Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9/22.3PEBJA.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA DA PENA
PENA PARCELAR
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º do DL n.º 15/93, de 22/01, representa, em relação ao tipo fundamental, um crime privilegiado de tráfico de estupefacientes, em função da menor ilicitude do facto, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade do produto estupefaciente. Em regra, está associado à atividade do dealer de rua, do pequeno traficante.

II. A menor ilicitude terá, neste contexto, de resultar de uma avaliação global da situação de facto.

III. Na situação dos autos, e cingindo-nos aos factos que foram dados como provados, constata-se que o arguido transacionou heroína e cocaína, consideradas “drogas duras”, e ainda canábis em quantidades com alguma expressão económica, mas com reduzido grau de pureza, atividade esta a que se dedicou por mais de um ano, assumindo-se como abastecedor desses produtos numa área geográfica extensa, distante da sua área de residência. Por vezes, fazia-se até transportar num veículo alugado para o efeito.

IV. Por outro lado, o arguido tinha adequado enquadramento económico-familiar e não era consumidor, pelo que só uma ambição desmesurada de incrementar os seus rendimentos e estilo de vida, de forma rápida, fácil e com aproveitamento da desgraça daqueles que dependem do consumo dessas substâncias justifica a sua atuação.

V. Nesta conformidade, numa imagem global dos factos, não se mostra nada evidente uma menor ilicitude da factualidade praticada, que se terá de considerar mediana, pelo que bem andou o tribunal coletivo em ter subsumido os factos no tipo legal de referência previsto no art. 21.º n.º 1, do citado diploma legal.

VI. Relativamente à medida concreta da pena referente a este crime, que o tribunal a quo fixou em 5 anos de prisão, não merece censura, dado encontrar-se doseada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal), com particular destaque para as da prevenção geral, particularmente fortes, atenta a danosidade social por todos reconhecida deste crime, que tem vindo a aumentar de forma significativa e que vem causando problemas graves à saúde pública e à qualidade de vida de tantas famílias.

VII. Por sua vez, em relação ao cúmulo jurídico efetuado com a pena parcelar de 10 meses de prisão aplicada ao crime de aquisição de moeda falta para ser posta em circulação p. no art. 266.º n.º 1 a), do Cód. Penal, cuja prática o recorrente não põe em causa, julgamos a pena única de 5 anos e 5 meses de prisão como equilibrada e que teve em consideração, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido (art. 77.º n.º 1, também do Cód. Penal).

VIII. Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso do arguido e, em consequência, manter-se o acórdão recorrido.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por acórdão do Juízo Central Cível e Criminal de ... -J3, de 21/03/2023, foi o arguido AA, com os sinais dos autos, condenado, nos termos do seguinte dispositivo, que passamos a transcrever, na parte que ora releva:

(…)

- CONDENAR o arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01 com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas a este diploma legal, na pena de cinco anos de prisão;

- CONDENAR o arguido AA pela prática de um crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação, p. e p. pelo artigo 266.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de dez meses de prisão;

- Em cúmulo jurídico, CONDENAR o arguido AA na pena única de cinco anos e cinco meses de prisão;

(…)

2. Inconformado, interpôs o referido arguido, em 20/04/2013, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes Conclusões da sua motivação (Transcrição):

a) A matéria de facto dada como assente permite concluir por uma considerável diminuição da ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, designadamente pela ocasionalidade da sua actuação, associado às reduzidas quantidades de estupefacientes que deteve e transaccionou.;

b) Erradamente o tribunal a quo fundamentou o não enquadramento da actuação do arguido no artº 25º do D.L. 15/93, de 22.01 com o facto de alegadamente a sua acção ter ocorrido por mais de um ano, circunstância que não foi dada como provada;

c) da matéria de facto assente não resulta mais do que a detecção isolada do arguido por três vezes, duas delas separadas por um período superior a um ano;

d) por outro lado, da fundamentação a propósito resulta também referida uma “progressão económica do “investimento” realizado pelo arguido, dado que nas duas últimas situações se fazia transportar num carro alugado, cujo contrato se mostra junto a fls. 590/591, com um valor de aluguer, acrescido de caução, próximo dos €3.000,00”;

e) factos e circunstâncias que não resultam provadas nos autos, pois não resulta provado que o arguido haja efectuado qualquer pagamento em concreto a propósito e nem que a viatura tivesse sido por si alugada para o efeito.

f) Assim, vista a ocasionalidade da sua actuação, associada às reduzidas quantidades de estupefacientes que deteve e transaccionou o tribunal a quo errou na subsunção da matéria de facto dada como assente á norma do artº 21º do D.L. 15/93, de 22 de janeiro;

g) Razões pelas quais uma correcta apreciação e valoração global dos factos impõe concluir por uma considerável diminuição da ilicitude, devendo subsumir-se também a conduta do recorrente no tipo do artº 25º do D.L. 15/93, de 22 de janeiro;

h) E, em consequência, fixar-se a pena correspondente em 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão;

i) e em cúmulo jurídico desta com a que lhe for imposta pela prática do crime p. e p. artº 266º, nº 1 al. a) do C.Penal, em resultado da melhor apreciação dos factos e subsunção dos mesmos ao disposto nos artigos 50º, 71º, 77º e 266º, nº 1 al. a) do C. Penal, deve fixar-se em 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução.

j) Assim o impõe uma correcta interpretação e aplicação dos artigos 21º e 25º do D.L. 15/93, de 22.01 e, bem assim, dos artºs. 50º, 71º, 77º e 266º, nº 1 al. a) do Código Penal, coisa que o douto Tribunal a quo não fez;

