Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15/22.8TRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO PENAL
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I. A cláusula geral de inadmissibilidade legal da instrução, além dos casos formais e adjetivos que aí indiscutivelmente entram, abrange, por via de uma interpretação material do conceito, aqueles casos que a estrutura acusatória do processo penal desde logo exclui.

II. É bom exemplo disso aquele caso em que o RAI se mostra inepto, inidóneo, imprestável para cumprimento da função processual que lhe está destinada. Como será o caso de não narrar todos os factos que sustentem os elementos típicos do crime e pretender a sindicância da decisão do MºPº de arquivamento.

III. Igualmente abrangerá aqueles casos em que se pede ao Juiz de Instrução aquilo que, por lhe não cometido funcionalmente, por exemplo, um suplemento investigatório, o JI não pode dar.

IV. Mas, se cumprir essa obrigação de narrativa e se se contiver dentro de pedido útil e funcionalmente adequado, não pode o despacho de rejeição do RAI, transmutando-se em prematuro despacho de não pronúncia, dedicar-se a precoce apreciação dos indícios, esquecendo-se de avaliar, antes, da capacidade de o RAI determinar a abertura ou rejeição da fase instrutória.

V. Primo, defere-se ou rejeita-se o RAI, secundo, pronuncia-se ou não o arguido. Por esta ordem, em despachos finalisticamente diferentes e em tempos cronológicos e processuais distintos. Só depois de admitido o RAI é que sobrevem a apreciação de mérito. A questão de mérito, acerto ou desacerto da posição do MºPº na valoração dos indícios, constituirá o cerne do objecto da instrução, na amplitude determinada pelo JI, e especificamente do (imprescindível) debate instrutório, se só este se realizar.

VI. O despacho de abertura ou rejeição da instrução só visa decidir da existência ou não da subsequente fase processual.

VII. No despacho de abertura ou de rejeição da instrução não cabe a exaustiva análise e valoração de indícios, como no caso se fez, para, concluindo pela inexistência de indícios, se reiterar o arquivamento do inquérito e, por aí, “por manifesta inviabilidade de os factos constituírem crime”, se rejeitar o RAI. A aceitar-se que o despacho de rejeição do RAI tenha tal abrangência (i) estar-se-á a antecipar o despacho de não pronúncia, (ii) acaba a confundir-se esse despacho com o despacho de rejeição do RAI, (iii) com o que se descarta o despacho a que se refere o artigo 287º, nº 3, do CPP, (iv) antecipando o julgamento de mérito, (v) criando, extra legem, uma nova causa de rejeição do RAI, a inexistência de indícios da prática de crime, e (vi) elimina-se contra legem uma fase processual, a instrutória.

VIII. Se há uma narrativa completa dos factos compatíveis com uma acusação e se se afigurar que outra, em termos de prefiguração de solução possível e plausível na valoração dos indícios, em eventual útil vindouro apport instrutório, pode ser a opinião do Juiz de Instrução, deve aceitar-se a realização da instrução.

IX. E, no caso, assim se procederá ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar; repete-se da decisão de arquivamento sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento, não da forma de investigação, em termos de completude, suficiência ou bem fundado da realização das diligências.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 3ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça,

I. RELATÓRIO

I.1.AA, assistente nos autos, em 03/12/2019, por factos ocorridos em 31/10/2018 e entre Outubro de 2019 a Novembro de 2020, apresentou queixa, constituindo-se assistente nos autos, contra BB. A queixa imputava à denunciada, enquanto Juíza de Direito, a exercer funções no Juízo de Família e Menores do Tribunal de... o crime de abuso de poder, p. e p. no artigo 382º do CP, e posteriormente veio a imputar à mesma denunciada o crime de injúrias e difamação.

Realizado inquérito, foi o mesmo arquivado por despacho de 25/01/2023. O despacho de arquivamento declarou extemporaneidade da queixa quanto ao crime de injúrias e, quanto ao denunciado crime de abuso de poder, assentou na inexistência de qualquer elemento indiciário ou probatório que sustente a verificação dos elementos objetivos do tipo, e, por maioria de razão, na inverificação dos elementos subjetivos, “pelo que se recolheram elementos suficientes de não se ter verificado a prática do referido crime.”

Não se conformando com o resultado do inquérito traduzido no teor desse despacho de arquivamento quanto ao invocado crime de abuso de poder, veio a assistente requerer a abertura da instrução em 23/02/2023.

Sobre o RAI sobreveio o despacho de indeferimento de 20/03/2023, que é agora objeto do presente recurso.

I.2. A Recorrente finalizou as suas alegações de recursos com as seguintes conclusões:

“1. O requerimento de abertura da instrução apresentado pela Assistente na sequência de decisão de arquivamento por parte do Ministério Público tem a forma de uma verdadeira acusação.

2. Decorre do disposto no número 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal que não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e direito de discordância relativamente á acusação ou não acusação.

3. Nos termos do nº 3 do art. 283º deverá ainda ser feita a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação para a sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para as disposições legais aplicáveis.

4. No seu requerimento de abertura de instrução, a assistente dá cumprimento às razões de facto e de direito, faz a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, inclui o lugar, o tempo e a motivação e o grau de participação indicando as disposições legais aplicáveis.

5. Ora a assistente identifica a denunciada, indica os factos, o local e tempo, entre Outubro de 2019 a Novembro de 2020 no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste-..., em que foram praticados e o crime em causa de abuso de poder.

6. A rejeição da Abertura de instrução levada a cabo nos moldes em que o faz, põe em causa o princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais previsto no art. 20 da Constituição da República Portuguesa porquanto nega a abertura da instrução não obstante a assistente ter dado cumprimento às disposições legais aplicáveis.”.

Com o que acaba a pedir a revogação da decisão de rejeição do indeferimento do RAI e que se ordene o prosseguimento dos autos.

I.3. Vejamos o iter processual

I.3.1. A queixa

Recuperando a descrição dos factos constante do despacho de arquivamento:

“i. constantes da denúncia entrada aos 23.12.2019 (fls. 13/18 e a qual surge na sequência de notificação para prestar esclarecimentos – fls. 12):

(…)

3.

Ora, a gravação das conferências de pais são da maior importância, uma vez que foram proferidas expressões injuriosas e difamatórias por parte da Juiz Dra. BB dirigidas à mãe, e ainda declarações prestadas pela Juiz que extravasaram por completo a sua competência, tomando medidas favorecendo o pai de forma abruptamente parcial.

4.

Não se pode deixar aqui de transcrever algumas dessas expressões: “é mais importante as visitas do pai do que a pensão de alimentos” aconselhou o pai a intentar ação contra a mãe pedindo indemnização cível contra a mesma, desvalorizou por completa a condição de saúde da menor, o que se verificou quando a mãe tentou explicar qual era a medicação da menor, ao que a Juiz interrompeu de imediato a conversa dizendo: “pois essa medicação que todos eles tomam”.

5.

Também no que respeita às audições da menor, ocorreram situações totalmente irregulares, na primeira audição as perguntas e respostas foram praticamente feitas e dadas pela Juiz, não dando à menor liberdade para daas as suas próprias respostas e não segunda audição – a qual não nos foi dada a sua gravação sem qualquer justificação para tal – foi permitida que a advogada da parte contrária e o pai falassem com a menor insistindo para a mesma dizer que queria viver com o pai, quando no despacho d Juiz foi referido que as partes e as suas mandatárias não poderiam estar presentes na audição.

(…)

ii. constantes da denúncia remetida aos 02.09.2021 (fls. 135/151):

(…)

12º

Porém, não obstante a ausência de resposta por parte do Tribunal, foi realizada nova conferência de pais em 31 de Outubro de 2018, novamente no apenso A e não no processo principal intentado pela Queixosa (doc. n.º 7 Já junto à anterior PI).

13º

Nesta conferência, a Meritíssima Juiz, aqui 4ª Denunciada, teceu considerações inadmissíveis contra a Demandante.

14º

Tendo dito que as visitas do pai eram mais importantes que a pensão de alimentos.

15º

Sugerindo que o pai intentasse uma acção, com pedido indemnizatório, contra a Demandante pelo facto de a menor não querer atender o telefone ao pai.

16º

Entre outras de igual gravidade e que constam da gravação da conferência de pais, cuja junção aos autos desde já se requer por se entender essencial a sua audição para concretizar, nos presentes autos, com fidelidade, tudo o que foi dito pela 4ª Denunciada (doc. n.º 8 já juntos aos autos com anterior PI).

17º

A Queixosa, ao deparar-se com tais declarações, ficou de tal modo destabilizada que pediu, em lágrimas, para sair da sala.

