Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14/21.7PEBRG.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
REINCIDÊNCIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O artigo 25.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, remete para a previsão do artigo 21.º, com adição de elementos respeitantes à ilicitude, que atenuam a pena; a atenuação não resulta de um concreto elemento típico que acresça à descrição do tipo fundamental (artigo 21.º), mas sim da verificação de uma diminuição considerável da ilicitude, em função de circunstâncias referidas exemplificativamente – os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade e a quantidade das substâncias.

II. A construção do crime de «tráfico de menor gravidade», surgido na sequência da revisão da “lei da droga”, de 1993, que levou ao desaparecimento do anterior crime de “tráfico de quantidades diminutas” (na sequência da ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, Viena, 1988), assenta na técnica do uso de uma cláusula geral, expressa no conceito de «ilicitude consideravelmente diminuída», com recurso a circunstâncias exemplificativas relativas aos elementos da ilicitude da ação.

III. A jurisprudência deste Tribunal tem afirmado a necessidade de uma “avaliação global do facto”, nas suas circunstâncias particulares, as quais, no seu conjunto, devem permitir afirmar que as quantidades de estupefacientes detidas, vendidas, distribuídas, oferecidas ou proporcionadas a outrem (atividades que se incluem na definição do tipo de crime fundamental, do artigo 21.º), são reduzidas; que a sua qualidade, aí se incluindo o potencial grau de danosidade para os bens jurídicos protegidos pela incriminação, também deverá ser reduzida; que os meios utilizados, o modo e as circunstâncias da ação deverão ser simples, não planeados, não organizados.

IV. Os “meios utilizados” hão de reportar-se à organização e à logística de que o agente lançou mão; quanto à “modalidade ou circunstâncias da ação”, será de avaliar o grau de perigosidade revelado em termos de difusão das substâncias; quanto à “qualidade” das substâncias, não deve esquecer-se que a organização e colocação nas tabelas segue, como princípio, o critério da sua periculosidade intrínseca e social, e quanto à “quantidade”, importa considerar o nível dos riscos de difusão, devendo a sua ponderação ser efetuada através de uma “apreciação complexiva, finalística, isto é, dirigida à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se objetivamente a ilicitude da ação é de relevo menor” que a verificada no tipo fundamental.

V. Os factos descritos configuram uma situação que evidencia uma atividade repetida, concretizada em múltiplos atos de venda concentrada, ao longo de 1 ano e 4 meses, de 6,875 gramas de cocaína e heroína, tendo a arguida, a final, na sua posse, 3.088 gramas desses produtos, vulgarmente classificadas como “drogas duras”, dado o seu elevado grau de danosidade, uma atividade organizada e prolongada no tempo, planeada e levada a efeito de acordo com outras pessoas do mesmo bairro, adequada e enquadrada pela dimensão das necessidades e escala do negócio local, a qual, pela sua natureza e dimensão, dependia de outras atividades de tráfico, da aquisição dessas substâncias no mercado ilícito abastecedor, com quem a arguida se relacionava para garantir o abastecimento da sua pequena fatia de mercado.

VI. Surpreende-se uma situação de facto que as investigações criminológicas identificam como uma normal atividade típica de tráfico, nas suas ramificações finais de distribuição e abastecimento para satisfação da procura de consumidores habituais de áreas geográficas determinadas, que a arguida, na parte que lhe competia, garantia regularmente, por si e em conjugação de esforços com outras pessoas. 

VII. A quantidade de estupefacientes (heroína e cocaína, de elevada danosidade) traficada, embora não elevada, tendo em conta o período de tempo em que ocorreu, e as circunstâncias da entrega aos seus destinatários, nos períodos acordados, como parte de uma atividade de muito maior dimensão, requeriam meios, planeamento e organização adequados, que foram efetivamente assegurados, de modo a satisfazer as necessidades e a procura do mercado local.

VIII. Não se identificam elementos de facto de reduzida expressão que permitam verificar correspondência com os critérios estabelecidos na alínea a) do artigo 25.º, suscetíveis de preencherem a cláusula geral de diminuição considerável da ilicitude.

IX. Mostram-se presentes os pressupostos (formal e material) da reincidência (artigo 75.º, do CP). Trata-se de crimes da mesma natureza em que não intervêm elementos de desconexão, cuja repetição, nas circunstâncias descritas, na verificação da ausência de efeitos positivos da anterior condenação, permite formar conclusão autónoma sobre a agravação da culpa, como faz o acórdão recorrido,

X. Considerando o limite mínimo da pena aplicável por funcionamento da reincidência, mostrando-se ponderados os fatores relevantes por via da culpa e da prevenção, que, como considera o acórdão recorrido, revelam elevadas exigências e necessidades de prevenção geral, a considerar no limite da culpa, tendo em conta a frequência, a insegurança e a grave danosidade social resultantes da prática destes tipos de crime, bem como de prevenção especial, não se surpreendem elementos que, por não terem sido adequadamente ponderados, permitam constituir base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada, de 6 anos e 8 meses de prisão, a justificar uma intervenção corretiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, arguida, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão de 27.01.2023 do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ..., Juiz ..., da comarca de Braga, que a condenou pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, agravado pela reincidência, na pena de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Pelo mesmo acórdão foi também condenado o arguido BB pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, de 22-01, agravado pela reincidência, na pena de 7 (sete) anos de prisão.

2. Discordando da qualificação jurídica dos factos, que reputa constituírem o crime de tráfico de menor gravidade, e da medida da pena, que pretende ver reduzida para 5 anos e 8 meses de prisão, apresenta motivação, de que extrai as seguintes conclusões (transcrição):

«1 – O presente recurso entronca na circunstância única de entender a recorrente que a matéria de facto dada como provada deve ser subsumida ao art.º 25º alínea a) do Dec. Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro.

2 - Os actos de tráfico – assumidos aliás pela arguida - não assumem um especial significado e, paralelamente, a forma como a actividade se processou não integra o tipo base.

3 – As vendas ocorreram sem recurso a intermediários entre a recorrente e os destinatários finais das substâncias transaccionadas.

4 - As transacções ocorreram num bairro onde prolifera a venda de estupefacientes, não foram utilizados quaisquer meios especiais para essa pratica e o produto estupefaciente transaccionado pela recorrente não foi difundido por uma área geográfica extensa.

5 - As vendas eram feitas através de uma janela da casa onde a recorrente vivia, a indivíduos que deambulavam por aquele bairro.

6 - Não ficou igualmente provado, como não poderia efectivamente acontecer, que a arguida tivesse obtido para si ou para terceiros, com a pratica delituosa, lucros de monta.

7 – Tudo isto espelha uma forma arcaica, desorganizada, atabalhoada de mercadejar droga.

8 – Falamos de uma traficante de rua que enquanto tal se situana base da pirâmide do tráfico de droga, e que constitui o elo mais fraco e mais frágil da cadeia de actos de trafico destas substâncias.

9 – Estas realidades não foram devidamente valoradas pelo tribunal a quo.

10 - Não podemos cair na tentação fácil de colocar tudo no mesmo saco e equiparar pequenos traficantes a indivíduos que com outra estrutura, e seguramente sem a indigência intelectual da recorrente, auferem rendimentos avultadíssimos com o tráfico de estupefacientes

11 - Um traficante de rua, nas mais das vezes, com o passar do tempo, começa a acumular condenações pela prática de crimes de tráfico de menor gravidade.

12 – Contudo, esse acumular de condenações e essa reiteração na prática deste ilícito, não faz dele autor ou co-autor do ilícito tipo.

13 – Sem prescindir, sempre se dirá que, ainda que este entendimento não mereça acolhimento por parte de V. Exc., e se entenda que foi feita uma correcta subsunção dos factos ao direito, considerando em conjunto, todas as circunstâncias que depõem contra e a favor da arguida AA, cremos que mais justo e adequado às exigências de prevenção, seria reduzir a pena que lhe foi aplicada, aplicando uma pena de cinco anos e oito meses de prisão.

Normas violadas: Art. 21º e 25 do Dec. Lei n.º 15/93 de 22/01.»

3. Respondeu o Ministério Público, pelo Senhor Procurador da República no tribunal recorrido, concluindo pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:

«1. É no crime base – artigo 21º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – que o legislador desenha as condutas proibidas enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessas condutas.

2. Para além do tipo base, previu o legislador os tipos privilegiado e qualificado nos quais são definidos os elementos atenuativos ou agravativos que modificam o tipo base, conduzindo a outros quadros punitivos. Só a verificação afirmativa desses elementos atenuativos ou agravativos é que permite o abandono do tipo simples.

