Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2863/21.7T8CBR-A.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REJEIÇÃO DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
OBJETO DO RECURSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROVA TABELADA
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
O Supremo Tribunal de Justiça deve rejeitar o recurso de revista, dele não tomando conhecimento, se o recorrente se limita a expressar a sua discordância com a decisão da Relação que alterou a matéria de facto com base na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação (art. 662º, nº4 do CPCivil).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


No processo de inventário subsequente a divórcio para partilha de bens comuns, em que é cabeça de casal AA e interessada BB veio esta reclamar da relação de bens com os seguintes fundamentos:

- A verba nº 1 não é bem comum, pois apenas se trata de uma conta bancária titulada pela interessada e os dinheiros ali depositados advieram-lhe por doação de sua mãe, primeiro, e por óbito daquela, depois;

- A relação de bens omite dois créditos do património comum sobre o cabeça de casal, pois procedeu ao levantamento/transferência duma conta bancária comum no Banco ..., com o nº .............-7, da quantia de € 15.138,30, de que se apropriou, fez inteiramente sua e usou em seu exclusivo interesse e benefício;

- No período de junho a dezembro de 2020, o seu ex-marido pagou parte da mensalidade do lar de idosos onde se encontrava a sua mãe, no montante total de € 1.500,00, através da referida conta bancária.

Sobre a reclamação recaiu a seguinte decisão:

“(…) improcede a reclamação à relação de bens, devendo ser corrigida a verba nº 1 da relação de bens, passando a constar com a seguinte redacção:

Verba nº 1

Conta bancária de depósito com o nº IBAN 50......................47, da Caixa Geral de Depósitos, que à data apresentava um saldo de € 27.765,54.


*


Relativamente à falta de relacionamento de dois créditos do património comum sobre o cabeça de casal, do levantamento/transferência duma conta bancária comum no Banco ..., com o nº .............-7, da quantia de € 15.138,30 e de € 1.500,00.

A conta bancária referida é um bem comum.

Não houve lugar a produção de prova testemunhal sobre estes factos.

Dos documentos juntos aos autos não nos é permitido concluir que o cabeça de casal fez tais transferências para uma conta própria.

Logo, a interessada deveria ter feito prova que os valores ali depositados não eram bens comuns e não o fez.

Como tal, presumindo a lei a comunicabilidade dos bens móveis – artigo 1725º do Código Civil - improcede a reclamação à relação de bens.”

Inconformada, a interessada BB apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra, visando a alteração nos seguintes termos:

“(…)

deveria ter sido dado com provado na decisão de que aqui se recorre (e deve o Tribunal da Relação proceder agora a essa alteração, nos termos do já referido art.662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) que “O cabeça-de-casal, para pagamento de parte da mensalidade do lar de idosos onde se encontrava a sua mãe, procedeu à transferência duma conta bancária comum no Banco ..., com o n.º .............-7, de outras quantias, agora no total de €1.500,00, nos seguintes valores parcelares:

a) Em 15-06-2020 retirou daquela conta a quantia de €200,00;

b) Em 06-07-2020 retirou daquela conta a quantia de €300,00;

c) Em 18-08-2020 retirou daquela conta a quantia de €200,00;

d) Em 06-10-2020 retirou daquela conta a quantia de €200,00;

e) Em 02-11-2020 retirou daquela conta a quantia de €200,00;

f) Em 26-11-2020 retirou daquela conta a quantia de €200,00; e

g) Em 28-12-2020 retirou daquela conta a quantia de €200,00.”.

W. Uma vez mais, sendo os montantes em causa bens comuns a ambos os agora ex-cônjuges (quer por força da presunção contida no art. 1725.º do Código Civil, quer por força da contitularidade da conta quer, por último, por força do reconhecimento que assim é por parte do aqui recorrido) e tendo-se demonstrado que os mesmos foram retirados à disponibilidade da interessada, aqui recorrida, co-titular de tais valores, para serem usados para pagamento de parte da mensalidade do lar de idosos em que se encontrava a mãe do ora recorrido, terá de se reconhecer a existência dum crédito do casal, nesse valor, sobre a pessoa que o movimentou ou levantou – o cabeça-de-casal, aqui recorrido.

X. Deverá, pois, ser aditada à relação de bens uma verba autónoma analisável num novo crédito do património comum sobre o cabeça-de-casal agora no valor de €1.500,00.

O Recorrido cabeça de casal contra alegou pugnando pela improcedência da apelação.


///


A Relação de Coimbra proferiu acórdão que alterou a matéria de facto, vindo a proferir a seguinte decisão:

“…, julga-se o recurso parcialmente procedente e determina-se:

1 – A subtração da quantia de €14.417,00 à verba n.º 1 da relação de bens.

2 – A inclusão na relação de bens de uma verba com este teor: «Crédito do património comum sobre o cabeça-de-casal no montante de €15.138,30.»

3 - A improcedência do recurso quanto ao resto.

Custas na proporção de 78% pelo Recorrido e de 22% pela Recorrente.”

Inconformado, o cabeça de casal AA interpôs recurso de revista, no qual apresenta as seguintes conclusões:

1- O presente recurso tem por objeto um Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que incide sobre a decisão proferida pelo Tribunal da 1ª Instância, no incidente de reclamação à relação de bens comuns, no processo especial de Inventário subsequente ao divórcio entre recorrente e recorrida, e do qual o ora Recorrente não se conforma, pelos motivos já explicitados e que fundamentam o presente recurso.