Por outro lado, por cautela e sem prescindir,

k) Muito embora o recorrente esteja consciente da forte necessidade de se punir com rigor e uniformidade quer o tráfico de estupefaciente, quer a aquisição colocação em circulação de moeda falsa, numa tentativa de se pôr travão a quem já delinquiu e evitar que outros apareçam no circuito, que as penas parcelares de 5 (cinco) anos e de 10 (dez) meses de prisão de prisão que lhe foram aplicadas respectivamente pela prática dos crimes p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do Decreto Lei nº 15/93 de 22/01 e do artigo 266.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, no caso concreto, se mostram demasiado severas, com a necessária repercussão ao nível da pena única encontrada.

l) Com efeito, a pena concreta tem como finalidade principal ser um remédio que, não pondo entre parêntesis a censura do facto, potencie a ressocialização do delinquente,

m) Destrate, o desiderato da ressocialização, tendo de ser avaliado em concreto, não pode deixar de ter como parâmetro o inconveniente maléfico de uma longa separação da delinquente da comunidade natal

n) principalmente quando sendo primodelinquente, se encontre enquadrado do ponto de vista laboral, e familiar, denotando bom comportamento prisional onde trabalha e estuda, como é o caso, não faz sentido que o arguido cumpra uma longa pena de prisão que em nada contribui para a respectiva reintegração social posterior;

o) Assim, as penas a aplicar, in casu, deveriam aproximar-se ainda mais do limite mínimo da moldura penal abstractamente aplicável, devendo ser fixada nos 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão a pena a aplicar pela prática do crime p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93 de 22/01 e nos 6 (seis) meses de prisão a pena a aplicar pela prática do crime p. e p. pelo artº 266º, nº 1 al. a do Código Penal, sendo que o cúmulo jurídico do conjunto destas penas não deve exceder a pena única de 4 (quatro) anos 4 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução, já que dos elementos dos autos é ainda possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples ameaça da pena bastará para afastar o recorrente da senda criminosa;

p) Tal, é o que resulta de uma correcta interpretação dos artigos 21º do D.L. 15/93, de 22.01 e, bem assim, dos artºs. 50º, 71º, 77º e 266º, nº 1 al. a) do Código Penal, coisa que o douto Tribunal a quo não fez

* * *

Em suma:

- De revogar-se o acórdão recorrido e substituí-lo por outro que condene o recorrente na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática do crime p. e p. artº 25º do D.L. 1//93, de 22.01 e, em cúmulo jurídico desta com a da prática do crime p. e p. artº 266º, nº 1 al. a) do C.P., deve ser fixada a pena única em 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução;

Quando assim se não entenda, por cautela e sem prescindir,

- deve revogar-se o acórdão recorrido e substituí-lo por outro que condene o recorrente na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática do crime p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do Decreto Lei nº 15/93 de 22/01 e em 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime p. e p. pelo artº 266º, nº 1 al. a do Código Penal, em cúmulo jurídico destas na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução.

Assim é de J U S T I Ç A!

3. Por despacho do Senhor Juiz titular do processo, de 28/04/2023, foi o recurso admitido, com efeito suspensivo.

4. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu, em 15/05/2023, ao recurso do arguido, defendendo, em síntese, que o mesmo devia ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida.

5. Por sua vez, neste Supremo Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 29/05/2023, douto parecer, nos termos do qual entende, igualmente, que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se o decidido.

Observado o contraditório, o recorrente respondeu, em 09/06/2023, ao parecer do Ministério Público, manifestando discordância e reiterando a posição assumida na motivação do seu recurso.

6. Realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

Atendendo ao conteúdo das Conclusões apresentadas, que delimitam, como é conhecido, o objeto do recurso, são as seguintes as questões que importa conhecer:

Subsunção jurídica dos factos em causa, considerando o recorrente que o tribunal a quo errou ao decidir que o mesmo cometeu o crime de tráfico de estupefaciente p. e p. pelo art. 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01, pois, em sua opinião, o crime que praticou é o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º, do citado diploma legal e, em consequência, devia ter sido condenado na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão e, em resultado do cúmulo jurídico desta com a da prática do crime p. e p. artº 266º, nº 1 al. a) do Cód. Penal, na a pena única em 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução.

Sem prescindir, caso assim não se entenda, deverá, então, ser condenado na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática do crime p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do DL nº 15/93 e em 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime p. e p. pelo artº 266º, nº 1 al. a), do Cód. Penal, e, em cúmulo jurídico destas, na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução.

III. Fundamentação

1. Na parte que interessa ao julgamento do presente recurso, é do seguinte teor o acórdão recorrido (Transcrição):

(…)

FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes:

(NUIPC 5/21.8...)

1. No dia 01/03/2021, pelas 21h15, o arguido BB conduziu a viatura de marca “Renault”, modelo “Megane”, de matrícula ..-US-.., seguindo no banco dos passageiros o arguido AA, tendo aquele estacionado a referida viatura na Zona Industrial de ..., junto ao acesso ao Pavilhão de Feiras e Exposições de ....

2. Nesse local, os arguidos haviam combinado encontrar-se com CC para lhe venderem heroína.

3. Nessas circunstâncias, e quando CC e DD se aproximavam do veículo dos arguidos para adquirir produto estupefaciente, surgiu no local um carro de patrulha da GNR.

4. Nesse instante, o arguido BB iniciou a marcha do referido veículo, em marcha atrás, realizando manobras evasivas, contudo, acabou por embater com o carro patrulha, não conseguindo, desse modo, abandonar o local.

5. Em acto contínuo, o arguido AA arremessou pela janela do lado do pendura um saco contendo pequenos invólucros de produto estupefaciente, de diferentes tamanhos, que revelaram tratar-se de:

- 15 pacotes de cocaína (cloridrato), com o peso líquido total de 3,578 gramas, com um grau de pureza de 27,7%;

- 10 pacotes de heroína, com o peso líquido total de 22,586 gramas, com um grau de pureza de 5,0%.