3. Assim se estabeleceu uma graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude, pré-avaliados pela moldura penal abstracta prevista, em que se manifesta a intensidade ou potencialidade do perigo para os bens jurídicos protegidos, dando-se adequada diferenciação de tratamento penal entre as realidades distintas do grande, médio e pequeno tráfico e tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si estupefacientes, que a justiça da intervenção, com a adequada prossecução dos fins de prevenção geral e especial, reclama.

4. No caso em apreço, há que tomar em consideração:

a) o facto de os arguidos se dedicarem à venda de heroína e cocaína, drogas comummente apelidadas de “drogas duras”;

b) o considerável tempo de duração de actividade da arguida AA (entre Outubro de 2020 e 01 de Fevereiro de 2022);

c) a intensidade no prosseguimento da actividade desenvolvida (traduzida nas vendas de heroína e cocaína entre os meses de Outubro de 2020 e 01 de Fevereiro de 2022, quanto à arguida AA e, dentro destas, as que especificamente foram dadas como provadas sob o n.º 11 dos factos provados);

d) o modo de execução do crime, tal como resulta dos factos provados (as vendas de produto estupefaciente ocorreram a partir das traseiras da residência dos arguidos, salientando-se a existência, a partir de Outubro de 2021, de uma organização dos arguidos em causa (2), os quais passaram então a actuar em conjugação de esforços e intentos;

e) a significativa quantidade dos estupefacientes comercializados e/ou detidos;

f) a ainda mediana dimensão dos lucros obtidos (o que se alcança a partir da análise do preço com que era vendido o produto estupefaciente, o tempo de duração da actividade delituosa e à quantidade de estupefaciente vendido ou meramente detido);

g) o facto de os arguidos viverem sobretudo da actividade de tráfico que desenvolviam;

h) o considerável número de consumidores a quem foi vendido produto estupefaciente (cfr. especialmente matéria de facto dada como provada sob o n.º 11).

5. Levando em conta todos estes elementos, bem andou o Tribunal a quo ao concluir que a ilicitude dos factos praticados pela recorrente AA assume a densidade pressuposta no tipo matricial do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

6. O acórdão nenhuma censura merece no que respeita à qualificação jurídica dos factos imputados à arguida ora recorrente.

7. O crime de tráfico de estupefacientes, a título de reincidência, tal como configurado nos autos, está previsto no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/2003, de 22 de Janeiro e 75º e 76º do Código Penal, e é punível com pena de prisão de 05 anos e 04 meses a 12 anos.

8. No caso dos autos há que atender:

- à intensidade do dolo, directo, com que a arguida agiu;

- ao grau da ilicitude do facto situado num patamar médio, considerando-se a variedade das substâncias estupefacientes vendidas/detidas, a reiteração dos seus comportamentos e o período de tempo em que durou a actividade delituosa;

- ao modo de execução do crime, que passa maioritariamente pela venda a terceiros consumidores mas, em determinado período temporal, em concertação com o outro arguido;

- ao facto de nenhum dos arguidos, aquando em liberdade, desenvolverem actividade profissional ou ocupacional lícita;

- ao facto da arguida se apresentar autocentrada nos constrangimentos pessoais e familiares decorrentes da privação da liberdade, evidenciando lacunas ao nível da capacidade de reflexão sobre danos para terceiros decorrentes da prática do crime de tráfico de droga.

Em seu favor, cumpre ponderar:

- o facto de ter confessado integralmente e sem reservas os factos descritos na acusação (sendo certo que os efeitos dessa confissão, no caso, se encontram algo mitigados pela prova que até ao momento da admissão integral dos factos por parte dos arguidos foi produzida);

- o facto de ter verbalizado arrependimento;

- o facto de contar com o apoio dos familiares mais próximos, sendo de revelar o espírito de solidariedade e entreajuda.

9. Em sede de prevenção geral de integração, deve levar-se em conta as consequências nefastas deste tipo de criminalidade e o alarme que suscita, constituindo hoje um dos factores de maior perturbação social, quer pelos riscos para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica dos destinatários de tal actividade, quer pelas rupturas familiares e fracturas na coesão social que provocam, com a proliferação de uma vasta criminalidade associada ao consumo de estupefacientes.

10. Quanto às exigências de prevenção especial, as mesmas revelam-se elevadas. De notar que AA cumpriu já pena de prisão efectiva pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, sendo que o respectivo juízo de censura não foi suficiente para evitar a prática de ilícito da mesma natureza.

11. A propensão delituosa é ainda mais grave se atentarmos que os factos aqui imputados se iniciaram cerca de oito meses depois de ter sido colocada em liberdade.

12. Considerando os critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal, não merece qualquer reparo a medida da pena de 06 anos e 08 meses de prisão aplicada à arguida AA, ora recorrente, atendendo ao grau de culpa por si revelado, à intensidade do dolo e grau de ilicitude, bem como às exigências de prevenção geral e especial que ao caso se fazem sentir.

13. A decisão recorrida não violou qualquer normativo legal, nomeadamente os invocados pela recorrente.

14. Nada há, por isso, a censurar à decisão recorrida.

Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.»

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, em concordância com a posição do Ministério Público em 1.ª instância, emitido parecer, também no sentido da improcedência do recurso, e acrescentando, em síntese (transcrição):

«(…)

A) - Tipicidade.

1. Alega, em síntese, a arguida, ora recorrente, tendo em vista a integração da sua conduta no tipo-de-ilícito do art. 25º do DL-15/93, de 22/01 […]:

2. Mas, com todo o respeito, cremos, mesmo perante o alegado, que a arguida preencheu, pelo seu comportamento, o tipo-de-ilícito de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. na disposição do art. 21º/1 do DL-15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-A anexa, e não na do referido art. 25º do mesmo diploma legal.

Concretizando.

3. Como bem salienta o Ministério Público junto do Tribunal “a quo”:

A natureza das drogas traficadas (heroína e cocaína);

O lapso temporal da actividade criminosa (Outubro de 2020 e 01 de Fevereiro de 2022);

As vendas apuradas;

O uso da janela da residência, com a inerente aptidão dissimulatória e o dificultar da actuação das entidades de investigação;

A quantidade dos estupefacientes vendidos e/ou detidos;

A não desprezível dimensão dos lucros obtidos;

O modo se vida quase em exclusividade.

4. Estes dados, sujeitos a uma valoração autónoma do julgador, através de uma análise lógico-dialéctica complexiva e sob um prisma ético-social, não permitem, razoavelmente, concluir-se por uma acentuada diminuição do desvalor inerente à “imagem global do facto” cometido, de forma que possa enquadrar-se no “padrão de ilicitude que constitui o pressuposto da punição” relativo ao tipo-de-crime do art. 25º/1 do mesmo Decreto-Lei.

5. Na verdade, houvesse tido lucros avultados ou utilizado meios especiais para tal prática e os produtos estupefacientes transaccionados pela ora recorrente tivessem sido difundidos por uma área geográfica extensa, e teria integrado a tipologia do crime agravado (cfr, o art. 24º do mesmo diploma legal).

6. Veja-se, nesta matéria, o Ac. do STJJ de 21.12.2022, 77/20.2PEVIS.C1.S1:

I – A análise dos tipos legais de tráfico de estupefacientes não deve ser dicotómica, apenas entre o tipo fundamental de ilícito (art. 21.º/1, DL 15/93) e o tipo privilegiado em razão da menor gravidade do facto (art. 25.º DL 15/93), mas estender-se ao art. 24.º, que prevê um tipo agravado de tráfico de estupefacientes, abrangendo situações de especial ilicitude do facto. Mesmo o art. 21.º deve ser considerado na sua completude, pois tem um âmbito de aplicação alargada, com agravação (nºs 2 e 3) e atenuação (n.º 4) de penas. Só uma ponderação global fornece uma visão integrada da resposta legislativa ao fenómeno do tráfico de estupefacientes: o tipo fundamental de tráfico no art. 21.º/1, um tipo de crime privilegiado no art. 25.º, e um tipo de crime qualificado no art. 24.º.

II – O tipo privilegiado de tráfico de menor gravidade (art. 25.º) pressupõe uma dimensão da ilicitude do facto, consideravelmente menor do que a ínsita no tipo fundamental (art. 21.º), enquanto o tipo qualificado, exigindo em regra uma ilicitude maior que a pressuposta no art. 21.º, beneficia de uma indicação taxativa de situações passíveis de integrar o tipo qualificado

III – Os pressupostos de aplicação da norma (art. 25.º) respeitam, todos eles, ao juízo sobre a ilicitude do facto, uns à própria ação típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da ação), outros ao objeto da ação típica (qualidade – percentagem de presença do princípio ativo – ou quantidade do estupefaciente), pelo que não relevam, como diminuindo a ilicitude, fatores atinentes ao juízo sobre a culpa, quer relativos ao desvalor da atitude interna do agente, ou à sua personalidade. Nas contas da correta ou incorreta subsunção jurídica da conduta apurada não entram os antecedentes criminais do arguido, os períodos de tempo de prisão que já cumpriu e as suas modestas condições de vida.