18º

No âmbito do apenso, foram tomadas diversas medidas pelo Tribunal no que concerne às visitas do progenitor, bem como às viagens à ....

19º

Continuando a 4ª Denunciada a ignorar os pedidos formulados pela Denunciante.

(…)

64º

Podendo-se agora acrescentar, a título de informação, que a menor acabou por cometer suicídio, enquanto se encontrava internada numa instituição psiquiátrica, após o progenitor nunca ter concordado com o seu regresso a Portugal, como era seu desejo, e o Tribunal português não ter dado atenção aos vários pedidos da justiça ... para que se pronunciasse acerca do future da menor.

(…)

76º

No que respeita à 4ª Denunciada, cometeu a mesma um crime de abuso de poder p. e p. pelo Artº 382º do C. Penal, ao favorecer, claramente, o progenitor e ao ter para com a Denunciante a conduta supra descrita.

(…)

iii. constantes do esclarecimento entrado aos 29.03.2022 (fls. 171/178):


Os factos relatados ocorreram no processo 2704/15.4... e apensos que correu termos no ...Juízo de Família e Menores de ....


Por apenso a esse processo, foi pela progenitora o dia 08 de Setembro de 2015 apresentado um pedido de alteração da pensão de alimentos.


Na pendência desse pedido, o Pai deduz um incidente de alteração do regime de visitas, no sentido de as visitas à menor serem realizadas sem a presença da mãe e avó da menor, e que a menor fosse autorizada a viajar para a ... com o pai.


Foi realizada conferência de pais em 31 de outubro de 2018, só na alteração das responsabilidades parentais. Nesta conferência, a Mmª Juiz participada (Dr.ª BB) teceu considerações e efectuou declarações absurdas e aberrantes que se encontram gravadas, desde já se solicitando que seja efectuado pedido junto do processo das referidas gravações.


Sendo que estranhamente de uma diligência que demorou 3 horas apenas aparece gravada uma parte infica da diligência com o ilegal expurgar das partes relevantes.


Nomeadamente, a afirmação de que as visitas do pai eram mais importantes que a pensão de alimentos, sugerindo que o pai intentasse uma acção, com pedido indemnizatório contra a mãe, pelo facto de a menor não querer atender o telefone ao pai, entre outras de igual gravidade, tendo pela Procuradora do (Dr.ª CC) sido pedida a intervenção da Segurança Social para audição técnica especializada.


A agressividade da menor, em consequência do agravamento devido à impulsividade de que sofria conduziu à intervenção do CPCJ de ....


As técnicas informam o Tribunal de ... que, no dia 25 de Maio de 2019, após contactos com o pai e com as suas alegadas advogadas, foi aplicada uma medida cautelar de guarda da menor, na pessoa do pai, por um período de 3 meses.

10º

Ninguém informou a mãe da aplicação de tal medida cautelar.

11º

No dia 05 de Junho de 2019, informaram, então, que a DD não ficaria com a mãe, pois ou iria para a ... ou caso a mãe não concordasse iria, de imediato, para uma família de acolhimento ou uma instituição e que chamariam a PSP.

12º

Tendo a Progenitora ficado aterrorizada com a ideia de a filha ir para uma família de acolhimento ou uma instituição.

13º

Tendo, por esse motivo, assinado o acordo relativo à aplicação da medida de promoção que vigoraria durante 3 meses.

14º

A coação das técnicas incidiu igualmente sobre a menor, sendo que através do seu correio electrónico é possível verificar a forma como foi pressionada a celebrar o acordo pelas técnicas sobre quem pende processo crime.

15º

Por esse acordo, a menor deveria regressar a Portugal para a realização das provas globais.

16º

O Progenitor levou a menor para a ... apenas durante esse período.

17º

Porém o Progenitor não regressou a Portugal com a menor.

17º

A DD faltou às provas globais agendadas para dia 21 e 27 de Junho e consequentemente, reprovou o ano escolar.

18º

No dia 25 de Julho a menor tentou suicidar-se.

19º

A Progenitora apresentou em Agosto um Requerimento informando o Tribunal da tentativa de suicídio e os verdadeiros motivos (Doc.1).

20º

A menor ficou internada na ala psiquiátrica na ..... em ... de 25 a 29 de Julho.

21º

Após alguns dias da alta da menor do internamento psiquiátrico, o pai retirou o telemóvel à filha, não tendo a mãe qualquer forma de a contactar.

22º

No dia 28 de Agosto de 2019, a Progenitora enviou requerimento ao Tribunal a solicitar o regresso imediato de menor, por ter tido conhecimento que a sua filha tinha tentado se suicidar e ter sido pela mesma que tomou conhecimento (Doc.2).

23º

Novamente, no dia 30 de Agosto de 2019, a Progenitora enviou novo requerimento a pedir ao Tribunal que enviasse um comunicado ao hospital onde a menor estava internada, uma vez que o hospital se recusava a prestar qualquer informação à mãe por indicação do pai da menor (Doc. 3).

24º

No dia 06 de Setembro, dá entrada no Tribunal um oficio do Tribunal de ... informando que foi prolongado o internamento da menor na ala psiquiátrica até dia 12 de Setembro de 2019 (Doc.4).

25º

No dia 09 de Setembro de 2019, seguiu novo requerimento para o Tribunal de ... a informar a incessante vontade de DD em regressar a Portugal junto com o pedido de que seja decretado o regresso de DD para Portugal para junto da família materna (Doc.5).

26º

No dia 09 de Setembro, a DD elabora e assina um documento onde afirma que nunca irá perdoar o pai por a ter exposto aquela cultura, afirma escolher não ter qualquer tipo de contacto com a ... ou com o Pai, um homem que considera não passar de um estranho (Doc. 6 a 8).

27º

No dia 12 de Setembro, dá entrada no Tribunal um oficio do Tribunal de... onde é manifestada a vontade da menor de regressar a Portugal (Doc. 9).

28º

No dia 19 de Setembro de 2019, é enviado requerimento no sentido de manifestar a indignação por parte da Progenitora pela ausência de resposta pelo Tribunal de ..., aos requerimentos interpostos anteriormente, pedindo, de igual modo, o regresso imediato da menor para Portugal (Doc.10).

29º

No dia 25 de Novembro, chega ao processo um email a informar que a menor iria ser transferida para a ala aberta e ficaria à guarda da Segurança Social ..... (Doc.11).

30º

A 02 de Outubro de 2019 - sem qualquer fundamentação de facto ou de direito - e sem responder a nenhum dos requerimentos da Progenitora - o Tribunal proferiu um despacho que, em súmula, determinou que, uma vez que a menor está na Alemanha a guarda e as responsabilidades parentais serão exercidas exclusivamente pelo pai (Doc.12).

Não olhando sequer para o ofício da Segurança Social ... que dizia taxativamente que a menor ficaria ao seu cuidado, uma vez que o pai não reunia condições.

32º

No dia 23 de Outubro de 2019, a Progenitora interpôs recurso da decisão que alterou provisoriamente as responsabilidades parentais da menor (Doc. 13).

33º

A menor, DD, foi internada na ala psiquiátrica em ..., impossibilitada de contactar com a Progenitora e Avó materna, por iniciativa do Pai que retirou o telemóvel à menor, proibindo ainda qualquer forma de contacto e prestação de informações por parte do hospital para com a Progenitora.

34º

O pai proibiu a toma de qualquer medicação sendo certo que a menor apresentava um comportamento bipolar e estava a ser medicada.

35º

Com o agravamento da saúde física e mental da menor, incalculável e dificilmente reparável, bem como sentimento de profundo o desgosto e frustração à progenitora que a ver tudo isto a acontecer ficou totalmente impotente perante todos este cenário, sofrendo também de danos psíquicos graves.

36º

Tendo passado desde que ficou na ... com o pai, por 6 tentativas de suicídio e um internamente ininterrupto de mais de 6 meses num hospital psiquiátrico na ..., até que foi institucionalizada porque a menor recusava ver o Pai, vide a este respeito o email remetido ao processo pela segurança social em 13 de Dezembro de 2019 (Doc. 14 e 15).

37º

Foi junto ao processo um Ofício da Segurança Social ..., datado de 11 de Fevereiro de 2020, informando que o contacto com a mãe contribui para a estabilização da menor e que se intensificam as dúvidas se será benéfico para a menor que a guarda permaneça com o pai, uma vez que é visível que o comportamento do progenitor é movido por motivos e necessidades pessoais (Doc. 16).

38º

Tudo isto, foi reportado ao processo e a Juiz participada nada fez, sendo nessa consequência responsável por maus tratos à menor por omissão.

