Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
31206/15.7T8LSB.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
ÓNUS DO RECORRENTE
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 11/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I – Deve ser rejeitada a impugnação da decisão de facto quando, nas conclusões, o recorrente não concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados (ainda que, previamente, no corpo da alegação, haja cumprido os demais ónus, especificando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa e deixe expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida).

II – Deve igualmente ser rejeitada a impugnação da decisão de facto por o recorrente (que não indicou nas conclusões a decisão alternativa pretendida) não haver sequer explanado, de forma inequívoca, no corpo das alegações, as “respostas” que os pontos de factos que considera incorretamente julgados devem passar a ter.

Decisão Texto Integral:


P.31206/ 15.7T8LSB.E1.S1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório

Royal Blue Equi LLC, intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA e MH Horses, Unipessoal, Lda., pedindo que:

“(…)

seja reconhecido o direito de propriedade da A. sobre os cavalos identificados no doe n° 11, tudo com as demais consequências legais;

seja ordenado às RR a entrega à A., de todos os cavalos, da propriedade da A., que tenham em seu poder, no prazo máximo de 10 dias, fixando-se uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso, em valor não inferior a € 300,00, tudo com as demais consequências legais;

seja anulado o registo, junto da A...., feito a favor da 2a Ré relativamente aos cavalos propriedade da A., tudo com as demais consequências legais, nomeadamente, a entrega pelas RR à A. de toda a documentação relativa aos cavalos;

seja ordenado, junto da A...., o registo, a favor da A. relativamente aos cavalos da sua propriedade tudo com as demais consequências legais;

seja reconhecido o direito da A. a ser reembolsada dos valores que as RR tenham recebido pelo aluguer dos garanhões, para reprodução, a liquidar em execução de sentença, tudo com as demais consequências legais;

sejam as RR condenadas no pagamento à A. de uma indemnização, a qual não deverá ser inferior a € 2.660.000,00, a liquidar em execução de sentença, tudo com as demais consequências legais. (…)”

Alegou, muito em resumo, que adquiriu os cavalos identificados nos autos à H..... .. ........, nome comercial de BB, pelo preço global de 241.700,00 €, sendo a l.a R. que tem os equídeos na sua posse, recusando-se a entregá-los à A..

As RR. contestaram, sustentando que os referidos cavalos foram pela 1.ª R. adquiridos a CC e, por isso, é a 1.ª R. a proprietária dos mesmos; e concluem pela absolvição dos pedidos.

Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém; tendo-se identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Instruído o processo e realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que se julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu as RR. dos pedidos formulados pela A..

Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, tendo-se, por Acórdão da Relação de Évora, proferido em 11/11/2021, negado provimento ao recurso dos RR., confirmando consequentemente a sentença recorrida.

Ainda inconformada, interpõe agora a A. o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que determine “(…) a remessa dos autos à Relação para que a) seja apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pela Recorrente Apelante e b) Sejam apreciadas as demais questões de Direito suscitadas pela Recorrente no recurso de apelação (…)”.

Terminou a sua alegação com conclusões em que refere:

(…)

A) Considerou o Acórdão Recorrido que a Apelante não deu cumprimento aos ónus processuais impostos pelos art.639º e 640º do Código de Processo Civil, no que diz respeito à impugnação da matéria de facto e à formulação de conclusões;

B) Com esse fundamento, o Acórdão recorrido não apreciou o mérito das impugnações de facto concretizadas no requerimento recursivo, rejeitando liminarmente o recurso nesse aspeto;

C) Ora, destarte, tal decisão reflete o que a Recorrente considera de medida extrema que contraria a jurisprudência consolidada nos tribunais superiores;

D) Nomeadamente, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 18/02/2021, nos autos do Processo nº18625/18.6T8PRT.P1.S1;

E) Já que, hoje em dia, parece à Recorrente ser entendimento unânime da jurisprudência que apenas a falta total de impugnação ou formulação de conclusões deverá levar à rejeição do recurso, o que, no caso em apreço, não se verifica.

F) De facto, entende a Recorrente que, no corpo das Alegações de recurso apresentadas, foi dado pleno cumprimento ao ónus da impugnação da matéria de facto prevista pelo art.640º, nº1 do C.P.C., ou seja, nas Motivações (vide art.3º a 5º), assim como na Parte II – Impugnação da matéria de facto dada por provada e não provada, discorrendo subsequentemente sobre a prova que considerou ser erradamente julgada, e discordando dela enquanto fundamento da matéria de facto dada por provada e da qual se discorda nas conclusões.

G) E mais, no corpo de Alegações, a Recorrente, ora Apelante, impugnou especificamente a matéria de facto que pretendia ser reapreciada (vide art. 33º das Alegações de Recurso, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido),

H) Bem como elencou os meios de prova que considerou incorrectamente julgados, e por terem fundamentado (vide art.35º das Alegações de Recurso) a matéria de facto impugnada no art.33º das Alegações.

I) E, de forma a dar pleno cumprimento ao ónus processual de ligação dos meios de prova aos factos impugnados, verifica-se que, no art.44º, nº6 das Alegações de Recurso, a Apelante aqui Recorrente, fez expressa referência ao facto impugnado - “[…] que nunca foi a Ré AA a realizar as despesas relacionadas com a manutenção dos cavalos[…]”

J) E neste mesmo art.44º, in fine, a Recorrente, ora Apelante, impugnou expressamente - “[…] atento a que não foi feita prova credível, pela Ré, no sentido de que era CC que lhe vendeu os cavalos […]” - o facto vertido no art.33º das Alegações (factos nº5, 6 e 8 da matéria de facto dada como provada pela Sentença do Tribunal de 1ª Instância, então recorrida).

K) Pois que nos artigos imediatamente anteriores (art.s 37º a 43º das Alegações de Recurso), a Recorrente, ora Apelante, apresentou os meios de prova que sustentavam tal impugnação de facto;

L) E ainda, não será de olvidar a referência aos art.50º, 55º, 56º e 60º das Alegações de Recurso, nos quais a Apelante, no âmbito da discussão dos meios de prova que deveriam sustentar uma decisão contrária pelo tribunal – e favorável à Autora, aqui Recorrente -expressamente impugna a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância, senão vejamos:

M) Como se vê, nos art.44º, 50º, 55º, 56º e 60º, a ora Apelante, aqui Recorrente, impugnou expressamente os pontos de facto impugnados, ou seja, e essencialmente, a venda dos cavalos à Ré, bem como os ligou aos pontos de facto não provados na Sentença do Tribunal de 1ª Instância.

N) E assim, para cumprimento do ónus previsto pelo art.640º, nº1, al.c) do CPC, a Recorrente então Alegante, remeteu a decisão que deveria ser dada nos autos, nos termos dos.63º a 65º das Alegações de Recurso, e Conclusão E,

O) Levando sempre ao entendimento que aqueles pontos de facto não deveriam ter sido provados, e por consequente, deveria ser alterada a matéria de facto para uma decisão contrária: procedência da acção e declaração de propriedade, com pagamento da indemnização devida, a favor da Autora, aqui Recorrente.

P) Logo, o sentido da decisão pretendida pela Apelante aqui Recorrente, não poderia ser outro senão a declaração da propriedade a favor da então Autora, com a necessária e peticionada indemnização subsequente, a qual nunca chegou a ser julgada;

Q) Pelo que, ao impugnar a matéria de facto, a Apelante aqui Recorrente pretendia que fosse julgada procedente a acção, com fundamento na impugnação exposta, com referência aos meios de prova que entendeu terem sido alvo de erro de julgamento.

R) Mais, sempre se dirá que “[...] a decisão de facto se consubstancia em juízos probatórios parcelares, positivos ou negativos, sobre cada um dos factos relevantes […]” (vide Ponto II do Sumário do Acórdão STJ – Revista nº124/12.1TBMTJ – 16/03/2016).