IV – A menor ilicitude afere-se pela ponderação dos meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, o número de pessoas a quem foi realizada a venda, distribuição, cedência etc., ou o número de vezes em que tal ocorreu em relação à mesma pessoa.

Não foi violado o disposto nos arts. 21º/1 e 25º do DL-15/93, de 22/01.

Medida da pena.

Diz, no essencial, a recorrente, em jeito de conclusão:

13 – Sem prescindir, sempre se dirá que, ainda que este entendimento não mereça acolhimento por parte de V. Exa., e se entenda que foi feita uma correcta subsunção dos factos ao direito, considerando em conjunto, todas as circunstâncias que depõem contra e a favor da arguida… cremos que mais justo e adequado às exigências de prevenção, seria reduzir a pena que lhe foi aplicada, aplicando uma pena de cinco anos e oito meses de prisão.

8. Ou seja, de concreto, apenas poderia alegar:

A confissão;

O verbalizado arrependimento.

9. Contrapomos nós, todavia, que as concretas circunstâncias da prática do crime, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa (que constam dos factos-provados e são ponderadas na douta fundamentação) – valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos na disposição do art. 71º do Código Penal para a determinação da pena –, permitem a conclusão de que a pena concretamente aplicada (06 anos e 08 meses de prisão), se mostra, adentro da sua moldura abstracta (05 anos e 04 meses a 12 anos de prisão), justa e criteriosa, dando expressão acertada, porventura com alguma dose de benevolência, ao princípio da culpa e às exigências da prevenção geral e especial (adequação e proporcionalidade).

10. Há, efectivamente, em vista das finalidades de prevenção (adentro da moldura da culpa), limites mínimos da punição que não devem ser ultrapassados, mesmo perante os ditames da ressocialização, sob pena de intolerável e perniciosa inversão de toda a lógica do sistema jurídico-penal.

11. Concretizando:

A amplitude da moldura penal abstracta;

A natureza (heroína e cocaína) da droga vendida/detida;

É o facto-crime (com seu desvalor ético-social) – e não a pessoa do seu agente, seu sujeito necessário – o que se revela como a primeira e decisiva etiologia do Direito Penal;

A confissão revelou-se, acima de tudo, como uma categoria e uma estratégia processual-penal, dada a prova claramente incriminatória já antes produzida;

O arrependimento não se extrai tão-somente da sua declaração.

Não foi violada a disposição do art. 71º do Código Penal.

III. Em síntese:

Em face da questão-de-facto revelada, a arguida preencheu, pelo seu comportamento, o tipo-de-ilícito de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. na disposição do art. 21º/1 do DL-15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-A anexa, e não na do referido art. 25º do mesmo diploma legal (o primeiro, também na sua dicotomia face à disposição do art. 24º);

O Tribunal “a quo”, ao aplicar a pena, apreendeu e valorou devidamente a natureza e gravidade do facto-crime e a personalidade da arguida, na sua relação dialéctica e expressão ético-social, aplicando uma sanção bem perto do seu limite mínimo abstracto.

IV. Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.»

5. Notificada para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, a arguida nada disse.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi à conferência, para julgamento – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

7. O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

«1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Outubro de 2020 e até ao dia 01-02-2022, a arguida AA dedicou-se à venda a terceiros, mediante contrapartida monetária ou outra, de heroína e cocaína.

2. A partir de Outubro de 2021, a arguida AA passou a contar com a colaboração do arguido BB, actuando em comunhão de esforços e de vontades com o mesmo.

3. Os arguidos desenvolveram essa actividade a partir do Bairro Social ..., em ..., onde residem várias famílias, que, num plano previamente gizado, se dedicam à actividade de tráfico de estupefacientes, alternadamente e com uma periodicidade pré-estabelecida.

4. Com efeito, no dia 06 de Outubro de 2020, foi levada a cabo naquele aglomerado habitacional uma operação policial de grande envergadura, com o cumprimento de mandados de busca a diversos suspeitos de tráfico de droga, entre os quais a matriarca da família CC, conhecida por DD”, mãe da aqui arguida AA.

5. Naquela altura, sujeitas a primeiro interrogatório judicial, CC e três das suas filhas, ficaram sujeitas à medida de coacção de prisão preventiva.

6. Nas semanas seguintes, a arguida AA continuou a levar avante a actividade de tráfico de estupefacientes que vinha a ser desenvolvida pela sua mãe.

7. Assim, a arguida AA efectuava a venda dos produtos estupefacientes aos consumidores a partir da janela das traseiras da sua habitação, sita no Bairro Social ..., rés-do-chão esquerdo, em ....

8. Dado ao tão elevado número de toxicodependentes que ali se deslocavam diariamente para adquirir produtos estupefacientes, a relva na zona ajardinada desapareceu, ficando visível um trilho de passagem constante.

9. Por sua vez, desde o dia 4 de Outubro de 2021, altura em saiu do Estabelecimento Prisional de ..., após cumprimento de pena de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, o arguido BB, companheiro da arguida AA, passou a auxiliá-la na actividade de tráfico de estupefacientes.

10. Para além de proceder à venda directa de cocaína e heroína aos consumidores, incumbia ainda ao arguido BB as deslocações ao ..., ao Bairro da ..., para adquirir produtos estupefacientes.

11. No período considerado nos autos, os arguidos AA e BB (este, desde 04 de Outubro de 2021), a partir da janela traseira da sua habitação, venderam cocaína (€10,00 cada pedra) e heroína (€5,00 cada embalagem), entre muitos outros, aos seguintes toxicodependentes que ali se dirigiram:

1 de Março de 2021:

- A EE, às 10H10, uma embalagem de heroína com o peso bruto total aproximado de 0,26 gramas.

- A FF, cerca das 11H15, três embalagens de heroína com o peso bruto total aproximado de 0,59 gramas.

2 de Março de 2021:

- A GG, cerca das 09H40, uma embalagem heroína com o peso bruto total aproximado de 0,17 gramas.

3 de Março de 2021:

- A HH, cerca das 14H30, uma pedra de cocaína, com o peso bruto de 0,25 gramas.

- A II, cerca das 16H40, oito embalagens heroína com o peso bruto total aproximado de 1,70 gramas.

4 de Março de 2021:

- A JJ, cerca das 10H20, duas embalagens de heroína, com o peso bruto total aproximado de 0,40 gramas.

5 de Março de 2021:

- A KK, cerca das 17H20, quatro embalagens de heroína, com o peso bruto total aproximado de 0,92 gramas e duas pedras de cocaína, com o peso bruto de 0,50 gramas.

11 de Março de 2021:

- A LL, cerca das 15H35, uma embalagem de heroína, com o peso bruto total aproximado de 0,18 gramas.

16 de Março de 2021:

- A MM, cerca das 15H50, duas embalagens de heroína, com o peso bruto total aproximado de 0,41 gramas.

13 de Setembro de 2021:

- A NN, cerca das 16H25, uma pedra de cocaína, com o peso líquido de 0,294 gramas e uma embalagem de heroína com o peso líquido de 0,137 gramas.

14 de Setembro de 2021:

- A OO, cerca das 15H00 duas embalagens de heroína com o peso liquido de 0,289 gramas.

11 de Novembro de 2021:

- A PP, cerca das 14H55, duas embalagens de heroína com o peso líquido de 0,211 gramas.

- A QQ e a RR, cerca das 17H10, três embalagens de heroína com o peso liquido de 0,227 gramas.

16 de Novembro de 2021:

- A SS, cerca das 10H50, três pedras de cocaína com o peso líquido de 0,852 gramas (correspondentes a 8 doses individuais diárias).

17 de Novembro de 2021:

- A TT, cerca das 10H50, uma pedra de cocaína com o peso líquido de 0,298 gramas e uma embalagem heroína com o peso líquido de 0,141 gramas.

18 de Novembro de 2021:

- A UU, cerca das 11H45, duas embalagens de heroína com o peso líquido de 0,301 gramas.

29 de Novembro de 2021:

- A VV, cerca das 10H45, duas pedras de cocaína com o peso líquido de 0,097 gramas.

– A WW, cerca das 11H45, uma pedra de cocaína com o peso líquido de 0,163 gramas.

12. [facto relativo ao coarguido]

13. [facto relativo ao coarguido]

14. [facto relativo ao coarguido]

15. [facto relativo ao coarguido]

16. No dia 01-02-2022, os arguidos AA e BB encontravam-se, como habitualmente, no interior da sua residência a proceder à venda de produtos estupefacientes aos toxicodependentes que ali se dirigiam.