39º

A menor encontrava-se satisfeita com o facto de Segurança Social ... se encontrar a promover a sua deslocação a Portugal pelo período de 3 meses para poder estar com a família materna, dado que o contacto com o pai ou o regresso a casa do mesmo, se encontrava afastado como hipótese.

40º

O progenitor opôs-se a que a menor viesse a Portugal, o que causou grande angústia à menor a ponto de no passado dia 17 de Maio de 2020, se ter suicidado por enforcamento.

41º

Mesmo após a morte da filha e de ter contribuído com as suas acções para este trágico resultado, o Progenitor recusa-se a deixar vir o corpo da menor para Portugal, tendo a menor sido enterrada na ..., país onde apenas esteve 6 meses dos quais passou 5 internada na ala psiquiátrica ou na instituição.

42º

Apesar de ser vontade da menor de regressar a Portugal, conforme email que a menor remeteu à sua Psicóloga em Portugal, Dr.ª EE (Doc.17).

43º

De notar que um dos ofícios que se encontram juntos ao processo e que acima se refere, resulta que o pai não reúne condições para ficar com a guarda da menor e que se nota da parte dele outros interesses do que o bem-estar da menor.

44º

A Mm.ª Juiz participada tendo conhecimento de que a menor pretendia regressar a Portugal, e sido informada pela Segurança Social ... que o Progenitor não era opção e que a mãe era no dizer da menor o elemento securizante nada fez.

45º

Isto sabendo que a menor já se tinha tentado suicidar por diversas vezes.

46º

E que poderia voltar a tentar.

47º

Ainda assim a Mm.ª Juiz nada fez.

48º

Não se tendo pronunciado sobre qualquer dos requerimentos apresentados pela mãe.

49º

Nem se pronunciou sobre o grito desesperado da Segurança Social ... de Fevereiro de 2020.

50º

Tendo essa omissão de pronúncia resultado no suicídio da menor.

51º

A tudo acresce que o recurso interposto em 23 de Outubro de 2019 só foi mandado subir ao Tribunal da Relação mais de um ano depois, em 25 de Novembro de 2020.

52º

Meio ano após a morte da menor e cerca de um ano após a sua interposição.

53º

Tendo sido retido pelo Tribunal durante esse período.

54º

Tudo com a inércia da Magistrada participada.

55º

A Mm.ª Juiz participada é na qualidade de Magistrada responsável por zelar pelo superior interesse da menor.

56º

Não o tendo feito por omissão das suas funções tornou-se responsável pelos maus tratos que a menor sofreu e pela sua morte.

57º

Pelo que, deverá ser responsabilizada criminalmente.

iv. constantes do esclarecimento entrado aos 25.10.2022 (fls. 353/360):

1.º

A participação apresentada pela Denunciante apresentava nos seus factos 12.º a 19.º e 76.º a seguinte matéria:

"12.º

Porém, não obstante a ausência de resposta por parte do Tribunal, foi realizada nova conferência de pais em 31 de Outubro de 2018, novamente no Apenso A e não no processo principal intentado pela Queixosa (doc nº 7 já junto à anterior PI

13.º

Nesta conformidade, a Meritíssima Juiz, aqui 4ª denunciada, teceu considerações inadmissíveis contra a Demandante.

14.º

Tendo dito que as visitas do Pai eram mais importantes que a Pensão de alimentos.

15.º

Sugerindo que o Pai intentasse uma acção, com pedido indemnizatório, contra a Demandante pelo facto de a menor não querer atender o telefone ao Pai.

16.º

Entre outras de igual gravidade e que constam da gravação da conferência de pais, cuja junção aos Autos desde já se requerer por se entender essencial a sua audição para concretizar, nos presentes Autos, com fidelidade, fudo o que foi dito pela 4ª denunciada (doc. 8 já junto aos autos com a anterior PI).

17.º

A queixosa, ao deparar-se com tais declarações, ficou de tal modo destabilizada que pediu, em lagrimas, para sair da sala.

18.º

No âmbito do apenso, foram tomadas diversas medidas pelo Tribunal no que concerne às visitas do progenitor, bem como às viagens à....

19.º

Continuando a 4ª Denunciada a ignorar os pedidos formulados pela Denunciante.

76.º

No que respeita à 4ª Denunciada, cometeu a mesma um crime de abuso de poder, p.e p. pelo art. 382.º do Código Penal, ao favorecer, claramente, o progenitor e ao ter para com a Denunciante a conduta supra descrita."

2.º

Os factos denunciados dizem respeito ao processo 2704/15.4... e apensos.

3.º

O referido processo estava distribuído à denunciada Sra. Dra. BB.

4.º

No âmbito de pedido de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, pelo Apenso A, foi designado o dia 31 de Outubro de 2018 para conferência de Pais (Conf. Doc. 1).

5.º

Tendo a referida diligência sido gravada digitalmente através do sistema H@bilus Media Studio, conforme suporte digital de fls.

6.º

Estavam presentes na referida diligência, entre outras, a anterior mandatária da Denunciante, Sra. Dra. FF e a escrivã auxiliar GG.

7.º

Na referida diligência, a denunciada levantou por diversas vezes a voz à denunciante, licenciada em Estudos Anglo-Americados na Universidade Americana Philips University no Japão, tratando-a sem respeito por "Oh AA" (13 minutos), por oposição à forma com que tratava o Requerente, por "O Senhor" (47 minutos e 20 segundos).

8.º

Ao longo de toda a conferência a Mma. Juiz denunciada levantou a voz para a Denunciante, assim ao minuto 11. "oh Sou Dona AA, isto é muito simples. Não há comparticipação. Não está prevista a comparticipação."

9.º

Ao minuto 16 e 48 segundos diz "Oh Sou-Dona AA: Isto não é uma conversa, isto é uma diligência judicial, presidida por um Juiz, com uma Senhora Procuradora, no caso a Dra. CC, que só é feita no gabinete, sem beca e as soutoras sem toga, porque é assim que se determina e porque nós não temos sala, mas é uma diligência judicial, portanto a senhora não interage comigo.

10.º

Aos 48.26 refere "sem a Mãe, sem a Mãeee!" em voz alta.

11.º

Referindo ainda, aos 48 minutos "diz-se tantas coisas e depois caímos em contradição. E ate pode haver, seguramente, e isto até está a ser gravado e não tenho problemas com o que digo e até podem vir futuramente a fazer queixa de mim onde quiserem mas as pessoas dizem tanta coisa que depois caem em contradição e depois até pode existir coisas que correspondem à verdade, só que a informação é tanta, tão contraditória que é muito difícil depois já nós acreditarmos. E como Pedro e o Lobo. É a mesma coisa."

12.º

Aos 58 minutos refere "eu não estou a pedir a opinião dela, eu estou a mandar! Isto é uma decisão judicial que ela tem de cumprir

13.º

Na referida diligência e ao longo de mais de 1 hora e 40 minutos a denunciada dirigiu-se à denunciante falando mais alto, e ameaçando com "daqui a bocado está num processo de promoção e protecção" "Oh AA, vai responder ao que lhe perguntei?!" "Ela pode inclusivamente ir morar para a ... — chama-se reversão da guarda", referido aos 35 minutos "Eu até vou fingir que não estou a entender".

14.º

Na mesma diligência a Mma. Juiz denunciada acusa a Denunciante de "Está no caminho de uma alienação [parental]", dirigindo-se depois ao Pai da menor "Mas agora eu preciso que o Pai me diga o que quer fazer hoje, que tenho de agilizar isto um bocadinho"

15.º

Dirigindo-se de novo para a Denunciante, aos 56 minutos: "E que eu saiba que a senhora está nas redondezas. Garanto que há uma reversão da guarda e que ela vai já para a ...."

16.º

E quando a Denunciante tenta justificar a sua preocupação, a Denunciada, em viva voz refere "Não me diga mais nada. Que eu saiba que a senhora o está a fazer."

17.º

Aos sessenta minutos refere "0 recurso é meramente devolutivo. Sabe o que é que quer dizer? Que ela vai, depois a Relação decide." "A sua postura a partir de hoje vai mudar.

Acabou a conversa!"

18.º

Acto continuo, refere que após visitas ali agendadas, o pai poderá requerer uma semana na ... na altura da Páscoa, procedendo à alteração do regime e afastando a Mãe do acompanhamento que esta fazia à menor.

19.º

Durante toda a diligência, verifica-se que a denunciada se dirige à Denunciante de forma mais dura do que em relação ao outro progenitor.

20.º

A denunciante sentiu-se incapaz de justificar os seus receios e preocupações quanto à situação de exposição de risco a que a sua filha estava a ser exposta.

21.º

À 1 hora e vinte e um minutos de gravação a Denunciada "Não seria melhor dizer à Mãe para sair?"' "A próxima vez que fizer alguma intervenção não solicitada, sai do meu gabinete. Não lhe volto a dizer", o que envergonhou a denunciante.