6. Nessas circunstâncias, o arguido AA tinha na sua posse:

- um telemóvel da marca Samsung com o S/N R58M674VSNW, com o IMEI .............56;

- um telemóvel da marca Nokia com o IMEI .............06;

- a quantia monetária de € 470,00 (quatrocentos e setenta euros), dividida em 6 notas de €20,00 (vinte euros) e 35 notas de €10,00 (dez euros);

- uma nota forjada com o valor facial de € 50,00 (cinquenta euros) a qual se encontrava colocada no interior da capa do telemóvel da marca Samsung.

7. Por sua vez, o arguido BB tinha na sua posse:

- um telemóvel da marca IPhone, de cor cinza, modelo 6S Plus;

- 0,980 gramas de canábis (resina), com um grau de pureza de 23,7%. - uma nota de €5,00 (cinco euros).

8. Os telemóveis que os arguidos AA e BB tinham na sua posse eram destinados por estes para receberem e efectuarem contactos telefónicos com vista a concretizar as transacções de venda de substâncias estupefacientes a que se dedicavam.

9. O dinheiro que os mesmos tinham em seu poder era resultante das vendas de estupefaciente a que os mesmos se dedicavam.

10. O arguido AA trazia consigo, acondicionada no interior da capa do seu telemóvel Samsung, uma reprodução de uma nota de €50,00 (cinquenta euros), contrafeita, nunca tendo sido emitida pelo BCE ou autorizada a sua reprodução, tratando-se de reprodução ilegítima que não pode ser usada no câmbio, o que o arguido sabia.

11. Os arguidos AA e BB agiram de forma concertada e em conjugação de esforços, com consciência da composição, características e natureza estupefaciente das substâncias que transportavam, detinham e destinavam à cedência e venda a terceiros.

12. Apesar de estarem cientes da natureza estupefaciente dos produtos em causa, os arguidos quiseram e efectivamente lograram detê-los e entregá-los a troco de dinheiro, a todos os indivíduos que os pretendessem adquirir, tendo sempre o propósito concretizado de, com as suas condutas, auferirem vantagens económicas.

13. O arguido AA adquiriu, guardou e transportou a referida reprodução de nota do BCE, sabendo que era contrafeita, agindo com intenção de a colocar a circular no mercado e usá-la em pagamentos, entregando-a a terceiros, fazendo-a passar como se tratasse de uma nota legítima de 50 euros emitida pelo BCE, o que só não concretizou devido a ter sido apreendida nestes autos.

14. O arguido AA, agiu com o propósito de adquirir e transportar aquela reprodução de nota para ser colocada em circulação como se tratasse de nota legítima, bem sabendo que, desse modo, colocava em crise a integridade/intangibilidade do sistema monetário oficial, prejudicando a fé pública do papel-moeda.

(NUIPC 9/22.3...)

15. Na sequência dos factos supra descritos, o arguido AA foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido a ... de Março de 2021, tendo-lhe sido aplicadas as seguintes medidas de coação, para além do TIR prestado:

a) Proibição de contactar, por qualquer meio, diretamente ou por interposta pessoa, com consumidores de produtos estupefacientes;

b) Proibição de se ausentar para o estrangeiro, devendo entregar, no prazo de 10 dias, o seu passaporte;

c) Apresentações trissemanais, no posto policial da área da sua residência, às terças-feiras, quintas-feiras e aos sábados;

16. Pese embora as medidas de coacção que lhe foram aplicadas e o contacto com o sistema judicial, o arguido AA prosseguiu com a actividade de tráfico de estupefacientes, passando não só a fornecer consumidores, mas também a quem lhe pretendesse adquirir maiores quantidades dessas substâncias para posterior revenda, nomeadamente heroína, cocaína.

17. Para proceder às entregas, o arguido AA deslocava-se da área da sua residência em ... – ... à localidade de ..., o que fazia com recurso a veículo automóvel alugado, o que aconteceu, pelo menos, nos dias 7 e 14 de Junho de 2022 para fornecer produtos estupefacientes aos arguidos EE e FF.

Por sua vez,

18. A arguida EE dedicou-se, desde, pelo menos, o mês de Abril de 2022 a 14 de Junho de 2022, à actividade de tráfico de produtos estupefacientes, designadamente heroína, cocaína e canábis, na modalidade de venda directa ao consumidor, tendo vendido e cedido produto estupefaciente a um número indeterminado de consumidores que se dispuseram a comprar-lhe.

19. Para adquirir o produto estupefaciente que posteriormente revendia, a arguida EE aproveitava as deslocações do arguido FF ao encontro do arguido AA para adquirir heroína para o seu consumo, acompanhando-o “à boleia” no veículo automóvel de matrícula ..-OD-.., marca Renault.

20. Após a aquisição, a arguida EE guardava e ocultava o produto estupefaciente no interior da sua residência, sita na Rua Escritor ..., 2, 1.º Esq.º, em ....

21. Junto a esse local, bem como nas imediações, a arguida era procurada por vários consumidores, que ali se dirigiam com regularidade, quer apeados como de veículo automóvel, a fim de adquirirem produtos estupefacientes.

22. Efectuadas vigilâncias pela PSP junto à residência da arguida nos dias 27 e 28 de Abril, 2, 4 e 5 de Maio e 9 de Junho de 2022, foi possível visualizar a mesma a dirigir-se junto de vários indivíduos, a quem entregou pequenos invólucros mediante a troca de dinheiro.

23. No dia 7 de Junho de 2022, pelas 20h00, os arguidos EE e FF deslocaram-se, a bordo do veículo pertencente a este último, à localidade de ..., com o propósito de se abastecerem de produtos estupefacientes nos termos supra referidos.