S) Assim sendo, minime, deveria ter o Acórdão recorrido considerado suficientemente impugnados os factos, enquanto decisões parcelares, nº6, 8, 9 e 10 (factos dados como provados) e factos não provados c), h), i), j) e k), e nestes termos deveria ter-se pronunciado;

T) Conforme se verificou anteriormente, a Recorrente então Apelante, impugnou especificamente a matéria de facto, bem como introduziu a mesma nas suas Conclusões, no âmbito da sistematização seguinte:

i) a prova testemunhal de CC: Conclusão A);

ii) a prova testemunhal de DD: Conclusão B);

iii) prova documental apresentada pela L…: Conclusão C);

iv) e sendo certo que, para efeitos de alteração da matéria de facto impugnada, alegou, novamente, a documentação que foi trazida por si na qualidade de Autora: Conclusões D) e E).

U) Logo, verifica-se o cumprimento da impugnação de facto em sede de Conclusões, nos termos dos art.640º e 639º do CPC, pois que, conforme se expôs, a ora Apelante, aqui Recorrente, enunciou, nas suas Conclusões, os fundamentos de facto que constituem as premissas essenciais do encadeamento lógico que conduziria à pretendida anulação da decisão recorrida – vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 11/02/2016 e relativo ao Processo nº157/12.8TUGMR.G1.S1.

V) Mais, verifica-se que o Tribunal a quo conseguiu apreender, sem qualquer dificuldade, qual o conteúdo das Conclusões, bem como conseguiu delimitar, em clara sintonia com o Requerimento de Recurso, qual o objecto do mesmo e a apreciação das questões subjacentes ao mesmo – vide fls.14 do Acórdão recorrido.

W) Já que, compulsando as conclusões do Requerimento, as quais se dão aqui por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais, observam-se os fundamentos pelos quais a parte entende que se justifica a alteração da decisão (cfr. Acórdão TRG nº:314698/11.1YIPRT.G1)

X) Assim considera a Recorrente que cumpriu o ónus processual, previsto pelo art.639º, nº1 do C.P.C. quanto à formulação de conclusões;

Y) Já que enunciou, de forma sintetizada e em cada ponto das suas conclusões, enquanto fundamentos de facto, não só a fragilidade da prova testemunhal impugnada, bem como os meios de prova da então Apelante que contrariavam essa prova testemunhal.

Z) Igualmente sublinhou nas conclusões que as Rés não tinham produzido qualquer prova documental que suportasse a prova testemunhal.

AA) Pelo que, máxime, deveria ter sido convidada a Apelante para aperfeiçoar as suas conclusões, nos termos do art.639º, nºs 1 e 3 do CPC, em clara sintonia com o estatuído pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 29/10/2019 – Processo nº738/03.0TBSTR.E1.S3

BB) Mais, foi aquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 29/10/2019 – Processo nº738/03.0TBSTR.E1.S3) que guiou a estruturação das Conclusões pela então Apelante.

CC) Assim sendo a então Apelante cumpriu com o definido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 09/06/2016 nos autos do Processo nº6617/07.5TBCSC.L1.S1:

“III - Se o recorrente, na enunciação das conclusões do recurso de apelação, seguiu uma determinada orientação jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto e de direito, nos termos dos arts. 639.º e 640.º do NCPC, é vedado à Relação abster-se de apreciar o mérito do recurso de apelação.” (vide Ponto III do Sumário)

DD) Desta forma, verificado que está (por tudo exposto quanto ao aperfeiçoamento de conclusões, e cumprimentos dos ónus processuais previstos pelos art.639º e 640º do CPC) por parte da Recorrente, o cumprimento do ónus previsto pelo art.639º, nº1 do Código de Processo Civil, deverá o Acórdão, neste particular, ser anulado, procedendo-se a necessária e legal apreciação da impugnação da matéria de facto requerida pela Apelante.

EE) Mais, a 11/12/2020, a então Autora (Apelante e aqui Recorrente) apresentou Requerimento (Ref.Citius .....86), o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os devidos efeitos.

FF) As Rés exerceram contraditório ao mesmo requerimento a 06/01/2021 (Ref.Citius nº.....26), e, por Despacho de 03/03/2021 (Ref.Citius nº......65), veio o Mmo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Évora decidir no sentido de manutenção nos autos do dito requerimento de aperfeiçoamento de conclusões.

GG) Não obstante, por Despacho de 21/06/2021 (Ref.Citius nº.....20), considerou o Exmº Sr Relator que o Requerimento de Aperfeiçoamento não tinha cabimento legal, por ser relativo ao aperfeiçoamento da impugnação da matéria de facto, o qual não é permitido por lei.

HH) Pela Conferência do Tribunal da Relação de Évora, por Acórdão de 23/09/2021 (Ref.Citius nº.....24), reproduziu, essencialmente, o Despacho do Relator de 21/06/2021, indeferindo a Reclamação, e nessa senda, mantendo o desentranhamento do Requerimento de Aperfeiçoamento das Conclusões.

II) Ora, não se conformando com tal apreciação da Conferência, e porque da conjugação dos art.671º, nº1 e 673º do Código de Processo Civil, podem os Acórdãos interlocutórios ser impugnados no Recurso que vier a ser interposto a final, quando sendo admissível, o Recorrente optar por não apresentar Recurso Autónomo (vide Acórdão do STJ nº6383/16.3T8VNG.P1-A.S1, de 26/11/2020), a Recorrente pretende ver apreciada esta questão pelo Tribunal de Recurso.

JJ) Porquanto, considera, tal como foi explanado em sede de reclamação, que o requerimento por si apresentado foi atinente, exclusivamente, ao aspecto formal das Conclusões, não se alterando qualquer elemento substancial quanto à matéria de facto impugnada;

KK) Antes esclarecendo a referência ao que tinha alegado nas Alegações, mas que não tinha descurado nas Conclusões.

LL) Nesse sentido, entende a Recorrente que o aperfeiçoamento tem portanto cabimento legal, nos termos do art.639º, nº3 do Código de Processo Civil.

MM) Pelo exposto deve ser anulado o Acórdão da Conferência do Tribunal da Relação de Évora, datado de 23/09/2021 (Ref.Citius nº.....24), bem como o Despacho do Exmº Sr Relator de 21/06/2021 (Ref.Citius nº.....20),

NN) Com consequência de manutenção nos autos do Requerimento de Aperfeiçoamento apresentado pela então Autora a 10/12/2020, e com a necessária e subsequente verificação dos ónus processuais que sobre si impediam, devendo o Tribunal recorrido conhecer do mérito da impugnação da matéria de facto.

OO) Pelo exposto, deverá ser revogado o Acórdão da Conferência de 23/09/2021.

PP) Conforme se viu (art.91º e 92º das Motivações do presente recurso para as quais aqui se remete) o raciocínio lógico apresentado pelo Acórdão recorrido divaga entre os dois concretos e separados institutos de direito que se acabaram de discutir, ou seja, o ónus de impugnação da matéria de facto, e o ónus de formulação de conclusões.

QQ) Olvidando, neste quadro, de mencionar se, afinal, também não foi cumprido o ónus de formular Conclusões.

RR) Entende a Recorrente estar perante um vício de fundamentação da sentença, baseado na obscuridade da mesma (vide Acórdão do STJ, no Processo nº06P4086, de 11/04/2017), nos termos e para os efeitos do art.669º, nº1, al.a) e nº3 do Código de Processo Civil, requerendo-se assim, subsidiariamente e para o caso de não ser procedente a anulação da sentença neste âmbito da rejeição do recurso, então, a aclaração da mesma, nos termos dos preceitos acabados de aludir.

SS) Mais, considerou a decisão recorrida que a ampliação da matéria de facto requerida, entre outros, na Conclusão F e respectivas subconclusões, estava vedada por força da ampliação requerida extravasar o objecto do recurso, representando uma questão nova.

TT) Ora, face ao que se acabou de reproduzir, convirá, num primeiro tempo, retomar o que foi alegado pela então Autora, aqui Recorrente, em sede de Petição Inicial (cfr art.9º, 10º, 20º, 21º e 22º da PI);

UU) Ou seja, conforme consta do Doc.1 da Petição Inicial apresentada, a então Autora alegou ter adquirido a BB os cavalos objecto do litígio pelo valor de 241.700,00€.

VV) E, do Doc.6, na versão traduzida, in fine (vide fls. 52 do Requerimento de 16/11/2015 com Ref.Citius nº7649128), consta que BB actuou no acompanhamento da compra/venda dos cavalos a favor da então Autora.