22.º

Ficando depois a constar em despacho que "Durante a prolação do douto despacho que antecede, a requerida abandonou o gabinete." quando a denunciante havia sido destratada publicamente, frente a todos quantos estavam presentes na referida diligência.

23.º

Os referidos factos causaram na denunciante receio por si e pela vida da sua filha, que viria a ser agravado quando, na sequência de internamento a 15 de Março de 2019 em pedopsiquiatria, por alterações comportamentais e pensamentos sobre morte.

24.º

Após alerta da CPCJ no Verão de 2019 relativamente à situação de risco da filha da Denunciante, é pela Denunciante proferido despacho de desentranhamento de pedido (Conf. Doc. 2)

25.º

A referida informação era pertinente, e após conclusão de 18 de Maio de 2020, com informação de que não seria possível informaticamente proceder à certificação não obstante o sistema informático possibilitar a sua visualização, é dado despacho de não integração da informação dirigida à CPCJ (Conf. Doc. 3).

26.º

A 9 de Setembro de 2019 é feito pela Mandatária da Denunciante requerimento para que a DD pudesse regressar a casa, tendo igualmente a homologa da CPCJ na ... comunicado aos Autos a vontade da menor e factos reveladores do risco a que a menor estava exposta (Doc. 4 e 5).

27.º

A 2 de Outubro de 2019, é proferido despacho pela Denunciada que fixa a guarda da DD com o Pai, e a sua residência na ..., exercendo este as responsabilidades em exclusivo em relação aos actos de vida corrente (Conf. Doc. 6).

28.º

Acresce que, tal como — igualmente — a denunciada havia relatado que eventual recurso os seus termos a ser analisado, apenas profere despacho de admissão em 25 de Novembro de 2020 evitando que o mesmo pudesse, com a maior celeridade possível, ser conhecido.

29.º

Tendo o referido recurso sido interposto a 23 de Outubro de 2019, e apenas conhecido despacho (de mero expediente) a admitir a sua subida, mais de um ano depois — na referida data de 25 de Novembro de 2020 (Conf. Docs. 7 e 8).

30.º

Recordando-se o que havia dito na anterior diligência de 31 de Outubro de 2018 "Aos sessenta minutos refere "O recurso é meramente devolutivo. Sabe o que é que quer dizer? Que ele vai, depois a Relação decide." "A sua postura a partir de hoje vai mudar. Acabou a conversa!"

31.º

A DD viria a por termos à vida naquele mesmo ano de 2020, a 18 de Maio, encontrando se o referido recurso do despacho que fixou a guarda provisória junto do Pai da menor suspenso pela denunciada que continuava a tramitar o processo — como o fez, durante o ano de 2019 e 2020.

32.º

Não obstante os diversos pedidos e informações carreadas para os autos no sentido da Menor não estar bem, estar em regime de internamento, querer estar com a Mãe e Avó materna, a denunciada não revelou qualquer preocupação pelo risco de vida corrido pela criança que carecia de acompanhamento constante por parte da Mãe e cuja preocupação foi — inclusivamente — posta em causa, se não ridicularizada, conforme resulta de gravação de fls., relativativamente à sessão de 31 de Outubro de 2018,

33.º

Os factos relatados, quer quanto à referida diligência, quer relativamente à actuação ulterior da denunciada em todo o processo poderão constituir o crime de que é participada.

I.3.2.O despacho de arquivamento do MºPº

2- Quanto ao denunciado crime de abuso de poder o despacho de arquivamento pronunciou-se nos seguintes termos:

“O crime de abuso de poder encontra-se previsto no artigo 382.º do Código Penal.

Decorre da citada norma que incorre na prática de tal crime o funcionário:

a) que abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções;

b) com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

Para efeitos da lei penal a expressão funcionário abrange os magistrados judiciais.

Como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-11-2013 ( ):

1. - O crime de abuso de poder constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede;

2. - O crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.

Mas, com um elemento nuclear: o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.

Neste crime não está em causa o erro de função ou a prática de atos suscetíveis de revogação por uma instância de recurso ou reapreciação. O seu cometimento supõe o preenchimento dos elementos objetivos do tipo, que são o mau uso ou o uso desviante dos poderes da função, e a verificação de uma intenção específica que está para além do tipo objetivo, que é a vontade do agente “de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa”.

Esta vontade é apreendida através de elementos externos e objetivos que a revelem e nos quais externamente se manifeste, como sejam a relação entre o agente, o resultado, e a identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjetiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro.

Podemos, então, dizer que a violação do poder e deveres funcionais tem de ter como finalidade a obtenção de benefício ilegítimo próprio ou alheio ou prejuízo alheio, que é percetível através de elementos externos ao agente.

Vejamos se dos factos denunciados e dos elementos probatórios recolhidos decorrem indícios da prática pelo agente – a denunciada na qualidade de funcionária decorrente da sua condição de magistrada judicial – dos elementos objetivos e subjetivos do tipo.

Na conformação dos factos apresentados pela denunciante o eventual crime ocorreu no âmbito da conferência de pais que teve lugar no dia 31 de outubro de 2018 no âmbito do processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais 2704/15.4...-A, e ao qual presidiu a denunciada.

A diligência foi objeto de gravação áudio e da qual se mostra junta cópia ao presente inquérito.

Da audição de tal gravação verifica-se que as passagens citadas pela denunciante correspondem, grosso modo, ao ocorrido.

É sabido, de modo acrescido por quem já desempenhou funções na área da jurisdição da família e menores, que as conferências de pais são, por regra, diligências que comportam um elevado grau de tensão por parte dos principais intervenientes – os progenitores. Cada um configura a sua pretensão como a solução mais adequada ao desfecho visado. A mediação das pretensões dos progenitores e a intervenção de cada um na diligência tem de ser dirigida ativamente pela autoridade judiciária que preside, visando, em última análise, obter um consenso ou, caso este não seja viável, proferindo decisão que melhor proteja o superior interesse da criança.

Toda a diligência em apreço, que como já se referiu se encontra gravada e a cuja audição integral se procedeu, decorreu no espaço do gabinete da juíza com a presença desta, da magistrada do Ministério Público, dos progenitores, dos mandatários, de uma intérprete e da oficial de justiça. Tal circunstância (um elevado número de participantes num espaço com área e disposição não adequada), aliada à referida tensão própria de tais diligências, potencia situações de intervenções espontâneas dos presentes e que exigem uma direção mais acutilante.

No caso dos autos, a denunciada, juíza de direito que presidia à diligência, no âmbito dos seus poderes de direção da diligência dirigiu-se por diversas vezes à denunciante alertando-a e/ou esclarecendo-a sobre o regime em vigor na regulação das responsabilidades parentais, os limites decisórios do tribunal em face dos pedidos formulados, a necessidade de só intervir quando para tal solicitada ou instada, a imperatividade da decisão judicial, as eventuais consequências do não cumprimento da decisão judicial, os efeitos decorrentes de eventual recurso da decisão proferida, etc.

Mas, quando ouvidas e inseridas no seu contexto – conferência de pais no âmbito de processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais – as afirmações citadas não se apresentam como visando ou como tendo por finalidade ou intuito prejudicar a progenitora, aqui denunciante, ou beneficiar o progenitor. Da audição integral da gravação e da forma como a diligência se desenvolveu, não se alcança ou vislumbra, objetivamente, qualquer mau uso ou o uso desviante dos poderes da função da juíza que presidia à diligência. É que, independentemente da maior ou menor sensibilidade ou suscetibilidade de cada um dos intervenientes, podendo uns ficar mais afetados que outros pelo tom de voz usado, a rispidez das afirmações, a necessidade de imprimir ritmo à diligência tendente a uma decisão e cumprimento da agenda do tribunal ou, até, por concordar ou discordar de concretas afirmações, como é o caso da valoração das visitas ao pai versus a pensão de alimentos, para o crime que se aprecia tais circunstâncias são inócuas.

O cerne de tal crime está, como já se referiu, no uso abusivo dos poderes que estão conferidos à denunciada ou na violação dos deveres inerente à sua função, sempre tendo como pano de fundo a intenção de se beneficiar ilegitimamente, ou a terceiro, ou causar prejuízo a outrem.

Não é o caso dos autos. A denunciada atuou em conformidade com os seus poderes funcionais e em respeito dos deveres inerentes às suas funções. Sendo que também não existe qualquer indício de se querer beneficiar ilegitimamente, ou a outrem, ou de prejudicar alguém.