24. Nessa localidade, o arguido FF parou na berma da estrada, saiu da viatura e abriu o capot.

25. Alguns minutos depois, surgiu no local uma viatura de marca Nissan Juke, com a matrícula NA-..-MM, conduzida pelo arguido AA, que parou junto ao arguido FF e entregou-lhe produto estupefaciente, em substância e quantidades não concretamente apuradas, mediante contrapartida monetária.

26. No dia 14 de Junho de 2022, os arguidos EE e FF deslocaram-se novamente, a bordo do veículo pertencente a este último, à localidade de ... com o propósito de se abastecerem de produtos estupefacientes nos termos supra referidos.

27. Pelas 17h14, e após passarem pela localidade de ..., fizeram inversão de marcha e estacionaram o veículo junto à berma da estrada.

28. Pelas 19h50, surgiu nesse local o arguido AA, a conduzir o veículo de marca Nissan, modelo Juke, com a matrícula NA-..-MM, tendo parado junto da viatura onde se encontravam a aguardar os arguidos EE e FF.

29. Após, o arguido AA entregou ao arguido FF produto estupefaciente, mediante contrapartida monetária.

30. Pelas 19h55 minutos, os arguidos FF e EE vieram a ser interceptados e transportavam no interior da viatura:

a) Três pacotes contendo heroína, com o peso líquido de 12,913 gramas, com um grau de pureza de 0,1%;

b) Dois pacotes contendo cocaína (Éster Met.), com o peso líquido de 0,853 gramas com um grau de pureza de 24,9%;

c) Um pedaço de canábis, com o peso líquido de 0,152 gramas, com um grau de pureza de 24,9% (THC).

31. O produto estupefaciente que transportavam foi adquirido ao arguido AA e foi localizado no interior de um pequeno saco que se encontrava na posse da arguida EE.

32. À arguida EE foi também apreendido: a) 1 telemóvel de marca F2;

b) 1 telemóvel de marca Samsung;

33. Interceptado o arguido AA pelas 20h10, à saída de ..., no interior da viatura de matrícula NA-..-MM, o mesmo tinha na sua posse:

a) A quantia de €370,00 (trezentos e setenta euros) em notas de 10 e 20 euros; b) 1 telemóvel da marca Nokia, modelo 105;

c) 1 telemóvel da marca Huawei, modelo Y5 II LTE, pertencente à sua companheira, GG;

d) 1 telemóvel de marca F2;

e) 1 telemóvel de marca Iphone, modelo 13, pertencente à sua “sogra” HH;

f) Quatro embalagens contendo heroína, com o peso líquido de 11,495 gramas e um grau de pureza de 0,9%, escondidas na roupa interior do arguido;

g) Sete embalagens contendo cocaína (Éster Met.), com o peso líquido de 0,493 gramas e um grau de pureza de 28,1%, escondidas na roupa interior do arguido;

34. No interior da sua residência, a arguida EE tinha uma balança digital com vestígios de cocaína e uma embalagem contendo heroína com o peso líquido de 0,523 gramas, com um grau de pureza de 0,7%.

35. Os arguidos EE e FF, agiram com consciência da composição, características e natureza estupefaciente dos produtos adquiridos, nomeadamente heroína, cocaína e canábis, que transportavam.

36. Por sua vez, o arguido AA também conhecia a natureza estupefaciente das substâncias que transportava e detinha e as quais destinava à venda a terceiros, nomeadamente consumidores ou outros traficantes destes produtos.

37. Ao actuarem da forma descrita, os arguidos AA e EE agiram com o propósito de obterem ganhos monetários com a venda das referidas substâncias, como efectivamente sucedeu, cientes que tal não lhes é legalmente permitido.

38. Os arguidos agiram, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e que incorriam em responsabilidade criminal.

Mais se provou que:

Quanto ao arguido AA

39. Não tem antecedentes criminais registados.

40. AA tem 25 anos de idade e, à data dos factos, residia na zona da grande Lisboa, ..., juntamente com a companheira, permanecendo ora na casa dos sogros, ora na casa do progenitor, por não possuir casa própria. É natural de ... e cresceu inserido num agregado familiar de condições socio económicas satisfatórias, constituído pelos pais, 3 irmãos uterinos e 5 irmãos germanos. A mãe trabalhava como doméstica durante a semana em casas particulares e ao fim de semana, vendia produtos hortícolas no mercado local. O padrasto foi ..., emigrado nos .... É filho único dos pais, tendo vivido com a mãe até aos 7 anos de idade, altura em que esta se divorciou e encetou novo relacionamento. O arguido frequentou o ensino em idade própria, concluindo no país de origem o 8º ano com retenções. Em Abril de 2016 veio para Portugal com o objetivo de estudar, ficando a viver em casa do progenitor que, entretanto, se havia reorganizado familiarmente em Portugal. Aos 18 anos, inicia actividade laboral como ajudante de carpintaria na empresa “Grupo T..., Lda”, onde trabalhou em regime efectivo, até a empresa ter sido vendida, ficando após desempregado, pelo que, durante algum período fez biscates na área da construção civil, juntamente com um familiar. Posteriormente integra actividade laboral em regime efetivo na empresa “D..., Unipessoal, Lda”, exercendo actividades na montagem de divisórias e tectos falsos, situação que mantinha antes da reclusão, auferindo salário médio que rondava os 800/900 euros, empresa que está disposta a readmiti-lo uma vez em liberdade. Aos 19 anos inicia relacionamento marital com GG, funcionária em regime efectivo no hotel J............., que mantém na atualidade. No EP mantém comportamento institucional adequado sem registos transgressivos e possui ocupação estruturada, faz faxina. Também frequenta ensino, para concluir 9º. ano. Recebe visitas da família, sempre que possível.

