Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
209/10.9TAGVA.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO
Descritores: ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IRREGULARIDADE
LEI NOVA
TRÂNSITO EM JULGADO
Data do Acordão: 10/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - O acórdão enuncia de modo claro e suficiente as razões pelas quais o tribunal entendeu e fundamentou a não aplicação da norma processual penal prevista nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, na versão dada pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, que entrou em vigor em 22/03/2022.
II - Face ao que se decidiu quanto ao critério de aplicação da lei nova, o momento em que ocorreu o trânsito em julgado do acórdão recorrido, diferido por virtude da interposição de recurso de constitucionalidade da decisão que rejeitou o recurso para o STJ, é irrelevante. Supondo que seja uma questão e não apenas um argumento, a sua apreciação ficou prejudicada, não constituindo o seu não tratamento autónomo fundamento de nulidade.
III - No momento da interposição de recurso, a decisão da Relação era irrecorrível, consequentemente, o recurso para o STJ é inadmissível. E não passou a ser admissível por efeito da entrada em vigor da lei nova, porque esta é de aplicação imediata, mas não tem efeito retroativo.
IV - Proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa, não sendo a apreciação do requerimento em que se arguem nulidades momento idóneo para o tribunal da causa conhecer de quaisquer inconstitucionalidades, salvo, obviamente as que respeitem às normas disciplinadoras do próprio incidente, o que não é o caso.
IV - No caso, não só não foi praticada qualquer irregularidade processual nem se verifica que a mesma tenha existido como, não tendo sido indicada nem arguida, em tempo, pelos interessados, não estão reunidos os pressupostos processuais para que a mesma seja conhecida e declarada a sua reparação.
Decisão Texto Integral:

Recurso de Revisão


Incidente de arguição de nulidade


Processo: n.º 209/10.9TAGVR.C1.S1


5ª Secção Criminal





Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA (doravante “AA”) e V....... – IMOBILIÁRIA, S.A. (doravante “V.......”) arguiram a nulidade do acórdão do STJ, proferido nestes autos em 14/09/2023, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c), ex vi art.º 425.º, n.º 4, ambos do CPP, considerando que “A pretensão dos aqui Arguidos não foi adequadamente apreciada e houve uma clara omissão de pronúncia relativamente à questão do trânsito em julgado do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que era evidentemente uma matéria em que existe uma clara divergência entre os Arguidos e a Decisão Singular de que se reclamou.”, e, “Caso assim não se entenda, o exposto sempre constituiria uma irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123.º, do CPP.” – sublinhado nosso.

2. Alegam que “ no entender dos Arguidos, esse Supremo Tribunal de Justiça peca, isto porque, apesar do alegado na Reclamação, não houve uma concreta análise de todas as questões objeto de recurso e fundamentais para a boa decisão da causa, existindo uma adesão tautológica à Decisão Sumária Singular, sem um esforço de contraposição dos argumentos apresentados pelos Arguidos na Reclamação para a Conferência”,

3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal pugnou pelo indeferimento da arguida nulidade, emitindo parecer nos seguintes termos:


(…) as questões colocadas à apreciação da conferência na reclamação contra a decisão sumária de 1 de maio de 2023 tinham a ver com a natureza processual penal material do art. 400.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, e com a sua aplicação retroativa por força, designadamente, do art. 29.º, n.º 4, parte final, da Constituição, e com a inconstitucionalidade da interpretação normativa do art. 5.º do Código de Processo Penal no sentido de que a nova redação do art. 400.º, n.º 1, al. e), do mesmo Código não se aplica aos recursos interpostos antes da entrada em vigor da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, cuja decisão de não admissão ainda não é definitiva (v. as als. K) e seguintes da reclamação).


Ora, o acórdão de 14 de setembro de 2023 pronunciou-se sobre essas questões (v. os respetivos pontos 2.1. e seguintes).


