Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2624/20.0T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ASSISTÊNCIA DE TERCEIRA PESSOA
PRESTAÇÃO SUPLEMENTAR
CASO JULGADO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
Data do Acordão: 11/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :

Tendo sido proferida decisão, em sede de 1ª instância, a fixar o montante da prestação de assistência de terceira pessoa, no sentido do seu valor máximo, e não tendo o sinistrado apresentado recurso quanto a essa decisão, mas tendo o MºPº interposto recurso para o Tribunal Constitucional, que veio a julgar inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 54.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida e, em consequência, determinado que o Tribunal da Relação proferisse uma decisão em conformidade com a inconstitucionalidade declarada, o mesmo recurso aproveitou ao sinistrado, não se podendo falar de caso julgado no que toca ao referido montante.

Decisão Texto Integral:

Processo 2624/20.0T8FNC.L1.S1


Revista


118/23


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


Nos autos de acção especial emergente de acidente de trabalho em que é Sinistrado AA e responsável Generali Seguros, S.A., foi realizada tentativa de conciliação, na fase conciliatória, a qual se frustrou uma vez que o Sinistrado e a Seguradora não aceitaram o grau de incapacidade permanente fixado pelo perito médico.


A Ré- seguradora aceitou a existência e a caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, a retribuição declarada, bem como a incapacidade temporária fixada.


O Autor- sinistrado apresentou petição inicial e requereu a realização da junta médica.


A Ré requereu a realização de exame por junta médica.


Foi indeferida a petição inicial e determinada a realização da junta médica.


Realizada a junta médica, em 31.05.2023 foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:


Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de facto e de direito supra mencionados, decido:


a) Fixar ao sinistrado AA a incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de 69,245%, desde 23 de Abril de 2021;


b) Condenar, em consequência, a Generali - Companhia de Seguros, S. A. a pagar ao sinistrado a pensão anual e vitalícia no valor de 10.344,70€ (dez mil e trezentos e quarenta e quatro euros e setenta cêntimos), em prestações de 1/14, sendo pagos os subsídios de férias e de Natal, no valor de 1/14 da pensão, em Maio e Novembro;


c) Fixar ao sinistrado um subsídio por elevada incapacidade permanente no valor de 4.746,65€ (quatro mil e setecentos e quarenta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos), a cargo da Companhia de seguros;


d) Fixar ao sinistrado uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, por um período não inferior às 6 horas diárias, de 85% do valor do IAS, o qual à data da alta era de 438,81€, no valor de 372,99€ (trezentos e setenta e dois euros e noventa e nove cêntimos), desde a data da alta, em que a Ré seguradora vai condenada a pagar, mensalmente, catorze vezes por ano e actualizável, anualmente;


e) Condenar a Companhia de Seguros a assegurar ao sinistrado consultas de psiquiatria, bem como ajudas medicamentosas;


f) Condenar a Companhia de Seguros a pagar ao sinistrado a quantia de 20€ (vinte euros)”.


A Ré interpôs recurso de apelação quanto à questão da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa.


Por decisão singular de 26.09.2022, o Tribunal da Relação decidiu:


julga-se o recurso procedente e determina-se que a alínea d) do dispositivo da sentença recorrida passa a ter o seguinte teor:


d) Fixar ao sinistrado uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, por um período não inferior às 6 horas diárias, de 75% do valor do IAS, o qual à data da alta era de 438,81€, no valor de 362,02€ (trezentos e sessenta e dois euros e dois cêntimos), desde a data da alta, em que a Ré seguradora vai condenada a pagar, mensalmente, catorze vezes por ano e actualizável, anualmente;”.


O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional da decisão singular.


Por acórdão de 29.03.2023, o Tribunal Constitucional julgou procedente o recurso e decidiu:


a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 54.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida; e, em consequência;


b) determinar a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa, a fim de que este reforme a decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.”


Em 28.06.2023, o Tribunal da Relação proferiu acórdão com o seguinte dispositivo:


Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente e determina-se que a alínea d) do dispositivo da sentença recorrida passa a ter o seguinte teor:


d) Fixar ao sinistrado uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, por um período não inferior às 6 horas diárias, de 75% do valor da retribuição mínima mensal garantida a data da alta [que era de € 655,00 ], no valor de €498,75 (quatrocentos e noventa e oito Euros e setenta e cinco cêntimos), a qual é devida desde o dia seguinte à data da alta, que a Ré seguradora vai condenada a pagar, mensalmente, catorze vezes por ano, sendo anualmente, actualizável.”