(…)

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Estabelece o art. 21º, n. 1 do DL n.º 15/93, de 22/01, que “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

Entende-se pacificamente que “Quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e de um tipo agravado, é no crime simples ou no crime-tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta. Nos tipos privilegiado e qualificado, define os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base e fundamentam outros quadros punitivos, exigindo-se, para que se possa verificar o abandono do tipo simples, uma verificação afirmativa de algum desses elementos. Assim sucede no Decreto-Lei nº 15/93”.

Importa, pois, em primeiro lugar, saber se as condutas dos arguidos se enquadram, no crime no artigo 21º do referido Decreto-Lei.

De acordo com o quadro punitivo enunciado, o crime de tráfico de estupefacientes, é um crime de perigo abstracto, ou seja, a simples detenção do produto é punida em nome da relação finalística com o produto, encarado como de grande danosidade pessoal e social.

Existe, pois, a suposição legal de que determinados modos de comportamento são geralmente perigosos, sendo a perigosidade da acção não elemento do tipo mas sim fundamento para a existência do tipo legal (cf. Wessels, Direito Penal - Parte geral, p. 9, Lourenço Martins, Droga e Direito, p. 103, e Acs. STJ de 28.03.96, CJ, 1996, I, p. 240 e STJ de 2-5-90, BMJ n. 397, p. 128, entre muitos).

O art. 21º, não faz apelo à intenção do agente, basta-se com a mera detenção. Constituindo crime de perigo abstracto, quaisquer das condutas típicas nele definidas

constituem crime. Sendo irrelevantes as motivações do agente para o crime se consumar. O que não significa que não o sejam para determinação da norma aplicável e das penas.

Ora, atentos os factos provados, não se pode deixar de dar como preenchidos os elementos típicos integradores do crime de tráfico de estupefacientes por parte de todos os arguidos. Com efeito.

- As substâncias em causa, heroína, cocaína e haxixe, encontram-se incluídas nas Tabelas I-A, I-B e I-C respectivamente, anexas ao referido diploma.

- O arguido AA transportou e vendeu tais produtos a terceiros.

- O arguido BB colaborou com ele pelo menos numa ocasião, conduzindo o veículo onde era transportado o produto estupefaciente, desde a área de residência de ambos até ao local onde se iria concretizar a venda, em ....

- A arguida EE vendia/cedia tais produtos a terceiros;

- O arguido FF, além de adquirir heroína ao arguido AA para o seu consumo, pelo menos em duas ocasiões fez-se acompanhar da arguida EE, assim propiciando a aquisição, detenção e transporte do produto estupefaciente que esta adquiria;

- Todos agiram com dolo directo.

Ao arguido AA vem imputada a prática de dois crimes de tráfico de estupefacientes, deduzindo-se que o MP considerou ter havido uma interrupção da resolução inicial do arguido ao ter sido detido e sujeito a medidas de coacção no âmbito do NUIPC 5/21.8...

O crime de tráfico de estupefacientes consubstancia aquilo é denominado de crime exaurido ou de empreendimento, na medida em que é punível qualquer conduta que implique um simples contacto com a substância estupefaciente, verificando-se um quadro progressivo entre as condutas previstas, bastando a prova da prática de uma delas para se considerar o crime por consumado (cfr. Pedro Patto, “Comentário às Leis Penais Extravagantes”, Vol. I, Universidade Católica, 2010, pág. 487).

Conforme se refere no AC. do STJ de 12.07.2016, disponível in www.dgsi.pt:

“À dilucidação da questão antepõe-se a da natureza do crime de tráfico de estupefacientes, concebido como crime de trato sucessivo, de execução permanente, mas mais comummente denominado de crime exaurido e , na terminologia alemã , de delito de empreendimento , que , como a falsificação de documentos e outros , fica perfeito com a comissão de um só acto , se excute só com ele , preenchendo-se com esse acto gerador o resultado típico ; o conjunto das múltiplas acções unifica-se e é tratado como tal pela lei e jurisprudência .

O crime exaurido, seguindo-se a jurisprudência emanada do Ac. deste STJ, de 18.6.98 , in CJ , STJ , 98, TIII , pág. 168, é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única.

Mas a incidência do tempo naquele unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infracções , nos termos do art.º 30.º n.º 1 , do CP.

Importará discernir então se entre os actos de tráfico é detectável um qualquer elo de ligação objectiva e subjectiva, sob a forma de resolução única que possa unificá-los na mesma conduta (neste sentido cfr. os Acs. deste STJ, de 14.2.2002 e 3.7.2002 , P.ºs n.ºs 4444/01 e 1533/02 , das 5.ª e 3.ª Secções, respectivamente.”

“Ao apelidar o crime de tráfico de estupefacientes como um crime de trato sucessivo visa-se realçar a vertente de pluralidade de actos típicos, sucessivos (podendo também na prática do crime existir uma pluralidade de actos simultâneos), levados a cabo sob a mesma unidade resolutiva.

Unidade resolutiva e não uma única resolução criminosa. Isso é, o agente terá decidido dedicar-se à actividade de tráfico de estupefacientes durante um determinado período de tempo, durante o qual praticou vários factos ilícitos, com preenchimento dos elementos típicos, quer objectivos quer subjectivos.” – cfr. Ac. STJ de 27.04.22, disponível in www.dgsi.pt.

No caso concreto e não obstante o lapso de tempo decorrido entre ambas as apreensões de estupefaciente, entendemos que a conduta do arguido foi sempre levada a cabo no âmbito da mesma unidade resolutiva, ou seja, a de se dedicar ao tráfico de droga, sendo disso demonstrativa a homogeneidade dos actos de tráfico, estando em causa sempre o mesmo tipo de estupefaciente e “modus operandi”.