Tanto assim, que, não tendo sido alcançado acordo entre os progenitores na diligência, a denunciada determinou a notificação para alegarem e juntarem prova no prazo de 15 dias, alterou provisoriamente o regime da regulação das responsabilidades parentais em vigor, fixou um regime de visitas específico e apenas para vigorar no mês de novembro de 2018, uma visita a ter lugar na tarde do dia da diligência e um horário para contactos da jovem com o progenitor via Skype.

Tais decisões, como se retira da audição da diligência, visaram restabelecer os contactos da filha com o progenitor.

A não concordância ou adesão da denunciante a tais decisões não se confunde com um mau uso ou uso desviante dos poderes funcionais da denunciada, com excesso de poderes legais ou com desrespeito de formalidades essenciais.

Sendo que, não existindo qualquer elemento indiciário ou probatório que sustente a verificação dos elementos objetivos do tipo, por maioria de razão, também não se indiciam ou verificam os elementos subjetivos.

Pelo que se recolheram elementos suficientes de não se ter verificado a prática do referido crime.».

I.3.3.O Requerimento de Abertura da Instrução (RAI)

1- O RAI apresentado reporta-se ao crime de abuso de poder e contém-se nos seguintes termos:

“Os presentes Autos tiveram início com queixa de fls, apresentada por AA contra BB, Juiz de Direito a exercer funções no Juízo de Família e Menores de ... —J., por factos susceptíveis de integrar, em abstracto, crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art. 382. do Código Penal.

(…)

5.º No âmbito do processo 2704/15.4... e apensos, em concreto, em Apenso de Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais, pelo Apenso A, teve lugar conferência de Pais a 31 de Outubro de 2018.

6.ºTendo a referida diligência sido gravada digitalmente através do sistema H@bilus Media Studio, conforme suporte digital de fls.

7º Estavam presentes na referida diligência, entre outras, a anterior mandatária da Denunciante, Sra. Dra. FF e a escrivã auxiliar GG.

8.º Na referida diligência, a denunciada — e por diversas vezes — levantou a voz à denunciante, licenciada em Estudos … na Universidade Americana …University no …, tratando-a sem respeito por "Oh AA" (13 minutos), por oposição à forma com que tratava o Requerente, por "O Senhor" (47 minutos e 20 segundos).

9.º Ao longo de toda a conferência a Mma. Juiz denunciada manteve o tratamento referido para a Denunciante:

Ao minuto 11. "oh Sou Dona AA, isto é muito simples. Não há comparticipação. Não está prevista a comparticipação."

Ao minuto 16 e 48 segundos diz "Oh Sou-Dona AA: Isto não é uma conversa, isto é uma diligência judicial, presidida por um Juiz, com uma Senhora Procuradora, no caso a Dra. CC, que só é feita no gabinete, sem beca e as soutoras sem toga, porque é assim que se determina e porque nós não temos sala, mas é uma diligência judicial, portanto a senhora não interage comigo"

Aos 48.26 refere "sem a Mãe, sem a Mãeee!" em voz alta.

10.º Referindo ainda, aos 48 minutos "diz-se tantas coisas e depois caímos em contradição. E até pode haver, seguramente, e isto até está a ser gravado e não tenho problemas com o que digo e até podem vir futuramente a fazer queixa de mim onde quiserem mas as pessoas dizem tanta coisa que depois caem em contradição e depois até pode existir coisas que correspondem à verdade, só que a informação é tanta, tão contraditória que é muito difícil depois já nós acreditarmos. E como Pedro e o Lobo. E a mesma coisa."

11º Aos 58 minutos refere "eu não estou a pedir a opinião dela, eu estou a mandar! Isto é uma decisão judicial que ela tem de cumprir."

12.º Durante a referida diligência e ao longo de mais de 1 hora e 40 minutos a denunciada dirigiu-se à denunciante falando mais alto, e ameaçando com "daqui a bocado está num processo de promoção e protecção" "Oh AA, vai responder ao que lhe perguntei?!", "Ela pode inclusivamente ir morar para a ... chama-se reversão da guarda", referido aos 35 minutos "Eu até vou fingir que não estou a entender".

13.º Na mesma diligência a Mma. Juiz denunciada acusa a Denunciante de "Está no caminho de uma alienação parental", dirigindo-se depois Pai da menor, "Mas agora eu preciso que o Pai me diga o que quer fazer hoje, que tenho de agilizar isto um bocadinho"

14.º Dirigindo-se de novo para a Denunciante, aos 56 minutos: "E que eu saiba que a senhora está na redondeza. Garanto que há uma reversão da guarda e que ela vai já para a ...."

15.º E quando a Denunciante tenta justificar a sua preocupação, a Denunciada, em viva voz refere "Não me diga mais nada. Que eu saiba que a senhora o está a fazer."

16.º Durante a referida diligência, é deixado claro que a Denunciante pode ser prejudicada com a decisão de reversão da guarda sendo que, caso tal sucede (como viria a suceder) eventual recurso seria meramente devolutivo e o tempo para eventual decisão tornaria o mesmo inútil.

17.º Nesse sentido, e aos sessenta minutos refere “o recurso é meramente devolutivo. Sabe o que é que quer dizer? Que ela vai, depois a Relação decide." "A sua postura a partir de hoje vai mudar. Acabou a conversa!"

18.º Acto continuo, refere que após visitas ali agendadas, o pai poderá requerer uma semana na ... na altura da Páscoa, procedendo à alteração do regime e afastando a Mãe do acompanhamento que esta fazia à menor.

19.º Durante toda a diligência, e face à postura assumida pela denunciada, a denunciante sentiu-se incapaz de justificar os seus receios e preocupações quanto à situação de exposição de risco a que a sua filha estava a ser exposta.

20.º Acresce que. Não obstante ter referido - à 1 hora e vinte e um minutos de gravação - "Não seria melhor dizer à Mãe para sair?";• "A próxima vez que fizer alguma intervenção não solicitada, sai do meu gabinete. Não lhe volto a dizer", ordenou que constasse em acta que e "Durante a prolação do douto despacho que antecede, a requerida abandonou o gabinete. " quando a denunciante havia sido destratada publicamente, frente a todos quantos estavam presentes na referida diligência.

21.º Os referido factos causaram na denunciante receio por si e pela vida da sua filha, que viria a ser agravado quando, na sequência de internamento a 15 de Março de 2019 em pedopsiquiatria, por alterações comportamentais e pensamentos sobre morte.

22.º Por despacho de 2 de Outubro de 2019, e no âmbito do referido apenso A, viria efectivamente a ser invertida a guarda, "considerando que a DD, neste momento, reside na ..., considerando o seu superior interesse, altera-se Provisoriamente, ao abrigo do art. 28 º do RGPTC, as responsabilidades parentais da jovem nos seguintes temos:

1. A jovem DD ficará à guarda e cuidados dopai, com que residirá na ....

2. O pai exercerá, em exclusivo, as responsabilidades parentais relativamente aos actos da vida corrente e às questões de particular importância para a vida da jovem." Conf. Doc. 1

23.º A Assistente, através da sua Mandatária, faz dar entrada a 22 de Outubro de 2019 de recurso quanto à referida decisão (Conf. Doc. 2 e 3)

24.º E, não obstante ser admitido o referido recurso por despacho de 25 de Novembro de 2019 que ordena seja autuado por apenso, a Denunciada apenas viria a ordenar a sua subida do mesmo um ano depois, a 25 de Novembro de 2020 (Conf. Doc. 4 e 5)

25.º Apenas a denunciada tinha o poder para ordenar a subida do recurso interposto pela mandatária da denunciante, tendo - em prejuízo da posição processual da mesma - retido indevidamente o recurso interposto pelo período de um ano.

26.º Com a referida conduta, e smo, a Denunciada quis e conseguiu prejudicar a Denunciante.

27.º Tal como havia comunicado na referida Diligência de 31 Outubro de 2018, e não obstante as comunicações da CPCJ e da homologa ..., viria a reverter a guarda por despacho de 2 de Outubro de 2019, e — face à interposição de recurso, viria a retê-lo por um ano.

28.º Ora, verifica-se pois estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime, uma vez que decorre do citado art. 382.º que incorre na prática de tal crime o funcionário (i) Que abusar de poderes ou violar deveres inerentes à sua função (ii) Com intenção de obter, para si ou para terceiro, beneficio ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

29.º Com a referida conduta, e

(i) com recurso aos poderes de que estava investida, a denunciante procedeu à reversão da guarda, atribuindo-a ao Pai da Menor DD e,

(ii) em violação dos deveres inerentes à sua função reteve o recurso interposto pelo período de um ano

(iii) Tendo, antes de praticar tais condutas, assumido perante os presentes na Conferência de Pais que o poderia fazer

30.º Com a referida conduta, a Denunciada prejudicou a Denunciante, retirando-lhe a guarda da Filha, como havia referido na Conferência e,

A denunciada manteve a referida decisão — não obstante comunicações juntas aos Autos pela entidade homologa à CPCJs nomeadamente de 13 de Fevereiro de 2020, alertando para a situação grave da menor retirada do seu ambiente familiar em Portugal, com tentativas de suicídio (Conf. Doc. 6 e 7)

31.º A menor viria a cometer suicídio, a 18 de Maio de 2020.