A Ré veio interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:


I. Não tendo o sinistrado interposto recurso da sentença de primeira instância, que fixou a prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa no valor mensal de 372,99€, nunca a decisão proferida pela Relação poderia condenar a Ré em


quantia superior, ou seja, ser mais desfavorável à Ré, única parte que recorreu daquela decisão (cfr artigo 635º n.º 5 do CPC).


II- O princípio da proibição de reformatio in pejus está intimamente relacionado com o caso julgado, o qual merece proteção constitucional (cfr n.º 3 do art. 282.º da CRP), está relacionado com princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do art. 2.º CRP


III- Os efeitos do caso julgado devem prevalecer sobre questões de conhecimento oficioso e estão a coberto da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma norma que tenha sido aplicada na decisão transitada em julgado, a menos que esteja em causa matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido (cfr artigo 282. ºn.º 3 da CRP).


IV- A regra do n.º 3 do artigo 282º da CRP, apesar de tem em vista a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, aplica-se, também, às decisões do Tribunal Constitucional em sede de controlo concreto


V- Disto decorre, claramente, que as necessidades de assegurar a certeza e segurança jurídicas, de que é postulado destacado o caso julgado, prevalecem e devem prevalecer mesmo perante a declaração de inconstitucionalidade da norma jurídica aplicada, ou na qual se baseie decisão já transitada em julgado.


VI- Não estando em causa qualquer uma das situações previstas no n.º 3 do artigo 282.º da CRP, o caso julgado formado pela decisão de primeira instância proferida nos presentes autos, na parte não recorrida, não podia ter sido afetado pela decisão do Tribunal da Relação.


VII- Por outro lado, a decisão em apreço constitui uma decisão mais desfavorável à recorrente e extravasa o objeto do recurso que foi interposto.


VIII- A questão que constituía objeto do recurso era a de saber se, atendendo-se sempre ao valor do IAS (e não ao rendimento mensal médico garantido) a prestação por necessidade de terceira pessoa deveria ser reduzida, jamais se podendo considerar abrangida pelo objeto dessa impugnação avaliar se deveria ser ampliada para valor superior ao que o sinistrado aceitou, ao conformar-se com a decisão de primeira instância.


IX- Os efeitos do caso julgado, ou o princípio da proibição da reformatio in pejus, não sofrem qualquer limitação pelo facto de estarem em causa direitos indisponíveis, como o são os emergentes de acidente de trabalho


X- A proteção do caso julgado assume, ele próprio, interesse público e sustenta-se num princípio de ordem pública, sobre o qual não pode prevalecer o eventual interesse de não aplicar uma norma declarada inconstitucional.


XI- Do que decorre, portanto, que ainda que fosse de interesse público a não aplicação de uma norma declarada inconstitucional, deveria, mesmo assim, ter sido respeitado o caso julgado formado pela parte não impugnada da decisão de primeira instância (ou seja, a que fixou a prestação por necessidade de terceira pessoa em 372,99€), já que tanto impunham, também, iguais interesses de ordem pública, relacionados com princípios de segurança e confiança jurídica


XII- Tão pouco a decisão proferida era imposta pela regra do n.º 1 do artigo 80º da LOTC


XIII- Não cabia, ou cabe ao Tribunal Constitucional apreciar ou determinar em que medida e de que forma a declaração de inconstitucionalidade de uma norma alterará a decisão proferida pelo Tribunal a quo.


XIV- Da leitura da parte dispositiva do douto Acórdão do Tribunal Constitucional apenas se retira que o Tribunal da Relação deveria reformar a decisão em conformidade com a declaração de inconstitucionalidade da norma, mas não que disso tenha de resultar a ampliação da prestação em causa.


XV- Dito de outro modo, da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional resulta a impossibilidade de a prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa ser fixada em 362,02€ (como pretendido pela Ré e como foi decidido na decisão Singular do Exmo Senhor Desembargador Relator, de 26/09/2022), já que esse valor é inferior a 75% do rendimento mínimo mensal garantido em vigor à data da alta.