Nestes termos, entendemos que a conduta do arguido AA integra apenas a materialidade de um crime de tráfico de estupefacientes.

Aqui chegados, importa aferir se as condutas de cada um dos arguidos podem ser subsumidas no art. 25º, que prevê uma moldura penal mais favorável caso se entenda que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída.

Importa realçar que a norma não exige apenas que se considere diminuída a ilicitude do facto. Essa ilicitude terá de ser consideravelmente diminuída.

A doutrina e, especialmente, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, têm procurado elencar indicadores para o que pode ser considerada uma actividade de tráfico de menor gravidade. Pode ler-se em acórdão do STJ:

“Note-se que o legislador não se contentou com uma simples diminuição da ilicitude para enquadrar o crime de tráfico de menor gravidade, pois obrigou a que fosse “consideravelmente diminuída”. Do mesmo modo, não aceitou que o tráfico que é realizado pelo agente com a finalidade de obter droga para o seu consumo seja sempre integrado no crime privilegiado do traficante-consumidor, pois que essa finalidade tem de ser “exclusiva”. Em ambos os casos, o legislador deu um sinal claro ao intérprete de que os crimes privilegiados são a excepção e nunca a regra.

Importa, porém, não transformar o crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º numa raridade jurisprudencial e, pelo contrário, há que fazer um esforço para que surja com mais equidade e, portanto, num maior número de casos”.

Prosseguindo nesse esforço, entendeu-se que é possível enumerar determinadas circunstâncias que permitem a verificação da ilicitude consideravelmente diminuída.

“Diríamos, em suma, que o agente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas:

I) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet);

II) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto;

III) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado;

IV) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas.

V) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos;

VI) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes;

VII) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita;

VIII) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.”

Perante estas regras e atendendo aos factos provados podemos concluir por diferentes subsunções:

- Quanto ao arguido AA, assumiu-se como abastecedor de cocaína e heroína em distintos locais da área desta Comarca, acção que levou a cabo por mais de um ano;

- A área geográfica da sua actuação é extensa, uma vez que se deslocava propositadamente da sua área de residência (grande Lisboa) até ao Alentejo para fornecer produtos estupefacientes, o que só é justificável pela expressiva rentabilidade desse esforço, de que são sinal as quantias monetárias apreendidas. Aliás, da análise dos factos é possível constatar a progressão económica do “investimento” realizado pelo arguido, dado que nas duas últimas situações se fazia transportar num carro alugado, cujo contrato se mostra junto a fls. 590/591, com um valor de aluguer, acrescido de caução, próximo dos €3.000,00;

- Extrai-se do relatório social que o arguido não é consumidor das substâncias que transaccionava, movendo-se, por isso, apenas sob fito lucrativo.

Estas circunstâncias obstam a que o tribunal considere a actuação do arguido AA de ilicitude consideravelmente diminuída.

E a tal conclusão não se opõe o facto de o grau de pureza das substâncias transaccionadas ser diminuto ou mesmo residual. Com efeito, como vem sendo entendimento deste tribunal, o grau de pureza das substâncias transaccionadas é irrelevante para a subsunção jurídica nos tipos de tráfico (não deixando de ser ponderado na medida da pena), uma vez que o que releva para a expressão económica desse negócio é peso das substâncias entregues/vendidas, independentemente daquele grau. O que se pode concluir é que o arguido enganava os seus “clientes”, consubstanciando os negócios que realizava aquilo que comummente é designado de “banhada”, o que só pode militar em seu desfavor, uma vez que essa é uma forma de incrementar a margem de lucro e simultaneamente aumentar as encomendas, já que o material fornecido é insuficiente para a satisfação das necessidades de consumo diárias dos toxicodependentes a quem era feito chegar, directa ou indirectamente.

Foram, aliás, essencialmente estes mesmos argumentos esgrimidos pelo Tribunal da Relação de Évora, já nestes autos, de forma a concluir pela mesma subsunção e, assim, sufragar a decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

Pelo que, inexistindo causas de exclusão da ilicitude/culpa, será o arguido AA condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º do Dec.Lei 15/93.

(…)

Determinação da Medida Concreta das Penas:

A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente e das exigências da prevenção, tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido (art. 71º do CP). Sendo que, em caso algum, a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, n. 2, do CP).

Dispõe, ainda, o art.º 40.º, do CP, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1). Acrescenta o art.º 71.º, n.º 1: «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

Em suma, a culpa e a prevenção constituem os dois termos do binómio que importa ter em conta para encontrar a medida correcta da pena (neste sentido, acórdão do STJ de 17-03-1999, Proc. n.º 1135/98 - 3.ª Secção).

É, pois, à luz de tais princípios, que terá de ser encontrada a pena adequada ao caso concreto.

Temos, então, que a moldura abstracta das penas a aplicar ao arguido AA é de 4 a 12 anos de prisão relativamente ao crime de tráfico, e de prisão até 5 anos relativamente ao crime de aquisição de moeda falsa. Relativamente aos demais arguidos, é de 1 a 5 anos de prisão com respeito ao crime de tráfico de menor gravidade em que cada um incorreu.

Assim:

Em termos de prevenção geral, importa ter em atenção, no que ao tráfico de estupefacientes respeita, “Trata-se de crime que cada vez prolifera mais, quer no âmbito nacional, quer a nível internacional, de efeitos terríveis na sociedade e que permite auferir, para os “donos do negócio” enormes proventos ilícitos, sendo, pois, imperioso e urgente, combatê-lo.