2- Nos autos de inventário em que é cabeça de casal AA e interessada/reclamante BB, a mesma apresentou reclamação contra a relação de bens junta pelo cabeça de casal no seguintes termos:

1 - A verba nº 1 da relação de bens não é bem comum, pois apenas se trata de uma conta bancária titulada pela interessada e os dinheiros ali depositados advieram-lhe por doação de sua mãe, primeiro, e por óbito daquela, depois.

2 - A relação de bens omite dois créditos do património comum sobre o cabeça de casal, pois procedeu ao levantamento/transferência duma conta bancária comum no Banco ..., com o nº .............-7, da quantia de € 15.138,30, de que se apropriou, fez inteiramente sua e usou em seu exclusivo interesse e benefício.

3 - No período de junho a dezembro de 2020, pagou parte da mensalidade do lar de idosos onde se encontrava a sua mãe, no montante total de 1.500,00, através da referida conta bancária.

3 – É a matéria de facto supra citada que a Reclamante alega e que tinha de provar, o que não fez; pelo que, bem andou o Tribunal da 1ª Instância, ao decidir como decidiu.

4 - O Tribunal de 1ª Instância deu como provados os factos constante nos pontos 1 a 6 da matéria de facto provada na decisão proferida e como não provados os factos constantes nos dois parágrafos da matéria de facto não provada, os quais se dão aqui todos por reproduzidos para todos os efeitos legais.

5 - No Douto Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação reapreciou a matéria de facto alterando a matéria de facto dada como provada pela 1ª Instância, nos seguintes termos:

1 – O ponto 4 dos factos provados passou a ter a seguinte redação:

4. A conta referida em 3. tinha depositada, à data de 21.08.2020 e até 15.09.2020, a quantia de 27.765,54, mas dos dinheiros depositados nesta conta a quantia de 14.417,00 foi recebida pela interessada BB após a morte da sua mãe através de transferências bancárias efetuadas pelo seu irmão e como a sua quota parte na herança deixada por aquela.”

2 - Acrescentou o ponto 4/A, com a seguinte redação:

Após a entrada em juízo da petição inicial de divórcio em ... de Janeiro de 2020), foram depositadas na conta identificada como

< 1>> da relação de bens, as seguintes quantias: 3.200,00 (em 22 de Novembro de 2020), 2.000,00 (em 01 de Dezembro de 2020) e 1.600,00 (em 30 de Janeiro de 2021).”

3 - E eliminou os dois factos não provados pela 1ª Instância supra citados considerando-os matéria de facto provada.

6 Salvo o devido respeito, não se concorda com a matéria de facto dada como provada no ponto 4 a partir de “(…) mas (…) até aquela.” e do ponto 4-A do acórdão ora recorrido, e do qual ora se recorre.

7 - A decisão proferida no incidente de reclamação à relação de bens comuns no processo de inventário, incide sobre matéria substantiva que influencia a partilha dos bens comuns do extinto casal; razão pela qual foi atribuído efeito suspensivo pelo tribunal da 1ª instância ao recurso interposto sobre aquela decisão.

8 – Conforme entendimento dominante na Doutrina e na Jurisprudência, o ónus da prova cabe ao reclamante, no caso em apreço, à reclamante BB, ora Recorrida; pois, quem alega a falta de relacionação de bens tem o ónus de prova dessa falta. Neste sentido, entre outros, cita-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10-11-2016, Processo nº5002/13.2TBBRG-A-G1, disponível em www.dgsi.pt

9 – A Reclamante não fez prova dos factos por si alegados, como bem decidiu o Tribunal da 1ª Instância.

10 – No que respeita à quantia de € 14.417,00 como bem próprio da reclamante, a nova redação do ponto 4 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da Relação, partiu de um facto dado como não provado pelo Tribunal da 1ª Instância.

11 - O acórdão recorrido diz no ponto 1, al. b) da fundamentação o seguinte:

Afigura-se que procede a impugnação nesta parte pelas seguintes razões:

(I) Á partida dir-se-ia que não seria difícil fazer prova desta factualidade, pois bastaria juntar os extratos das diversas contas e mostrar o percurso do dinheiro até à sua entrada na conta PT50 .... .... ........... 77 da CGD (...).”

Apesar disso, a convicção forma-se no sentido de que a quantia em questão, que entrou na conta bancária acabada de referir, teve como proveniência a herança da mãe da recorrente.”

12 - O que está em causa e alegado pela reclamante, que lhe incumbia provar é: se a quantia em causa de € 14.417,00 foi recebida pela reclamante (ora recorrida) em virtude de sucessão por óbito de sua mãe, porque só neste caso é que é bem próprio.

13 - O acórdão ora recorrido responde a esta questão afirmativamente, formando a sua convicção de acordo com o depoimento da Testemunha CC e documentação que corrobora as suas declarações.

14 – O Tribunal da Relação concluiu com base na prova testemunhal, única testemunha da Reclamante BB e dos talões de multibanco por esta juntos à reclamação sob os documentos nºs 5 a 13 e juntos aos presentes autos de recurso; documentos que, em nosso entendimento, não corroboram as declarações da testemunha CC.

15 - O Douto Acórdão recorrido diz: “É certo que não se mostram nos autos se a conta número .............95 era titulada pelo irmão da recorrente, mas também não se mostra que não era.”