17. Nesse dia, cerca das 14h20m, na sua residência, sita no Bairro Social ... rés-do-chão esquerdo, ..., os arguidos AA e BB tinham:

No quarto do casal:

- um saco plástico contendo dez embalagens de heroína, com o peso de 1,420 gramas (correspondentes a 2 doses) e seis pedras de cocaína, com o peso de 1,668 gramas (correspondentes a 17 doses), que o arguido BB tentou ingerir ao aperceber-se da intervenção policial.

Na sala e na carteira da arguida AA:

- duas notas de 20€, treze notas de 10€ e três notas de 5€, perfazendo um total de 185€.

18. A quantia monetária em referência apreendida aos arguidos foi obtida como contrapartida da venda a terceiros de substâncias estupefacientes.

19. Os arguidos, sem que, para tanto, estivessem autorizados, destinavam as substâncias estupefacientes que lhes foram apreendidas à venda a terceiros, mediante contrapartida monetária ou outra.

20. Os arguidos conheciam a natureza e as características das substâncias estupefacientes que compravam e/ou vendiam e/ou guardavam/detinham e não ignoravam que a respectiva compra e/ou detenção e/ou venda lhe estavam legalmente vedadas

21. Não é conhecida qualquer actividade laboral aos arguidos, nem qualquer fonte lícita de rendimento ao arguido BB, vivendo os mesmos sobretudo da actividade de tráfico que desenvolviam.

22. Agiram conjunta, deliberada, livre, concertada e conscientemente, muito embora conhecessem o carácter proibido e criminalmente punível das suas condutas.

23. Entre o mais, por decisão transitada em julgado em 07-03-2016, proferida no processo n.º 26/14.7..., por factos ocorridos entre 14-07-2014 e 4-02-2015, foi a arguida AA condenada, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos de prisão (cfr. documento de fs. 641 e ss., cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).

24. Em 19-06-2019, a arguida AA foi colocada em liberdade condicional, tendo a pena sido declarada cumprida e extinta por despacho datado de 18-11-2020, com efeitos reportados a 17-02-2020.

25. [facto relativo ao coarguido]

26. [facto relativo ao coarguido]

27. As condenações anteriores por si sofridas não constituíram advertência suficiente nem determinaram os arguidos a assumir, a partir de então, um comportamento conforme com a norma.

28. Não se encontram decorridos mais de 5 anos desde a prática de cada um dos crimes dolosos, supra identificados, pelos quais foram condenados e o que agora lhes é imputado, descontando o tempo em que estiveram presos e submetidos a medida privativa da liberdade.

29. A arguida AA, pelo menos desde Outubro de 2020 e o arguido BB desde que foi colocado em liberdade condicional (em 04-10-2021) e até ao dia 01-02-2021, não se contiveram em persistir na prática de factos integrativos do mesmo tipo de crime, assim demonstrando que aquelas condenações não foram suficientes para os demover da actividade de venda a terceiros de substâncias estupefacientes.

Mais se provou que:

30. [facto relativo ao coarguido]

31. Após audição de 6 testemunhas de acusação, os arguidos, que já haviam admitido parcialmente os factos, confessaram integralmente e sem reservas os factos descritos na acusação.

32. Os arguidos verbalizaram arrependimento.

33. A arguida AA:

a) Nasceu no dia ...-...-1971;

b) O processo de socialização de AA, que é a mais velha de 7 irmãos, dois entretanto falecidos, decorreu no contexto do seu agregado familiar de origem, de etnia cigana, e a partir dos seus 12 anos de idade inteiramente a cargo da progenitora em virtude do falecimento do progenitor.

c) Em consequência do falecimento deste, e da desvalorização atribuída no contexto familiar e cultural em que se desenvolveu, Bairro ..., onde ainda hoje vive, abandonou o sistema de ensino sem concluir qualquer grau de ensino, não ultrapassando o 1º ano de escolaridade, sendo de registar que devido a limitações no plano auditivo, de que diz ter sempre padecido, é desde há vários anos pensionista por invalidez.

d) Deste modo, partir dos 12 anos até aos 16 anos de idade, permaneceu dedicada às lides domésticas, altura em que estabeleceu a relação marital que ainda hoje preserva com BB, co-arguido nos autos, e alcançou a autonomia face ao agregado de origem.

e) A dinâmica do núcleo familiar que constituiu, sendo que têm 3 filhos já adultos, tem sido condicionada pela disfuncionalidade e conflituosidade, fruto do comportamento aditivo do companheiro, pese embora algumas tentativas de tratamento que aquele efectuou, sem sucesso, e pela sua presença intermitente no seio do agregado em consequência das várias penas de prisão que já cumpriu, por tráfico de estupefacientes.

f) À data da reclusão, AA mantinha residência na morada habitual, que corresponde à indicada nos autos, com o arguido BB e o filho XX.

g) A filha YY encontra-se actualmente recluída no EP....

h) O agregado reside num apartamento de tipologia T2, situado em bairro social conotado com problemáticas sociais graves, associadas à pobreza, marginalidade, toxicodependência e desemprego, onde vivem outros núcleos familiares de etnia cigana, muitos deles com relação de parentesco.

i) O relacionamento conjugal de AA com BB, actualmente detido no EP de ..., apresentava, por vezes, uma dinâmica conflituosa e disfuncional, originada pela manutenção da toxicodependência por parte daquele.

j) A arguida auferia uma pensão de invalidez de 250€ mensais, apresentando o agregado uma situação económica globalmente carenciada.

k) Esta já terá beneficiado da mesma prestação do Rendimento Social de Inserção Social, suspensa mais tarde por incumprimento do plano de inserção, o qual contemplava a obrigação dos filhos frequentarem o sistema de ensino.

l) No meio de residência, o conjunto do grupo familiar da arguida é conotado com a ausência de hábitos de trabalho, propensão para a conflitualidade, dependência de prestações sociais e adopção de um estilo de vida marginal, considerando que vários dos seus membros já conheceram ou conhecem presentemente confrontos o sistema da justiça penal.

m) Quer em meio prisional quer quando em liberdade, a arguida beneficia do apoio dos familiares mais próximos, sendo de relevar o espírito de solidariedade e entreajuda.

n) AA encontra-se recluída no Estabelecimento Prisional ..., desde 02-02-2022

o) A arguida apresenta-se autocentrada nos constrangimentos pessoais e familiares decorrentes da privação de liberdade, com lacunas ao nível da capacidade de reflexão sobre os danos para terceiros.

p) Expressa o desejo de rápida clarificação da sua situação jurídica de modo a poder encarar com estabilidade o seu futuro a curto e médio prazo.

q) As relações de proximidade e os laços afectivos às pessoas significativas têm sido mantidos por um regime regular de visitas familiares, não se antevendo que da reclusão, por ora, tenha resultado uma fragilização desses vínculos.

r) No EP... mantém ocupação laboral nas caixas. Apresenta comportamento isento de reparos, sem qualquer sanção disciplinar.

s) Tem as seguintes condenações criminais registadas:

- No processo n.º 106/06.2... da Vara de Competência Mista de ..., por Acórdão de 26-07-2007, transitado em julgado em 10-12-2007, pela prática a 26-02-2006 de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. A referida pena foi declarada extinta por despacho de 28-01-2013, já transitado em julgado.

- No processo n.º 26/14.7... do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 1, por Acórdão de 21-09-2015, transitado em julgado em 07-03-2016, pela prática entre 14-07-2014 e 04-02-2015, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22-01, na pena de 5 anos de prisão. Por despacho de 18-11-2020, foi declarada cumprida e extinta, com efeitos reportados a 17-02-2020, a pena de prisão aplicada a AA.

34. [Facto relativos ao coarguido]».

8. A decisão em matéria de direito encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

8.1. Quanto à qualificação jurídica dos factos:

Quanto à qualificação jurídica dos factos, concluiu o tribunal a quo que se mostra preenchido o tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, dizendo (transcrição dos extratos diretamente relevantes):

«Os arguidos encontram-se acusados da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22/01 (D.L. esse que tem sofrido sucessivas alterações, a última das quais através do D.L. n.º 25/2021, de 11-05).

Os arguidos vêm acusados da prática do predito crime a título de reincidência, nos termos do artigo 75.º, n.ºs 1 e 2 do C.P..

[…].

Dispõe o preceito legal do art.º 21.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, que [transcrição].

[…]

O conceito legal de tráfico admite, como logo resulta do teor da norma incriminadora citada, toda uma série de actividades, entre as quais constam, o cultivo, a produção, o fabrico, a extracção, a preparação, a oferta, a colocação para venda, a venda, a distribuição, a compra, a cedência ou, por qualquer título, o recebimento, o proporcionar a outrem, o transporte, a importação, a exportação, o fazer transitar ou, simplesmente, a detenção ilícita de substâncias ou preparados já enunciados, sem a legal autorização.