WW) Ora, o comparecimento desta testemunha foi requerido pelas RR, conforme Contestação apresentada, no entanto, por razões que se desconhecem, esta testemunha nunca chegou a depor.

XX) Logo, tornou-se necessário, perante a ausência de depoimento na audiência de julgamento, ampliar a matéria de facto de forma a que se averiguasse o destinatário dos pagamentos dos cavalos efectuados pela então Autora, aqui Recorrente, sendo certo que a Recorrente requereu diligências de prova, nos termos do art.662º, nº2 do CPC, para confirmar – poder este fora do seu alcance individual – se as sociedades a quem foram efectuados pagamentos, nos termos do Doc.2-A que se referiu, eram detidas pelos proprietários registados, à data dos negócios jurídicos em causa, junto da L….

YY) De facto, tal necessidade de ampliação da matéria de facto verificou-se porque a testemunha não compareceu em julgamento, limitando-se assim a capacidade de comprovar a alegada aquisição, mas porque igualmente existiu uma contradição insanável na prova que fundamenta a decisão da 1ª instância – em que a testemunha CC, cujo depoimento foi altamente valorado, não dispunha dos direitos necessários à venda dos cavalos, prova contrariada pelas próprias RR na documentação que juntaram aos Autos.

ZZ) E porque a testemunha era apenas um comerciante de cavalos, que agia por conta de terceiros, verificou-se, para apuramento da verdade material, a necessidade de descobrir se as entidades para as quais foram transferidas as verbas por EE, em nome da Autora, eram as entidades com propriedade registada dos cavalos objecto do presente litígio, outras que a testemunha CC indicada pelas RR.

AAA) Pois só nesse momento entendeu a Autora aqui Recorrente, que o julgamento iria findar sem que tivesse tido oportunidade de complementar a sua prova de aquisição dos cavalos dos autos, pois que, de facto, os pagamentos foram efectuados a alguém – inclusive FF – pelo que urge a descoberta dos destinatários de tais pagamentos.

BBB) E neste particular, ainda que o Acórdão Recorrido não tivesse reapreciado a matéria de facto, com fundamento – errado no nosso entender – que a impugnação não cumpria os ónus dos art.640º e 639º do CPC, sempre se imporia essa revisão da matéria de facto com fundamento no erro de julgamento que foi invocado em sede de Alegações de Recurso, e que adiante melhor se explanará.

CCC) Mais refere o Acórdão que tal questão, por não ser de conhecimento oficioso, não era apreciável pelo Tribunal ad quem.

DDD) Contudo, tal visão contraria, de forma flagrante, a visão do Supremo Tribunal do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 17/10/2019 relativo ao Processo nº3901/15.8T8AVR.P1.S1

EEE) Logo, errou o Acórdão recorrido na interpretação da norma vertida (vide art.674º, nº674º, nº1, al.b) do CPC) pelo art.662º, nº2, al.c) do Código de Processo Civil, sendo porquanto anulável esta decisão sobre a ampliação da matéria de facto.

FFF) Invocou a Apelante, ora Recorrente, no âmbito das suas Conclusões – nomeadamente E - o erro de julgamento da Sentença (de 1ª Instância) recorrida.

GGG) De facto, apesar da prova produzida não ter tido o colhimento expectável – daí a necessidade de recurso com ampliação da matéria de facto nos termos do art.662º, nº2, al.c) do CPC – não se pode em bom rigor, dizer que a então Autora, aqui Recorrente, não deu cumprimento ao ónus de comprovar os factos alegados em sede de Petição Inicial.

HHH) Bastará para tanto verificar a prova produzida em audiência de julgamento, mediante declarações de parte;

III) Bem como o conteúdo do Documento 2-A Doc.2-A do Requerimento (Referência .....64) de 01/06/2020 e alvo de Despacho de Deferimento de Junção aos autos (vide Decisão de 17/06/2020 . Ref......20), conforme se invocou no art.52º das Alegações de Recurso apresentadas pela então Apelante, aqui Recorrente.

JJJ) Ainda, a então Autora produziu prova para demonstrar o intuito comercial altamente lucrativo ao qual as então RR destinavam os cavalos adquiridos pela então A, conforme Doc.7 junto com a Petição Inicial.

KKK) Ora, perante a prova que produziu – mormente os comprovativos de transferência para pagamento – entendeu a então Apelante, na sequência do julgamento em 1ª instância, que a prova produzida pelas Rés – exclusivamente fundada em testemunhas, sem qualquer prova credível quanto à forma e montantes dos pagamentos efectuados – não era suficiente para a decisão tomada, razão pela qual se invocou o erro de julgamento.

LLL) Ou seja, a decisão, perante a contradição insanável da prova (testemunha CC e documentos de propriedade submetidos pelas RR – Doc.6 da Contestação – que demonstram que não era CC a proprietária que vendeu os cavalos, pelo que errou o tribunal a quo, bem como o de 1ª instância, por má aplicação do art.342º, nº3 do Código Civil

MMM) E neste aspecto, a Apelante aqui Recorrente deixou claro que o tribunal a quo tinha errado no julgamento, pois que existia contradição na própria prova produzida pelas RR (vide art.56º e 59º das Alegações de Recurso).

NNN) Pois apontou pelo menos duas contradições flagrantes na prova – testemunha e documental – produzida pelas Rés, de per si, mas igualmente quando alicerçada à prova produzida pela então Autora, aqui Recorrente, ou seja:

a) o depoimento da testemunha CC admite uma primeira transferência bancária cuja origem desconhece, sendo no entanto certo que o Doc.2-A apresentado pela então A. demonstra que foram efectuadas transferências bancárias para a própria testemunha (vide nomeadamente Conclusão A, in fine, das Alegações de Recurso);

b) existe contradição na matéria probatória das próprias RR, já que o depoimento da testemunha CC, conforme se alegou oportunamente, esbarra no Documento nº3 apresentado com a Contestação, por parte das RR (vide art.63º das Alegações de Recurso, e Conclusão E), onde se demonstra que CC, não constando da lista de proprietárias do documento de registo, não os podia vender por não serem sua propriedade, ao contrário do que sustentou em julgamento.

OOO) Assim sendo, estamos perante uma contradição insanável da prova que fundamenta a sentença de 1ª Instância recorrida, a qual gera portanto uma dúvida insanável perante a matéria de facto dada como provada e não provada, cabendo ao Tribunal a quo (da Relação), julgar em conformidade com o direito (art.342º, nº3 do Código Civil), sem prejuízo da necessária ampliação de matéria de facto (art.662º, nº2 do CPC), pelo que in casu, o Tribunal da Relação a quo interpretou mal a lei substantiva e processual – vide art.674º, nº1, al.a) e b) do CPC.

PPP) E, nos termos do art.342º, nº3 do Código Civil: “Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.”, aplicando-se aqui a ideia dada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 07/02/2017, e relativo ao Processo nº3071/13.6TJVNF.G1.S1: “II - O S.T.J. limita-se a aplicar aos factos definitivamente fixados pelo Tribunal recorrido o regime jurídico adequado.”

QQQ) Logo, e ainda que o erro de julgamento da 1ª instância não foi resolvido pelo Tribunal da Relação a quo, violando-se assim a lei substantiva e processual, conforme exposto, e assim torna-se a decisão de direito do Acórdão aqui recorrido impugnável, pois que, interpretou e aplicou de forma errada a previsão normativa do art.662º, nº2, al.c) do CPC, por lhe ser possível a ampliação da matéria de facto, sendo certo que também não aplicou a norma do art.342º, nº3 do Código Civil;

RRR) Bem como errou no âmbito da reapreciação crítica da prova, ou seja pela aplicação errada do art.342º, nº3 do Código Civil, remetendo exclusivamente para o art.342º, nº1 do Código Civil, descurando os seus deveres processualmente fixados – art.674º do CPC;

SSS) O Acórdão recorrido viola assim a lei substantiva e processual – art.342º, nº3 do Código Civil, art.662º, nº2, al.b) e 674º, nº1, al.b)do CPC.