Por outro lado, a partir do momento em que a decisão sumária de 1 de maio de 2023, primeiro, e o acórdão de 14 de setembro de 2023 do Supremo Tribunal de Justiça, por adesão àquela, depois, assinalam a existência de três correntes jurisprudenciais a propósito da data atendível para o efeito de determinação da lei reguladora da admissibilidade dos recursos [uma que defende que é a data da decisão de 1.ª instância, outra que é a data da decisão recorrida (posição que veio a ser adotada no acórdão) e uma terceira que é a data da interposição do próprio recurso] e concluem que, independentemente da orientação que se perfilhe, seria sempre de aplicar ao caso o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, porquanto, como se descreve na resenha efetuada nos pontos II. A. 6. (4) a (8), (16) e (17) da decisão sumária, quer o recurso do acórdão de 18 de dezembro de 2019 do Tribunal da Relação de Coimbra, quer o recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, confirmando anterior decisão sumária, rejeitou o recurso da parte criminal do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, foram interpostos antes de 22 de março de 2022, id est, antes da data em que a Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, entrou em vigor, sempre ficaria prejudicada a, já em si, inecessária apreciação da tese dos requerentes de que o art. 400.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, é aplicável enquanto o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra não transitar em julgado (trânsito que, na perspetiva dos mesmos, ainda não se verificou).


Aqui chegados, uma vez que também não se descortina qualquer «violação» ou «inobservância das disposições da lei do processo penal» (sendo certo que, ainda que assim não fosse, o prazo de arguição da correspondente irregularidade já fora ultrapassado no momento da sua invocação), emite-se parecer no sentido do indeferimento do requerido.”.

4. Cumpre decidir se ocorre a arguida nulidade da sentença.

II. FUNDAMENTO

1. A arguição é manifestamente improcedente.


A nulidade por omissão de pronúncia ocorre quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, conforme art.º 379.º, n. º1, al) c), 1ª parte, ex vi do art.º 425.º, n.º4, do CPP, isto é, suscitadas ou de conhecimento oficioso e não estejam prejudicadas pela solução dada a outras.


Ora, como salienta o Digno Magistrado do Ministério Público, o acórdão enuncia de modo claro e suficiente as razões pelas quais o tribunal entendeu e fundamentou a não aplicação da norma processual penal prevista nos termos do art.º 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, na versão dada pela Lei 94/2021, de 21 de dezembro, que entrou em vigor em 22/03/2022.


Do acórdão sob censura resulta claramente a irrelevância dos argumentos dos reclamantes que, devidamente ponderados, nada de novo acrescentaram ao já decidido pela decisão sumária confirmada, cujo teor se mostra transcrito no ponto 2.2. da fundamentação de direito do acórdão do qual ora se argui a nulidade por omissão de pronúncia.


Efectivamente referiu-se naquele aresto, transcrevendo a decisão sumária reclamada:


10. Dito o que precede e sendo tempo de retornar ao mais concreto, tem-se, então, que, como tudo já referido:


─ O acórdão da 1ª instância foi proferido em 3.5.2017, nele saindo os Requerentes – aliás, todos os arguidos e, ou, demandados civis – absolvidos da pronúncia criminal e dos pedidos de indemnização cível.


O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra foi emitido em 18.12.2019, nele se revertendo as absolvições de 1.ª instância em condenações dos Requerentes – e de outros – pela co-autoria do crime de fraude na obtenção de subsídio, nas penas de prisão de 2 anos e 6 meses, substituídas pelas da respectiva suspensão executiva – Requerentes pessoas singulares – e multa no montante de € 1 875,00 – Requerentes pessoas colectivas –, bem como – todos – no pagamento das indemnizações discriminadas.


─ Os recursos interpostos pelos Requerentes desse acórdão para este STJ estão datados de 2.2.2020 e de 5.2.2020.


Tais recursos, na parte criminal, foram admitidos por despacho de 1.10.2020 e de 9.11.2020.


─ E foram rejeitados, com fundamento em irrecorribilidade, por acórdão 13.1.2022.


Ora, conforme o já exposto:


Só com a prolação do acórdão da Relação, proferido contra os Requerentes, se concretizou o direito deles recorrer de tal decisão, a exercitar no prazo determinado por lei.


Porém, seja qual for o momento que se eleja para o efeito de determinar a lei reguladora da admissibilidade dos recursos que interpuseram – lei do tempo da prolação do acórdão, como se prefere; lei do tempo da prolação do acórdão de 1ª instância; lei do tempo do acto de interposição dos recursos –, sempre emergirá a norma do art.º 400º n.º 1 al.ª e) do CPP na redacção anterior à Lei n.º 94/2021 – ou, se se preferir, na redacção da Lei n.º 20/2013 – que, em conjugação com a do art.º 432º n.º 1 al.ª b) do CPP, estabelecia a irrecorribilidade de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações que, mesmo que inovatoriamente face à absolvição em 1.ª instância, aplicassem penas não privativas da liberdade, como são a multa e a prisão suspensa na sua execução.