32.º Ora, o crime de abuso de poder configura um crime de intenção ou de resultado cortado, crimes nos quais se exige, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado que, todavia, não faz parte do tipo objectivo de ilícito.

33.ºO bem jurídico protegido através do tipo de crime de abuso de poder é a autoridade e credibilidade da administração do Estado, bem esse que é atingido quando este vê afectada a e eficácia dos seus serviços.

34.º No caso em apreço, está em causa a conduta de uma Juiz de Família e Menores que interferiu por ser Juiz titular do processo, no sentido de prejudicar a Denunciante revertendo a guarda, num processo de Alteração das Responsabilidades Parentais e num Recurso sobre uma decisão sua impedindo que o mesmo subisse, pelo que estão indiciados os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de poder.

Nestes Termos,

E nos mais do Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá ser Admitido o presente Requerimento de Abertura de Instrução e ser proferido despacho de pronuncia relativamente ao crime denunciado.

1 - PROVA

Documental:

Junta: 7 Documentos, Comprovativo de pedido de AJ e comprovativo de autoliquidação de Multa 1 dia.

Já nos Autos:

- Acta de Conferência de Pais de 31 de Outubro de 2018 no âmbito do processo

2704/15.4...-A CD de fls 162, com gravação da diligência de Conferência de Pais,

TESTEMUNHAS a todos os factos:

1. HH, a apresentar.

2. II, a apresentar

3. Dra. FF, Advogada com escritório (…)»

I.3.4. O despacho de rejeição do Juiz de Instrução (JI)

O despacho de rejeição do RAI de 20/03/2023 traz breve relatório factual, cita o RAI, e, depois de transcrever parte do despacho de arquivamento, entra em “III-Apreciação”. Em sede dessa apreciação assinala a finalidade da instrução e enuncia que “A questão que coloca é precisamente a de saber se desses factos se retira a prática de actos que preencham os elementos objectivos e subjectivos do tipo a que a assistente alude.” (seja, de abuso de poder). Elenca os elementos do tipo legal e passa para extensa apreciação da verificação ou não dos indícios da prática do ilícito. Discorre sobre a factualidade quer no que tange à sua objetividade quer no que diz respeito ao elemento subjetivo.

Dita a seguir:

“Analisada a prova disponível, verifica-se que o Tribunal recorrido se limitou a proferir as decisões que se impunham, face aos dados do caso, adequando-as áquilo que, objectivamente e em cada momento, se revelava como sendo do superior interesse da jovem e que não provocou demora alguma no recebimento do recurso.

Analisada toda a matéria de facto imputada como suporte do crime, verifica-se que, de per se, considerando apenas o respectivo elemento literal, não tem suporte para preencher o elemento típico da intenção de causar prejuízo. Ora, o processo penal Português tem uma estrutura eminentemente acusatória, por força da qual o objecto do julgamento é, tão-somente, o objecto da acusação (artº 32º/5, CRP). São os termos da acusação que fixam os poderes de cognição do Tribunal e os limites do caso julgado. Não tendo os factos deduzidos no RAI aptidão para configurar a prática de um crime, está prejudicada a submissão do imputado a julgamento.”

E, em IV-Decisão”, remata: “Pelo exposto, resta declarar improcedência do pedido de abertura de instrução, por manifesta inviabilidade de os factos constituírem crime.”

Já sobre a capacidade, idoneidade e prestabilidade do RAI para abrir a instrução, quer em termos de satisfação dos requisitos formais quer em termos de preenchimento dos requisitos materiais, nada disse.

I.4.Recurso da Assistente

Em I.2 ficaram já transcritas as conclusões da motivação do presente recurso, para as quais se remete por economia processual.

I.5. Resposta do MºPº

Na resposta, o Senhor Procurador-Geral Adjunto na Relação de Lisboa pronuncia-se no sentido da improcedência do recurso, dizendo, em conclusões, que:

“O requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

O requerimento para abertura da instrução formulado pela assistente não configura uma verdadeira acusação, porquanto não comporta em si todos os elementos indispensáveis a sustentar uma eventual condenação em julgamento pelo crime que imputa à visada.

Não há lugar a convite da assistente para aperfeiçoar o requerimento e o tribunal não pode pronunciar por factos que constituam uma alteração substancial no requerimento para abertura de instrução.

Por conseguinte o requerimento para abertura de instrução que não contém todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução.”

I.6. Parecer do MºPº

O Sr PGA junto do STJ emitiu parecer do qual se extraem as seguintes considerações:

“Em conclusão, temos de convir que a assistente/recorrente não articula o requerimento de abertura de instrução de modo a que o mesmo possam vir a servir de base a um despacho de pronúncia o qual deve respeitar, além do mais, os requisitos a que se refere a al. b) do n.º 3 do art. 283.º do Código Processo Penal, revelando-se aquele requerimento insuficiente para a elaboração de despacho que, eventualmente, viesse a conduzir à aplicação ao arguido de uma pena.

Independentemente dos elementos de prova que já se encontrem ou fossem carreados para os autos, face à míngua de factos concretos alegados no requerimento de abertura de instrução, qualquer decisão de pronúncia que viesse a ser proferida seria nula nos termos do preceituado no artigo 309.º do Código Processo Penal, razão pela qual, e por falta de objecto, é assim inadmissível a instrução, em conformidade com o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), “ ex vi” do n.º 2, parte final, artigo 287.º, ambos do Código Processo Penal

Consideramos, pois, que a decisão recorrida se mostra adequada e fundamentada, tendo sido proferida de acordo com a Lei e com a Jurisprudência dominante, concretamente o Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, do STJ.

(…)

Ora, analisando o teor do requerimento de abertura de instrução da assistente / Recorrente, não existe uma imputação concreta e clara de factos susceptíveis de integrar uma acção ou omissão, nem tão pouco a sua forma, motivação e grau de participação da pessoa a quem o assistente pretende ver assacada responsabilidade criminal.

(…)

Neste contexto, entende-se que o requerimento da Assistente de abertura de instrução não cumpre as exigências legais (artigo 283.º n.º 3 do CPP, ex vi do artigo 287.º n.º 2 do mesmo diploma), não permitindo a definição do objecto da instrução, tornando-a inexequível – o que é motivo para a sua rejeição por inadmissibilidade legal, nos termos do n.º 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, na consideração de que não cabe convite ao seu respectivo aperfeiçoamento, nos termos do Acórdão de fixação de Jurisprudência n.º 7/05, de 4 de Novembro.

Pelo exposto, subscrevendo na íntegra, com a devida vénia, os fundamentos exarados no douto despacho impugnado, pronunciamo-nos igualmente pela improcedência do recurso interposto e pela manutenção do decidido.”

I.7. Foi cumprido o contraditório imposto pelo art. 417, nº 2, do CPP. Não veio resposta.

I.8. O recurso foi aos vistos e decidiu-se em conferência

I.9. Admissibilidade do recurso e objeto do recurso

O assistente tem legitimidade e está em tempo.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP).

O recurso tem, pois, por objeto a questão de saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, preenche os requisitos legais, devendo ser deferido, com abertura da instrução, ou se deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução.

II - FUNDAMENTAÇÃO

Nos termos do artigo 287º, nº 3, do CPP, o RAI “só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

Excluídos que estão os dois primeiros fundamentos, por não invocados e aqui inaplicáveis, sobra saber se in casu o RAI pode ser rejeitado por “inadmissibilidade legal da instrução”, como o foi pelo despacho recorrido de 20/03/2023.

Antes de nos abalançarmos para a apreciação do caso concreto impõe-se que fixemos o sentido dessa cláusula geral, ou dito de outra forma, que estabeleçamos a latitude que se pode atribuir à mesma no que toca à sua força ou extensão de rejeição.

Questão a que a doutrina e a jurisprudência vêm tentando dar resposta. E se é verdade que (indiscutíveis) casos há em que uma e outra fácil e unanimemente integram na cláusula geral, naturalmente diversificada, muitos e diferentes são os casos limite em que a questão do cabimento na cláusula geral não é fácil de discernir, quer para integrar quer para excluir.