Para a consumação da infracção, com a excepção da exclusão existente na parte final do citado n.º 1, do art.º 21.º, não releva o destino efectivo ou a intenção lucrativa, antes relevando a quantidade total do produto estupefaciente, ainda, por exemplo, que a comercialização se consubstancie em maiores ou menores proporções.

O crime de tráfico pela sua própria natureza e pela sua descrição típica tem subjacente uma certa duração no tempo com reiteração de condutas.

Assim, a prática sucessiva de mais de uma das acções criminais pelo mesmo agente, não constitui pluralidade de crimes mas crime único (progressivo), sendo o tipo de acção múltipla, pelo que o agente que praticou mais de uma das acções referidas comete apenas uma violação legal, pois no delito de acção múltipla ou conteúdo variável, as diversas condutas contempladas são fases do mesmo crime, protraindo-se a consumação de acordo com a vontade do sujeito activo.

[...

O crime fundamental do art. 21.º está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico.

O elemento subjectivo traduz-se na vontade livremente dirigida a qualquer das referidas acções, sabendo o agente que procede sem autorização de quem de direito ou em discordância com determinação legal ou regulamentar.

Importa ainda considerar o estatuído no artigo 25.º do D.L. 15/93, de 22/01.

Tem sido entendimento pacífico que o artigo 21.º do redito diploma legal define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, no qual se punem diversas actividades ilícitas, cada uma delas com virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo deste crime; e no artigo 25º é definido um tipo privilegiado em relação ao tipo fundamental daquele artigo 21º. A subsunção do facto no artigo 25º exige que a sua ilicitude se mostre consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a quantidade ou a qualidade das substâncias, plantas ou preparações.

A tudo isto acresce que a conclusão sobre o elemento típico da considerável diminuição da ilicitude terá de resultar de uma valoração global do facto, tomando em consideração as circunstâncias que o artigo 25.º enumera, a título meramente exemplificativo, mas também a outras que, atendíveis na referida globalidade, sejam significativas para a conclusão sobre a existência ou não da sobredita considerável diminuição da ilicitude.

[…]

Num esforço de concretização dos exemplos padrão constantes no artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem realçado que na caracterização da imagem global do facto se devem considerar circunstâncias tão distintas quanto a forma concreta de execução (isolada, ou com recurso a intermediários), o número de consumidores contactados, o período de duração temporal da actividade, a perigosidade e quantidade das substâncias detidas e disseminadas, a sofisticação ou complexidade dos meios utilizados, os valores dos proventos obtidos ou expectáveis, a afectação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas (…) e a extensão da área geográfica em que se exerce a actividade [Entre muitos outros, os Acórdãos de 18-02-2016, proc. 26/14.7PEBRG.S1, Souto de Moura e de 07-06-2017, proc. 15/16.7GTABF.E1.S1, Maia Costa, acessíveis in www.dgsi.pt e de 05-12-2019, proc. 2/18.0PEFAR.S1, Helena Moniz, www.colectâneajurisprudência.com,ref. 9643/2019).])”.

Na senda da densificação doutrinal e jurisprudencial o Ac. do S.T.J. de 13-03-2019 in www.dgsi.pt., proc. n.º 227/17.6PALGS.S1, sublinhou que assumem particular relevo na identificação de uma situação de menor gravidade:

- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;

- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;

- a dimensão dos lucros obtidos;

- o grau de adesão a essa actividade como modo e sustento de vida;

- a afectação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal drogas;

- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da actividade desenvolvida;

- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;

- o número de consumidores contactados;

- a extensão geográfica da actividade do agente;

- O modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticando isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.

Assim definido, ainda que muito ao de leve, o regime legal relevante, cumprirá agora averiguar se efectivamente se poderá afirmar terem os arguidos cometido o crime de tráfico de droga consagrado na hipótese normativa do artigo 21.º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22/01.

No caso vertente, provou-se que:

- Pelo menos desde Outubro de 2020 até ao dia 01-02-2022 a arguida AA dedicou-se à venda a terceiros, mediante contrapartida monetária ou outra, de heroína e cocaína;

- A partir de Outubro de 2021 a arguida AA passou a contar com a colaboração do arguido BB, actuando então em comunhão de esforços e de vontades com o mesmo;

- Os arguidos prosseguiram essa actividade a partir do Bairro Social ..., em ..., onde residem várias famílias que, num plano previamente elaborado, se dedicam à actividade de tráfico de estupefacientes, alternadamente e com uma periodicidade estabelecida;

- A arguida AA efectuava a venda dos produtos estupefacientes aos consumidores a partir da janela das traseiras da sua habitação, sita no Bairro Social ..., R/C Esquerdo, ...;

- A partir de Outubro de 2021, altura em que saiu do estabelecimento Prisional de ..., após cumprir pena de prisão, o arguido BB, companheiro da arguida passou a auxiliá-la na actividade de tráfico de estupefacientes;

- O arguido BB, para além de proceder á venda directa de cocaína e heroína aos consumidores, estava incumbido de se deslocar ao Bairro da..., no ..., para adquirir produtos estupefacientes.

- No período elencado a partir da janela traseira da habitação, os arguidos venderam cocaína (a € 10 cada pedra) e heroína (a € 5 cada embalagem) entre muitos outros, nas datas e às pessoas elencadas no ponto 11. da matéria de facto dada como assente;

- O arguido BB adquiriu produtos estupefacientes e detinha o produto estupefaciente descrito em 12. a 16., sendo que os arguidos detinham ainda produto estupefaciente, na sua residência, no dia 01-02-2022.

Assim, considerando, especialmente;

- O facto de os arguidos se dedicarem à venda de heroína e cocaína, drogas comummente apelidadas de “drogas duras”.

- O algo considerável tempo de duração de actividade da arguida AA (entre Outubro de 2020 e 01 de Fevereiro de 2022) […];

- A intensidade no prosseguimento da actividade desenvolvida (traduzida nas vendas de heroína e cocaína entre os meses de Outubro de 2020 e 1 de Fevereiro de 2022, quanto à arguida AA e 04 de Outubro de 2021 até 1 de Fevereiro de 2020, quanto ao arguido BB e, dentro destas, as que especificamente foram dadas como provadas sob o n.º 11 dos factos provados);

- O modo de execução do crime, tal como resulta dos factos provados (as vendas de produto estupefaciente ocorreram a partir das traseiras da residência dos arguidos; a detenção do produto estupefaciente por parte do arguido BB nos termos identificados em 12. a 14. da matéria de facto dada como provada), salientando-se a existência, a partir de Outubro de 2021, de uma organização dos arguidos em causa (2), os quais passaram então a actuar em conjugação de esforços e intentos.

- A significativa quantidade dos estupefacientes comercializados e/ou detidos (da matéria de facto dada como provada ressalta, por exemplo, que chegaram a ser vendidas, duma só vez, oito embalagens de heroína com o peso bruto aproximado de 1,70 gramas. Foram também vendidas, numa só vez, quatro embalagens de heroína e duas pedras de cocaína];

A detenção, por parte do arguido BB, nas datas assinaladas em 12 a 15. dos factos dados como assentes, das quantidades de produtos estupefacientes ali identificadas).

- A ainda mediana dimensão dos lucros obtidos (o que se alcança a partir da análise do preço com que era vendido o produto estupefaciente, o tempo de duração da actividade delituosa e á quantidade de estupefaciente vendido ou meramente detido);

- O facto de os arguidos viverem sobretudo da actividade de tráfico que desenvolviam;

- O já algo considerável número de consumidores a quem foi vendido produto estupefaciente (cfr. especialmente matéria de facto dada como provada sob o n.º 11).

Conclui-se, assim, que (apesar de se ter dado como provado que o arguido BB ser consumidor de estupefacientes e guardar uma pequena parte do produto estupefaciente que detinha para seu consumo) nos encontramos perante uma actividade com significado relevante, traduzido em tráfico de média dimensão, o que dimana sobremaneira da qualidade e quantidade das plantas, substâncias e preparações que lhes foram apreendidas, das que foram vendidas nos termos descritos em 11. e das demais circunstâncias descritas nos factos provados.

Verifica-se, assim, uma ilicitude com a densidade pressuposta no tipo matricial do artigo 21.º, n.º 1, não se verificando uma significativa diminuição da ilicitude que justifique a punição dos arguidos pelo crime privilegiado do artigo 25.º.

Ademais, os arguidos – mostra-se provado – actuaram com dolo directo (conhecimento e vontade – art. 14º, n.º 1, do CP) – preenchendo, assim, o tipo subjectivo do ilícito.

Nestes termos, mostra-se preenchido o tipo objectivo e subjectivo do ilícito criminal de tráfico de substâncias estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, n.º 1, do DL. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, pelo que serão os arguidos condenados pela sua prática.