TTT) Pois que, perante a contradição que se verificou, deveria ser outra a decisão de recurso, ou seja, os factos deveriam ter sido dados por provados, nos termos do art.342º, nº3 do Código Civil.

UUU) Ora, perante o exposto e da contradição na prova, é límpido que, independentemente da entidade real a quem a A. aqui Recorrente, pagou os cavalos, não foram as RR que adquiriram os cavalos, na totalidade, à testemunha que foi considerada como vendedora dos 65 cavalos em apreço.

VVV) E neste sentido, não era possível ao tribunal recorrido decidir conforme decidiu, isto sem proceder num primeiro tempo à necessária ampliação da matéria de facto, mediante os seus poderes inquisitórios legalmente impostos pelo art.662º, nº2 do CPC.

WWW) Ou seja, quando, para além da prova produzida, foi expressamente requerido que se indagasse da contradição da prova que fundamentou a matéria de facto, o Tribunal a quo nada fez nesse sentido, não indagando tal premissa, nem tampouco fazendo referência à mesma, o que demonstra a fragilidade da fundamentação quanto ao erro de julgamento em sede do Acórdão aqui recorrido.

XXX) Ocorrendo ainda uma eventual nulidade por omissão de pronúncia,

YYY) Já que, nos termos das Alegações de Recurso apresentadas, foi invocada, para efeitos de erro de julgamento, uma contradição entre a prova apresentada pelas próprias RR;

ZZZ) Ora, a omissão de pronúncia constitui uma nulidade insanável do Acórdão, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte do CPC, o qual é aplicável aos acórdãos da Relação (art.666º do CPC).

AAAA) Pelo exposto, perante a violação da lei processual - art.342º, nº3 do Código Civil e art.662º, nº1 e 2, al.b) do CPC (por força da contradição inequívoca na prova que sustenta a matéria de facto dada por provada e não provada) – e omissão de pronúncia quanto à contradição e decorrente erro de julgamento – art.615º, nº1, al.d) do CPC ex vi do art. 666.º do mesmo Código, deverá ser o Acórdão, neste conspecto, anulado.

BBBB) E assim, face ao exposto neste Recurso de Revista, o Acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que confirme o peticionado pela Ré em 1 ª Instância, pois que:

a) foi mal interpretada e aplicada a lei processual, como se viu em I das presentes Motivações de Recurso, cujos argumentos se dão aqui por integralmente reproduzidos, no que diz respeito ao cumprimento dos ónus previstos pelos art.639º e 640º do CPC, devendo ser alterada a decisão, e conhecida a impugnação da matéria de facto, nos termos pretendidos pela Apelante, aqui Recorrente – vide art.639º, 640º e 674º, nº1, al.b), todos do Código de Processo Civil;

b) errou em julgamento ao considerar que a requerida ampliação da matéria de facto constitui “nova questão”, por errada aplicação da lei processual (vide Ponto III Sumário do Ac.STJ 11/04/2019 – Processo nº308/16.3T8PTM) o Tribunal da Relação recorrido, como se viu em II das presentes Motivações de Recurso, cujos argumentos se dão aqui por integralmente reproduzidos, quanto à necessária ampliação da matéria de facto, nos termos pretendidos pela Apelante, aqui Recorrente – vide art.662º, nº1 e 2 al.b) e 674º, nº1, al.b), todos do Código de Processo Civil;

c) errou em julgamento o Acórdão recorrido, por violação da lei processual – art.662º, nº2, al.b) do Código de Processo Civil – e má interpretação da lei substantiva – art.342º do Código Civil - como se viu em III das presentes Motivações de Recurso, cujos argumentos se dão aqui por integralmente reproduzidos, quanto à reduzida visão dos factos alegados em sede de petição inicial – vide art.342º, nº1 e 3 do Código Civil, art.662º, nº2, al.b) e 674º, nº1, al.a) e b) do Código de Processo Civil;

d) existe nulidade da decisão, por omissão de pronúncia nos termos do art.615º, º1, al.d) do Código de Processo Civil, quanto ao invocado erro de julgamento por contradição, nada dizendo o Acórdão recorrido sobre o mesmo, antes dizendo que a Recorrente simplesmente não fez prova dos factos alegados, o que constitui erro de julgamento – vide art.662º, nº2, al.b), art.615º, nº1, al.d) e art.674º, nº1, al.b).

CCCC) E ainda, pelas razões expostas no presente Corpo de Alegações para o qual se remete

neste particular, entende a Recorrente que o Requerimento de aperfeiçoamento das Conclusões datado de 11/12/2020 (Ref.Citius .....86) deveria ter sido aceite, por ter cabimento legal na previsão do art.639º, nº3 do Código de Processo Civil;

DDDD) Já que, como se expôs, a então requerente apenas reformulou as conclusões, não alterando a sua impugnação da matéria de facto;

EEEE) E porque, sendo formal o aperfeiçoamento pretendido, tal – tendo sido exercido contraditório – não violava a lei;

FFFF) Porquanto, deverá ser revogado o Acórdão da Conferência, datado de 23/09/2021 (Ref.Citius .....24), e substituído por outro que aceite o Requerimento, com as legais consequências ao nível da formulação de conclusões e impugnação da matéria de facto.

Nestes termos, nos mais de direito, e sempre com o douto suprimento de V.a Ex.a, o Acórdão recorrido deverá ser anulado/revogado, e nesse sentido, deverá o Tribunal a quo proferir nova decisão nos presentes autos, em sintonia com as alegações do presente recurso de revista bem como do recurso de apelação e da Petição Inicial, oportunamente apresentados, ou seja, que a A. aqui Recorrente é efectivamente proprietária dos cavalos em questão, tendo pago o preço através de outras sociedades do seu representante e devendo ser ressarcida dos prejuízos negociais causados pela uso comercial indevido dos cavalos que constituem a sua propriedade, tudo conforme inicialmente peticionado nos presentes autos.

(…)”

As RR. responderam, sustentando que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente, as referidas pela recorrente, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação

Como resulta do despacho que admitiu a presente revista, esta circunscreve-se à questão de saber se a A. (enquanto apelante) cumpriu (ou não) devidamente os ónus impostos pelo art. 640.º do CPC.

O Acórdão recorrido rejeitou a impugnação da decisão sobre a matéria de facto (por inobservância dos ónus impostos pelo art. 640.º do CPC) e, verificando-se uma situação de dupla conformidade que obsta à admissibilidade da revista (cfr. 671.º/3 do CPC), esta só passou a ser admissível por se haver firmado, neste Supremo, o entendimento de que não há dupla conforme quando a questão invocada, no recurso de revista, é a violação de normas de direito adjetivo relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto (os arts. 640.º e 662.º do CPC); e, claro, se a revista só é admissível por se haver invocado a violação de tais normas de direito adjetivo, só esta questão pode constituir-se em objeto válido da revista, não se podendo “aproveitar” a revista admitida com tal estrito objeto para introduzir e suscitar outras e diversas questões (designadamente questões em relação às quais se verifica a dupla conformidade que obsta à admissibilidade da revista).

Daí a afirmação inicial: esta revista circunscreve-se à questão de saber se a A. (enquanto apelante) cumpriu (ou não) devidamente os ónus impostos pelo art. 640.º do CPC.

Aliás, a recorrente inicia as conclusões da revista a dizer1:

“A) Considerou o Acórdão Recorrido que a Apelante não deu cumprimento aos ónus processuais impostos pelos art.639º e 640º do Código de Processo Civil, no que diz respeito à impugnação da matéria de facto e à formulação de conclusões;

B) Com esse fundamento, o Acórdão recorrido não apreciou o mérito das impugnações de facto concretizadas no requerimento recursivo, rejeitando liminarmente o recurso nesse aspeto.”

Debrucemo-nos então sobre tal estrito objeto da revista:

Começando por enfatizar que o que está em causa é saber se o Acórdão recorrido, ao rejeitar o recurso sobre a impugnação da decisão de facto, não respeitou (violou) as normas de direito adjetivo que estabelecem os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto.

