de 2015, data situada no âmbito da vigência do contrato celebrado com a Mapfre e a AIG e, nesse sentido a discussão incide em saber se será da responsabilidade da 2.ª R., Allianz, este incumprimento do 1.º R. ocorrido antes do início do prazo de vigência do contrato de seguro com aquela celebrado.

Como sublinha a decisão recorrida, importa distinguir a questão de saber se as chamadas podem afastar a sua responsabilidade por não ter sido participado o sinistro no prazo de vigência do contrato de seguro, daquela outra que incide em saber se o contrato de seguro ainda estava vigente à data da participação do sinistro, por forma a permitir que o lesado o pudesse ainda acionar, acrescentando desde já que, efetivamente, é esta última e não a primeira a questão colocada no presente recurso.

Sabemos que o nº1 do art. 100.º do RJCS estabelece que “A verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento.” e que o art. 101 do mesmo diploma prevê, no âmbito da liberdade contratual, a possibilidade de estipulações de limites à obrigação de pagamento da indemnização em consequência do incumprimento de deveres relacionados com a obrigação de participação do sinistro. Todavia, podendo estes limites ser oponíveis pelo segurador ao segurado, nos termos do art. 147 nº 1 e nº 2 do RJCS, não podem ser opostos ao lesado em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil - art. 101 nº2 do do RJCS – devendo nesses casos a seguradora pagar a indemnização devida ao lesado, sem prejuízo do direito de regresso sobre o incumpridor do dever de participação.

Este entendimento normativo é aquele que encontra expressão na jurisprudência citada nas alegações de recurso e também no acórdão recorrido e onde se discutia a aplicação do art. 101.º n.º 4 do RJCS, nos casos de estabelecimento de cláusulas “claim made”, em situações em que o sinistro ocorreu antes ou durante o início do prazo de vigência do contrato de seguro, mas a reclamação não foi apresentada durante essa vigência tendo por âmbito de discussão a responsabilidade por não participação do sinistro no prazo de vigência do contrato de seguro. No entanto, como o acórdão recorrido fez notar, a exceção alegada pelas chamadas não debate as consequências legais do incumprimento do dever de participação do sinistro no prazo legal, mas sim se o contrato de seguro ainda estava vigente à data da participação do sinistro, por forma a permitir que o lesado o pudesse ainda acionar.

Como vimos anteriormente, a matéria da participação do sinistro e suas consequências, está regulada nos arts. 100 e 101do RJCS, mas cremos que essa regulação só tem aplicação quando o contrato de seguro a que reporta a participação está em vigor, permitindo ser acionado quanto ao seu âmbito temporal de cobertura. E na apreciação desta vigência do contrato, acompanhando a prova obtida nos autos, observa-se que nas condições gerais do contrato de seguro celebrado com as chamadas se define:

“Sinistro - a reclamação formal ou série de reclamações formais resultantes de um mesmo evento suscetível de fazer funcionar as garantias do contrato”.

“Reclamação:

- Qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra o segurado, ou contra o segurador, quer por exercício de ação direta, quer por exercício de direito de regresso, como suposto responsável de um dano abrangido pelas garantias da apólice;

Toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida por primeira vez pelo segurado e notificada oficiosamente por este ao segurador,

de que possa derivar eventual responsabilidade abrangida pela apólice,

que possa determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento, ou

que possa fazer funcionar as garantias da apólice. «Todas as reclamações resultantes de um mesmo evento, independentemente do número de reclamantes ou reclamações formuladas, serão consideradas como uma só reclamação»

Para a determinação da apólice aplicável ao sinistro o que releva é a data da “Reclamação” dos factos suscetíveis de gerar responsabilidade civil profissional e não a data da verificação desses factos ou da participação do sinistro, que não se confunde com a “Reclamação”.

A participação consubstancia-se na comunicação da ocorrência do sinistro ao segurador por parte do tomador de seguro ou pelo segurado, constituindo um ónus jurídico destes, nos termos previstos no artigo 100º, nº 1, do RJCS. Por outro lado, a “Reclamação” é apresentada pelo terceiro lesado durante o prazo de validade (vigência) do contrato e que possibilita a extensão da cobertura por um determinado período anterior ao início do contrato - neste sentido vd. o ac. STJ de 11.07.2019 no proc. 5388/16.9T8VNG.P1.S1 in dgsi.pt – sendo a reclamação, não o facto gerador do dano, o evento relevante para o acionamento do contrato durante a sua vigência.

No caso em decisão, partindo então da definição de reclamação e por nada em contrário se encontrar alegado ou provado, só com a citação ocorrida neste processo houve “reclamação” do sinistro para as seguradoras, no quadro das apólices de seguro que as vinculam. E tendo a chamada Mapfre sido citada em 18 de março de 2021, nessa data, já estavam a completar-se quase 5 anos sob o termo do contrato de seguro, tendo atenção a que esse contrato expirou às 0:00 horas do dia 1 de abril de 2016.