Assim, em suma;

a) A arguida AA cometeu em autoria material (entre Outubro de 2020 até 04 de Outubro de 2021) e em co-autoria material (a partir de 4 de Outubro de 2021 até 01-02-2022) um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22-01;

b) O arguido BB cometeu, em co-autoria material, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22-01.»

8.2. Quanto à determinação da pena, incluindo a reincidência:

A determinação da pena («consequências jurídicas do crime») assenta na seguinte fundamentação:

«Qualificados os factos, cumpre agora proceder à determinação da natureza e medida da pena a aplicar.

Aqui, deverá considerar-se que o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22/01 é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos;

Observe-se, agora, que aos arguidos vem imputada a prática do crime matricial de tráfico de droga, a titulo de reincidência.

A propósito da reincidência prescreve o artigo 75.º, n.º 1 do CP que é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deve ser punido com pena de prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

Acrescenta o n.º 2 do falado preceito que o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não revela para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança, privativas de liberdade.

Os pressupostos formais da reincidência são a prática de crimes reiterados dolosos, a condenação em penas de prisão efectiva por ambos os crimes, o trânsito em julgado da condenação prévia e o não decurso de mais de 5 anos entre a prática do crime anterior e a prática do novo crime. O requisito do não decurso de mais de 5 anos entre a prática do crime anterior e a do novo crime supõe a liberdade do agente nesse período, pelo que o prazo se suspende quando o agente se encontre privado da liberdade. Nem todos os crimes relevantes para a reincidência devem ter ocorrido dentro dos cinco anos que antecedem o último crime, bastando que entre cada um dos crimes relevante e o ultimo crime se verifique um intervalo não superior a 5 anos (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do C.P. à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª ed., Univ. Católica, pp. 279 e 280).

No caso dos autos, verifica-se que:

- Por decisão transitada em julgado em 07-03-2016, proferida no processo n.º 26/14.7..., por factos ocorridos entre 14-07-2014 e 4-02-2015, foi a arguida AA condenada, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos de prisão;

- Em 19-06-2019, a arguida AA foi colocada em liberdade condicional, tendo a pena sido declarada cumprida e extinta por despacho datado de 18-11-2020, com efeitos reportados a 17-02-2020;

- [factos relativos ao coarguido]

- As condenações anteriores por si sofridas não constituíram advertência suficiente nem determinaram os arguidos a assumir, a partir de então, um comportamento conforme com a norma;

- Não se encontram decorridos mais de 5 anos desde a prática de cada um dos crimes dolosos, supra identificados, pelos quais foram condenados e o que agora lhes é imputado, descontando o tempo em que estiveram presos e submetidos a medida privativa da liberdade;

- A arguida AA, pelo menos desde Outubro de 2020 e o arguido BB desde que foi colocado em liberdade condicional (em 04-10-2021) e até ao dia 01-02-2021, não se contiveram em persistir na prática de factos integrativos do mesmo tipo de crime, assim demonstrando que aquelas condenações não foram suficientes para os demover da actividade de venda a terceiros de substâncias estupefacientes;

- O crime de tráfico de estupefacientes no âmbito do qual sofreram os referidos arguidos a primeira condenação e o crime de tráfico de estupefacientes destes autos são, como resulta do já supra exposto, crimes dolosos.

A este propósito, refira-se que, como foi sumariado no Ac. do S.T.J. de 18-02-2016, in www.dgsi.pt., proc. n.º 35/14.6GAAMT, “Se o arguido foi condenado anteriormente por crimes do mesmo tipo e volta a delinquir pela mesma prática é liminar a inferência de que lhe foi indiferente o sinal transmitido, não o inibindo de renovar o seu propósito de delinquir. Se em relação a uma criminalidade heterogénea ainda se pode afirmar a possibilidade de uma descontinuidade, ou fragmentação do sinal consubstanciado na decisão anterior, pois que o contexto em que foi produzida pode ser substancialmente distinto, provocando a falência das premissas para o funcionamento da presunção, não se vislumbra onde é que a mesma afirmação se possa produzir perante crimes do mesmo tipo. Pelo que, não existem dúvidas de que no caso se verifica a reincidência como qualificativa da pena a aplicar aos arguidos”.

No caso dos autos, verifica-se uma reincidência homótropa (isto é, os crimes reiterados são da mesma natureza – tráfico de droga), pelo que é imediato o juízo de que a anterior condenação em pena de prisão pela prática desse crime não foi motivação suficiente para que os arguidos não os cometessem no futuro, não resultando dos autos circunstâncias concretas que permitam excluir tal juízo.

- Por último, nestes autos, em face da matéria de facto dada como provada sempre seria aplicável aos identificados arguidos AA e […] pena de prisão efectiva superior a 6 meses.

Estão, assim, verificados todos os pressupostos de que depende a condenação dos arguidos AA e […] a título de reincidência.

Assim, em aplicação do disposto no artigo 76.º, n.º 1 do C.P., verifica-se que o limite mínimo da pena de prisão a aplicar aos referidos arguidos é, no caso, de 5 anos e 4 meses (4x12=48; 48:3=16; 48+16=64 meses ou 5 anos e 4 meses) sendo que o limite máximo corresponde a 12 anos.

Dentro destes limites haverá, portanto, de elaborar a dosimetria atendendo à regra do art. 71.º do C.P., valorando: a culpa do agente, a concorrência de circunstâncias agravantes ou atenuantes estranhas à tipicidade e a satisfação das exigências preventivas (geral e especial).

Observe-se, desde logo, que são muito elevadas as necessidades de prevenção geral que neste tipo de infracção se impõem, considerando, por um lado, as proporções epidemiológicas que o consumo de substâncias estupefacientes assume na nossa sociedade e com tão gravosos efeitos no tecido social quer pela degradação da juventude, bem como da própria célula familiar, envolvendo ainda atentado e risco grave para a saúde pública e para a sociedade, severamente afectadas por esse consumo e, consequentemente, pelo tráfico que o gera, determina e amplia; por outro, a crescente frequência da prática destes crimes nesta Comarca de Braga, o que urge modificar; por fim, os efeitos perversos das drogas, tendo-se presente, neste campo, as numerosas mortes que provoca e o lançamento de muitos jovens no mundo da marginalidade, roubo e violência.

Em segundo lugar, relativamente aos arguidos deverá ponderar-se o seguinte circunstancialismo

a) Contra os arguidos:

- O dolo é directo e intenso;

- O grau da ilicitude do facto é médio, considerando-se a natureza e quantidades das substâncias estupefacientes adquiridas, detidas e vendidas e o modo de execução do crime.

- O facto de os arguidos já terem antecedentes criminais (descurando-se aqui a condenação anterior no âmbito do processo n.º 26/14.7... pelo crime de tráfico de droga, que já foi valorada em desfavor dos arguidos como pressuposto da condenação por reincidência) por crimes graves. Em especial, valora-se contra a arguida AA o facto de ter antecedentes criminais pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada. […]

Estas circunstâncias fazem concluir que são elevadíssimas, quanto aos arguidos e no caso, as exigências de prevenção especial positiva e negativa, o que não poderá deixar de se atender na medida das suas penas.

[…]

- O facto de nenhum dos arguidos, aquando em liberdade, desenvolverem actividade profissional ou ocupacional lícita;

- O facto de a arguida se apresentar autocentrada nos constrangimentos pessoais e familiares decorrentes da privação da liberdade, evidenciando lacunas ao nível da capacidade de reflexão sobre danos para terceiros decorrentes da prática do crime de tráfico de droga;

[…]

b) A favor dos arguidos;

- O facto de terem confessado integralmente e sem reservas os factos descritos na acusação (sendo certo que os efeitos dessa confissão, no caso, se encontram algo mitigados pela prova que até ao momento da admissão integral dos factos por parte dos arguidos foi produzida);

- O facto de os arguidos terem verbalizado arrependimento;

- O facto de os arguidos contarem com o apoio dos familiares mais próximos, sendo de revelar o espírito de solidariedade e entreajuda.

- A circunstância de não se antever que da reclusão sofrida pelos arguidos resulte uma fragilização dos vínculos de afectividade, recebendo os arguidos visitas da família;

- O terem mantido em meio prisional comportamento adequado às normas institucionais.

[…]

Destarte, quanto aos arguidos AA e […], atendendo aos citados vectores, tudo ponderado, considerando os limites abstractos da pena de prisão acima identificados, fazendo apelo a critérios de justiça, adequada proporcionalidade entre a gravidade do crime e a culpa dos arguidos, concomitantemente com a ideia de uma certa intimidação e dissuasão ou de pura prevenção geral negativa, reputamos como adequada a imposição:

- À arguida AA: A pena de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão.