Assim, encurtando razões, tudo se resume a saber se a ora recorrente, enquanto apelante, cumpriu os ónus impostos pelo art. 640.º do CPC, na medida em que, caso se entenda que cumpriu tais ónus, a conclusão inevitável é a de que, então, o Acórdão recorrido, ao rejeitar o recurso sobre a impugnação da decisão de facto, violou as normas de direito adjetivo que estabelecem tais ónus.

Em termos práticos, a tarefa do Supremo reconduz-se pois a “confrontar” as alegações e conclusões da apelação com as exigências/ónus impostos pelo correto entendimento/interpretação do art. 640.º do CPC.

Começando pelo correto entendimento/interpretação do art. 640.º do CPC:

Para o recurso de apelação abarcar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o apelante, em face do disposto no art. 640.º do CPC:

- indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com a respetiva enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

- especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (e, se a impugnação se fundar, no todo ou em parte, em prova gravada, indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes, podendo proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos);

- deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.

Pelo que, sendo assim, deve ser rejeitada a impugnação da decisão de facto se e quando houver:

- falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (arts. 640.º/1/a), 635.º/4 e 641.º/2/b) do CPC);

- falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados e/ou falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda (art. 640.º/1/b) e 2/a) do CPC);

- falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (art. 640.º/1/c) do CPC).

Efetivamente, sem prejuízo dos ónus a cargo do recorrente, impostos pelo art. 640.º do CPC, deverem ser apreciados com rigor – como consequência do princípio da autorresponsabilidade das partes – impedindo-se que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa manifestação genérica de inconformismo das partes, o certo é que este STJ vem defendendo que há que compaginar o cumprimento dos ónus de alegação do art. 640.º com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e assim evitar, em tal apreciação, os efeitos dum excessivo formalismo2.

É justamente por isto que se vem entendendo – entendimento este consolidado no AUJ deste Supremo, de 17/10/2023, proferido no processo 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 – que o recorrente não tem que reproduzir exaustivamente nas conclusões da alegação de recurso o alegado no corpo da alegação, bastando que, nas conclusões, respeite o art. 639.º/1 do CPC, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados; desde que, como é evidente, previamente, no corpo da alegação, haja cumprido os demais ónus, especificando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa e deixe expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida.

Efetivamente, como é consistentemente referido pela jurisprudência deste STJ3, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635.º/4 do CPC, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões, até por, acrescenta-se, as conclusões confrontarem o recorrido com o ónus de contra-alegação, evitando dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente, e servirem ainda para delimitar o objeto do recurso (nos termos do referido art. 635.º do CPC).

Passando às alegações e conclusões da apelação:

“(…)

2º - não pode a Recorrente conformar-se com a referida decisão.

3º - Desde logo, porque da prova produzida não se poderia ter dado como provado que a Ré AA, nem a sociedade MH Horses – Unipessoal, Lda, adquiriu os cavalos constantes dos autos, nem tão pouco que teve a seu cargo as despesas decorrentes da necessária manutenção dos referidos cavalos.

4º - Desde modo, deveria o douto Tribunal a quo ter decidido pela procedência da presente ação e consequente condenação das Rés nos pedidos formulados pela Autora, mormente no âmbito da reivindicação da propriedade dos cavalos dos autos pela Autora aqui Recorrente, e pagamento das indemnizações subsequentes devidas a esse título.

5º - Assim, a Recorrente impugna a matéria de facto e de direito, por errado julgamento, mormente no que determinou os factos dados como provados e não provados, factos estes que tiveram ulteriores consequências na decisão proferida.

B) O presente recurso versa também sobre a aplicação ao caso vertente dos preceitos estipulados pelo art.662º, nºs 1 do Código de Processo Civil, já que o conjunto da prova produzida não pode levar à decisão que o Tribunal a quo tomou.

C) Bem como versa igualmente o presente Recurso sobre o estatuído pelo art.662º, nº2 do Código de Processo Civil, como ulteriormente se alegará, a prova testemunhal produzida a favor da Ré não pode ser considerada credível quando confrontada com a documentação, mormente o Doc.3 da Contestação, Doc7 da Petição Inicial e Doc.2-A do Requerimento (referência nº.....64) de 01 de Jungo de 2020.

D) Sem prejuízo da necessária ampliação da matéria de facto, de forma a saber, mediante diligências para obtenção de documentação particular sigilosa, se a testemunha CC, como falsamente refere, era proprietária dos cavalos objecto do presente litígio, no momento da sua alienação (no decorrer da qual foram registados em nome da Ré AA, sem se fazer prova de que foi esta quem efetivamente os pagou, ao contrário da prova produzida pela Autora aqui Recorrente).

(…)

I – Da matéria de facto e de direito Impugnada

33º Conforme consta da sentença, foram julgados provados, entre outros, os seguintes factos que se transcrevem, e, que se impugnam por via do presente Recurso:

34º Ademais, a sentença recorrida deu como não-provados, entre outros, os factos seguintes, que por serem relevantes para o presente recurso, se transcrevem, impugnando-se desta forma a sua qualificação e afastamento para efeitos da justa composição do litígio:

(…)

II - Da Discordância com a Matéria de Facto dada como Provada e não Provada

56º - Assim sendo, torna-se fundamental a aplicação aos factos elencados o instituto do poder inquisitório judicial, porque as provas sobre a anterior propriedade dos cavalos, e sobre a titularidade das sociedades às quais foram efetuados pagamentos mediante transferência bancária, não podem ser pedidas pela aqui Recorrente por falta de poderes legais para tal, e porque a prova produzida pela própria Ré em sede testemunhal e documental é contraditória, alicerçada às transferências bancárias documentalmente provadas pela Recorrente que referem expressamente o pagamento, nomeadamente, dos cavalos A......., B......., G..... ......, O..... ......., L....., F......., D...., B..... e E........, pondo em crise toda demais prova produzida pela testemunha CC, cujo depoimento foi especialmente e extraordinariamente – contrariando qualquer senso comum - valorado pelo Tribunal a quo.

57º Isto face ao decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão datado de 18/10/2018 e relativo ao processo 1295/11.0TBMCN, que refere:

“II – Este poder-dever cabe com particular acuidade ao juiz de 1ª instância, mas estende-se igualmente às Relações, tribunais que, como os de 1ª instância, conhecem da matéria de facto em recurso que para eles seja interposto contra a decisão proferida neste campo.

III – Tendo o objeto do seu conhecimento delimitado pelos concretos pontos de facto que o recorrente, ao abrigo do princípio do dispositivo, tenha indicado como incorretamente julgados, já no tocante à averiguação desses mesmos factos o Tribunal da Relação não tem de limitar a sua análise aos meios de prova indicados pelo recorrente, dispondo, aqui, de amplo poder inquisitório no âmbito do qual pode recorrer à renovação da prova ou à produção de novos meios de prova.”

58º Porquanto, pode, e permitam os Venerandos Juízes Desembargadores, deve, o Tribunal diligenciar, no âmbito do seu poder-dever anteriormente referido, diligenciar junto da A.... para efeitos de apuramento dos imediatamente anteriores proprietários dos cavalos alegadamente comprados a CC, bem como diligenciar junto do R...... ......... ........ de forma a apurar a titularidade das sociedades E... ..... ..., com NIF/CIF .......57 e E... ........., com NIF/CIF .......92 de forma a poder apurar algum elemento de conexão entre a titularidade dos cavalos antes da sua alegada alienação à Ré AA, e a titularidade do capital social destas sociedades que recepcionaram fundos oriundos da sociedade A......... .......... ..., com vista à compra dos cavalos.

59º Pois só desta forma se alcançará a verdade material e justa composição do litígio, tendo em conta a frágil credibilidade da prova produzida pela Ré em sede de audiência de julgamento, ademais quando esta prova testemunhal submetida pela Ré é contrariada pela prova documental da própria Ré, sem prejuízo de alicerçada à prova documental produzida pela aqui Recorrente e à qual já se aludiu.