Isto mesmo era expressamente referido no preâmbulo da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, adoptada em Viena, na conferência realizada entre 25 de Novembro e 20 de Dezembro desse ano, que “sucedeu” a outros instrumentos, por onde passam as orientações políticas prosseguidas ao nível da União Europeia, como a Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961, concluída em Nova Iorque, em 31 de Março de 1961 (Convenção Única sobre Entorpecentes, reconhecendo que «a toxicomania é um grave mal para o indivíduo e constitui um perigo social e económico para a humanidade», e a necessidade de uma actuação conjunta e universal, exigindo uma cooperação internacional), aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 435/70, de 12/09, publicado no BMJ n.º 200, págs. 348 e ss. e ratificada em 30-12-1971, modificada pelo Protocolo de 1972, e a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, feita em Viena, em 21 de Fevereiro de 1971, aprovada para adesão pelo Decreto n.º 10/79, de 30-01 e ratificada por Portugal, em 24 de Abril de 1979, estando em causa nestas convenções assegurar o controlo de um mercado lícito de drogas.

É a partir desta Convenção que surgirá o Decreto-Lei n.º 430/83, de 13-12.

Com a referida Convenção de 1988, aprovada na sequência do despacho do Ministro da Justiça n.º 132/90, de 5-12-1990, publicado no DR, II Série, n.º 7, de 09-01, pela Resolução da Assembleia da República n.º 29/91 e Decreto do Presidente da República n.º 45/91, publicados no Diário da República, de 6 de Setembro de 1991, pretende-se controlar o acesso aos chamados «precursores», colmatar as lacunas das convenções anteriores e, sobretudo, reforçar o combate ao tráfico ilícito e ao branqueamento de capitais, sendo a razão determinante do Decreto - Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Aí se pode ler que “ … o tráfico ilícito de estupefacientes … representa(m) uma grave ameaça para a saúde e bem estar dos indivíduos e provoca(m) efeitos nocivos nas bases económicas, culturais e políticas da sociedade; preocupadas … com o crescente efeito devastador do tráfico ilícito de estupefacientes …nos diversos grupos sociais …; reconhecendo a relação existente entre o tráfico ilícito e outras actividades criminosas com ele conexas que minam as bases de uma economia legítima e ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos Estados; reconhecendo igualmente que o tráfico ilícito é uma actividade criminosa internacional cuja eliminação exige uma atenção urgente e a maior prioridade; conscientes de que o tráfico ilícito é fonte de rendimentos e fortunas consideráveis que permitem à organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as actividades comerciais e financeiras legítimas a todos os seus níveis; decididas a privar as pessoas que se dedicam ao tráfico dos produtos das suas actividades criminosas e a eliminar, assim o seu principal incentivo para tal actividade; desejando eliminar … os enormes lucros resultantes do tráfico ilícito; … reconhecendo que a erradicação do tráfico ilícito é da responsabilidade colectiva de todos os Estados e que nesse sentido é necessária uma acção coordenada no âmbito da cooperação internacional; … reconhecendo igualmente que é necessário reforçar e intensificar os meios jurídicos eficazes de cooperação internacional em matéria penal para eliminar as actividades criminosas internacionais de tráfico ilícito; …”.

Trata-se, pois, de um problema universal que, obviamente, atinge também o nosso País.

No plano interno, releva neste domínio a Estratégia Nacional de Luta contra a Droga, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 22 de Abril de 1999, publicada in Diário da República, I Série - B, n.º 122/99, de 26 de Maio, e em edição da «Presidência do Conselho de Ministros – Programa de Prevenção da Toxicodependência – Projecto Vida», com o depósito legal 140101/99 e com prefácio do então Ministro Adjunto do Primeiro Ministro.

Partindo do reconhecimento da dimensão planetária do problema da droga, que em termos de tratamento jurídico a nível internacional data desde 1912, com a Convenção da Haia, ou Convenção Internacional sobre o Ópio, elaborada na sequência da primeira conferência internacional sobre drogas ocorrida em Xangai, em 1909, assentando em oito princípios estruturantes, a saber: 1 – Princípio da cooperação internacional; 2 – Princípio da prevenção; 3 – Princípio humanista; 4 – Princípio do pragmatismo; 5 – Princípio da segurança; 6 - Princípio da coordenação e da racionalização de meios; 7 - Princípio da subsidiariedade; e 8 - Princípio da participação, sublinhando a estratégia da cooperação internacional, estabeleceu o documento como um dos seus objectivos principais o reforço do combate ao tráfico, como opção estratégica fundamental para o nosso País, a partir de seis objectivos gerais e de treze opções estratégicas individualizadas – cfr. págs. 45 a 47 da referida edição.

A produção, tráfego e consumo de certas substâncias consideradas como prejudiciais à saúde física e moral dos indivíduos passou a ser punida após a publicação do Decreto n.º 12210, de 24 de Agosto de 1926.

A este diploma, seguiram-se os Decretos-Lei n.º 420/70, de 3 de Setembro, n.º 430/83, de 13 de Dezembro e n.º 15/93, de 22 de Janeiro.”

Quanto às exigências, em termos de prevenção geral, com respeito ao crime de aquisição de moeda falsa, tendo em conta que se trata de crime de perigo abstracto, em que o bem jurídico tutelado não chega a ser lesado, são mais esbatidas.

Vejamos, então, quais as penas adequadas à culpa de cada um dos arguidos.