16 - Como poderia, assim, o Tribunal recorrido formar a sua convicção, concluindo como concluiu, quando nem sequer existem nos autos prova documental da titularidade da supra citada conta - Facto essencial constitutivo do direito alegado pela reclamante.

17 - Os documentos 5 a 12 e 13 deviam tornar verosímil os factos alegados, in casu, que a quantia de € 14.417,00 é um bem próprio da reclamante, o que não se verificou.

18 – O Acórdão recorrido diz, ainda, que: “a testemunha não veio aos autos juntar qualquer documentação”, o que, com o devido respeito, não corresponde ao processado nos autos.

19 - Refere ainda o acórdão recorrido que: “Mas também é certo que a testemunha não é parte interessada nos autos e a sua inatividade não pode ser valorada negativamente no sentido de prejudicar a formação da convicção de que aquelas verbas provieram da herança da mãe da recorrente.”

20 – Saliente-se que, foi a própria testemunha, CC quem, notificado para o efeito e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito da mãe juntou aos autos a respetiva participação do imposto de selo e relação de bens (cfr. requerimentos de 15/07/2022, com registo de entrada .....65 e em 11/10/2022com registado de entrada .....87; o que fez nos termos do disposto no artigo 432º do C.P.C.

21 – In casu, não obstante não caber o ónus da prova ao ora Recorrente, este requereu a junção de prova documental, como contraprova, e por ser relevante para a descoberta da verdade material e boa decisão a causa.

22 – Em 06/12/2022, o ora Recorrente já havia requerido nos autos, além do mais, que a testemunha/cabeça de casal juntasse aos autos os extratos da alegada conta titulada pela mãe à data do respetivo óbito, uma vez que nada consta do imposto de selo e relação de bens que juntou.

23 – Sobre tal requerimento, o Tribunal da 1ª Instância proferiu o seguinte despacho:

Por extravasar o âmbito destes autos, atendendo igualmente ao ónus de prova, indefere-se o requerido.” (…); entendeu, assim, o Tribunal da 1ªInstância, e bem, que o ónus da prova era da reclamante.

24 - O Tribunal ao dizer que tais documentos extravasam o âmbito destes autos, foi e terá de ser interpretado no sentido de que, no caos em apreço não está em causa a partilha dos bens por óbito da mãe da Reclamante e seu irmão/testemunha.

Mas também não foi neste sentido que a testemunha foi notificado e juntou aos autos o imposto de selo e a relação de bens por óbito da mãe, mas sim no sentido de comprovar a origem dos dinheiros.

Sem prejuízo, em audiência de julgamento, o Recorrente reiterou o citado requerimento, o qual foi novamente indeferido.

25 – A prova documental requerida pelo aqui Recorrente e junta aos autos, para efeitos de contraprova, não poderiam levar à alteração e ampliação da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da Relação.

26 – Não existem nos autos meios de prova documentais que sustentem a alteração defactos nãoprovados para factos provados, como erradamente ofez, com todo o respeito que é muito, o Tribunal da Relação.

27 – Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal ora recorrido violou claramente normas substantivas, in casu, os dispostos nos artigos 341º e 342º do Código Civil e normas processuais, in casu, o disposto nos artigos 413º; 417º do C.P.Civil.

28 – A única testemunha da Reclamante é o irmão CC, cabeça de casal na herança aberta por óbito da mãe de ambos; e do teor das suas declarações, é forçoso concluir que esta é parte interessada.

29 - A testemunha é interveniente direto nos factos a provar e alegados pela reclamante no que respeita à origem da quantia de € 14.417,00.

30 - A testemunha declarou ser cotitular com a irmã/reclamante numa conta bancária da falecida mãe (qual?) e, ainda, que efetuou uma transferência de dinheiros de tal conta (?) para uma conta sua (l?) e, posteriormente (um ano após o óbito da mãe), transferiu metade de tal quantia (?) para a conta da irmã/reclamante.

31 – Salvo o devido respeito, mas, é de todo fora das regras da experiência comum ser a reclamante e o irmão/testemunha cotitulares com a mãe de uma alegada conta com poupanças desta, e não terem junto o extrato bancário comprovativo da sua existência e titularidade, comprovando, assim, que a quantia de € 14.417,00 pertencia à herança por óbito da mãe.

32 - Pelas regras da experiência comum, tanto a própria reclamante, como qualquer cidadão comum e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito da mãe, o irmão da reclamante/testemunha teria junto ao processo os comprovativos bancários das alegadas contas e transferências, evitando-se assim o seu depoimento.

33 – E provando deste modo, os factos constitutivos do direito alegado pela reclamante, ou seja, que a citada quantia é bem próprio desta.

34 – Além do mais, a testemunha declara tratar-se de poupanças da mãe, como a mesma disse: “da reformazita da mãe”.

35 – O depoimento da testemunha, com toda a impaciência e nervosismo manifestados, como o Tribunal da Relação confirma, contrariamente ao seu entendimento, entende-se demonstrar claramente a falta de coerência e falta de credibilidade no seu depoimento.

36 - Na ausência de prova documental que facilmente era junta pela reclamante e/ou pela testemunha, contrariamente ao entendimento do Tribunal da Relação, tal inatividade por parte desta deveria ter sido valorada negativamente, mantendo a decisão da 1ª Instância.