60º Também não será de descurar a falta de juízo sobre a prova produzida em sede de Petição Inicial (vide Doc.7 da P.I., via requerimento com referência nº7649136 datado de 16/11/2015), e no qual se manifesta o intuito longínquo da “salvação” dos cavalos defendida pela testemunha CC no seu depoimento, antes tornando-se patente o destino comercial que a Ré pretendia dos cavalos adquiridos pela aqui Recorrente,

61º Sendo certo que nunca foi produzida prova ou alegação das Rés que contrarie tal documento, tornando esta actividade especialmente lucrativa, com venda de cavalos, éguas, poldros e cobrições, oriundos de investimentos que não tinham sido realizados pela Ré, mas sim pela aqui Recorrente, incorrendo aquela em manifesta responsabilidade civil extracontratual, sem prejuízo do enriquecimento sem causa atenta a sua falta de direitos de propriedade sobre os cavalos, éguas, cobrições e respectivas crias.

62º Formando desta forma um prejuízo para a Recorrente que já foi formulado em sede de P.I., ou seja, 2,66 milhões de euros (dois milhões e seiscentos e sessenta mil euros), sendo este valor provado pelo Doc.7 junto à Petição Inicial referente à venda de cavalos e cobrições, de que não era proprietária, pela Ré, devendo tal facto ser dado como provado ao contrário da alegada vontade de “salvação” (que aliás nunca seria plausível tendo em conta, mormente, o garanhão Oporto III, considerado jovem reprodutor melhorador recomendado pela A...., conforme se verifica da prova junta à P.I. – vide ficha individual).

3 – Da convicção do tribunal a quo

63º O tribunal a quo formou a sua convicção com especial fundamento nas testemunhas CC e GG, bem como nas provas documentais consubstanciadas pelo “contrato de compra e venda” vertido no doc.3 da contestação e ao qual já se atendeu (e que, nos termos da sentença foi corroborado pelo depoimento da testemunha CC, tornando-se porquanto patente a dissonância e incompreensão relativa a este raciocínio quando se confrontam os elementos constantes destes dois meios de prova), bem como nas cartas de titularidade.

64º Assim sendo, retomando o que já se expôs quanto à matéria de facto, o depoimento da testemunha CC não pode ser valorado, por contrariar expressamente o vertido no contrato que o tribunal a quo considerou enquanto fundamento, nem tão pouco pode ser considerado fundamental o depoimento da testemunha GG que, por não ter sido contabilista da Ré (ao contrário do expressamente assumido pela sentença a quo), mas sim das sociedades sediadas na Herdade de ... em apreço, sociedades das quais se destacam a S ....... Ltd, que esta testemunha afirma ter sido responsável pelas despesas inerentes à manutenção dos cavalos antes da criação da sociedade Ré MH Horses - Unipessoal Lda.

65º Desde logo confrontando a convicção do tribunal alicerçada neste depoimento com a prova documental produzida pela Recorrente (vide Doc.7 da Petição Inicial), incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento quanto à prova produzida.

Pelo supra exposto, a sentença recorrida incorre em flagrante erro de julgamento, no que diz respeito à propriedade dos cavalos alvo do presente litígio, com a consequência gravosa de não ter sido apreciado, por força de não provada a titularidade, o direito indemnizatório da recorrente.

III –Conclusões

a) pelo exposto, torna-se patente que a testemunha CC, ao referir que comprava e vendia cavalos para os salvar, propondo-os a baixo preço a potenciais compradores, dos quais se destaca in casu a ré AA, que alegadamente efetuou uma primeira transferência (sem suporte probatório documental) e pagamentos sucessivos em dinheiro (igualmente sem qualquer outro suporte probatório documental), apenas sustentando o seu depoimento na ideia de que, sendo a ré consultora e vindo de família abastada, parecia ter dinheiro para o efeito, desconhecendo portanto a origem de tal dinheiro, sem prejuízo dessa origem ficar provada pelo documento 2-a submetido pela autora e ao qual já se aludiu, pondo em crise todo o depoimento da testemunha, que se baseia única e exclusivamente em presunções;

b) que a testemunha GG, cujo depoimento foi igualmente e altamente valorado na decisão recorrida, não era contabilista da ré AA, mas sim das empresas, referindo a sociedade S ....... Ltd (do universo de empresas da família HH), e confirmando que era essa sociedade que, antes da criação da mh horses – unipessoal lda, realizava as despesas relacionadas com a manutenção dos cavalos alvo do litígio, sem contudo apresentar, apesar do seu fácil acesso, qualquer documento probatório nesse sentido, não se percebendo porquanto a alta valoração dada a este depoimento na sentença recorrida.

c) que os registos dos cavalos, não sendo assinadas as declarações simultaneamente pelo vendedor e comprador, perante a entidade oficial (l…), podendo ser assinadas com espaçamento temporal, tornam a presunção de propriedade do registo demasiado frágil para ser valorado da forma que foi pela sentença recorrida, que aqui igualmente errou no julgamento, face às provas documentais dadas pela recorrente (vide doc.2-a do requerimento de 1/06/2020) que por emanarem de instituição bancária internacional, revestem uma solidez outrossim mais relevante.

d) que a sentença, ao considerar que a intenção da ré AA aquando a compra dos cavalos era salvá-los, desconsiderando por completo o doc.7 – prova do site onde eram vendidos os cavalos e cobrições pela M. ......, site esse que não foi contrariado pela ré com base em qualquer outro suporte probatório - junto à petição inicial pela recorrente, incorrendo novamente em erro de julgamento.

e) sendo porquanto flagrante o erro de julgamento, formando-se a convicção do tribunal em provas frágeis, contraditórias, desconsiderando-se meios de prova da recorrente que demonstram outra realidade de facto que aquela apresentada pelas rés.

f) pelo que, mormente quanto ao erro de julgamento sobre a matéria de facto, desde já se invoca a anulação da sentença recorrida, por força do estatuído no art.662º, nºs 1 e 2 do código de processo civil, requerendo-se a ampliação da matéria de facto, nomeadamente no que diz respeito:

1) à propriedade dos cavalos antes do seu registo a favor da ré AA, por via de diligências junto da A.... e I…, face ao poder-dever inquisitório a que anteriormente se aludiu;

2) à titularidade das sociedades para as quais foram realizadas as transferências bancárias a que se aludiu anteriormente e reflectidas no doc.2-a do requerimento de 1 de junho de 2020,por via de diligências junto do registo comercial …;

3) e eventuais elementos de conexão entre os sócios destas sociedades e os imediatamente anteriores proprietários dos cavalos objectos do litígio, através da análise comparativa dos elementos de facto requeridos em 1) e 2).

4) à conexão entre a sociedade A......... .......... .... a sociedade recorrente.

5) à matéria de facto referente às despesas realizadas por conta da manutenção dos animais, no decurso do depoimento da testemunha GG que refere que era a sociedade s ....... ltd que pagava tais despesas de alimentação, veterinário,etc..

6) à conexão entre a sociedade r.... .... .... e as sociedades s..... ..... ltd e s ....... ltd, que arcaram com as despesas de manutenção dos cavalos, sob gerência da ré AA e contabilidade da testemunha GG, mas propriedade de sociedades da família HH.

caso assim não se entenda,

b) dos depoimentos e restante prova produzida pela ré, não poderiam ter sido dados como provados os factos que fundamentam a sentença recorrida.

c) ao contrário das provas produzidas pela recorrente, que não só demonstram a compra dos cavalos como o intuito comercial a que a ré AA os destinava, fundando-se aqui a pretensão indemnizatória da recorrente;

d) como tal , a ação deveria ter sido declarada procedente e provada.

e) pelo que deve a douta sentença ser revogada por outra que condene as rés nos pedidos oportunamente formulados. (…)”

Tendo-se no Acórdão recorrido, tendo em vista a rejeição decidida, expendido os seguintes raciocínios e argumentação:

“(…)

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela A., ora apelante – saber se foi incorretamente valorada pelo tribunal "a quo" a prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada – importa referir a tal propósito que a recorrente não indicou, de todo, nas respetivas conclusões, quais os concretos pontos de facto da decisão sob censura que considera incorretamente julgados, em obediência ao que se encontra expressamente estipulado no art.640° n°l alínea a) do C.P.C.