- […]

No caso, atendendo à duração das penas de prisão que foram aplicadas aos arguidos no processo n.º 26/14.7..., logo se verifica que a agravação da pena que, nestes autos, resultou da reincidência para cada um dos arguidos não ultrapassa a medida da pena aplicada naquela condenação anterior, pelo que se encontra respeitado o limite da agravação previsto no artigo 76.º, n.º 2 – 2.ª parte - do C.P.».

Objeto e âmbito do recurso

9. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou ao recorrente uma pena de prisão superior a 5 anos.

Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocados vícios ou nulidades que podem constituir fundamento do recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. c), na redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro].

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, define-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

10. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, as questões colocadas à apreciação e decisão deste tribunal dizem respeito:

(1) À qualificação jurídica dos factos provados, que a recorrente considera preencheram o tipo de crime de tráfico de menor gravidade (artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93) e não o de crime de tráfico p. e p. pelo artigo 21.º do mesmo diploma – conclusões 1 a 12;

(2) À medida da pena, que a arguida pretende ver reduzida para 5 anos e 8 meses de prisão – conclusão 13.

Quanto à qualificação jurídica dos factos

11. Dispõe o artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro:

«Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».

Por sua vez, estabelece o artigo 25.º («tráfico de menor gravidade»), al. a), do mesmo diploma:

«Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; […]».

As substâncias em causa – heroína e cocaína – incluem-se nas tabelas I-A e I-B anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93.

12. O artigo 25.º remete para a previsão típica do artigo 21.º, com adição de elementos respeitantes à ilicitude – que não à culpa –, que atenuam a pena.

Conforme se observou no recente acórdão de 11.10.2023, Proc. n.º 10/21.4GALLE.S1, seguindo o decidido em acórdãos anteriores (por todos, o acórdão de 19.01.2022, proferido no Proc. n.º 8/19.2PEFAR.S1, em www.dgsi.pt, que, nesta parte, se transcreve e segue muito de perto), a atenuação não resulta de um concreto elemento típico que acresça à descrição do tipo fundamental (artigo 21.º), mas sim da verificação de uma diminuição considerável da ilicitude, em função de circunstâncias referidas exemplificativamente – «os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade e a quantidade das substâncias».

Como tem sido sublinhado (assim, designadamente, o acórdão de 2.10.2014, Proc. 45/12.8SWSLB.S1, em www.dgsi.pt), o tipo de crime de tráfico de estupefacientes (artigo 21.º) “é um crime de perigo abstracto, protector de diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, mas em que o bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública”, que se realiza com a colocação em perigo do bem jurídico protegido. “O bem jurídico primordialmente protegido pelas previsões do tráfico é o da saúde e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade, mais sinteticamente a saúde pública. (…) Em segundo lugar, estará em causa a protecção da economia do Estado, que pode ser completamente desvirtuada nas suas regras (…) com a existência desta economia paralela ou subterrânea erigida pelos traficantes” (Lourenço Martins, Droga e Direito, Aequitas/Editorial Notícias, 1994, p. 122).

A previsão legal do tipo fundamental da previsão do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, contém a descrição típica do crime de tráfico de estupefacientes, de “maneira compreensiva” e de “largo espectro”. Trata-se de um tipo plural, com atividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extração ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os atos têm entre si um denominador comum, que é a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação (neste sentido, reafirmando jurisprudência constante, para além de outros mais recentes, os acórdãos de 8.9.2021, Proc. 17/19.1PESTR.E1.S1, de 23.9.2021, Proc. 29/15.4PEVNG.S1, e de 11.11.2021, Proc. 40/20.3PBRGR.S1).

A construção do crime de «tráfico de menor gravidade», surgido na sequência da revisão da “lei da droga”, de 1993, que levou ao desaparecimento do anterior crime de “tráfico de quantidades diminutas” (cfr. Proposta de Lei n.º 32/VI, que deu origem à Lei n.º 27/92, de 31 de Agosto, que concedeu ao Governo a autorização legislativa necessária à aprovação do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sequência da ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, Viena, 1988), assenta na técnica do uso de uma cláusula geral, expressa no conceito de «ilicitude consideravelmente diminuída», com recurso a circunstâncias exemplificativas relativas aos elementos da ilicitude da ação.

A disposição do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 é usada pelo legislador “como uma espécie de válvula de segurança do sistema em ordem a evitar que situações efetivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas, no propósito de uma maior maleabilidade na escolha da medida da reação criminal”, estando a sua aplicação “de certo modo parametrizada mediante a verificação das circunstâncias aí indicadas a título exemplificativo, o que aponta para a necessidade de uma valorização dos factos imputados ao arguido e provados, não podendo deixar de se ter em conta todos os tópicos a que o preceito se refere, aditados de outros, se os houver”, salienta-se no acórdão deste Tribunal de 2.6.1999 (proc. n.º 269/99).

A jurisprudência deste Tribunal tem afirmado a necessidade de uma “avaliação global do facto”, nas suas circunstâncias particulares, as quais, consideradas no seu conjunto, devem permitir afirmar que as quantidades de estupefacientes, nomeadamente as detidas, vendidas, distribuídas, oferecidas ou proporcionadas a outrem (atividades que se incluem na definição do tipo de crime fundamental, da previsão do artigo 21.º), são reduzidas; que a sua qualidade, aí se incluindo o potencial grau de danosidade para os bens jurídicos protegidos pela incriminação, também deverá ser reduzida; que os meios utilizados, o modo e as circunstâncias da ação deverão ser simples, não planeados, não organizados (cfr., entre outros, os acórdãos de 28-05-2015, proc. n.º 421/14.1TAVIS.S1, de 28-10-2015, proc. n.º 411/14.4PFVNG.P1.S1, de 18-02-2016, proc. n.º 35/14.6GAAMT.S1, de 25.10.2017, proc. 46/15.4PEFIG.S1, de 30.11.2017, proc. 3466/11.0TALRA.C1.S3, de 12.2.2018, proc. 394/17.9T8PTM.S1, de 18.9.2018, proc. 8/15.1GGVNG.P1.S1, de 29.4.2020, proc. 388/18.7JAFAR.S1, bem como os acórdãos de 30-04-2008, no proc. 07P4723, de 23-11-2011, no proc. 127/09.3PEFUN.S1, e de 07-12-2011, no proc. 111/10.4PESTB.E1.S1, e abundante jurisprudência neles citada, sempre insistindo na necessidade de avaliação global da conduta).

Tudo confluindo para se concluir que só nestas circunstâncias do caso concreto se poderá afirmar que a ilicitude se revela não só diminuída, mas diminuída de forma considerável, apreciável, substancial e claramente reduzida face ao desvalor das condutas que constituem elementos descritivos do tipo de crime do artigo 21.º, de modo a preencher a cláusula geral do artigo 25.º, que permite subtrair o caso à previsão daquele tipo fundamental por via da consideração daqueles fatores da ilicitude de baixa intensidade.

A propósito destes fatores, salienta-se que os “meios utilizados” hão de reportar-se à organização e à logística de que o agente lançou mão, que quanto à “modalidade ou circunstâncias da ação” será de avaliar o grau de perigosidade revelado em termos de difusão das substâncias, que, quanto à “qualidade” das substâncias, não deve esquecer-se que a organização e colocação nas tabelas segue, como princípio, o critério da sua periculosidade intrínseca e social e que, quanto à “quantidade”, importa considerar o nível dos riscos de difusão, devendo a sua ponderação ser efetuada através de uma “apreciação complexiva, finalística, isto é, dirigida à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se objetivamente a ilicitude da ação é de relevo menor que a verificada” no tipo fundamental (Lourenço Martins, loc. cit, p. 153).

13. Antecipando a conclusão, tendo em conta estes critérios, não se encontram nas circunstâncias da matéria de facto dada como provada (supra, 7) elementos que, diversamente do decidido no acórdão recorrido, numa avaliação global do facto, permitam afastar o caso do âmbito de previsão da norma incriminadora do tipo fundamental do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Na alegação da recorrente, a diminuição da ilicitude justificativa da atenuação da pena resultaria de a atividade de tráfico ocorrer “sem recurso a intermediários entre a recorrente e os destinatários finais das substâncias transaccionadas», de não terem sido «utilizados quaisquer meios especiais para essa prática», de «o produto estupefaciente transaccionado […] não [ter sido] difundido por uma área geográfica extensa», de «as vendas [serem] feitas através de uma janela da casa onde a recorrente vivia, a indivíduos que deambulavam por aquele bairro» «onde prolifera a venda de estupefacientes», de não ter ficado provado que «tivesse obtido para si ou para terceiros, com a pratica delituosa, lucros de monta», tudo a «espelha[r] uma forma arcaica, desorganizada, atabalhoada de mercadejar droga».

O que justificaria a punição pelo artigo 25.º, que não pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93.