37 – Entende-se que as declarações da testemunha em que o Acórdão se suporta mostram-se completamente desacompanhadas de outros elementos probatórios, que permitissem alteração da qualificação da matéria de facto feita pelo Tribunal da Relação.

38 – Verificando-se, assim, uma errada apreciação e valoração da prova e erro de julgamento da matéria de facto.

39 – Ora, incumbia à Reclamante provar se a citada quantia de € 14.417,00 foi recebida em virtude de sucessão por óbito de sua mãe, e o tribunal recorrido responde a esta questão afirmativamente, dizendo que:

“(…) Ora, na falta de um qualquer facto ou factos que coloquem em dúvida esta explicação (da testemunha), a convicção do tribunal deve formar-se de acordo com o depoimento da Testemunha CC e documentação que corrobora as suas declarações.”

41 – Certo é que, o Tribunal da Relação afirma (e bem) que facilmente se faria prova de tal factualidade, bastaria juntar os extratos das contas e o percurso do dinheiro; dúvidas não há, que os mesmos não foram juntos aos autos.

42 – Pelo que, não pode o tribunal recorrido afirmar que a documentação junta aos autos e ao presente processo de recurso corrobora as declarações da testemunha.

43 - O Tribunal da Relação não dá por assente a titularidade da conta donde foram transferidas em 31/12/2016 várias quantias que totalizam a quantia € 14.417,00 para a conta da reclamante. Nem podia.

44 - A 1ª Instância e a Relação não dão como provada a existência da conta da mãe cotitulada com os filhos, nem o saldo bancário à data do respetivo óbito. Nem podiam.

45- Sendo certo tratar-se de factos essenciais constitutivos do direito alegado pela Reclamante e relevantes para a descoberta da verdade material e para boa decisão da causa.

46 - Ao decidir como decidiu, também o Tribunal da Relação incorreu num erro de apreciação e valoração da prova, com o consequente erro de julgamento, o que se invoca para todos os efeitos legais.

47 – Com o devido respeito, mal andou o Tribunal da Relação ao sobrepor à certeza da prova documental a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal que, no caso em apreço, caberia o papel secundário de determinar o alcance dos documentos, que só não foram juntos pela parte a quem competia juntar porque assim não o quis.

Aliás como o próprio Tribunal da Relação confirma no Douto Acórdão recorrido: “Não seria difícil fazer prova (documental - palavra nossa) desta factualidade (…)”.

48 - O Tribunal da Relação ao eliminar os factos dados como não provados pela 1ª Instância e dar como provados os factos que acrescentou ao ponto 4 dos factos provados e o ponto 4-A dos factos provados, lançou mão de uma presunção judicial partindo de factos não provados e que ainda padece de evidente ilogicidade e ofensa da norma legal, prevista nos artigos 349º e 351º do C. Civil.

49 – O acórdão recorrido manteve a matéria de facto provada no ponto 5, com a seguinte redação:

“5. A interessada BB recebia na conta 50................... ... 47 da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” o vencimento auferido C..., desde, pelo menos, o ano de 2017 até 30.01.2021.

50 - Lê-se ainda no acórdão recorrido:

Seguramente não se tratou de saldos auferidos pela recorrente, pois ela recebia o seu salário nessa conta, mas os valores salariais, como se de fls. 181 a 227 destes autos de recurso, entre 31/12/2016 e 30/04/2022, oscilaram entre o mínimo líquido de 926,74 (31/12/20216), 760,74 em 31/07/2021 e 2.117,34 (com subsídio de férias) em 30/06/2020.” (o negrito é nosso).

51 – Ora, o Tribunal recorrido incorre em erro, pois, da análise dos documentos de fls. (…) juntos ao processo e aos presentes autos de recurso, os vencimentos recebidos pela reclamante na conta da CGD da C... .. ....., desde início de 2017 até 30/01/2021 somam o valor líquido de € 58.692,08; e até 31/08/2020 já totalizavam € 53.456,66 – data da propositura da ação de divórcio (cfr. ponto 2 dos factos provados);

52 – E resulta ainda que, entre 28/02/2021 e 30/04/2022 a reclamante passou a receber o vencimento da C... .. ....., não na conta da CGD em causa, mas sim numa conta do BBVA (docs. 34 a 47 da resposta à reclamação e juntos ao presente processo de recurso).

53 – E contrariamente ao acórdão recorrido, há notícias nos autos que a reclamante tinha outra atividade remunerada, conforme comprovado pelos extratos de conta do Banco ... – conta à ordem comum designada “Conta Função Pública Ordenado” infra identificada e onde recebia o vencimento do CH..., tal como o recorrente o seu vencimento e juntos a fls. (…) ao processo e aos presentes autos de recurso.

54 - Da análise destes documentos, o Tribunal da Relação teria formado forçosamente uma convicção diferente, e decidido de forma diferente, deixando forçosamente de ser o relato da testemunha a única explicação lógica para permitir compreender aqueles factos históricos - a existência daquelas transferências, naquelas circunstâncias.

55 – E a explicação dada pela testemunha não se mostra corroborada pelos documentos juntos ao processo, pois, do doc. nº11 - talão multibanco junto à Reclamação apenas resulta a existência de transferências datadas de 31/12/2016 de uma conta para a uma outra conta e que, antes de tais transferências, em 26/12/2016 - Linha 7 (sete) - o saldo de tal conta era de € 14.514,56 (e não € 28.834,00).