Com efeito, resulta dos autos que a A., aqui apelante, afirma, no essencial, nas suas alegações de recurso, que o tribunal "a quo" fez uma errónea apreciação da matéria de facto, pelo que a decisão deve ser alterada, já que, face aos factos tidos por assentes e da prova (testemunhal e documental) produzida nos autos, impõe-se uma decisão no sentido da condenação das RR. a reconhecerem a A. como a proprietária dos cavalos identificados no doe. junto a fls.109/110 (por compra à sociedade aí identificada), bem como na entrega dos referidos equídeos à A. por parte das RR.

Todavia, para fundamentar essa sua pretensão, limita-se a A. à transcrição parcial dos depoimentos prestados por algumas testemunhas em julgamento, com referência também a alguns documentos que constam do processo, mas sem nunca indicar, precisar ou concretizar quais são, afinal, os concretos pontos de facto (provados ou não provados) que considera incorretamente julgados, com expressa referência de tal factualidade para os artigos respetivos da petição inicial, da contestação/reconvenção e/ou da réplica.

Além disso, a A. também não explicita devidamente quais as respostas (positivas ou negativas) que deviam ter sido dadas à factualidade que pretende impugnar pela via recursória e, por isso, não cumpriu o estipulado na alínea c) do n°l do citado art.640°.

Na verdade, a A., ora apelante, limita-se a afirmar que, "in casu", foi produzida prova dos factos que servem de fundamento ao pedido que deduziu nestes autos, com a consequente condenação das RR. a reconhecerem que os cavalos pertencem à A. e por via disso, fazerem a sua entrega aquela.

E nem se diga que a A. não o podia fazer no recurso que interpôs para esta Relação - ou seja, indicar quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com referência aos artigos dos respetivos articulados apresentados pelas partes - uma vez que resulta claro que o M.mo Juiz "a quo", na sentença recorrida, indicou, de forma cabal e explícita, quais os factos dados como provados, bem como indicou quais os factos dados como não provados.

Acresce que, sendo as conclusões de recurso uma sintetização do que foi explanado nas alegações - cfr. art.639° n°l do C.P.C. - resulta claro que devia a A. reiterar, nas referidas conclusões, quais eram, afinal, os concretos pontos de facto incorrectamente julgados (por referência expressa e clara aos artigos constantes dos articulados) e quais as respostas a dar aos mesmos, o que, indubitavelmente, não veio, de todo, a fazer!

Deste modo, face ao acima exposto, torna-se evidente que a A., aqui apelante, não deu cumprimento, de todo, ao ónus que lhe era imposto expressamente pelas alíneas a) e c) do n°l do citado art.640° do C.P.C.

(…)

Por isso, atentas as razões e fundamentos acima referidos, é nosso entendimento que - no caso em apreço - face ao disposto no n°l "in fine" do mencionado art.640° do C.P.C., não é possível a este Tribunal Superior conhecer do recurso da apelante quanto à impugnação da matéria de facto apurada no tribunal "a quo" (em virtude de, alegadamente, ter sido incorrectamente valorada a prova documental e testemunhal produzida nos autos) e, por via disso, deverá o mesmo ser rejeitado, nesta parte, o que aqui se determina para os devidos e legais efeitos.

Em consequência, improcede esta primeira questão levantada pela A., ora apelante no presente recurso, mantendo-se imutável a factualidade apurada no tribunal "a quo" - a qual se mostra transcrita supra - não sendo a mesma passível de qualquer alteração no presente aresto.

Analisando agora a segunda questão recursiva levantada pela A., ora apelante - saber se deve ser ampliada a matéria de facto, nos termos do art.662° n°2 alínea c) do C.P.C., a fim de se poder vir a apurar, nomeadamente, da possibilidade de uma sociedade, que não a A., ter comprado os cavalos identificados nos autos, e de uma entidade, que não BB (em representação da "H..... .. ........"), os ter vendido - haverá que dizer a tal respeito, desde já, que a matéria fáctica supra referida não tem qualquer interesse para o desfecho da presente acção, tal como ela foi configurada pela A., além de que se trata de uma "questão nova", cuja apreciação está vedada a este Tribunal Superior.

Na verdade, as diligências propostas pela recorrente, a realizar no tribunal "a quo", fazendo esta Relação uso do "mecanismo" previsto no citado art.662° n°2 alínea c), destinavam-se a apurar factos que, de todo, não constituem a causa de pedir nesta acção, pois não foram alegados pela A. quando da apresentação da sua petição inicial (cujo pedido formulado é, tão só, o de ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre os cavalos identificados no doe. junto a fls.109/110, por compra à sociedade aí identificada, e de ser ordenado às RR. a entrega à A., de todos os cavalos, da propriedade da A., que tenham em seu poder), pelo que forçoso é concluir-se que tal pretensão da recorrente extravasa por completo a composição do litígio dos presentes autos e, consequentemente, aquilo que ao Tribunal "a quo" era lícito conhecer.

Com efeito, estamos em presença de "questão nova", sendo certo que a A. podia ter suscitado a mesma em sede própria, nomeadamente quando apresentou a sua petição inicial, com o consequente "alargamento" da respectiva causa de pedir, pelo que o tribunal "a quo" não se podia ter pronunciado sobre a referida questão.

Por isso, haverá que referir a tal respeito que se trata de uma "questão nova", a qual, não foi suscitada anteriormente no processo pela recorrente, só tendo sido invocada, agora, no presente recurso de apelação, pelo que, nesta fase processual, não pode este Tribunal Superior tomar conhecimento dela por ser, repete-se, uma "questão nova"

(…)

Daí que, pelas razões acima expostas, é nosso entendimento que está vedado a esta Relação conhecer da questão supra referida, uma vez que se trata de matéria que não foi suscitada pela A./apelante no tribunal recorrido, sendo certo que - repete-se - esta o podia ter feito expressamente quando da apresentação da sua petição inicial nos presentes autos, o que, de todo, não fez, não se tratando também de questão que seja de conhecimento oficioso.

(…)”

E procedendo ao “confronto” das alegações e conclusões da apelação (acima transcritas) com as exigências/ónus impostos pelo correto entendimento/interpretação do art. 640.º do CPC:

Importa começar por referir – daí a longa transcrição acabada de efetuar – que, enumerando/identificando a sentença da 1.ª Instância 13 concretos factos provados, a A. “conseguiu”, ao longo das conclusões da sua alegação, não identificar um único daqueles 13 concretos factos provados da sentença da 1.ª Instância que haja sido, a seu ver, mal julgado; e também não disse, sequer no corpo da sua alegação, qual era a redação que algum de tais 13 concretos factos devia passar a ter.

Enfatizamos este ponto porque a questão – a razão para a rejeição da sua impugnação da decisão sobre a matéria de facto – não está no cumprimento do ónus secundário do n.º 2/a) do art. 640.º (saber se a Recorrente identificou ou não nas suas Alegações de Recurso para o Tribunal da Relação de Évora os depoimentos gravados, quer em termos de dia e respetiva sessão, quer ainda em termos de hora e o nome pelo qual consta identificada essa gravação no CD); assim como não está exatamente na especificação, na motivação, dos meios de prova que, no seu entender, determinariam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos que, no art. 33.º, é dito que se impugnam: a questão está em, repete-se, ao longo das conclusões da sua alegação, não ter identificado um único dos 13 concretos factos provados da sentença da 1.ª Instância que haja sido, a seu ver, mal julgado e em, antes disso, no corpo da sua alegação, não ter referido, de modo a não suscitar dúvidas, qual era a redação que algum de tais 13 concretos factos devia passar a ter

Como acima se referiu e sublinhou:

- o recorrente não tem que reproduzir exaustivamente nas conclusões da alegação de recurso o alegado no corpo da alegação, bastando que, nas conclusões afirme a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretize os pontos que pretende ver alterados, desde que, como é evidente, previamente, no corpo da alegação, haja cumprido os demais ónus, especificando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa e deixe expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida.

- como é consistentemente referido pela jurisprudência deste STJ, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635.º/4 do CPC, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões, até por, acrescenta-se, as conclusões confrontarem o recorrido com o ónus de contra-alegação, evitando dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente, e servirem ainda para delimitar o objeto do recurso (nos termos do referido art. 635.º do CPC).