Quanto ao arguido AA:

Transaccionou heroína e cocaína, consideradas “drogas duras”, e ainda canábis em quantidades com alguma expressão económica, mas com reduzido grau de pureza, actividade a que se dedicou por mais de um ano, assumindo-se como abastecedor desses produtos numa área geográfica distante da sua área de residência, o que, no âmbito do tráfico comum, permite concluir por um grau médio-inferior de ilicitude; Tinha consigo apenas uma nota falsa, ainda assim de valor relevante, o que também aponta para um grau médio-inferior de ilicitude;

O dolo foi directo e intenso porque prolongado no tempo, de nada adiantando aquela primeira intervenção do sistema penal, só a prisão preventiva pôs cobro à sua actividade de tráfico; O dolo directo na detenção e transporte da nota falsa;

Os factos relativos às suas condições pessoais e económicas, que se dão por reproduzidos, donde se extrai que o arguido tinha adequado enquadramento económico-familiar, pelo que só uma ambição desmesurada de incrementar os seus rendimentos e estilo de vida, de forma rápida, fácil e com aproveitamento da desgraça daqueles que dependem do consumo dessas substâncias (que o próprio não consome), justifica a sua actuação; A detenção com intenção de utilização da nota falsa também se enquadra no acabado de referir, assim contribuindo para reforçar as características da personalidade do arguido;

Milita a seu favor a ausência de antecedentes criminais;

A ausência de qualquer colaboração para com o tribunal ou manifestação de sincero arrependimento, revelador de uma falta de interiorização da censurabilidade do seu comportamento.

Por tudo o exposto considera-se adequada a pena de 5 anos de prisão para o crime de tráfico de estupefacientes, e a pena de 10 meses de prisão para o crime de aquisição de moeda falsa.

Em cúmulo jurídico (arts. 77º e 78º do Cód. Penal) considerando os factos e a personalidade do arguido, nos termos a que supra se aludiu, entendemos que a pena única se deverá situar num patamar médio por referência aos seus limites máximo (5 anos e 10 meses) e mínimo (5 anos). Donde, será condenado na pena única de 5 anos e 5 meses de prisão.

(…)

2. Começando pela qualificação jurídica dos factos, é sabido que o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º do DL n.º 15/93, de 22/01, representa, em relação ao tipo fundamental, um crime privilegiado de tráfico de estupefacientes, em função da menor ilicitude do facto, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade do produto estupefaciente1.

Em regra, está associado à atividade do dealer de rua, do pequeno traficante.

Encerra um específico tipo legal, o que pressupõe a sua caraterização como uma variante dependente privilegiada do tipo de crime do art. 21.º (cf. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Ed. Bosh, trad. de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, pg. 363).

Contudo, a menor ilicitude terá de resultar, com é óbvio, de uma avaliação global da situação de facto.

Ora, cingindo-nos precisamente aos factos que foram dados como provados, constata-se que o arguido/recorrente transacionou heroína e cocaína, consideradas “drogas duras”, e ainda canábis em quantidades com alguma expressão económica, mas com reduzido grau de pureza, atividade esta a que se dedicou por mais de um ano, assumindo-se como abastecedor desses produtos numa área geográfica extensa, distante da sua área de residência.

Por vezes, fazia-se até transportar num veículo alugado para o efeito.

Por outro lado, como salienta o acórdão recorrido, o arguido tinha adequado enquadramento económico-familiar e não era consumidor, pelo que só uma ambição desmesurada de incrementar os seus rendimentos e estilo de vida, de forma rápida, fácil e com aproveitamento da desgraça daqueles que dependem do consumo dessas substâncias justifica a sua atuação.

Nesta conformidade, numa imagem global dos factos, não se mostra nada evidente uma menor ilicitude da factualidade praticada, que se terá de considerar mediana. Pelo contrário, aponta na direção do tráfico comum.

Assim, bem andou o tribunal coletivo em ter subsumido, aliás, de forma fundamentada, os factos no tipo legal de referência previsto no art. 21.º n.º 1, do citado diploma legal.

Relativamente à medida concreta da pena referente a este crime, que o tribunal a quo fixou em 5 anos de prisão2, não merece censura, dado encontrar-se doseada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal), com particular destaque para as da prevenção geral, particularmente fortes, atenta a danosidade social por todos reconhecida deste crime, que tem vindo a aumentar de forma significativa e que vem causando problemas graves à saúde pública e à qualidade de vida de tantas famílias.

Por sua vez, em relação ao cúmulo jurídico efetuado com a pena parcelar de 10 meses de prisão aplicada ao crime de aquisição de moeda falta para ser posta em circulação, cuja prática o recorrente não põe em causa, julgamos a pena única de 5 (cinco) anos e 5 (cinco) meses de prisão como equilibrada e que teve em consideração, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido3 (art. 77.º n.º 1, também do Cód. Penal).

Nada, portanto, e para concluirmos, a dizer em contrário relativamente às penas parcelares e à pena única aplicadas, por serem corretas, adequadas e proporcionais, ficando, deste modo, prejudicada a pretendida suspensão da execução da última (art. 50.º n.º 1, do Cód. Penal).

Improcedem, assim, todas as questões colocadas pelo recorrente.

IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência, manter-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6UC.

Lisboa, 22 de novembro de 2023

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Ana Barata de Brito (Adjunta)

Ernesto Vaz Pereira (Adjunto)

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1. Vejam-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 11/10/2023 (Relator o Senhor Conselheiro Agostinho Torres), Proc. n.º 314/22.9PDPRT.P1.S1, 7/9/2023 (Senhora Conselheira Leonor Furtado), Proc. n.º2/21.3GACNT.C1.S1, 25/5/2023 (Senhora Conselheira Helena Moniz), Proc. n.º 2/20.0GABJA.S1, 20/12/2017 (Senhor Conselheiro Manuel Augusto de Matos, Proc. n.º 1366/14.0TABABF.S, e 15/4/2010 (Senhor Conselheiro Maia Costa), Proc. n.º 17/09PJAMD.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

2. Numa moldura abstrata que vai dos 4 aos 12 anos de prisão.

3. Cfr., por todos, Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, pg. 290 e ss., e Maria João Antunes, Penas e Medidas de segurança, 2.ª edição, Almedina, pg. 69 e ss.