56 - No acórdão recorrido diz-se, ainda:

O Recorrido, cabeça de casal, seu ex-marido também não indicou qualquer outra origem para aquelas transferências efetuadas naquele ano, num dia e num espaço de tempo de cerca de 15 minutos.”

57 – Ora, o Recorrente não indicou nem podia indicar, por se tratarem de documentos na posse da parte contrária e de terceiros; razão porque requereu a junção dos extratos das contas em causa.

58 - O cabeça de casal/Recorrente requereu e foram juntos recibos de vencimento da Reclamante que comprovam que, entre 01/01/2017 até 30/01/2021, a Reclamante recebeu na conta da CGD em causa o total de 56,456,66.

59 – Pelo que, é forçoso concluir existirem factos e factos documentados que colocam em dúvida a explicação dada pela testemunha e, portanto, a credibilidade da própria testemunha.

60 – Não podendo, assim, o Tribunal da Relação lançar mão da presunção judicial para decidir como decidiu.

61 - A Reclamante/Recorrida reclama a omissão de dois créditos do património comum sobre o cabeça de casal/ora Recorrente, alegando que, o cabeça de casal procedeu ao levantamento/transferência duma conta bancária comum no Banco ..., com o nº 033.10.055980-7, de que se apropriou, fez inteiramente sua e usou em seu exclusivo interesse e benefício; e que, no período de junho a dezembro de 2020, pagou parte da mensalidade do lar de idosos onde se encontrava a sua mãe, no montante total de € 1.500,00, através da referida conta bancária.

62 – Ora, o ónus da prova é da reclamante/ora Recorrida, a qual não fez prova dos factos alegados, com, assim, bem decidiu a 1ª Instância, ou seja, não fez prova de que o cabeça de casal se apropriou, fez inteiramente sua e usou em seu exclusivo interesse e benefício a quantia de € 15.138,30.

63 - O Tribunal da relação manteve a matéria de facto dada como provada no ponto 6 da sentença de 1ª Instância, ou seja, que o cabeça de casal transferiu da conta comum do Banco ... com o nº ..............-7 a quantia total de € 15.138,30 correspondente à soma das quantias mencionadas nas alíneas a) a j).

64 – A decisão da 1ª Instância diz que, “ (…) dos documentos juntos aos autos não nos é permitido concluir que o cabeça de casal fez tais transferências para uma conta própria.”

65 – Efetivamente, a conta do Banco ... com onº ..............-7 supra identificada é comum e os dinheiros aí depositados também o são.

66 - O Tribunal ora recorrido diz: “É certo que o Recorrido alegou que nem todos os levantamentos foram feitos por si mesmo, mas sim pela Recorrente, mas tais afirmações não resultaram provadas. O que consta da matéria provada é o teor acima exposto relativo ao facto provado 6. Face a ele, resulta que o recorrido se apropriou da indicada quantia que era de ambos.”

67 - Com o devido de respeito, não se concorda com o Tribunal recorrido, o qual incorreu em erro na apreciação e valoração da prova documental junta ao processo e aos presentes autos de recurso e, consequentemente, em erro de julgamento.

68 - A Reclamante não provou, nem produziu qualquer prova, de que a conta destino da quantia de €15.138,30 é exclusiva do cabeça de casal /Recorrente, ficando assim a Reclamante/Recorrida sem poder aceder ao dinheiro, conforme alegou nas alegações de recurso.

69 - A Reclamante juntou aos autos apenas o documento nº14 – parte do extrato da conta a prazo comum com o nº .............-7 do Banco ..., designada “Conta Particulares”, no período de 25/06/2020 até 27/08/2021, onde consta que o 1º titular é o ora Recorrente.

70 – Não obstante, o cabeça de casal/ora Recorrente juntou ao processo e aos presentes autos de recurso os extratos das duas contas comuns do Banco ...:

1 - extratos bancários desde 05/01/2019 até 19/10/2020 da conta a prazo nº .............-7 do Banco ..., (“Conta Particulares”) - doc. 2 junto pelo ora Recorrente à resposta à reclamação, incluindo o extrato junto sob o doc. 14 pela reclamante/recorrida);

2 - extratos desde 01/01/2019 até 08/01/2021 da conta à ordem comum do Banco ... com o nº.............-9 designada “Conta Função Pública Ordenado”; conta esta associada à supra cita conta a prazo e onde foram creditadas todas as quantias transferidas e mencionadas no referido extrato da conta a prazo junto pela reclamante sob o documento 14 e que a reclamante não impugnou por ser verdade – documentos 3, 4 e 5 juntos pelocabeça de casal, ora Recorrente aos autos e ao presentesautos de recurso.

71- Conjugados e confrontados os extratos das contas a prazo e à ordem comuns do Banco ..., facilmente se conclui, como bem concluiu o Tribunal da 1ª Instância, que não resultou provado nos autos de que tais transferências/levantamentos foram efetuadas para uma conta própria do Recorrido; antes pelo contrário.