Por isso, é que, antevendo a dificuldade na demarcação da sua extensão, no “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, III, 2ª edição, António Gama et alii, in nota ao artigo 287º, se escreve que “não raro a inadmissibilidade legal da instrução resulta não propriamente de uma norma-regra (ainda o art. 286/3), mas da correta compreensão e otimização dos princípios que caraterizam o processo penal pátrio.”

É unânime o elenco de alguns casos que aí cabem, por exemplo, a ilegitimidade ou a falta de interesse em agir do requerente; o não preenchimento dos requisitos a que o RAI está sujeito por força do nº 2 do artigo 287º; o pedido de instrução nos processos especiais, por proibido, nos termos do artigo 286º, nº 3; o pedido de instrução contra incertos; o pedido de instrução na falta de pressupostos processuais; o pedido de instrução relativamente a factos novos; o pedido de instrução unicamente para discutir a qualificação jurídica dos factos; e muitos outros1.

Mas a grande maioria das situações elencadas não suscita dúvidas em termos de integração na cláusula geral de rejeição. Digamos que a maior parte delas são situações de rejeição por razões técnicas ou meramente processuais.

Só que, se é verdade que, inicialmente a cláusula geral da inadmissibilidade era interpretada restritivamente, limitando-a aos chamados casos de rejeição por razões técnicas, hoje quer a doutrina quer a jurisprudência entendem que a “inadmissibilidade legal da instrução” abrange outrossim uma faceta ou interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede quando o RAI é inepto (quer seja apresentado pelo assistente, quer seja apresentado pelo arguido) ou quando não é o meio/mecanismo processual próprio para atingir o fim visado. Inadmissibilidade que, em interpretação material, abrangerá os casos em que o requerimento é inepto para o fim visado, se mostra inadequado ou inidóneo processualmente para tal desiderato, seja, imprestável ou incapaz de exercício da sua função, id est, o RAI não cumpra a função processual para que está vocacionado ou destinado (ac, do STJ, de 24/09/2003, proc. nº 03P2299, Henriques Gaspar).

É, por exemplo, entendimento dominante, como se sublinhou no ac. de 15/03/2023, proc. nº 19/21.8TRGMR.S1, Lopes da Mota, o de que o requerimento do assistente para abertura de instrução que não “narra” os factos deve ser rejeitado por “inadmissibilidade legal”. “Para chegar a esta solução, a jurisprudência segue vias diversas, fazendo apelo a “nulidade de conhecimento oficioso”, a “nulidade por falta de objeto”, a “inexistência”, a “falta de objeto de instrução”, à “equiparação” do requerimento à acusação manifestamente infundada, ao “não cumprimento da função processual para que está vocacionado”, à “inadmissão por ilegalidade”2.

E caberá outrossim no conceito de inadmissibilidade legal da instrução, é bom de ver, o RAI que pede ao Juiz de Instrução aquilo que a este não está cometido.

Àquilo que é o âmbito material da cláusula geral da inadmissibilidade legal da instrução responderá, em concreto, a afirmativa à seguinte pergunta: o RAI, sem mácula em termos processuais, está a atacar a errada valoração dos indícios colhidos na investigação?

Se o RAI couber na finalidade de ataque à errada valoração pelo MºPº dos indícios colhidos na investigação será apto a desempenhar a sua função de pedido de abertura da instrução. E está-se a pedir ao JI aquilo que ao JI cabe. Já se o RAI se limitar a contestar alegada insuficiência de investigação ou tiver qualquer outro fito estaremos perante pedido inepto para abertura de instrução; estar-se-ia a pedir ao JI aquilo que legalmente lhe não está cometido.

Exactamente porque, como manda o artigo 286º, nº 1, do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” O Juiz de instrução, perante os elementos apurados no inquérito, acrescidos dos atos que (facultativamente) “entenda levar a cabo” (art. 289º, nº 1) e da substância do (obrigatório) debate instrutório, (art. 289º, nº 1) há de, pois, em escrutínio materialmente jurisdicional, decidir se aqueles factos (e só factos são apreciados – art. 287, nº 1), constituem, ou não, crime.

II.2. Estando perante um RAI apto ao desempenho da sua função processual não deve o mesmo ser rejeitado. Deverá ser admitido e, depois, em sede de instrução apreciar o mérito da questão.

Mas o despacho de abertura da instrução há de limitar-se a julgar da admissibilidade ou não do RAI. Não pode entrar a apreciar antecipadamente o mérito da questão. O despacho de abertura ou rejeição do RAI limita-se a isso mesmo, ou abrir ou rejeitar. O mérito da questão há de ser apreciado a final da instrução. Natureza e tempos processuais distintos têm o despacho que defere ou rejeita o RAI e o despacho de pronúncia ou não pronúncia.

O JI no despacho, neste caso, de rejeição, não pode antecipar um juízo de apreciação do mérito e, antes do tempo próprio, com os elementos do inquérito concluir sem mais que os factos não constituem crime. (cfr ac. do STJ de 17/05/2002, proc. nº 02P4215, Oliveira Guimarães)

Primo, defere-se ou rejeita-se o RAI, secundo, pronuncia-se ou não o arguido. Por esta ordem, em despachos finalisticamente diferentes e em tempos cronológicos e processuais distintos. Só depois de admitido o RAI é que sobrevem a apreciação de mérito. A questão de mérito, acerto ou desacerto da posição do MºPº, constituirá o cerne do objeto da instrução, na amplitude determinada pelo JI, e especificamente do (imprescindível) debate instrutório, se só este se realizar.

O despacho de abertura ou rejeição da instrução só visa decidir da existência ou não da subsequente fase processual.

Daquilo que acabamos de expor é um bom exemplo o ac. do STJ de 31/05/2023, proc. nº 260/21.3TRLSB, Carmo Silva Dias. um caso em que se pedia ao JI que, substituindo-se ao MP, completasse as funções de investigação no inquérito e que a este estão cometidas na estrutura acusatória do nosso processo penal.

Como aí se disse, “a assistente não foi capaz de cumprir a função que lhe incumbia quando apresenta o RAI.

Mas, além disso, o que se passa neste caso, é que, a recorrente no RAI, no ponto II, indica provas que pretende que o JI leve a cabo para sustentar uma acusação, provas essas que, na sua perspetiva, não foram recolhidas em fase de inquérito pelo Ministério Público, que é o investigador.”

E rejeitou-se o RAI. E bem. Todavia o que aí estava em causa era uma situação bem diferente da sub judicio, o RAI, aí, apontava para uma insuficiência de diligências e tal insuficiência de investigação não pode ser atacada por via de instrução. E bem se decidiu, evitando entregar a atividade materialmente policial ou investigatória específica do inquérito ao JI, a quem está destinado processualmente uma função materialmente jurisdicional ou de garantia. E não a fornecer um suplemento de investigação aos sujeitos processuais.

Igualmente para “questionar a atuação do MºPº em termos de ter ignorado certos factos ou pressupostos agentes deles não dirigindo relativamente a uns e a outros diligências de investigação,” deverá o assistente lançar mão da intervenção hierárquica (art. 278). (in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, III, António Gama et alii, Almedina, 2ª edição, nota ao artigo 287). Ora, no caso sub judicio o MºPº não ignorou os factos, concretamente aqueles que, na versão do assistente, traduziriam abuso de poder ou violação de deveres nem aqueles suscetíveis de integrarem o elemento subjetivo, o que disse é que não tinham a virtualidade de constituírem uma coisa ou outra. E “em tratando-se de arquivamento por razões jurídicas (por exemplo, porque o MP entendeu que os factos indiciados não integram qualquer crime), o assistente pode requerer a abertura da instrução nos termos gerais com vista a obter um despacho de pronúncia que dê guarida à sua distinta perspetiva jurídica dos factos cuja indiciação, como o MP, ele não contesta.” (idem, ibidem)

A instrução tem objeto o escrutínio da decisão de acusar ou de não acusar, visa a sindicância da errada valoração de indícios. Não tem por objeto atacar deficiente ou insuficiente investigação. Não é, no modelo entre nós consagrado, um suplemento investigatório posto a cargo de um juiz de instrução criminal, nem um instrumento de sindicância da atuação do Ministério Público ao longo do inquérito — mas antes, e tão-somente, uma fase destinada a comprovar o acerto da decisão tomada pelo Ministério Público no sentido de deduzir acusação ou arquivar o inquérito.

O fim da instrução, neste caso, é aferir da bondade, ou não, do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público. Mas a seu tempo.

Aqui e agora, no RAI, não falece a descrição clara, ordenada e suficiente dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito penal imputado ao denunciado e contém o mesmo, também de forma clara, a indicação das disposições legais aplicáveis. E a assistente afirma a sua razão da discordância, a saber, a desconsideração do MP pelos elementos típicos suprarreferidos que, pugna a assistente, se extraem da prova produzida no inquérito.