Este Supremo, na sua referida linha de evitar, na apreciação do cumprimento dos ónus do art. 640.º do CPC, os efeitos dum excessivo formalismo, tem procurado estabelecer uma separação entre os requisitos formais de admissão da impugnação da decisão de facto e os requisitos ligados ao mérito ou demérito da pretensão, porém, há sempre um mínimo que tem que ser cumprido.

“Mínimo” que, no caso, não foi atingido/concretizado pela A. na sua apelação: o segmento das suas alegações respeitante à impugnação da decisão de facto é uma permanente e contínua mistura de considerações de facto e de direito, sem uma única conclusão clara e inequívoca em sede de facto e, acima de tudo, sem explicitar, de modo a não suscitar dúvidas, as “respostas” que algum dos 13 concretos pontos de facto mal julgados deveriam passar a ter; e no segmento das suas conclusões respeitante à impugnação da decisão de facto padece da mesma incompletude, limitando-se a dizer, assaz genericamente, que é “flagrante o erro de julgamento, formando-se a convicção do tribunal em provas frágeis, contraditórias, desconsiderando-se meios de prova da recorrente que demonstram outra realidade de facto que aquela apresentada pelas rés.”

A ponto de nem sequer por interpretação, despidos de quaisquer “formalismos”, podermos dizer com um mínimo de segurança (e respeitando o princípio da auto-responsabilidade das partes e da imparcialidade) quais são exatamente os concretos pontos de facto colocados em crise nas conclusões da alegação (a R. parece ter deixado ao critério do T. da Relação a sua escolha, tendo em vista poder concluir-se pela procedência da ação); sendo certo – não pode esquecer-se, daí não haver qualquer desproporcionalidade ou irrazoabilidade na rejeição decretada pelo Acórdão recorrido – que não oferece qualquer dificuldade fazer bem o que a A. fez “mal” (não oferece qualquer dificuldade dizer, por ex., que o facto provado n.º 2 da sentença foi dado como provado e devia ser dado como não provado e colocar isto – pelo menos a primeira parte – nas conclusões e a A. não fez isto).

É pois inteiramente acertado dizer, como faz o Acórdão recorrido, que a A. não explanou nas conclusões quais eram, afinal, os concretos pontos de facto incorretamente julgados e em, por tal razão, rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto; já não será inteiramente acertado (face à jurisprudência fixada no AUJ deste Supremo, de 17/10/2023, segundo a qual, “nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”) considerar, como faz o Acórdão recorrido, que a A. tinha que explanar, nas conclusões, as “respostas” que tais factos deviam passar a ter, porém, como se referiu, a A. também não fez tal explanação no corpo das alegações, pelo que também por aqui – por não ter feito tal explanação, de forma inequívoca, no corpo das alegações – havia razão para rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Assim como foi completamente acertado não aceitar o aperfeiçoamento das conclusões e proferir nesse sentido, em Conferência, o Acórdão de 23/09/2021.

Efetivamente, no art. 640.º do CPC – que estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto – não está previsto, como no imediatamente anterior art. 639.º do CPC, respeitante aos ónus de alegar e formular conclusões, um convite ao aperfeiçoamento idêntico ao do art. 639.º/3 do CPC.

Daí que tenha sido numa situação prevista no art. 639.º/3 do CPC que foi proferido o Acórdão deste Supremo de 29/10/2019 (no Processo nº738/03.0TBSTR.E1.S3) que a recorrente invoca a seu favor e como significando que tinha, aqui, que ser convidada a aperfeiçoar as conclusões da sua apelação: em tal processo 738/03, a Relação havia considerado que as alegações de recurso não continham conclusões por estas serem uma transcrição ipsis verbis do corpo das alegação, ou seja, o Acórdão invocado não se debruça sobre uma hipótese de convite ao aperfeiçoamento em caso de deficiente cumprimento dos ónus do art. 640.º do CPC.

Em conclusão, a Relação não violou as normas de direito adjetivo (art. 640.º do CPC) relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, ou seja, não merece censura a rejeição (com fundamento em a A., na apelação, não haver cumprido devidamente os ónus impostos pelo art. 640.º do CPC, mais exatamente, por não haver especificado, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto proferida pela 1.ª Instância.

É quanto basta para julgar totalmente improcedentes as conclusões da A./recorrente e para negar a revista.

Efetivamente, repetindo-se o que se começou por observar, a revista só é admissível e tem, por isso, como único objeto válido a questão de saber se a A. (enquanto apelante) cumpriu (ou não) devidamente os ónus impostos pelo art. 640.º do CPC, o que significa que o segmento do Acórdão recorrido que não admitiu a ampliação da matéria de facto, por esta extravasar o objeto da apelação e constituir uma questão nova não faz parte do objeto válido da presente revista.

Em todo o caso, perspetivando o que agora (na revista) a A. invoca (a propósito da ampliação da matéria de facto) como uma possível violação, pela Relação, do art. 662.º/2/c) do CPC, acrescenta-se que, em tal art. 662.º/2/c) do CPC, está em causa o poder/dever de anular a decisão proferida pela 1.ª Instância quando a própria Relação considere indispensável a ampliação da matéria de facto e não constarem do processo todos os elementos que permitam tal ampliação da matéria de facto.

O erro processual em que a Relação incorrerá (e que permitirá a revista, ao abrigo do art. 662.º/2/c) do CPC) estará em a Relação considerar que foram alegados factos, por ela reputados como juridicamente relevantes, que não constam do elenco dos factos provado ou não provados e o processo não conter, a propósito de tais factos, a produção de todos os elementos probatórios para ela própria, Relação, os poder dar como provados ou não provados, sucedendo que, perante isto, a Relação não anula, para que seja produzida a indispensável prova sobre tais factos, a decisão da 1.ª Instância.

O erro da Relação – que pode ser escrutinado pelo Supremo – é o de não “anular” a decisão da 1.ª Instância, numa situação em que essa mesma Relação considera que há factos juridicamente relevantes sobre os quais não foi produzida a indispensável prova.

Tal mecanismo – que não pode subverter as boas regras processuais ligadas aos princípios do dispositivo, da preclusão, da auto responsabilidade das partes e da imparcialidade – não poderá servir, por ex., para suprir as falhas probatórias das partes, em função do que o seu expetável campo de aplicação será restrito àquelas situações em que um tema juridicamente relevante, segundo a Relação, não foi sequer enunciado como “tema de prova” (o que permite supor que sobre o mesmo não foi produzida a indispensável prova).

O que significa que, se a Relação não reputa sequer uma concreta factualidade como juridicamente relevante, não incorre a mesma em qualquer erro processual (hoc sensu), ou seja, o que se admite que o Supremo escrutine (a propósito do “não uso” dos poderes do art. 662.º/1 e 2 do CPC) são violações de direito adjetivo e não violações de direito substantivo e se a Relação entende que determinada factualidade é juridicamente irrelevante cometerá, se for o caso, um erro de direito substantivo e não um erro processual.

Enfim, os erros processuais/adjetivas do art. 662.º/2 do CPC que o Supremo escrutina têm que estar espelhados no próprio texto/conteúdo do Acórdão da Relação recorrido e não é o caso: como consta da transcrição acima efetuada, a Relação considerou “que a matéria fáctica supra referida não tem qualquer interesse para o desfecho da presente ação, tal como ela foi configurada pela A., além de que se trata de uma "questão nova", cuja apreciação está vedada a este Tribunal Superior”, pelo que, sem qualquer erro adjetivo, recusou a ampliação da matéria de facto.


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IV - Decisão

Nos termos expostos, nega-se a revista.

Custas pela A..


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Lisboa, 16/11/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Maria Olinda Garcia

Graça Amaral

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1. Embora, depois, introduza questões que extravasam o estrito âmbito do que é admissível numa revista como a presente.

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2. Cfr. Acórdãos do STJ de 29/10/2015, 01/10/2015, 19/02/2015, 18/02/2016, 11/02/2016, 19/01/2016, 03/12/2015, 16/11/2015, 26/11/2015 e 09/07/2015, todos disponíveis em www.dgsi.pt.↩︎

3. Cfr. Ac STJ de 23/02/2010 e de 22/10/2015, disponíveis em www.dgsi.pt.↩︎