Esta alegação, que se limita a alguns aspetos factuais incompletos e não inteiramente contextualizados, não encontra, porém, total correspondência na matéria de facto provada.

14. Com efeito, da matéria de facto provada quanto aos meios utilizados, à modalidade e às circunstâncias da ação levada a efeito pela arguida, à quantidade e qualidade das substâncias e produtos vendidos e fornecidos resulta, em síntese, que:

• A arguida por si e juntamente com o coarguido, seu companheiro, a partir da altura em que este foi libertado, continuou a atividade da sua mãe, após a detenção desta, por tráfico de estupefacientes, em outubro de 2020, na sequência de uma intervenção policial no bairro onde residiam, dedicando-se com regularidade, conforme plano previamente gizado, alternadamente e com periodicidade preestabelecida, à venda de doses individuais de cocaína e heroína a um elevado número de consumidores que, na procura de estupefacientes, se dirigiam ao bairro, os quais atendia através da janela da sua residência, no rés-do-chão do prédio em que vivia.

• De acordo com esse plano, que permitia a continuação da atividade de comercialização de heroína e cocaína no bairro, e com a ajuda do coarguido, que, incumbido pela arguida, se abastecia no Bairro da ..., no ..., onde se deslocava, a arguida procedia à venda direta aos consumidores, toxicodependentes, que se deslocavam a esse local.

• Durante 1 ano e 4 meses, sendo 1 ano com a ajuda do coarguido, vendeu, a “entre muitos outros”, 33 embalagens de heroína e 10 pedras de cocaína, no valor de 265 euros – 9 vendas em março de 2021, 2 vendas em setembro de 2021, 7 vendas em novembro de 2021 – e foram-lhe apreendidas na residência 10 embalagens de heroína e 6 pedras de cocaína, no valor de 110 euros.

15. Configura-se, assim, uma situação que evidencia uma atividade repetida, concretizada em múltiplos atos de venda concentrada em 3 meses (março, setembro e novembro de 2021), ao longo de 1 ano e 4 meses, de 6,875 gramas de cocaína e heroína, tendo a arguida, a final, na sua posse, 3.088 gramas desses produtos, vulgarmente classificadas como “drogas duras”, dado o seu elevado grau de danosidade, e 185 euros em dinheiro, proveniente dessa atividade.

Tratou-se de uma atividade organizada e prolongada no tempo, planeada e levada a efeito de acordo com outras pessoas do bairro, adequada e enquadrada pela dimensão das necessidades e escala do negócio local, uma atividade que, pela sua natureza e dimensão, dependia de outras atividades de tráfico, da aquisição dessas substâncias no mercado ilícito abastecedor, com quem a arguida se relacionava para garantir o abastecimento da sua pequena fatia de mercado.

Ou seja, surpreende-se, nestas circunstâncias, uma situação de facto que as investigações criminológicas identificam como uma normal atividade típica de tráfico, nas suas ramificações finais de distribuição e abastecimento para satisfação da procura de consumidores habituais de áreas geográficas determinadas, que a arguida, na parte que lhe competia, garantia regularmente, por si e em conjugação de esforços com outras pessoas.

A quantidade de estupefacientes (heroína e cocaína, de elevada danosidade) traficada, embora não elevada, tendo em conta o período de tempo em que ocorreu, e as circunstâncias da entrega aos seus destinatários, nos períodos acordados, como parte de uma atividade de muito maior dimensão, requeriam meios, planeamento e organização adequados, que foram efetivamente assegurados, de modo a satisfazer as necessidades e a procura do mercado local. Não pode afirmar-se, como pretende a arguida, que «tudo isto espelha uma forma arcaica, desorganizada, atabalhoada de mercadejar droga»

Assim, neste quadro que o acórdão recorrido sublinha (supra, 8.1), em concordância com o decidido e com o defendido pelo Ministério Público, impõe-se concluir que não se identificam elementos de facto que, no seu conjunto e contexto, permitam verificar correspondência com os critérios estabelecidos na alínea a) do artigo 25.º, suscetíveis de preencherem a cláusula geral de diminuição considerável da ilicitude.

Improcede, pois, o recurso, nesta parte.

Quanto à medida da pena e à reincidência

16. O crime da previsão do artigo 21.º («tráfico e outras actividades ilícitas») do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos, moldura a partir da qual há que determinar a pena concreta, de acordo com os critérios e fatores estabelecidos na Parte Geral do Código Penal (artigo 48.º daquele diploma).

Vindo o recorrente punido como reincidente, há também que levar em conta, na delimitação da moldura abstrata da pena, o disposto no artigo 76.º, n.º 1, do Código Penal, segundo o qual, em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado, não podendo a agravação exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. Fixa-se, assim, a punição da reincidência no mínimo de 5 anos e 4 meses e no máximo de 12 anos, moldura em que se deverá encontrar a pena concreta.

De acordo com o artigo 75.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece os pressupostos da reincidência, «é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime».

Há também que considerar o pressuposto formal da reincidência do n.º 2 do artigo 75.º, o qual dispõe que «o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade».

17. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que se refere às finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto) – fatores relativos à execução do facto, à personalidade do agente e à conduta do agente, anterior e posterior ao facto –, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito.

Como se tem afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva.

18. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., por todos, no sentido do que vem de se afirmar, o acórdão de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, e jurisprudência e doutrina nela citadas, em www.dgsi.pt.).

19. Considera a recorrente, em síntese, que a pena de prisão deve ser reduzida em um ano. não devendo ultrapassar 5 anos e 8 meses.

20. Na determinação da pena, o tribunal a quo, na consideração do disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, ponderou (supra, 8.2) as circunstâncias relevantes, resultantes dos factos provados, nomeadamente as condições sociais, económicas e familiares, em particular a falta de atividade ou ocupação lícitas, o comportamento anterior ao crime (antecedentes criminais), o grau de ilicitude, incluindo o período de tempo, a qualidade e qualidade dos produtos e o número de pessoas a quem foram vendidos, e a intensidade do dolo.

A favor da arguida considerou a confissão integral e sem reservas, a verbalização do arrependimento, o apoio familiar e o bom comportamento no estabelecimento prisional.

Quanto comportamento anterior, o tribunal equacionou adequadamente a questão da reincidência, que apenas ocorre na presença dos pressupostos de natureza formal e material estabelecidos no artigo 75.º do Código Penal.

21. Mostram-se verificados os pressupostos formais da reincidência exigidos pelo n.º 2 do artigo 75.º do Código Penal. Ambos os crimes são crimes dolosos, correspondem-lhes penas de prisão efetivas superiores e 6 meses, a condenação anterior já havia transitado em julgado, quando o crime destes autos foi praticado e entre a prática do crime anterior e a do crime atual não tinham decorrido mais de 5 anos, pois que o arguido se encontrou privado da liberdade, em cumprimento de pena, não podendo este período de tempo ser computado naquele prazo de 5 anos (artigo 75.º, n.º 2, do Código Penal).

Mostra-se igualmente verificado o pressuposto material da reincidência estabelecido na parte final do n.º 1 do artigo 75.º do Código Penal, revelador de “maior culpa”, o qual requer que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente deva ser censurado por a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.

Trata-se, com efeito, de crimes da mesma natureza em que não intervêm elementos de desconexão, cuja repetição, nas circunstâncias descritas, na verificação da ausência de efeitos positivos da anterior condenação, permite formar conclusão autónoma sobre a agravação da culpa, como faz o acórdão recorrido.

Tendo em conta a moldura abstrata da pena aplicável, de 5 anos e 4 meses a 12 anos de prisão, por virtude da reincidência, aplicou o tribunal a quo a pena de 6 anos e 8 meses de prisão, ou seja, uma pena que se situa numa medida próxima do limite mínimo e que respeita o critério de proporcionalidade estabelecido na parte final do n.º 1 do artigo 76.º do Código Penal, segundo o qual a agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada na condenação anterior.

22. Assim sendo, considerando o limite mínimo da pena aplicável por funcionamento da reincidência, mostrando-se ponderados os fatores relevantes por via da culpa e da prevenção, que, como considera o acórdão recorrido, revelam elevadas exigências e necessidades de prevenção geral, a considerar no limite da culpa, tendo em conta a frequência, a insegurança e a grave danosidade social resultantes da prática destes tipos de crime, bem como de prevenção especial, não se surpreendem elementos que, por não terem sido adequadamente ponderados, permitam constituir base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada, a justificar uma intervenção corretiva.

Pelo que também improcede o recurso nesta parte.

Quanto a custas

23. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP, só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

24. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida AA,, mantendo-se a decisão recorrida.

Vai a recorrente condenada em custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de novembro de 2023.

José Luís Lopes da Mota (juiz conselheiro relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (juíza conselheira adjunta)

Sénio Manuel dos Reis Alves (juiz conselheiro adjunto)