72 - As transferências/levantamentos identificados no doc. 14 junto pela Reclamante/ora Recorrida e nos docs. 2, 3, 4 e 5 juntos pelo cabeça de casal/ora Recorrente, todos juntos aos presentes autos de recurso, são:

1 - 09/07/2020 foi transferida da conta a prazo comum supra € 250,00 que foi creditada na conta à ordem comum supra na mesma data;

2 - 23/08/2020 foi transferida da conta a prazo comum supra € 1.300,00 que foi creditada na conta à ordem comum supra na mesma data;

3- 23/08/2020 foi transferida da conta a prazo comum supra € 600,00 que foi creditada na conta à ordem comum supra na mesma data;

4- 09/10/2020 foi transferida da conta a prazo comum supra € 200,00 que foi creditada na conta à ordem comum supra na mesma data;

5- 28/10/2020 foi transferida da conta a prazo comum supra € 1.000,00 que foi creditada na conta à ordem comum supra na mesma data;

6- 30/10/2020 – levantamento ao balcão da conta a prazo comum supra € 7.000,00

7 - 02/11/2020 foi transferida da conta a prazo comum supra € 250,00 que foi creditada na conta à ordem comum supra na mesma data;

8 - 11/11/2020 foi transferida da conta a prazo comum supra € 3.500,00 que foi creditada na conta à ordem comum supra na mesma data;

9 – 13/01/2021 foi transferida da conta a prazo comum supra € 400,00 que foi creditada na conta à ordem comum supra na mesma data;

10- 19/01/2021 foi transferida da conta a prazo comum supra € 688,30;

74 – Pelo que, o Recorrente provou documentalmente que, tanto a reclamante como o cabeça de casal tinham acesso às duas contas comuns do ..., e que o destino das transferências indicadas pela Reclamante no supra citado documento 14 foi a conta à ordem comum do Banco ... associada à mencionada conta a prazo;

- à exceção do levantamento de 30/10/2020 e da transferência de 19/01/2021.

75 – Assim, dos extratos das duas contas do Banco ... juntos pelo Recorrente (cfr. Docs. 2, 3, 4 e 5 juntos ao articulado de resposta à reclamação) e dos documentos juntos ao processo pelo própria Instituição Bancária Caixa Económica ... a fls. (…), todos juntos aos presentes autos de recurso, resultou comprovado documentalmente que:

- A reclamante BB, após as transferências da conta a prazo comum que indica no doc. 14 para a conta à ordem comum, fez:

- várias transferências da conta à ordem comum do ... supra identificada naquele período para a conta por si titulada da CGD e identificada nos autos e nestes autos de recurso,

- levantamentos com o seu cartão multibanco e cuja respetiva titularidade o Banco ... comprovou nos autos documentalmente e juntos aos presentes autos de recurso,

- e, ainda, em 11/11/2020 levantou ao balcão a quantia de € 3.450,00 (mesma data da transferência de € 3.500,00 da conta a prazo comum para a conta à ordem comum do ... supra identificadas) - conforme documento bancário assinado pela Reclamante junto pelo cabeça de casal sob o doc. 5 à sua resposta à reclamação, e junto aos presentes autos de recurso; não impugnados pela Reclamante.

76 – Assim, não podia o Tribunal recorrido concluir que: “o Recorrido alegou que nem todos os levantamentos foram feitos por si mesmo, mas sim pela Recorrente, mas tais afirmações não resultaram provadas.”; porquanto o ora Recorrente fez prova documental de tais afirmações.

78 - O Tribunal recorrido manteve a matéria dada como provada pela 1ª Instância no ponto 6 da matéria de factos provados, contudo, contrariamente ao entendimento do Tribunal da Relação, tal facto não permite concluir como concluiu, que: “Face a ele, resulta que o recorrido se apropriou da indicada quantia que era de ambos.”

79 – O Tribunal da Relação fez uma errada apreciação da prova documental junta pelo ora Recorrente, incorreu em erro de julgamento, ao decidir como decidiu - existência de um crédito do património comum sobre o cabeça de casal, ora Recorrente no valor da € 15.138,30.

80 – Quanto ao crédito do património comum sobre o cabeça de casal, na quantia de 1.500,00, o Tribunal recorrido diz que: “esta matéria deve ser declarada provada porquanto o recorrido a confessou. O recorrido diz na resposta à reclamação que fez essas transferências.

- Mas se não fosse esta declaração não se conseguia saber apenas pelos documentos (…).”

81 – O Tribunal recorrido deu como provado o crédito de € 1.500,00 atenta a confissão do cabeça de casal, porque dos documentos juntos aos autos – extrato de conta, não se conseguia saber.

82 – Pelo que, não havendo confissão dos € 1.500,00, tais factos seriam dados como não provados; devendo ser feito igual raciocínio quanto às questões objeto do presente recurso.

83 - O Tribunal da 1ª Instância concluiu que: “Não houve lugar a produção de prova testemunhal sobre estes factos. Dos documentos juntos aos autos não nos é permitido concluir que o cabeça de casal fez tais transferências para uma conta própria.

84 – O Tribunal recorrido deveria ter mantido tal decisão;

Pois, nos presentes autos o resultado de provado ou não provado, não é absolutamente inócuo. Pelo contrário, tal decisão influi decisivamente na partilha.

85 - O Tribunal da 1ª Instância decidiu e não remetendo para os meios comuns, dúvidas não havia, como não há, nem pode haver que, a prova do alegado cabia à Reclamante, o que não fez.

86 - O Tribunal da Relação de Coimbra ao decidir como decidiu quanto às matérias objeto do presente recurso fez uma errada apreciação e valoração da prova e uma errada aplicação do direito, com consequente erro de julgamento.

87- Com a decisão proferida, o Tribunal ora recorrido violou claramente normas substantivas, in casu, os dispostos nos artigos 341º, 342º, 344º do Código Civil e normas processuais, in casu, o disposto nos artigos 413º; 417º do C.P. Civil.