Ora, se há uma narrativa completa dos factos compatíveis com uma acusação mister é que o JI diga, depois de realizado o debate instrutório e de anterior(es) eventual(ais) diligência(s) que entenda realizar se, afinal, a narrativa do assistente é a que está de acordo com a prova recolhida. Nos termos da nossa estrutura processual penal, enfatizando o papel garantístico do JI, a instrução basta-se com a realização do debate instrutório.

E, assim, se procederá ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar; repete-se da decisão de arquivamento sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento, não da forma de investigação, em termos de completude, suficiência ou bem fundado da realização das diligências.

Se se afigurar que outra, em termos de prefiguração de solução possível e plausível na valoração dos indícios, pode ser a opinião do JI deve aceitar-se a realização da instrução.

II.7. No caso, no que toca à factualidade objetiva decorrente do processado, todos estão de acordo. A discordância entre o MºPº e a assistente reside em saber se a factualidade apurada integra o elemento típico abuso de poderes ou violação de deveres e se integra o elemento subjetivo do tipo, a intenção. Enquanto o MºPº decidiu pela sua inverificação e, na decorrência, por falta de tais elementos típicos, acabou no arquivamento dos autos, já a assistente pugna que tais elementos típicos se verificam e, verificando-se, no preenchimento de todos os elementos do tipo a arguida não podia deixar de ser acusada.

O RAI satisfaz os requisitos da descrição fatual do nº 2. Tanto no objetivo como no subjetivo.

No art. 26º do RAI a assistente afirma que “Com a referida conduta, e smo, a Denunciada quis e conseguiu prejudicar a Denunciante.” E, depois de salientar o abuso de poderes ou a violação de deveres e a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, como elementos típicos integrantes do artigo 382º do CP, no artigo 30º, adita que “Com a referida conduta, a Denunciada prejudicou a Denunciante, retirando-lhe a guarda da Filha, como havido referido na Conferência”. E no artigo 34º acrescenta que “No caso em apreço, está em causa a conduta de uma Juiz de Família e Menores que interferiu por ser Juiz titular do processo, no sentido de prejudicar a Denunciante revertendo a guarda, num processo de Alteração das Responsabilidades Parentais e num Recurso sobre uma decisão sua impedindo que o mesmo subisse pelo que estão indiciados os elementos objectivos e subjectivos do tipo.”

A assistente pretende que o JI sindique o despacho de arquivamento no que tange (i) ao alegado abuso de poderes ou violação de deveres e (ii) e à alegada intenção de causar prejuízo, que o Ministério Público considerou inverificados e que a assistente quer como verificados. O MºPº excluiu quer o abuso de poderes ou violação de deveres quer a intenção de prejudicar, na inexistência de qualquer elemento indiciário ou probatório que sustente tais elementos do tipo. A assistente entende de forma radicalmente inversa. Qual deles tem razão? O JI decidirá.

Pelo que, forçoso é concluir, estamos perante um ataque da assistente à alegada errada valoração dos indícios colhidos na investigação. E, assim, não pode deixar de ser admitida a instrução.

O recorrido despacho de rejeição do RAI começa por citar os termos do RAI, depois transcreve no pertinente o despacho de arquivamento, e, por último, em “Apreciação”, acaba a fazer exaustiva apreciação dos indícios apurados para concluir pela “improcedência do pedido de abertura da instrução, por manifesta inviabilidade de os factos constituírem crime.”

Mas alheia-se da sua específica função, saber se o RAI, formal e materialmente, tem capacidade e é idóneo e prestável para abertura da instrução.

O despacho que aqui rejeita o RAI não se debruça nem sobre os requisitos formais do RAI nem sobre se, materialmente, a fundamentação e o pedido do RAI cabiam dentro do conceito de “inadmissibilidade legal da instrução.”

Assim, em vez de apreciar se estamos perante caso de inadmissibilidade legal da instrução, entra prematuramente na apreciação e valoração dos indícios para concluir que toda a matéria de facto apurada não tem suporte para preencher o elemento típico da intenção de causar prejuízo. Ou seja, antecipa o julgamento da questão de mérito. Que só deve ser feito na fase de instrução, depois de esta ser aberta, se for caso disso. E acaba a constituir um prematuro despacho de não pronúncia.

Efectivamente, em “III-Apreciação”, o despacho recorrido enuncia que “a questão que se coloca é precisamente a de saber se desses factos se retira a prática de actos que preencham os elementos objetivos e subjetivos do tipo a que a assistente alude.” Mais adiante volta a sublinhar-se que “a questão que se coloca, nos autos, é portanto saber se a conduta da denunciada foi determinada pela intenção de causar prejuízo à recorrente, sendo que esse prejuízo , tal como esta o define, decorre da retirada da guarda da filha , que acrescente-se desde já , foi feita enquanto medida provisória , quando a menor estava de facto entregue aos cuidados do pai na ....”

Todavia, não é essa a questão que se coloca ao despacho recorrido. A questão que tem de resolver é sim, a montante, se a fase instrução deve ser aberta ou não, se o RAI deve ser deferido ou rejeitado.

Claro que, definindo a questão decidenda como a definiu o despacho recorrido, acaba a ditar o seguinte: “Analisada toda a matéria de facto imputada como suporte do crime, verifica-se que, de per se, considerando apenas o respetivo elemento literal, não tem suporte para preencher o elemento típico da intenção de causar prejuízo. Ora, o processo penal Português tem uma estrutura eminentemente acusatória, por força da qual o objecto do julgamento é, tão-somente, o objecto da acusação (art. 32/5 da, CRP). São os termos da acusação que fixam os poderes de cognição do Tribunal e os limites do caso julgado. Não tendo os factos deduzidos no RAI aptidão para configurar a prática de um crime, está prejudicada a submissão do imputado a julgamento.”

O que o despacho recorrido leva a cabo, (em grande extensão, diga-se), é, antes do tempo próprio, a valoração dos indícios para concluir, necessariamente de forma prematura, que a valoração dos indícios efetivada pelo MºPº não merece censura e é de manter. Erradamente, porque o despacho recorrido só tinha que se debruçar sobre o deferimento ou rejeição do RAI, com abertura ou não da fase instrutória.

E deve ser aberta. Aqui o RAI tem aptidão para cumprir a sua função processual, que, concretizando, é a de submeter ao JI a decisão prolatada com a factualidade em causa, para que este decida, com as diligências que entender fazer, sendo que só o debate instrutório é obrigatório, se se verificam, ou não, aqueles elementos do tipo.

No despacho de abertura ou de rejeição da instrução não cabe a exaustiva análise e valoração de indícios, como no caso se fez, para, concluindo pela inexistência de indícios, se reiterar o arquivamento do inquérito e, por aí, “por manifesta inviabilidade de os factos constituírem crime”, se rejeitar o RAI. A aceitar-se que o despacho de rejeição do RAI tenha tal abrangência (i) estar-se-á a antecipar o despacho de não pronúncia, (ii) acaba a confundir-se esse despacho com o despacho de rejeição do RAI, (iii) com o que se descarta o despacho a que se refere o artigo 287, nº 3, do CPP, (iv) antecipando o julgamento de mérito, (v) criando, extra legem, uma nova causa de rejeição do RAI, a inexistência de indícios da prática de crime, e (vi) elimina-se contra legem uma fase processual, a instrutória.

Não estamos, pois, perante situação de inadmissibilidade legal da instrução. Recuperando a citação supra, “em tratando-se de arquivamento por razões jurídicas (por exemplo, porque o MP entendeu que os factos indiciados não integram qualquer crime), o assistente pode requerer a abertura da instrução nos termos gerais com vista a obter um despacho de pronúncia que dê guarida à sua distinta perspetiva jurídica dos factos cuja indiciação, como o MP, ele não contesta.”

Pelo que, não ocorrendo situação de inadmissibilidade legal da instrução, não pode ser indeferido o requerimento destinado à abertura dessa fase processual.

E o recurso procede.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita a instrução.

Sem tributação.

STJ, 11 de outubro de 2023

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro (Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Sénio Reis Alves (Juiz Conselheiro Adjunto)

_____


1. Em nota ao artigo 286º in “Comentário do Código de Processo Penal”, Paulo Pinto de Albuquerque discrimina dezasseis casos de inadmissibilidade legal da instrução. E in “Comentário Judiciário ao CPP”, em nota ao artigo 287º indicam-se também alguns, mas “sem pretensão de exaustividade e sem prejuízo de zonas mais ou menos cinzentas.”

2. No ac. do TC nº 358/2004 sublinha-se que o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência, acrescenta, decorre de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. E no ac. nº 636/2011, decidiu não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretados “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.