Sendo, assim, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra irrecorrível quando foi proferido – e, mesmo, aquando da decisão de 1ª instância; aquando da interposição dos recursos para o STJ; aquando das decisões da admissão destes; aquando do acórdão que os rejeitou; aquando da interposição dos recursos para o Tribunal Constitucional; e aquando do despacho do STJ que admitiu tais recursos –, não deve ser aplicada a lei nova, que passa a admitir recurso onde antes o não havia mas que apenas dispõe para o futuro.


E sendo que, quando a redacção da Lei n.º 94/2021, entrou em vigor, em 22.3.2022, já o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra tinha transitado em julgado na parte criminal. Por isso que bem se podendo dizer com o Ac STJ de 23.6.2022 citado que «[s]e, no momento da interposição de recurso, a decisão da Relação era irrecorrível, consequentemente, o recurso para o STJ é inadmissível. E não passou a ser admissível por efeito da entrada em vigor da lei nova, porque esta é de aplicação imediata, mas não tem efeito retroativo.»” – negrito nosso.


Ou seja, nada se ignorou quanto à invocada tese inovatória dos arguidos, cujo argumento é o de que o Ac. da Relação de Coimbra não estava transitado em julgado, na parte criminal, antes de verificado o trânsito em julgado do acórdão do Tribunal Constitucional, que se pronunciou sobre a inconstitucionalidade do artigo 400.º, alínea e), do CPP, o que, no seu entendimento, só aconteceu a 30 de maio de 2023.


Face ao que se decidiu quanto ao critério de aplicação da lei nova, o momento em que ocorreu o trânsito em julgado do acórdão recorrido, diferido por virtude da interposição de recurso de constitucionalidade da decisão que rejeitou o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, é irrelevante. Supondo que seja uma questão e não apenas um argumento, a sua apreciação ficou prejudicada, não constituindo o seu não tratamento autónomo fundamento de nulidade. No momento da interposição de recurso, a decisão da Relação era irrecorrível, consequentemente, o recurso para o STJ é inadmissível. E não passou a ser admissível por efeito da entrada em vigor da lei nova, porque esta é de aplicação imediata, mas não tem efeito retroativo.


Acresce que, proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa, não sendo a apreciação do requerimento em que se arguem nulidades momento idóneo para o tribunal da causa conhecer de quaisquer inconstitucionalidades, salvo, obviamente as que respeitem às normas disciplinadoras do próprio incidente, o que não é o caso. Pelo que, não há que tratar agora de outras questões de constitucionalidade além das versadas na decisão sumária e no acórdão que a confirmou.


Termos em que se indefere a arguida nulidade do acórdão de 14/09/2023.

2. Alegam, ainda, os arguidos que a falta de conhecimento do mérito de questões jurídicas fundamentais ao recurso, caso não constitua uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c), ex vi art.º 425.º, n.º 4, ambos do CPP, “(…) sempre constituiria uma irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123.º, do CPP”, sem que indicassem qualquer fundamento para a conclusão formulada.


A nulidade do acto, tal como referenciado em comentário de Henriques Gaspar, ao art.º 118.º, do CPP, em Código de Processo Penal comentado, Almedina, 3.ª edição revista, pág. 329/330, “A violação ou inobservância das condições ou dos pressupostos do acto, que não constituam nulidade, determina apenas a «irregularidade» do acto.”, enquanto que “As meras irregularidades resultam da inobservância das leis de processo que a lei não considera nulidades; o acto irregular produz efeitos se não for invalidado, e a invalidade tem de ser requerida pelos interessados”, conforme aliás dispõe o art.º 123.º, do CPP.


Ora, no caso, não só não foi praticada qualquer irregularidade processual nem se verifica que a mesma tenha existido como, não tendo sido indicada e nem arguida, em tempo, pelos interessados, não estão reunidos os pressupostos processuais para que a mesma seja conhecida e declarada a sua reparação.


Tanto basta para que, na parte respeitante, improceda a alegação dos arguidos.

II. DECISÃO


Termos em que acordam os Juízes da 5.ª Secção, do Supremo Tribunal de Justiça, em:

a. Indeferir o requerido;

b. Condenar os Requerentes em custas pelo incidente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC, por cada um – artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.


Lisboa, 26 de Outubro de 2023 (processado e revisto pelo relator)


Leonor Furtado (Relator)


Agostinho Torres (Adjunto)


António Latas (Adjunto)