XVI- Mas, do mesmo passo, conjugando-se essa decisão com o princípio, constitucionalmente consagrado, da intangibilidade do caso julgado (atendendo às matérias em discussão – cfr art 283.º n.º 3 da CRP), o cumprimento da decisão do Tribunal Constitucional não poderia passar pela violação daquele caso julgado, que impedia a fixação da aludida prestação em mais de 372,99€


XVII- Portanto, a prestação a atribuir não poderia, no caso, ser superior a 372,99€, valor que, sendo inferior ao que resultaria da fixação da prestação por necessidade de terceira pessoa tendo por base o 75% do rendimento mínimo mensal garantido, corresponde, no caso, ao valor que, sob pena de violação de caso julgado, pode ser atribuído, por ter sido o fixado em primeira instância, sem que dele tenha recorrido o sinistrado.


XVIII- De notar que a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 80.º da LOTC no sentido de que impõe a alteração da decisão do Tribunal a quo mesmo na parte em que já esteja a coberto de caso julgado seria, na perspetiva da Ré, manifestamente inconstitucional, por violação da norma do artigo 282º n.º 3 e 205n.º 2 da CRP, que conferem proteção constitucional aos efeitos de caso julgado formado por decisão transitada em julgado.


XIX- Logo, sempre se imporia a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 80.º da LOTC no sentido de que a reforma a decisão do Tribunal a quo, decorrente de um juízo de inconstitucionalidade, apenas poderá ocorrer dentro dos limites da matéria que ainda possa ser objeto de decisão, mas já não na parte da decisão transitada em julgado.


XX- Assim, a decisão sob censura, proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, é ilegal, porque viola, frontalmente, a norma do artigo 635º n.º 5 do CPC e o caso julgado formado pela decisão de primeira instância.


XXI- Devendo, por isso, ser revogado o douto acórdão na parte em que nele se decidiu “Fixar ao sinistrado uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, por um período não inferior a 6 horas diárias, de 75% do valor da retribuição mínima mensal garantida a data da alta [que era de € no valor de € 498, 75 ( quatrocentos e noventa e oito Euros e 655,00] setenta e cinco cêntimos ), a qual é devida desde o dia seguinte à data da alta, que a Ré seguradora vai condenada a pagar, mensalmente, catorze vezes por ano, sendo , anualmente , atualizável.”


XXII- E, em sua substituição deve antes ser confirmada, sob pena de violação de caso julgado, a decisão de primeira instância, fixando-se ao sinistrado uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, por um período não inferior às 6 horas diárias, de 85% do valor do IAS, o qual à data da alta era de 438,81€, no valor de 372,99€ (trezentos e setenta e dois euros e noventa e nove cêntimos), desde a data da alta, em que a Ré seguradora vai condenada a pagar, mensalmente, catorze vezes por ano e actualizável, anualmente;


XXIII- Assim não se entendendo, sempre se impunha a anulação da decisão proferida porexcesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC.


XXIV- A única questão que era lícito ao Tribunal da Relação conhecer era a de saber se a prestação em causa deveria ser fixada em valor mensal inferior ao de 372,99€.


XXV- Não tendo o Autor recorrido da decisão de primeira instância, formou-se caso julgado na parte em que absolveu a Ré do pagamento de prestação superior à de 372,99€ mensais a título de prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa; dito de outro modo, da circunstância de o Autor não ter recorrido da sentença decorre que ficou decidido, de forma definitiva, que aquela prestação não poderia exceder o indicado valor (cfr artigo 635º n.º 5 do CPC e 282º nº 3 da CRP)


XXVI- Portanto, tendo em conta o objeto do recurso de apelação e os efeitos do caso julgado decorrentes da circunstância de o Autor não ter recorrido da sentença, a única questão que era lícito ao Tribunal da Relação conhecer era a de saber se a prestação em causa deveria ser fixada em valor mensal inferior ao de 372,99


XXVII-Consequentemente, ao fixar essa mesma prestação em 498,75€, o Tribunal conheceu de questão que não lhe era lícito conhecer, o que acarreta a nulidade desse douto Acórdão, a qual, expressamente, se invoca.