Veja-se ainda que, como o refere a decisão recorrida, existe uma réplica das cláusulas das Condições Gerais nos contratos das chamadas e da ré, reguladoras do “Âmbito Territorial e Temporal” desse contrato, verificando-se que na cláusula 5º do contrato das chamadas se estabelece que: “2 - O presente contrato garante as reclamações apresentadas pela primeira vez, ao segurado ou diretamente à MAPFRE, durante o período de vigência deste contrato ou, relativamente a erros atos ou omissões geradores de responsabilidade, desconhecidos das partes e ocorridos durante o período de vigência do contrato, nos 24 (vinte e quatro) meses subsequentes ao seu termo” e o nº4 ressalva que: “Estando o risco coberto por um contrato de seguro posterior, não serão aceites pela MAPFRE as reclamações previstas nos números 2 e 3 do presente artigo, apresentadas após a data de cessação do presente contrato”.

Estas mesmas estipulações são similares às estabelecidas nas condições gerais da apólice de seguro estabelecida entre a Ordem dos Contabilistas Certificados e a 2.ª R., Allianz, realçando-se que está escrito que se garantem (cláusula 1.1) “as reclamações apresentadas pela primeira vez, ao Segurado ou diretamente ao Segurador, durante o período de vigência deste contrato ou, relativamente a erros, atos ou omissões geradores de responsabilidade, desconhecidos das partes e ocorridos durante o período de vigência do contrato, nos 24 (vinte e quatro) meses subsequentes ao seu termo, ficando, contudo, sempre excluídas as reclamações abrangidas pelo seguro anterior, nomeadamente as reclamações participadas nos 24 meses subsequentes ao termo da apólice do seguro anterior desde que o ato gerador da responsabilidade tenha ocorrido durante o período de vigência da referida apólice”.

A eventual possibilidade dos danos ocorridos em consequência dos alegados incumprimentos, verificados antes da entrada em vigor do contrato de seguro celebrado com a 2.ª R., com prazo de vigência imediatamente posterior ao das chamadas, poderem não estar cobertos pela apólice de seguro celebrado com a Allianz é matéria que se encontra respondida pelas condições gerais. No contrato de seguro de responsabilidade civil profissional celebrado entre a Ordem dos Contabilistas Certificados e a Companhia de Seguros Allianz, S.A., o art. 1º al. g) e h) replica o artigo 1.º al. g) e h) das condições gerais do contrato de seguro celebrado com a Mapfre e AIG, quer quanto à definição de “Sinistro” por referência à “reclamação formal” do evento que possa fazer funcionar as garantias do contrato, quer quanto à definição de “Reclamação”. Assim, fica intocada a conclusão retirada no acórdão recorrido de a “reclamação”, consubstanciada na citação das seguradoras (2.ª R. e Chamadas) para esta ação, só ocorreu já durante a vigência do contrato de seguro celebrado com a Allianz, a qual foi citada em primeiro lugar, antes, portanto, das seguradoras chamadas a intervir.

A conjugação desta circunstância com o artigo 4º nº 4 das condições gerais do contrato das chamadas - ao estabelecer que “ Estando o risco coberto por um contrato de seguro posterior, não serão aceites as reclamações previstas nos números 2 e 3 do presente artigo, apresentadas após a data de cessação do presente contrato” - faz concluir o afastamento da responsabilidade daquelas pela cobertura desse risco por a responsabilidade civil já estar assegurada pelo contrato posterior celebrado com a 2.ª R., Allianz, sem esquecer ter sido no âmbito deste contrato que a primeira “reclamação” do sinistro se operou.

Identificando a exceção em discussão com a alegação da fixação contratual do período de cobertura do seguro de responsabilidade civil profissional esta questão não disputa a problemática da falta de participação do sinistro que tem disciplina normativa no art. 101 do RJCS e não convoca a oponibilidade/inoponibilidade ao lesado da redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento dos deveres de participação do sinistro lhe cause ou a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorreto dos deveres de participação for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador. A exceção invocada, radicando na alegação da fixação contratual do período de cobertura do seguro de responsabilidade civil profissional, remete para o 139.º do RJCS que estabelecendo o seu nº1 como regra que “a garantia cobre a responsabilidade civil do segurado por factos geradores de responsabilidade civil ocorridos no período de vigência do contrato, abrangendo os pedidos de indemnização apresentados após o termo do seguro”, admite no seu nº2 que sejam estabelecidas cláusulas que afastem essa solução, delimitando “o período de cobertura, tendo em conta, nomeadamente, o facto gerador do dano, a manifestação do dano ou a sua reclamação”. E sendo ajustada uma cláusula de delimitação temporal da cobertura que tenha por referência a data da reclamação, o nº3 deste artigo dispõe que o seguro de responsabilidade civil garante o pagamento das indemnizações por eventos ocorridos durante o período de vigência do seguro, se o risco não estiver coberto por outro seguro posterior e o evento danoso for desconhecido das partes, ainda que a reclamação seja apresentada no ano seguinte ao termo do contrato.