88 - A causa deve ser reapreciada para a devida aplicação do direito.

89 - Devendo a decisão da 1ª Instância ser mantida.

Não foram apresentadas contra alegações.


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Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

1. AA e a interessada BB celebraram casamento no dia ... .09.1994, no regime de bens adquiridos, sem convenção antenupcial.

2. O ex-casal divorciou-se por sentença proferida e transitada em julgado em ... 05.2021, no processo nº 3228/20.3..., tendo a ação de divórcio dado entrada em tribunal em 26.08.2020.

3. A conta bancária de depósito PT 50................... ... 47 da «Caixa Geral de Depósitos, S.A.», agência de ..., é titulada pela interessada BB.

4. A conta referida em 3. tinha depositada, à data de 21.08.2020 e até 15.09.2020, a quantia de €27.765,54, mas dos dinheiros depositados nesta conta a quantia de €14.417,00 foi recebida pela interessada BB após a morte da sua mãe, através de transferências bancárias efetuadas pelo seu irmão e como a sua quota-parte na herança deixada por aquela.

4/A - Após a entrada em juízo da petição inicial de divórcio, em ... de Janeiro de 2020), foram depositadas na conta identificada como «Verba 1» da relação de bens, as seguintes quantias: €3.200,00 (em 22 de novembro de 2020), €2.000,00 (em 1 de dezembro de 2020) e €1.600,00 (em 30 de janeiro de 2021).

5. A interessada BB recebia na conta n.º 50................... ... 47 da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” o vencimento auferido C..., desde, pelo menos, o ano de 2017 até 30.01.2021.

6. O cabeça-de-casal procedeu ao levantamento/transferência duma conta bancária comum no Banco ..., com o n.º .............-7, da quantia total de €15.138,30, nos seguintes termos:

a) Em 09-07-2020 transferiu daquela conta comum a quantia de €200,00.

b) Em 23-08-2020 transferiu daquela conta comum a quantia de €1.300,00.

c) Em 18-09-2020 transferiu daquela conta comum a quantia de €600,00.

d) Em 09-10-2020 transferiu daquela conta comum a quantia de €200,00.

e) Em 28-10-2020 transferiu daquela conta comum a quantia de €1.000,00.

f) Em 30-10-2020 levantou ao balcão, daquela conta comum, a quantia de €7000,00;

g) Em 02-11-2020 transferiu daquela conta comum a quantia de €250,00.

h) Em 11-11-2020 transferiu daquela conta comum a quantia de €3.500,00.

i) Em 13-01-2021 transferiu daquela conta comum a quantia de €400,00; e

j) Em 19-01-2021 transferiu daquela conta comum a quantia de €688,30.

7 – O cabeça-de-casal retirou da conta n.º ......... ...............3 (Banco ...) e do seu vencimento que aí era depositado, diversas outras quantias com as quais procedeu, durante os meses de junho a dezembro de 2020, ao pagamento de parte da mensalidade do lar de idosos onde se encontrava a sua mãe, no total de €1.500,00:

a) Em 15-06-2020 retirou daquela conta, para o referido efeito, a quantia de €200,00;

b) Em 06-07-2020 retirou daquela conta, para o referido efeito, a quantia de €300,00;

c) Em 18-08-2020 retirou daquela conta, para o referido efeito, a quantia de €200,00;

d) Em 06-10-2020 retirou daquela conta, para o referido efeito, a quantia de €200,00;

e) Em 02-11-2020 retirou daquela conta, para o referido efeito, a quantia de €200,00;

f) Em 26-11-2020 retirou daquela conta, para o referido efeito, a quantia de €200,00;

g) Em 28-12-2020 retirou daquela conta, para o referido efeito, a quantia de €200,00.

Fundamentação de direito.

O presente recurso de revista vem interposto de acórdão da Relação proferido sobre decisão de 1ª instância que decidiu uma reclamação contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal num inventário para partilha de bens comuns (art. 1133º do CPCivil).

A apelação procedeu em parte, na sequência da alteração introduzida pelo Tribunal da Relação na matéria de facto.

O Recorrente, começa por se insurgir contra as alterações introduzidas pela Relação na matéria de facto, que consistiram na alteração do ponto 4, o aditamento de um novo, na alteração para provado de um facto que a 1ª instância havia julgado não provado. Concretamente:

No ponto 4, a decisão de 1ª instância havia consignado:

A conta referida em 3 – com o nº PT 50................... ... 47 da Caixa Geral de Depósitos, SA, agência de ... – tinha depositado, à data de 21.08.2020 até 15.09.2020, a quantia de € 27.765,54.

A Relação alterou este ponto de facto, fazendo-lhe o seguinte acrescento:

“ (…), mas dos dinheiros depositados nesta conta a quantia de €14.417,00 foi recebida pela interessada BB após a morte da sua mãe, através de transferências bancárias efetuadas pelo seu irmão e como a sua quota-parte na herança deixada por aquela.

E aditou o facto 4/A com a seguinte redacção:

- Após a entrada em juízo da petição inicial de divórcio, em ... de Janeiro de 2020), foram depositadas na conta identificada como «Verba 1» da relação de bens, as seguintes quantias: €3.200,00 (em 22 de novembro de 2020), €2.000,00 (em 1 de dezembro de 2020) e €1.600,00 (em 30 de janeiro de 2021).