XXVIII- Pelo que deve ser anulado odouto Acórdão, ordenando-sequeoprocessoregresse ao Tribunal a quo, de forma a que seja suprida essa invalidade, com a consequente confirmação da decisão de primeira instância, fixando-se ao sinistrado uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, por um período não inferior às 6 horas diárias, de 85% do valor do IAS, o qual à data da alta era de 438,81€, no valor de 372,99€ (trezentos e setenta e dois euros e noventa e nove cêntimos), desde a data da alta, em que a Ré seguradora vai condenada a pagar, mensalmente, catorze vezes por ano e actualizável, anualmente;


XXIX- O douto Acórdão sob censura violou as normas dos artigos 621º e 635º n.º 5 do CPC e fez menos boa interpretação, ou mesmo uma interpretação inconstitucional (porque em violação da norma do n.º 3 do artigo 282º da CRP) da regra do n.º 2 do artigo 80 da LOTC.


Não foram apresentadas contra-alegações.


O Exmº PGA emitiu parecer no sentido de ser concedida a revista.


x


Temos, como única questão a decidir, a de saber se, não tendo o Sinistrado recorrido da sentença, o Tribunal da Relação podia, em cumprimento do acórdão do Tribunal Constitucional que julgou o artigo 54.º, n.º 1 da LAT inconstitucional, condenar em valor superior ao constante da sentença.


x


Como factualidade relevante temos a descrita no relatório deste acórdão.


x


- o direito:


O acórdão recorrido abordou a questão em apreço do seguinte modo:


Assim, atentando-se no dirimido pelo Tribunal Constitucional, cumpre fixar o montante da prestação em causa em 75% do valor da retribuição mínima mensal garantida em 2021 [o sinistrado teve alta em 23 de Abril de 2021


Ou seja em 498,75. 30[= €665,00 x 0,75].





Todavia, dir-se-á que apesar da supra mencionada declaração de inconstitucionalidade - que aqui se acolhe sem reservas - a verdade é que a sentença recorrida [da qual apenas a Seguradora recorreu ] nesse particular fixou ao sinistrado uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, por um período não inferior às 6 horas diárias, de 85% do valor do IAS [ o qual à data da alta era de 438,81€ ] no valor de 372.99€ (trezentos e setenta e dois euros e noventa e nove cêntimos), desde a data da alta, e condenou a seguradora a pagar-Ihe tal montante mensalmente, catorze vezes por ano, sendo o mesmo, anualmente, actualizável.





Assim, uma vez que, em rigor, o sinistrado não recorreu, sendo que apenas a Seguradora o fez dir-se-á que no segmento em causa não pode ser condenada em valor superior àquele que determinou o recurso que oportunamente apresentou.





Assim, argumentar-se-á que apesar da declarada inconstitucionalidade e suas consequências a nível do montante condenatório - sendo que tal questão sempre é do conhecimento oficioso38 - neste particular o valor então encontrado deve permanecer inalterado sob pena do recurso prejudicar a recorrente.





Delas decorre, a nosso ver, que a declaração de inconstitucionalidade em causa, suscitada obrigatória e oficiosamente pelo M°P°, acaba por afectar as posições das partes assumidas, oportunamente [expressa e implicitamente], em instância e em consequência a estabilidade e força características do caso julgado que, assim, não se chegou a concretizar.


É que a intangibilidade do caso julgado não é absoluta, comportando excepções, tal como decorre do 3 do artigo 282° da Lei Fundamental.





Ora uma das situações em que se nos afigura que isso pode suceder respeita a situações em que se encontrem em causa princípios de ordem pública (interna), tal como é o caso.





Acresce que, nos termos expressos da decisão do Tribunal Constitucional proferida nos presentes autos, foi determinado a este Tribunal da Relação que "reforme a decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade" (sic).


Assim, tendo o mesmo aresto do Tribunal Constitucional decidido "Julgar inconstitucional, por violação do artigo 59°, 1 da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 54°, 1 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, na medida em que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida", apenas resta a este Tribunal da Relação proceder em conformidade com o determinado e observar este juízo de inconstitucionalidade na sua decisão. Com efeito, o indicado Acórdão do Tribunal Constitucional proferido a nestes autos faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada, nos termos do artigo 80.°, n.° 1 da LOTC, sendo-lhe devida obediência por este Tribunal da Relação.





In casu, o montante devido a título da prestação por assistência de terceira pessoa não se mostrava definitivamente consolidado, sendo que cumpre coonestar o determinado pelo aresto do Tribunal Constitucional com o estatuído na alínea f) do 1 do artigo 59° da Lei Fundamental bem assim com o disposto no artigo 78 ° da Lei n.° 98/2009, de 4 de Setembro…





Assim, cumpre considerar que ao recorrer a Seguradora abriu a porta ao apuramento do valor devido em face da lei efectivamente aplicável, pelo que, em rigor, não nos encontramos perante uma situação de reformatio in pejus.


Aliás, segundo o Dr. Abílio Neto48, mencionado por Érica Adelina André Palhares :


« Quanto à possibilidade de admissão de exceções à proibição de reformatio in peius, (…..) a regra constante do artigo 635°, 5, do CPC consiste numa norma derrogável, sendo da opinião de que esta deve sucumbir a questões de conhecimento oficioso ou ainda àquelas que podem ser levantadas a todo o tempo.





Em suma, tal como aqui se considerou, tal norma em situações que o justifiquem admite excepções.».


Em consequência, o acórdão recorrido julgou o recurso procedente e fixou ao Sinistrado uma prestação suplementar para assistência de terceira pessoa, por um período não inferior a 6 horas diárias, de 75% do valor da retribuição mínima mensal garantida a data da alta no valor de € 498,75, devida desde o dia seguinte à data da alta, mensalmente, e catorze vezes por ano, sendo actualizável anualmente.


A Recorrente entende que:


- não tendo o Sinistrado interposto recurso da sentença de primeira instância, que fixou a prestação suplementar por necessidade de terceira pessoa no valor mensal de 372,99€, nunca a decisão proferida pela Relação poderia condenar a Ré em quantia superior, ou seja, ser mais desfavorável à Ré, única parte que recorreu daquela decisão;


- quanto a este particular aspecto, formou-se caso julgado;


- os efeitos do caso julgado, ou o princípio da proibição da reformatio in pejus, não sofrem qualquer limitação pelo facto de estarem em causa direitos indisponíveis, como o são os emergentes de acidente de trabalho.


Vejamos:


Nos temos do artigo 621º do CPC, a sentença constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que se julga, e, nos termos do artigo 620º, do mesmo CPC, a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, sobre a relação material controvertida, fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º (recurso de revisão).


A existência da especial força do caso julgado visa exactamente “garantir aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou de segurança jurídica indispensável à vida de relação. A finalidade do processo não se esgota, com efeito, na definição concreta do direito, de acordo com os padrões substanciais definidos nas normas jurídicas. Abrange também a segurança e a paz social, essenciais à vida de toda a sociedade civil. Antunes Varela – Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 702 e ss. -


Esclarece o mesmo Autor que o caso julgado “visa evitar, não a mera colisão teórica de decisões mas a contradição prática dos julgados, ou seja, a existência de decisões concretamente incompatíveis”.


Como refere Teixeira de Sousa “a excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...)” (O objecto da sentença e o caso julgado material, BMJ 325, pág.171 e segs.).


Consequência prática do efeito do caso julgado, tendo em vista conferir certeza e estabilidade às decisões judiciais, é impedir que um tribunal superior se pronuncie novamente sobre a mesma questão.


Em consonância com essa protecção do caso julgado, temos o disposto no art. 635.º, n.º 5, do CPC:


5 - Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.


Como referem JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES, in Código de Processo Civil Anotado, Vol 3.º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33, em comentário ao art. 684.º, n.º 4, actual art. 635,º n.º 5, do CPC:


“5. O n.° 4 estabelece o princípio da proibição de reformatio in pejus. A parte não recorrida de uma decisão transitada em julgado e os efeitos do julgado não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação processo; a decisão do tribunal de recurso não pode, assim, ser mais desfavorável ao recorrente que a decisão recorrida.».


Independentemente de se considerar se o princípio da proibição da reformatio in pejus é, ou não, exclusivo do direito (processual) penal, tendo um alcance preciso e específico, não há dúvidas que nesse art. 635º, nº 5, do CPC, se consagra um imperativo de salvaguarda do caso julgado.


Como se refere no Parecer do Exmº PGA, traduz-se, no fundo, na proibição de uma decisão de recurso agravar posição do recorrente, tornando-a mais prejudicial do que se seria se não tivesse recorrido; por outras palavras, não pode ser reformada para pior.


Como é lógico e natural, essa salvaguarda do caso julgado aplica-se a parte de decisões, na medida em que uma das partes não recorra de um determinado segmento decisório, ou seja, na parte não impugnada.


E será que tal salvaguarda abrange também as questões de conhecimento oficioso ou aquelas que podem ser levantadas a todo o tempo?


Já lá iremos, sendo que há outra condicionante que, a montante e a nosso ver, resolve a questão, no sentido de se não poder falar de caso julgado em relação ao montante da prestação de assistência de terceira pessoa fixado na sentença de 1.º instância, no sentido do seu valor máximo, mesmo não tendo o Sinistrado apresentado recurso quanto a essa decisão.


É que há quer ter em conta o disposto no artº 74º, nºs 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua versão actualizada):

1 - O recurso interposto pelo Ministério Público aproveita a todos os que tiverem legitimidade para recorrer.

2 - O recurso interposto por um interessado nos casos previstos nas alíneas a), c), d), e), g), h) e i) do n.º 1 do artigo 70.º aproveita aos restantes interessados.

Por sua vez, no artº 80º, nº 1, do mesmo diploma estabelece-se:


1 - A decisão do recurso faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade suscitada.


Quer isto dizer, que tendo sido interposto nos presentes autos, pelo MºPº, para o Tribunal Constitucional, recurso da decisão singular da Relação, o mesmo aproveitou ao Sinistrado, não se podendo falar de caso julgado no que toca ao montante da prestação de assistência de terceira pessoa fixado na sentença de 1.ª instância.


E, assim, tendo o Tribunal Constitucional julgado “inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 54.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida; e, em consequência” determinado que o Tribunal da Relação proferisse uma decisão em conformidade com a inconstitucionalidade declarada, mais não fez este Tribunal do que dar cumprimento a tal decisão.


E mesmo que não tivesse ocorrido tal declaração de inconstitucionalidade, não podemos deixar de concordar com o decido no Ac. do STJ de 19/12/2018, proc. 620/16.1T8LMG.C1.S1, que tratou de um caso similar, em termos de consideração de caso julgado, em relação ao presente.


Aí a primeira instância considerou que o acidente ocorreu por culpa da entidade empregadora, mas não fixou a indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte, agravadas, de acordo com o estabelecido no artº 18º da LAT.


Após considerar que o “direito do trabalhador, vítima de acidente de trabalho e, por inerência, dos respectivos beneficiários no caso em que daquele resultou a morte, à justa reparação, tem assento no artº 59º, nº 1, al. f) da Constituição da República Portuguesa, constituindo os créditos provenientes do direito à reparação fixados na LAT direitos indisponíveis e o respetivo valor é de conhecimento oficioso” decidiu-se que não se formou caso julgado relativamente ao valor da indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte, pese embora apenas a entidade empregadora tenha recorrido, devendo “a Relação, oficiosamente, fixar a indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte de acordo com as normas legais e os factos provados, nos termos dos arts. 74º, do CPT, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, ambos do CPC, estes “ex vi” do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT”. “Como se trata de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso, devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente dos valores peticionados.


Assim, e à laia de conclusão, no caso em apreço não existe caso julgado em relação ao montante da prestação de assistência de terceira pessoa fixado na sentença de 1.º instância, no sentido do seu valor máximo, mesmo não tendo o Sinistrado apresentado recurso quanto a essa decisão, não tendo, em tal parte, a sentença transitado em julgado.


Improcede, assim, o recurso, embora por fundamentação não totalmente coincidente com a adoptada no acórdão recorrido.


x


Decisão:


Nos termos expostos, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 03/11/2023


Ramalho Pinto (Relator)


Júlio Gomes


Domingos Morais





Sumário (da responsabilidade do Relator).