O prazo de um ano contado do termo final do contrato de como delimitação temporal da responsabilidade do segurador, não retira ao lesado o seu direito perante o responsável nos termos previstos na lei geral, sem prejuízo da prescrição, que também se aplica aos direitos do lesado contra o segurador (cfr. Art. 145.º). Mas a cláusula “claim made basis” circunscreve a delimitação temporal da garantia de pagamento tendo em atenção o momento da reclamação, independentemente do facto gerador ter sido praticado antes do início da vigência do contrato e desde que o tomador do seguro ou o segurado não tenham conhecimento do sinistro à data da celebração. É por esta razão que como se escreve decisão recorrida - com abono no que sustenta José Vasques (in “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, 2016, 3.ª Ed., pág. 449 - “o interesse para o caso da estipulação duma cláusula “claim made basis” reportar-se-á mais à sua relevância para o lesado no quadro do contrato celebrado com a 2.ª R., que no quadro do contrato celebrado com as chamadas, considerando a “imperativa relativa” do estabelecido no n.º 3 Art. 139.º, por força do Art. 13.º n.º 1 do RJCS, na medida em que daí resulte um benefício para o beneficiário da prestação do seguro.”

Para as seguradoras chamadas releva apenas que as cláusulas delimitadoras do período de cobertura, tendo em conta o momento da reclamação, são válidas nos termos do art. 139.º n.º 2 do RJCS. Ao que acresce que, se a reclamação do sinistro é comprovadamente feita depois de cessada a vigência do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional e já no âmbito da vigência doutro contrato de seguro posterior que cobre o mesmo risco, sendo que em ambos os seguros sucessivos é estabelecida uma cláusula “claim made”, a responsabilidade civil em causa já se mostra plenamente coberta com a reclamação feita em primeiro lugar à seguradora do contrato de seguro com vigência temporal posterior, não se justificando a extensão da vigência temporal do seguro anterior, relativamente ao qual só foi feita “reclamação” “a posteriori”. Até, porque, como vimos, nos termos das condições gerais do seguro celebrado com a Mapfre e a Aig essa possibilidade de extensão temporal é expressamente excluída (cfr. artigo 4.º n.º 4 a fls. 31).

Concluindo que é legal a delimitação temporal do período de cobertura do contrato de seguro celebrado com as chamadas, a qual não agride a proteção conferida ao lesado pelo estabelecimento da obrigação legal imposta aos contabilistas certificados de terem o risco relativo ao exercício da sua atividade profissional coberto por seguro de responsabilidade civil, devem improceder os recursos interpostos e ser confirmada a decisão recorrida.


Síntese conclusiva

O contrato de seguro celebrado entre a “Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas”, atual “Ordem dos Contabilistas Certificados”, e uma companhia seguros, com vista a dar cumprimento à obrigação legal de constituição de seguro de responsabilidade civil profissional estabelecida atualmente no Art. 70.º n.º 4 do Estatuto dessa Ordem é um contrato de seguro de grupo, de responsabilidade civil, que tem a natureza de seguro obrigatório, para os efeitos da aplicação do disposto nos arts. 146.º a 148.º do Regime Jurídico do Contrato (RJCS) aprovado em anexo ao Dec.Lei n.º 72/2008 de 16/4.

Nos termos do art. 147.º n.º 2 do RJCS, o segurador pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro, nomeadamente a cessação desse contrato.

Estando em causa um seguro de responsabilidade civil relativa ao risco duma atividade profissional, são lícitas as cláusulas “claim made basis”, que circunscrevem a delimitação temporal da garantia de pagamento da indemnização que seja devida tendo em atenção o momento da reclamação, independentemente do facto gerador da obrigação ter sido praticado antes do início da vigência do contrato (cfr. Art. 139.º n.º 2 do RJCS).

Tendo a reclamação do sinistro, que consistiu apenas na citação das seguradoras para a presente ação, sido comprovadamente feita depois de cessada a vigência do contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, e já no âmbito da vigência doutro contrato de seguro posterior, que cobre o mesmo risco, sendo que em ambos os seguros sucessivos é estabelecida uma cláusula “claim made”, a responsabilidade civil em causa ficou coberta apenas pelo seguro onde a reclamação foi feita em primeiro lugar, não se justificando a extensão da vigência temporal do seguro anterior, relativamente ao qual não foi feita qualquer reclamação oportuna.

… …

Decisão

Pelo exposto acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar improcedentes os recursos interpostos pelos recorrentes e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 24 de outubro de 2023

Relator: Cons. Manuel Capelo

1º Adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Ferreira Lopes

2º Adjunto: Srª Juíza Conselheira Maria de Fátima Gomes