Relativamente ao ponto 4 da matéria de facto, julgou a Relação que parte da quantia depositada na conta referida em 3, concretamente, €14.417,00, foi recebida pela interessada BB da herança de seu mãe, sendo, portanto, um bem próprio e não comum, pelo que deve ser subtraída ao valor de €27.765,54.

Da leitura do acórdão recorrido, verifica-se que a Relação procedeu a estas alterações a partir do depoimento da testemunha CC, irmão da Recorrida, da análise de extractos bancários e de talões do multibanco, e é contra a valoração destes meios de prova que o Recorrente se insurge.

Sucede que não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça sindicar se a Relação ajuizou bem ao decidir que parte da quantia depositada na conta bancária referida em 3 proveio da herança da mãe da interessada BB, uma vez que a prova deste facto resultou de prova testemunhal e da análise de documentos particulares, portanto com força probatória não tabelada.

Com efeito, resulta do disposto nos arts. 674º, nº3 e 682º, nº2, do CPC, bem como do preceituado no art. 46º da LOSJ (Lei nº 62/2013 de 26.08), que o STJ, constituindo um tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito e não de matéria de facto, encontrando-se absolutamente excluída da sua competência a análise e decisão quanto ao acerto ou desacerto na prolação da decisão de factos, bem como a inerente discussão sobre a concreta valoração das provas em que a mesma assentou.

Este princípio comporta as excepções previstas na parte final do nº3 do art. 674º - ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, ou que fixe a força de determinado meio de prova – situações excepcionais estas que não se verificam no caso em análise.

Constitui entendimento pacífico na jurisprudência do STJ que a discordância da apreciação crítica e conjugada da prova feita pela Relação e da convicção que, com base nas provas produzidas, a mesma formou, não é sindicável pelo STJ, desde que não enquadrável nas excepções previstas no art. 674º, nº3l, do CPCivil (cf., por todos, os Acórdãos do STJ de 06.06.2019, P.3416/14 e de 22.02.2022, P. 116/16).

Como assim, estando em causa uma pura questão de facto, não pode ser objecto do recurso de revista, a questão relativa à origem dos €14.417,00 que integram a quantia depositada na conta aberta na agência da CGD SA, na agência de ....


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Insurge-se ainda o Recorrente contra o acórdão da Relação na parte que determinou a inclusão na relação de bens de uma verba com o seguinte teor:

“Crédito do património comum sobre o cabeça de casal de €15.138,30.”

Na base desta decisão está o facto provado sob o nº 6 da sentença, mantido pela Relação, nos termos do qual “o cabeça-de-casal procedeu ao levantamento/transferência duma conta bancária comum no Banco ..., com o nº .............-7, da quantia global de €15.138,30”, em dez ocasiões distintas, entre 09.07.2020 e 19.09.2021.

Entendeu a Relação que como se trata de uma conta titulada por ambos os ex-cônjuges considera-se que a respetiva quantia é de ambos em partes iguais porque não existem elementos factuais que mostrem ser de outro modo, em face do que decidiu:

(…)

O Recorrido alegou que nem todos os levantamentos foram feitos por si mesmo, mas sim pela Recorrente, mas tais afirmações não resultaram provadas.

O que consta da matéria provada é o teor acima exposto relativo ao facto provado n.º 6.

Face a ele, resulta que o Recorrido se apropriou da indicada quantia que era de ambos.

Por conseguinte, deve restituí-la para ser partilhada, procedendo nesta parte o recurso, o que implica que se acrescente na relação de bens uma verba com este teor:

«Crédito do património comum sobre o cabeça-de-casal no montante de €15.138,30.»

Dissentindo do assim decidido, sustenta o Recorrente (conclusões 74 e ss), ter provado documentalmente que o destino das transferências referidas no ponto 6 da matéria de facto indicadas foi a conta à ordem comum do Banco ... associada à mencionada conta a prazo, à exceção do levantamento de 30/10/2020 e da transferência de 19/01/2021, pelo que, contrariamente ao decidido pela Relação, não é verdade que se “apropriou da mencionada quantia que era de ambos.”

Ora o que resulta do ponto 6 da matéria de facto é que o cabeça de casal procedeu ao levantamento/transferência de um total de €15.138,30 de uma conta comum, mas nada se provou quanto ao destino daquele dinheiro, designadamente que tenha sido a conta comum a que se refere o Recorrente.

Vale aqui o já atrás dissemos. O Supremo Tribunal de Justiça não reaprecia a decisão de facto, afora os casos excepcionais supra referidos, pelo que não lhe cabe apreciar se “o Tribunal da Relação fez uma errada apreciação da prova documental junta pelo ora Recorrente”, como este sustenta na conclusão 79, por não estar em causa a violação de norma que regula a força probatória de um meio de prova.

Não podendo as questões suscitadas ser objecto do recurso de revista, a conclusão inevitável é que não pode tomar-se conhecimento do mesmo.

Sumário, (art. 663º, nº7 do CPCivil).

O Supremo Tribunal de Justiça deve rejeitar o recurso de revista, dele não tomando conhecimento, se o recorrente se limita a expressar a sua discordância com a decisão da Relação que alterou a matéria de facto com base na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação (art. 662º, nº4 do CPCivil).

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este colectivo em rejeitar o recurso.

Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 24.10.2023


Ferreira Lopes (relator)

Manuel Capelo

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza